A arte da ficção


Texto interessantíssimo de Henry James, copiado do blog Amarelo Fosco, de Alysson Amorim.

O romance precisa se levar a sério para que o público o leve a sério também. A velha superstição sobre a ficção ser “iníqua” sem dúvida morreu na Inglaterra; mas seu espírito subsiste num certo olhar oblíquo que se dirige a qualquer história que não admita, mais ou menos, ser apenas uma anedota. Mesmo o romance mais anedótico sente de algum modo o peso da proscrição que antes se dirigia contra a leviandade literária: a anedota nem sempre consegue se passar por ortodoxia. Ainda se espera, embora as pessoas talvez tenham vergonha de dizer, que uma produção que, afinal, é apenas uma “simulação” (pois o que mais é uma história?) deva ser de algum modo apologética – deva renunciar à pretensão de tentar realmente representar a vida. Isso, claro, qualquer história sensata, consciente, rejeita fazer, pois logo percebe que a tolerância que lhe é emprestada sob essa condição é apenas uma tentativa de sufocá-la, disfarçada na forma de generosidade.

A velha hostilidade evangélica ao romance, que era tão explícita quanto estreita, e que o considerava tão pouco favorável ao nosso ser imortal quanto a peça de teatro, era na verdade bem menos insultuosa. A única razão para a existência do romance é que ele tenta de fato representar a vida. Quando ele desdenha dessa tentativa, a mesma tentativa que se vê na tela do pintor, terá chegado a uma situação muito estranha. Não se espera de uma pintura que seja tão humilde que possa ser esquecida; e a analogia entre a arte do pintor e a arte do romancista é, até onde posso ver, completa […].

A história também se permite representar a vida; não se espera dela, não mais do que da pintura, que faça apologias. O tema da ficção está arquivado, como em documentos e registros, e para que seja explorado é preciso falar dele com segurança, com a tonalidade do historiador. Alguns romancistas de renome têm o costume de entregar-se que deve com frequência levar às lágrimas pessoas que tomam sua ficção a sério. Recentemente me espantei, ao ler muitas páginas de Anthony Trollope, com sua falta de discrição quanto a isso. Numa digressão, num parêntese ou aposto, ele concede ao leitor que ele e esse amigo confiante estão apenas “simulando acreditar” […].

Tal traição de um ofício sagrado me parece, confesso, um crime terrível […] Implica que o romancista está menos ocupado em procurar a verdade (quero dizer, claro, a verdade que ele assume, as premissas que lhe garantimos, quaisquer que sejam) do que o historiador, e ao fazê-lo está se privando de uma pincelada do quarto em que está. Representar e ilustrar o passado, as ações do homem, é a tarefa de qualquer escritor, e a única diferença que posso ver é a favor do romancista, se bem sucedido, porque ele tem bem mais dificuldade de coletar suas provas, que estão longe de ser puramente literárias. Parece-me que lhe dá um grande caráter o fato de ele ter em comum tanto com o filósofo como com o pintor; essa dupla analogia é uma herança magnífica.

Henry James em “A arte da ficção”.

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