Transportando tesouros e atropelando cachorros – os heróis da vida pequena


por Luiz Henrique Matos

Atropelei um cachorro na estrada. Foi tudo tão rápido, estava escuro, ele correu para o meio da pista e parou diante do carro, uns cinco metros à frente. Eu nem consegui pisar no freio. Lembro do olhar estático do pobre animal paralisado pela luz alta do farol e em seguida o impacto seco no pára-choque. Vi, depois, a sombra escura e morta no asfalto pelo retrovisor, cada vez mais distante, pequena, até sumir. Sem nada que pudesse fazer, chorei e segui viagem.

Voltávamos do interior do estado, onde visitamos alguns familiares e eu dirigia por uma estrada paralela enquanto as duas dormiam no banco de trás.

E pensando no momento que acabava de viver, me preocupei com algo mais que pudesse nos acontecer. Viajamos por essas estradas tantas vezes e, é bem verdade, não tenho noção real dos riscos que corremos. Olhei de relance para as duas, mãe e filha, que dormiam desconfortáveis e temi pela responsabilidade de levá-las para casa em segurança.

Eu carregava um tesouro precioso. Confiadas à minha direção, estavam as coisas mais importantes que tenho nessa terra e, bem, eu peno em admitir, mas não sou dos melhores motoristas que conheço – e isso já é um auto-elogio – o que torna o desafio um tanto maior.

Exagerando outra vez nas analogias, eu me sinto como um daqueles guerreiros de histórias épicas que saem em cruzadas pela terra com a missão de transportar algum tesouro precioso para o rei. Levam consigo uma carta de recomendação, viajam em nome da coroa e estão dispostos a abrir mão da própria vida em favor de algo que não lhes pertence mas pelo qual, não se sabe a razão, são apaixonados.

Mas, peno em dizer, eu não sou um guerreiro habilidoso. Não manejo bem uma espada, não sei montar cavalos e meu reflexo não é apurado. O fato é que às vezes eu falho nessa missão. Piso feio na bola. Deixo cair, desprotejo, penso mais em mim mesmo do que nelas. Mas, apesar de minhas limitações, a carta do rei sempre me faz lembrar a que vim. Seu olhar não me deixa esquecer que são suas filhas que estão sob minha responsabilidade.

Não, não pense que isso é um desabafo arrependido. Pelo justo contrário, eis aqui meu voto de fidelidade, minha alegria, o reconhecimento, afinal, do que entendo por realização.

Descobri que longe de ser um fardo, essa missão consiste em minha grande alegria. E não é que a minha visão seja limitada ou que me falte ambição, eu só notei que tenho em casa o tesouro mais nobre que jamais poderia sonhar conquistar. E empenhar a própria vida em favor desse prêmio, talvez seja o mais heróico dos gestos que poderei ostentar.

O herói da vida pequena. A refeição em casa. As férias em família. O tempo juntos sentados no sofá da sala vendo o mesmo desenho pela trigésima vez. As brincadeiras simples na rua. O cineminha com pipoca de sexta à noite com a eterna namorada. Deus, a família, os amigos. As melhores coisas da vida não nos custam sequer um centavo.

Que feito pode ser mais nobre do que dar vida a um ser humano, guiar seus primeiros passos e conduzi-lo em sua existência para que um dia seja alguém melhor do que eu jamais sonhei ser? O que pode ser melhor do que amar uma linda mulher e empenhar a vida em protegê-la, sustentá-la e lhe ser fiel? Que massagem no ego pode ser melhor do que descobrir que duas lindas garotas te acham o cara mais bonito, forte e bacana do planeta, apesar da barriga proeminente, da barba por fazer e da toalha molhada largada sobre a cama (tá bom, eu admito que exagerei no bonito, forte e bacana)? Que honra maior em ver multiplicar o fruto desse amor (leia-se netos) e acompanhá-los crescendo saudáveis, santos, unidos e correndo pelo quintal da nossa casa?

Bom, parece simples, mas não é simplório. Parece pouco nobre, talvez porque seja tão comum a todos. Parece não dar nenhuma fama e reconhecimento público, e realmente não dá mesmo. Mas eu acredito sinceramente que nada pode fazer um homem mais feliz.

Penso nisso tudo agora, seguindo de volta pra casa, para que um dia eu não precise ver as coisas importantes que deixei para trás. Para que a vida que eu sempre quis não seja atropelada pelas escolhas erradas que fiz, como uma sombra na escuridão, pequena e distante no retrovisor.

Eu sigo viagem. Eu, meu cavalo, a carta do Rei me incumbindo da nobre tarefa de ser pai e um tesouro incalculável em meus braços. Sim, essa é a grande missão do guerreiro. Habilidoso ou não, sigo satisfeito em saber que já carrego comigo o grande prêmio da vida.

Essa crônica faz parte da série “Paternidade”:

1. A explosão da vida
2. Versos infantis dessa minha felicidade
3. As grandes conquistas do homem
4. As cegonhas não existem
5. O amor, um calção e gestos primitivos (cinco minutos antes de minha vida mudar)
6. Colos, cólicas, chavões e uma crônica de continuação
7. Na falta do que dizer
8. Pequenas lições
9. Doentes curando doentes
10. Primeiros passos
11. Sobre a velhice, rotinas e prioridades
12. Música para os meus ouvidos
13. E o futuro, a quem pertence?
14. Versos infantis 2 – alegria, tristeza e distração
15. De mãos dadas
16. Sobre ser pai no Dia dos Pais
17. A doce presença

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