por Luiz Henrique Matos
“A dor é inevitável, sofrer é opcional.” (Haruki Murakami)
Já faz alguns meses que estou tentando escrever esse texto e nunca consigo terminar. Fico me enganando, dizendo a mim mesmo que é um lance meio autoral, de preciosismo literário (ahãm, como se eu sofresse mesmo disso), mas o fato é que tenho certo medo de escrever sobre esse tema. Virginia Woolf disse certa vez que todo texto carrega em si um pedaço de quem o escreve. No meu caso, um fato concomitante a esse é que muitas vezes algum assunto só fica claro para mim depois que eu o coloco no papel. No fundo, a escrita acaba sendo um exercício de reflexão. E confesso que em alguns momentos não quero refletir sobre certos temas.
Tenho medo de sofrer. E também tenho medo de pensar sobre o sofrimento. Não é por superstição, nada, mas é porque na maior parte do tempo eu sou aquele tipo de pessoa naturalmente otimista, que vê as coisas pelo seu lado bom e, em geral, isso é bem positivo, uma certa vantagem no traço de personalidade. No entanto, isso carrega um fato inegável: nunca estou preparado para as coisas darem errado.
E se tem uma verdade indelével que rege o universo da paternidade das aves estrigiformes, das famílias dos titonídeos e estrigídeos (vulgo, corujas) é que só existe uma coisa pior do que pensar que algo ruim possa acontecer com a gente e essa coisa é pensar que algo ruim possa acontecer com nossos filhos.
* * *
Nenhum pai quer ver seu filho sofrer. Bom, deixe-me corrigir: nenhum pai suporta ver seu filho sofrer. E nunca estamos prontos para isso.
Eu voltei a esse assunto, outra vez, há alguns dias, quando enfrentei duas madrugadas correndo com a Nina entre clínicas e hospitais, tentando encontrar alívio para a dor que ela sentia. Sentado na sala de espera de um pronto-socorro, eu pensava que, se pudesse, tirava aquilo dela ali na hora, com as próprias mãos. Se fosse possível, sofreria toda a dor no lugar dela, só para que pudesse dormir em paz outra vez. Observar aquela criaturinha chorando sem poder fazer algo que solucionasse seu problema imediatamente me doía em dobro. Queria eu ter poder para curá-la. Queria eu ser Deus para tocar em sua testa e mandar embora o que quer a fizesse sofrer.
Mas eu não sou Deus, sou só mais um filho assustado, pedindo socorro também, e ainda queria que Deus me atendesse no pedido quase desesperado para que ele parasse um pouco de resolver os problemas tão complexos de toda a humanidade e viesse cuidar da minha criança por alguns minutos.
Outro dia, a Nina chegou da escola com uma marca vermelha nas costas da mão esquerda. Era uma mordida, obra de um coleguinha com instintos canibais que frequentou a classe dela por um tempo. Na agenda, um recado da professora dava satisfações sobre o ocorrido e explicava que, no fim, tudo ficou bem entre os dois, com o pedido de desculpas e o perdão devidamente concedido.
Eu podia jurar que um filhote de crocodilo invadiu a pré-escola e atacou minha princesa.
– Você chorou, filha? – perguntou a mãe, já chorando.
– Ahãm.
– E doeu muito?
– Muito, muito.
Em mim, crescia a certeza de que era preciso tomar alguma providência para que aquele elemento, o pequeno meliante, jamais ousasse mostrar suas presas-de-leite para minha Nina outra vez. Eu tinha sede de justiça. Mas no fundo, eu também sabia que as coisas não podiam caminhar por aí. Eu precisava ter calma, ser adulto, racional. Falei com a Manú:
– Tadinha, né?
– É, aperta o coração da gente.
– Mas e aí, o que a gente faz?
– Acho melhor matricularmos ela no jiu-jitsu.
Coisas ruins acontecem a crianças boas.
E por mais que eu realmente me esforce para ignorar a realidade e prefira concentrar meus neurônios mentalizando coisas positivas e tentando acreditar que a fé cobrirá minha família contra todo e qualquer mal… bem, por mais que eu afirme que gostaria que as coisas fossem mesmo assim, eu sei que nem sempre poderei ajudar. Reluto em aceitar, mas o fato é que minhas asas não possuem a extensão que eu gostaria que tivessem e eu devo reconhecer, penosamente, que minha filha vai sofrer.
Nem sempre poderei livrá-la da dor ou impedir que o sofrimento venha. Um tombo no parquinho, uma medida disciplinar mais rígida, um resfriado pesado, um fora do primeiro namoradinho (daqui uns 30 ou 35 anos, quem sabe), uma topada na porta com o dedinho do pé.
– Aaaaaaaaaaaaahhhh!!! – era madrugada e a Nina gritou desesperada enquanto dormia. Estava tendo um pesadelo. Assustei, pulei da cama, corri até onde ela estava.
– Nina!? Calma, querida, calma. Está tudo bem, o papai está aqui.
– Ahn!? – ela acordou confusa.
