Ciclos


Ela já não tem medo de monstros. De dois meses para cá, como num passe de mágica, as coisas mudaram um pouco aqui em casa. Às nove, dado o alerta da hora de ir para a cama, ela escova os dentes, veste o pijama e, beijos dados, segue para seu quarto.

Não era sem tempo, a gente sabe. Mas até outro dia, esse parecia um cenário muito distante na rotina de casa. Escrevi por aqui sobre toda a tensão dos momentos que antecediam o momento do sono, a insegurança, a incerteza sobre o que estávamos fazendo de errado, como poderíamos ajudar a Nina a superar a dependência que nutria da gente para dormir. E de uma hora pra outra, tudo se foi, numa noite ela chorou e dormiu, noutra reclamou e dormiu, aí finalmente dormiu. E agora é assim, ela sai da sala sozinha, deita e dorme. Sem dengos, sem as histórias, sem aquela carência toda. E de repente, me peguei sentindo uma falta danada daquelas noites.

Ela dorme. Estou sentado no pé da sua cama e a observo. Minha menina está crescendo, o rosto afinando, os cabelos mais lisos presos num rabo-de-cavalo. O pijama, cheio de desenhos de gatos coloridos, já serve só até o meio das canelas. Três mechas vão caindo sobre o rosto, as duas mãos juntas embaixo das bochechas… a cena que eu jamais gostaria de esquecer, um momento, entre tantos, que eu sei de que terei saudade no futuro.

É mais um ciclo que se cumpre. Para ela e para nós. Desde o começo, a espera, a gestação, o corte do cordão umbilical numa madrugada chuvosa de março, as primeiras palavras, o primeiro ano, nove mil e duzentas fotos, os primeiros passos, a caminhada inteira de então em diante.

Ciclos. A gente quase não percebe quando começam, mas terminam quase sempre numa sessão de nostalgia. E para cada um, um novo marco, um altar edificado de celebração, lembrança e saudade.

Ela cresce uma era inteira a cada minuto e vive plenamente a infância, se desenvolve, sorri, cai, levanta, aprende e absorve como uma esponja – dos episódios quase infinitos da novela Carrossel às conversas secretas dos adultos – tudo o que se passa ao seu redor.

Sentado no quarto escuro, olho para a porta entreaberta, sondo a luz que vem da sala pelo corredor e admito uma ponta de medo ao notar a sombra do futuro que se projeta adiante. Bendita incerteza, quando parece que as coisas vão se acomodar e tomar um rumo finalmente, percebo que preciso reaprender a ser pai, ser marido, profissional, a encarar desafios diferentes outra vez.

Mudanças. Às vezes, precisamos mesmo que elas aconteçam para que nos desapeguemos. Alguém deve tirar nosso apoio, de supetão, de repente, para que a gente possa acordar, para que um novo passo seja dado.

É tarde, preciso dormir. Amanhã será um novo dia, mais um começo, outro ciclo.

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3 comentários sobre “Ciclos

  1. Pingback: Fé na estrada | Missão Virtual

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