Ela ainda cabe no meu colo


por Luiz Henrique Matos

No próximo fim de semana ela fará quatro anos. Eu posso jurar que nunca imaginei esse momento da vida dela chegando. Crianças de quatro anos para mim costumavam parecer grandes demais perto do frágil bebê que eu carregava nos braços por aí. Mas agora eu tenho uma menina em casa, a cada dia com mais jeitos, vestidos, vontades, brilhos e argumentos, mandando em mim desde o princípio das eras, tal qual a mãe – e antes que a coisa esquente por aqui, reconheço que obedeço satisfeito a ambas.

De um modo inexplicavelmente rápido e fora de controle, as coisas foram acontecendo. Ainda há pouco éramos um casal de namorados decidindo sobre o cinema de sexta, o curso na faculdade, a data do noivado, o bairro onde morar, o nome do bebê, a maternidade onde ela nasceria… vivíamos momentos tão diferentes em nossas vidas. Hoje, mal conseguimos lembrar o que era viver – ou que graça poderia ter uma casa – sem um filho por perto.

Toda a rotina quadrada se tornou plena em si. E o cotidiano de pai de família que poderia talvez parecer a alguém o resigno de um sujeito acomodado, se tornou para mim a maior conquista a que eu poderia ter acesso. Em geral, são nesses preciosos momentos, que esse mesmo alguém poderia chamar de comuns, que se pode observar a beleza inesquecível de certos detalhes. Aquele tipo de coisa rara que, enquanto acontece você já sabe que jamais esquecerá.

Estou vendo TV ou lendo algo no sofá quando percebo que ela vem lá do quarto pelo corredor cantarolando e pulando (se tem algo que os livros e o Google não explicam mas que é uma espécie de lei natural na formação das crianças é que, antes de aprender a andar civilizadamente, lá pelos 17 anos, elas praticamente só se locomovem pulando ou correndo). Então, ela surge na sala rodopiando e plana como uma bailarina por sobre o piso de madeira. E dançando, com caras, bocas, tropeços e poses, enche de graça toda uma semana. A mãe, aluna de balé durante a infância, se encanta e ensina o “pli-ê, es-tica” por algumas horas. Eu, aspirante a Carlinhos de Jesus, balanço a cabeça fora de ritmo e babo em minha pequena cria.

Eu a chamo de “bailanina”.

Se ela pudesse, passaria os dias vestida com aquele colan cor-de-rosa, o par de sapatilhas, o tutú rodado e o cabelinho penteado em coque.

E se tem uma coisa que mexe comigo, é que eu amo essa espontaneidade dela, o mundo maravilhoso, infantil e imaginário que constrói e me convida para participar quando estou por perto. Posso observar seu olhar curioso, a descoberta de algo novo e, nessas horas, eu gostaria que ela soubesse o quanto isso é precioso, o quanto sua dança tão pura é capaz de mover, que um mundo inteiro gira ao ritmo dessa beleza frágil, pequena e atrapalhada.

Seus passos. Aos saltos, ela atravessa a sala e os anos.

Já faz um tempo, estávamos viajando em família quando entramos no elevador de uma loja. A Nina dormia no meu colo, a Manú a cobria com um casaco e uma senhora nos observava, sorrindo com um jeito meio melancólico, até que disse: “E na próxima semana ela fará 20 anos”.

Eu sei, no duro, que um dia a fantasia vai acabar. Logo, ela terá mais papéis a cumprir, assumirá compromissos, responsabilidades… e essa essência, o que a formou de fato, será uma lembrança na rotina apressada. Logo, ela vai se dar conta que entre milhares de defeitos, seu pai também não dança como o Baryshnikov, não tem respostas para todas as questões da humanidade e é mais baixo e fraco do que ela pensou quando pequena. E então, eu já não serei mais “o cara”, o príncipe, o homem com quem ela quer se casar e que sempre a socorre quando ninguém mais consegue.

Talvez Deus também tenha esse tipo de sentimento em relação a nós. No dia em que vai embora toda aquela espontaneidade de criança, seu coração deve apertar. Vamos costurando nossas complexas teias de problemas, relacionamentos, trabalho, família, círculos sociais e, de repente, o tempo se torna nosso recurso mais escasso. Mergulhamos na rotina e depois nos debatemos para tentar entender onde foi que erramos. Então saímos a procura de algo que nos preencha, buscamos um tipo de felicidade e simplicidade que parece inatingível mas que, de alguma forma, também pareceu tão real e próxima um dia.

Acho que Deus observa tudo isso e procura formas de nos convidar para voltar. “Dance”, ele deve dizer. Nós mudamos nossa visão de mundo, mas Deus não muda sua visão sobre nós. E nós insistimos em pensar que o ser humano se lança eternamente numa busca pessoal por Deus, mas o que as escrituras nos contam é sobre a história de Deus, o Pai incansável, em busca do homem.

Ela será sempre uma menininha para mim.

