Excesso de bagagem


Faz coisa de três anos, li um artigo de Anita Patil no The New York Times que contava sobre como alguns norte-americanos, depois de enfrentar a crise financeira de Wall Street em 2008, se viram forçados a viver com menos. Ela citava também o fato de algumas empresas que, atentas à impaciência das pessoas com a pujança de outros tempos, se empenhavam em transmitir uma imagem minimalista em suas propagandas. Na América pós-crise até a simplicidade virou moda e discurso de consumo. Mas um trecho do texto me chamou atenção:

“Roche Fierman, que dirige a Little Elves, serviço de limpeza usado por alguns dos estilistas mais chiques de Nova York, limpou o excesso de sua própria vida. Ela tem apenas três pratos de jantar, as duas prateleiras da sala estão nuas e ela joga fora os livros quando termina de ler. ‘Acho que realmente aprendi com a recessão e com alguns de meus clientes, que são dominados por suas coisas, é que é um modo de vida ridículo’, disse. ‘Levei anos para perceber que realmente não vale a pena se preocupar com coisas.'”

Há cerca de um mês, viajamos em férias. Durante alguns dias, conhecemos lugares novos, revisitamos paisagens em que amamos estar no passado, reencontramos velhos amigos, exploramos pontos turísticos, caminhamos à toa pelas ruas das cidades e, tal como a força da gravidade atrai os corpos para seu centro, fomos por algumas vezes – ok, várias vezes – sugados para dentro de… lojas. Voltamos para casa com a bagagem recheada de novas experiências, perspectivas, lembranças, fotografias, itens de decoração, roupas, eletrônicos, brinquedos e, evidentemente, um adorno para a tralha em si: uma mala azul que, se foi útil para trazer tudo em segurança, agora é um trambolho de metro e tantos que precisa caber em algum lugar da casa.

O Rubem Alves, num trecho com que me deparei ontem a noite, sacramentou: “Simplicidade tem a ver com as coisas que são essenciais. Simplicidade é caminhar com uma mochila leve. A riqueza, ao contrário, é caminhar arrastando muitas malas pesadas, sem alças” (…) “A pobreza simples é uma pobreza feliz. Feliz porque leve. É a comparação, origem da inveja, que a torna infeliz”.

Acho que Roche Fierman tinha razão, não preciso achar nada para que o Rubem Alves também já tenha razão – ele costuma ter – e acabo achando que, apesar do uso justificado de cada novo item que adquiro e trago para casa numa sacola, nas costas ou na consciência, eu também sei que poderia perfeitamente viver sem a maior parte daquilo tudo.

Carregamos muito, além do que dá para suportar. É um mundo louco. Perdemos a noção de leveza, confundimos hiperatividade com eficiência, deixamos de valorizar o ócio e a solitude como elementos fundamentais de recarga das nossas forças e defendemos a competição como virtude. Tentamos armazenar tudo mas nos perdemos em meio a tanta coisa. A certa hora, invariavelmente, cedemos à pressão e caímos. E a queda dói. Sofremos. Por nossos próprios erros, sucumbimos em crise. E no entanto, existe uma amarga ironia em perceber que, muitas vezes, só depois de passarmos pelo rolo compressor do sofrimento é que adquirimos uma noção clara do que é, de fato, elementar na vida. A dor nos descasca e permite enxergar que, no âmago, só sobra o que – ou quem – é realmente essencial.

Desde que voltamos da viagem, estou tentando encontrar espaço em algum armário para acomodar a mala azul. É um objeto caro, grande, oco, inútil e está vazio. O que trouxemos de mais precioso da nossa viagem não veio dentro dela, mas arrasto aquele trambolho pelo apartamento enquanto aproveito e vou depositando ali dentro outras coisas que encontro pelos cômodos.

Não é preciso muito esforço para notar que é bem pouco provável que consigamos nos livrar da carga toda que acumulamos na caminhada. Reconheço que o meu ideal de vida minimalista é utópico e acredito aqui que a distinta senhora citada pelo Times, passados alguns anos, já deixou empoeirar algumas tranqueiras nas prateleiras da sua sala em Manhattan. Porque vivemos em comunidades, em famílias, numa sociedade dirigida pelo consumo e estamos sujeitos a intempéries de todo tipo. Tudo é circunstancial, a gente passa pela rua, pega, bota no bolso, carrega, curte e depois deposita num canto qualquer. Faz parte da ordem caótica de como a vida acontece, desejamos simplicidade mas somos complicados demais. E ao contrário do que eu poderia querer ou esperar, é possível que aí esteja parte da beleza da vida, no imprevisto, no sentido orgânico com que se desenvolve, na perfeição improvável da criação presente em sua total falta de simetria.

Podemos e precisamos gastar um instante, vez ou outra, para colocar uma certa ordem no caos. Priorizar, ter consciência do que realmente importa e deixar por perto aquilo que é tão precioso mas andava esquecido lá no fundo da bagagem. O que está tão perto todo dia, o que mais nos consome e pesa nos ombros, pode não ser o que mais importa realmente.

Porque hoje, ao invés de guardar, talvez possamos nos esvaziar, nos doar, abandonar certos projetos. Talvez seja hora de retomar velhos sonhos. Talvez seja hora, finalmente, de ligar para um amigo, trazer flores para a esposa, visitar aquele parente, ajudar alguém. Talvez seja hora de voltar à essência, de esquecer o orgulho, perdoar, viver mais leves, calar, estar a sós por um pouco, escutando, deixando Deus sussurrar sua vontade. Certamente é hora de voltar à essência.

“Venham a mim, todos os que estão cansados e sobrecarregados, e eu darei descanso a vocês. Tomem sobre o meu jugo e aprendam de mim, pois sou manso e humilde de coração, e vocês encontrarão descanso para as suas almas. Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve” (Jesus, em Mateus 11).

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