Minha avó está doente. Ela tem 93 anos e até alguns meses atrás, parecia seguir com tanta firmeza e lucidez rumo ao seu centenário quanto eu caminho em direção aos quarenta. Mas uma sequência recente de breves enfermidades a deixou combalida. O negócio é que ela não está exatamente doente, não sofre de nenhum sintoma específico, ela só está cansada. Dorme muito, come pouco, já não reconhece filhos e netos com a clareza de antes. Para quem até pouco tempo estava habituada a frequentar regularmente as reuniões dominicais da igreja e visitar os filhos, não é nada entusiasmante ver-se limitada a uma rotina tão pacata.
Tenho me preocupado com seu estado. E além dos pensamentos habituais sobre sua condição de saúde, por esses dias tem me ocorrido também que minha avó, de alguma forma, é o elo vivo mais antigo que eu tenho com o passado. Nem tanto pelas questões genéticas, que também existem, mas pela relação histórica. Ela carrega vivas as lembranças, as raízes do que somos, os frutos lá da roça que ela semeou um dia.
– Ah, pai, deixa eu aproveitar pra te perguntar uma coisa: como tá a vó?. Tenho pensado nela esses dias – aproveitei um telefonema casual com meu pai para ter notícias.
– Ah, filho… ela tá daquele jeitinho que você viu, não mudou muito. A gente chega lá e ela se levanta um pouco, conversa, fica mais animada. Mas quando a gente sai, ela fica murxinha, só quer dormir. Agora tem uma senhora lá ajudando a cuidar dela. Vamos ver.
– Tsc. Tadinha.
– Bom – longos segundos se passam – ela está se despedindo da gente.
Quando muito, eu a vi duas ou três vezes no último ano. Admito que não sou um neto muito presente, é uma falha que agora eu lamento. A última vez em que a vi, faz coisa de um mês.
– É o Nelinho?
– Não, mãe, esse é o Rique.
– Oi, Rique – e sorriu largo.
Passei calado quase toda a hora em que estivemos ali. Observei meu pai na condição em que quase nunca o percebi: a de filho. Temeroso, abraçado à mãe, honrando tudo o que ela significa com seu silêncio habitual. E tudo o que ela tem é um quarto apertado, arranjado na casa da minha tia, com uma cama, um armário pequeno, uma mala de roupas e um mundo inteiro de apreensão dos filhos e seus corações rendidos naquele espaço.
Quem é que ensina a gente a perder?
Com o que será que ela sonhava quando era criança? Quando ela chegou, jovem, era essa a vida que ela imaginou que teria? Na volta para casa, no carro ao lado do meu pai, enquanto as ruas passavam pela janela, eu pensava em minha avó ali sentada na beira da cama quando me despedi dela. O pijama velho de flanela, um gorro de lã branco cobrindo os ralos fios brancos que ela já não corta desde que se converteu a uma denominação religiosa conservadora e o mingau que ela sorvia de uma xícara. Mas, o tempo todo fina, preocupada com a boa postura. Suas posses se resumem em tão pouco… mas é tudo de que ela precisa. Tem sua família, seu Deus, tem um prato de comida, roupas, tem amor e um teto sob o qual dormir.
Pensei nas palavras de Jesus: “não se preocupem com o que vão comer ou o que vão vestir, não se preocupem com o dia de amanhã, não sejam ansiosos. Busquem o Reino de Deus e todo o resto lhe será dado”.
Mas será que ela pensa nisso? Será que entende que o Criador cuida dela através das mãos das minhas tias, que lhe dão banho, trocam sua roupa, trazem o mingau quente? Deus, com as mãos estendidas, lhe acaricia o rosto marcado, alivia a dor e divide o jugo de quase um século que lhe colocaram sobre os ombros.
Será que entendemos?
Do que o homem precisa na vida, afinal? Perseguimos tanto, trabalhamos duro… e será mesmo que o começo e o fim se resumem, essencialmente, em amar e se relacionar, em estar e cuidarmos uns dos outros?
Parece que faz sentido. Mas não parece que queremos que tudo seja tão simples.
Por que desviamos tanto o olhar e a rota ao longo da vida, que é tão fugaz? Eu não sei. Erramos o alvo. Peregrinos que somos, buscamos preencher o vazio na alma com os milhares de meios que transformamos em fim, até descobrir, já exaustos, a única razão capaz de nos suprir. Uma palavra, o Verbo, o amor.
“Pois, que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?” (Jesus, em Marcos 8:36).
Quais eram os sonhos daquela moça? Eu me perguntava, tentando construir na memória a sua história até onde a conheço. Casou cedo, trabalhou no sítio, deu à luz 12 filhos, conseguiu criar os sete que sobreviveram às dificuldades da vida no campo na década de 1930. Perdeu o marido ainda jovem, deixou a terra, os amigos, a família e a vida em Minas Gerais quando se mudou para São Paulo. Fez os filhos crescerem, viu quando casaram e se foram, se multiplicaram, ficaram velhos com ela. Viu o mundo ficando cinza, urbano, digital, viu a história das últimas décadas passando na televisão, em preto-e-branco e colorida, que nem existia quando ela nasceu, que ela trancava no armário, de “castigo”, quando as notícias ficavam tristes demais. Viu guerras, presidentes, novelas, crises e bonanças.
E que diferença isso fez? Que diferença faz toda a história do país e do mundo, a humanidade, o dinheiro, as conquistas e os grandes projetos quando, no fundo, a coisa toda é sobre a vida simples, a rotina comum do homem, da avó de família, de cada um?
Ela está fraca, fala pouco, mas seu olhar vai longe, entra fundo e, nele, ela expressa todo seu legado. Nele, ela pergunta o que é que estou fazendo com a semente que ela plantou. Ela me deu sangue, deu seu filho para ser meu pai, deu carinho, café aguado, limonada e doce de leite feito na panela. Ela me ensinou a ler as primeiras palavras, quando passava uns dias em casa lá na Barra Funda e repassava comigo as letras de algum parágrafo do livro que trazia.
– Rique, que letras são essas?
– S, I, L, E, N, C, I e O.
– Isso, muito bem, “silêncio”.
Ela só não me ensinou as palavras para descrever o que estou sentindo agora.
Enquanto minha avó se despede (e desejo que ela só o faça depois de uma demorada e animada festa de 100 anos, em 2019), me consolo em saber que ela já descansa, amparada pelas mãos do Deus de sua vida. E penso que talvez não faça mesmo diferença, não valha realmente sofrer pelo dia de amanhã. Precisamos hoje – HOJE, eu penso como um grito – buscar pelo Reino dos Céus. Esse reino que, segundo as Escrituras, é “paz, justiça e alegria no Espírito Santo”. E o Espírito Santo é Deus e Deus é amor e o amor se declara, se escancara, se revela explicitamente no Verbo, na palavra, num desabafo, no toque, no convívio, na presença e a vida toda ao lado de quem amamos. Hoje.
A vida é uma centelha. No riso e na dor, nas chegadas e partidas, o contorno de um belo e admirável ciclo. A vida é eterna.
Pingback: Um minuto de silêncio | Correndo atrás do vento