– Tá tudo bem… pronto, calma. Viu? Não foi nada… O que aconteceu, filha?
– Uma cobra… tinha uma cobra querendo me pegar.
– Não tinha nada, filha. Você estava sonhando. Olha só, está tudo bem.
– Tinha sim… ela estava aqui. Mas o papai apareceu e mandou ela embora.
Ela acha que eu tenho poderes para solucionar todas as coisas. Pensa que sou capaz de pega-la no colo e carrega-la por quilômetros sobre meus ombros e que posso abrir as tampas de todo e qualquer tipo de pote. Ela acredita que tenho como fazer a viagem de carro de quase quatro horas durar menos, que posso protegê-la de monstros que assombram seus sonhos.
Não bastasse, soma-se nessa conta o fato de que uma das grandes satisfações em ser pai está em notar, nos pequenos gestos, que minha filha me admira, acha bonito e tem em mim uma referência boa. E soma-se ainda nessa mesma conta o doloroso fato de que uma das grandes paranoias de ser pai seja notar, em algum momento, que minha filha passará por alguma situação difícil em que eu não estarei lá para ajudar.
Ou, estarei mas não poderei impedir o sofrimento. E ela não vai sofrer porque eu deixei de agir e sim porque havia uma pedra para que ela tropeçasse no caminho que escolheu seguir. Circunstâncias, uma palavra necessária aqui. E aí, a questão já nem é o fato de eu poder ou não livra-la da dor, mas de que se eu intervir, aquilo já não será resultado das decisões que ela tomou.
O amor pressupõe liberdade. E quem ama, ama a liberdade do outro.
E na intensidade desse sentimento apaixonado, muitas vezes o pai abre mão do seu poder para dar ao filho a opção de escolha, por saber que o aprendizado é necessário e que nem tudo o que é bom, é necessariamente bom para todo mundo. Deus prefere não ser chamado de Deus do que ser esse deus sádico que alguns pensam que ele é, entende?
Ele é o Pai.
Um pai não deseja o sofrimento do filho, não o permite e tampouco provoca. O sofrimento de um filho, em tudo, rasga o coração do pai, dilacera sua alma. É errado culpa-lo pela dor. Mas o homem todo, em seu crescimento, aprende pela experiência. Sabemos o caminho certo a ser trilhado pelos conselhos que ouvimos e pela vida que trilhamos. Conhecemos a estrada à medida em que a percorremos. E os buracos estarão lá, nem todos provocando acidentes. E as belas paisagens estarão lá, nem todas provocando suspiros.
O sofrimento nos forja.
Ninguém jamais disse que não vamos sofrer, os textos sagrados não afirmam isso, avôs não contam histórias assim para seus netos. Mas as palavras que nos dão esperança, lembram a todo instante que em qualquer circunstância, em cada passo dessa aventura, o Pai está ao nosso lado.
Bem, eu não estou querendo explicar o sofrimento ou sistematizar a dor. Não pretendo. Isso não se explica, não tem teoria válida que sirva de alento. Alento é o ombro amigo, é o lenço cedido, é o choro solidário. O que eu gostaria, de alguma forma, como pai apaixonado, é que minha menina soubesse que se não existem superpoderes em minhas mãos, existe consolo. Que se não existe uma palavra mágica que cure a dor ou a incerteza, existe sempre uma companhia silenciosa, um copo de água com açúcar e um colo à disposição.
Eu sei não poderei explicar na maior parte das vezes – eu nem entendo na maior parte das vezes. E ainda que eu possa, é bem provável que não faça a menor diferença para ela naquela hora. Mas eu estarei lá.
O Pai sempre está por perto.
Muito bom, sou grato ao Pai pelo seu talento que nos edifica como pai. Sabe exprimir o nossos sentimentos em meio a escrita.
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Obrigado, amigo. Fico muito feliz em saber que gostou.
Abraço.
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O sentimento de impotência que temos diante da dor dos filhos é realmente insuportável. Mas nos leva, pais e filhos, para dentro do colo do Pai, que foi especialista em suportar essa dor. Saber disso consola. Um pouco.
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Só nele, amigo. Só nele esse consolo é pleno. Espero que eu – com minhas imperfeições e desajustes – não atrapalhe a Nina de enxergar isso.
Forte abraço.
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Tenho um amigo que será pai daqui alguns meses. Sempre mostro seus textos para ele que, gosta muito e sempre comenta.
Parabéns!
Continue sendo esse bom pai na Terra que, se inspira no BOM PAI do céu.
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Olá, Rodrigo,
Se pudermos refletir para nossos filhos uma fagulha do amor que ele tem por nós, teremos cumprido uma boa missão, não é?
Que bom que gosta dos textos. Notei que ultimamente você também tem atualizado o seu blog com mais frequência.
Vamos nos falando.
Abraço!
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Chorei muito ao ler seu texto. Pais como você praticamente não existem mais.
Obrigada pelo texto!Que Deus te ilumine cada vez mais!
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