E eu gostaria que ela soubesse, um dia, que independentemente das escolhas que faça e da mulher que se torne, que ela sempre poderá encher um pai de alegria com sua presença. Que não importa sua estatura ou idade, haverá um colo e dois braços onde se abrigar. Talvez eu não tenha conselhos sábios ou as respostas para todas as questões da humanidade, mas eu vou tentar acompanhá-la numa dança.

Já faz alguns dias, estávamos chegando numa festa de aniversário e ela ainda dormia em meu colo. Ficou um tempo naquele estado confuso, ainda acordando e eu, meio sem jeito, segui cumprimentando as pessoas. Um sujeito veio até mim, estendeu a mão educadamente e em seguida resolveu fazer um gracejo:

– Ei, mocinha, você não acha que já está grande demais para ficar no colo?

Sonolenta, ela só meneou a cabeça. Eu nada disse, apenas sorri, olhei para o homem e desejei no íntimo: “Espero que não… tomara que nunca esteja.”

Eu espero. Sento-me no sofá, no mesmo canto de sempre, de onde assisto TV, leio sob a luz e olho a cidade pela janela. No silêncio, eu alimento minha expectativa, eu aguardo o barulho dos passos, tento ouvir sua voz de menina ao fundo e ver surgir pelo corredor os saltos da minha bailarina.

Que tenha música, que seja com festa, que Deus a preencha e o amor a inspire em cada pequeno passo. Que a vida a contemple.


(Esse texto faz parte da série Paternidade)

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7 comentários sobre “Ela ainda cabe no meu colo

  1. Belíssima crônica, meu caro.
    Aguardarei ansioso por outras pois a cada passo dela/dele/delas/deles uma nova descoberta de sentimentos. Hoje, pouquíssimos registram e vc o fez de maneira excepcional. Ainda o velho e bom e fácil, no sentido de produção, texto para registrar esses sentimentos. No futuro, vcs terão não só o álbum de fotos, vídeos para reviver e recordar mas tb uma evolução dos registros nas cartas. Imagino a alegria e o prazer de todos ao reverem esse conteúdo.
    abs,

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  2. BRAVO! Henricão você é o cara!

    “E então, eu já não serei mais “o cara”, o príncipe, o homem com quem ela quer se casar e que sempre a socorre quando ninguém mais consegue.”

    Penso e acredito que acontecerá, exatamente, o contrário do que vc diz nesta frase. Só tenho pena do seu futuro genro porque o padrão dela para homens será altíssimo.

    Parabéns.

    Abs
    Ivan.

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  3. Nossa Henrique, estou chorando de emoção aqui ao ler seu post.
    Definitivamente você é e sempre será “o cara”!
    Seu encanto e sensibilidade diante da vida e dos sentimentos me comove sempre. E a maneira natural com que você consegue nos passar isso é realmente emocionante, cativante. Obrigada por nos proporcionar momentos tão belos com tanto carinho. Que sorte tem as suas “mandonas” de ter você, com certeza elas merecem!
    Abraços em todos e muita SAÚDE para a Nina e para essa família linda!!
    Miriam

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  4. Cara…meus parabéns pela sua crônica “Ela ainda cabe no meu colo”. Tenho uma filha ja com 27 anos e lendo seu texto fui relembrando as mil facetas de minha filha, desde o nascimento até hoje uma psicóloga formada. Me emocionei, delirei, me envolvi, chorei, e como é bom chorar por coisas belas, como o seu texto e como minha filha… Com sinceridade, esse é um texto que eu gostaria de ter escrito, mas… o privilégio é de poucos. Enviei solicitação para sua amizade no facebook pois quero sempre acompanhar as coisas belas que vc escreve. Forte abraço. V aleu cara… e hoje…
    “… Ao sentar-me no sofá, no mesmo canto de sempre, de onde assisto TV, leio sob a luz e olho a cidade pela janela. No silêncio, eu alimento minha expectativa, eu aguardo o barulho dos passos, tento ouvir sua voz de menina ao fundo e ver surgir pelo corredor os saltos da minha bailarina…” … hoje uma linda mulher, que não dispensa os saltos altos…

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  5. E eu gostaria que ela soubesse, um dia, que independentemente das escolhas que faça e da mulher que se torne, que ela sempre poderá encher um pai (e,ou) uma mãe de alegria com sua presença. Que não importa sua estatura ou idade, haverá um colo e dois braços onde se abrigar. Talvez eu não tenha conselhos sábios ou as respostas para todas as questões da humanidade, mas eu vou tentar acompanhá-la numa dança.
    Amei e espero ter passado isso para a minha bailarina. Amo vcs .Grande beijo

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  6. Henrique, entrei por acaso no seu blog e me emocionei MUITO com essa crônica. Sou mãe de uma linda menina, a Júlia, também de 4 anos, como a Nina. Muito do que você escreveu passa pelo meu coração: nossos medos, como pais, de como será a reação delas/deles quando descobrirem que não somos tão perfeitos como pensam e nem temos nada de heróis… É muito gratificante ler uma crônica tão sensível e delicada escrita por um homem! Parabéns! Virei fã do blog!!!

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