Seis anos e a eternidade pela frente


Ninaversario_6anos

Seis anos. Eu ainda me lembro da festa. Foi uma surpresa tramada pelo meu irmão e minha mãe. À tardinha, saí de bicicleta para buscar um jogo na casa de um amigo e, quando voltamos, tudo escuro, já estavam todos escondidos na cozinha. Amiguinhos, vizinhos, primos e familiares saltaram detrás da geladeira, da porta e debaixo da mesa. Eu lembro da farra, do bolo, de alguns presentes e do meu pai dizendo: “É, cara, já encheu uma mão inteira e agora vai começar a contar na outra”. E aquilo era toda a maturidade com que eu podia imaginar.

São dessa idade as primeiras lembranças ordenadas que guardo da infância. Bom, tem realmente pouquíssimas coisas que eu faço acima da média, uma delas é ter uma memória visual impecável. Eu não sei jogar bola, sou incapaz de tocar uma guitarra, mas sou bom pra burro com a memória. Fatos, cores, cenas, detalhes, diálogos, nada me foge. E desse tempo na infância, às vezes as lembranças me resgatam como uma âncora. Lembro em detalhes da vila onde morávamos lá na Barra Funda, as casas pequenas, todas iguais, grudadas umas nas outras. O cheiro e o som da fábrica de asfalto cujo sinal apitava toda manhã na avenida, os bem-te-vis que cantavam numa árvore cuja copa se projetava sobre o nosso quintal bem perto da janela do quarto onde dormíamos, os três irmãos.

Estávamos nos anos 80, era o tempo do meu primeiro ano na pré-escola, das brincadeiras de bola, de pipa, figurinhas da Copa União e rachas de carrinho na rua. Foi naquele ano que aprendi a decifrar as primeiras palavras escritas e todo o mundo de descobertas que surgiu depois disso. O mundo. O mundo para mim era aprender, era o som dos Titãs tocando “cabeça, cabeça, cabeça dinossauro…” no micro-system do meu primo, era aquele presidente bigodudo anunciando coisas e coisas na tevê com uma voz estridente e preocupante, era a vinheta do jornal da Jovem Pan tocando no rádio do Fusca do meu pai enquanto eu ia pro colégio e o sol nascia através do pára-brisas. E tirando uma viagem por ano para a Praia Grande, meu mundo todo era aquela pequena vila de 30 casas que eu explorava tarde afora em cada detalhe.

Era tudo o que eu tinha. Eu tinha seis anos e nem imaginava o que vinha pela frente.

Hoje a minha filha faz seis anos.

Ontem, antes de dormir, a Manú e eu recapitulamos para ela a história do dia em que nasceu – ela adora ouvir – e depois, enquanto fazíamos a nossa prece rotineira e casualmente me dei conta do tamanho que a Nina tem agora, essa criança cheia de personalidade e graça que já ocupa seu espaço na casa e nas nossas vidas, me senti intensamente grato, fingi um cisco nos olhos, mudei o rumo da conversa e saí de lado. “Hora de dormir, filha, vê se pega logo no sono. Tenha bons sonhos”.

Com o quê nossa menina vai começar a sonhar? Como será que ela vê as coisas hoje?

Não foi um dia de festa surpresa para ela. Teve escola como todo dia, teve trabalho, consulta médica e lição de casa. A rotina que se impõe sobre a gente fez com que o aniversário dela corresse como num dia qualquer. Só mais a noite, já no fim do dia, é que a levamos para um passeio, um sorvete, um livro novo, brincadeiras, uma bonequinha, o lanche e, em poucas horas, a sensação infantil de que o dia era todo dela.

Não sei dizer se daqui a 26 anos ela vai se lembrar desse dia. Tentamos tornar as coisas memoráveis, nos esforçamos nessa busca tola por grandes experiências na vida, mas sabemos bem que não são exatamente essas situações que nos marcam. A memória nos trai, a vida faz curvas e no fim as histórias que levamos na bagagem são, em geral, as menos prováveis. Mas fico tentando imaginar o que a Nina vai guardar desse tempo. Do que ela vai se lembrar? Quais serão, quando adulta, as lembranças remotas que ela terá da infância? Os amigos, a casa, as Escrituras, a escola, a cachorrinha nova que chegou por aqui há duas semanas – Lucy, muito prazer. Será que ela terá consigo a raiz ainda firme com os princípios que a Manú e eu tentamos ensinar diariamente? Que princípios devemos ensinar para ela? A paternidade é um fardo adorável.

Ela tem pressa. Tenho quase certeza de que esses seis anos se passaram, na verdade, em três. Papo sério, acho que tem gente conspirando e fazendo tudo andar mais rápido e os cabelos ficarem brancos mais cedo. E eu bem sei que nesse ritmo, já, já ela vai ganhar o mundo, vai sair de debaixo das nossas asas e voar por aí sem que a gente possa controlar ou prover, vai descobrir e construir seu próprio mundo, sua visão de mundo, vai notar um dia que não passávamos de um casal bem-intencionado que, entre muitos erros, deixaram escapar alguma coisa boa que servirá para que ela seja alguém muito melhor do que jamais imaginamos ser. Esse é o sonho, é um desejo, é até uma oração agora. Sua liberdade será a nossa eterna insegurança. E então, só o que poderá trazê-la de volta vez ou outra para nosso ninho, é essa mesma liberdade, o desejo de vir e sentir-se querida. O único princípio que podemos ensinar pra ela é o amor. A paternidade jamais é um fardo.

Ainda ontem, antes de dormir, enquanto eu me esgueirava quarto afora com aquela lagriminha correndo num canto dos olhos, ela me lançou uma pergunta:

“Pai, quando a gente for pro céu, nossa vida nunca mais vai acabar?”

“Não, filha. Deus fez a gente para viver pra sempre.”

“Pra sempre?”

“É. Isso que chamamos de eternidade.”

“Pai, quando eu for pro céu, eu queria continuar sendo criança.”

Isso deveria ser uma condição, certo? Não resisti: “Faz bem, querida. Você sabia que Jesus falou que todo mundo, os adultos todos, deveriam mudar e tentar ter um coração como as crianças tem?”

“Boa noite, pai” – ela não estava interessada em teologia.

Ela tem seis anos e nem imagina o que vem pela frente. E aí mora toda a beleza da coisa. Somos filhos. Quem é que imagina, afinal?

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3 comentários sobre “Seis anos e a eternidade pela frente

  1. Que lindo Henrique e Manu. Eu que sou apenas uma amiga da vovó dessa garotinha linda, me emocionei com essa lindas palavras e os olhos ficaram brilhantes com algumas lagrimas que teimaram em aparecer.
    Que Deus em sua infinita bondade de a NIna uma vida abundante. Com paz, saúde, felicidades e muito amor no coração. Parabéns pra garotinha de vocês!!!!

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  2. Henrique e Manú,tenho certeza que a Nina tem muito mais que um dia incomum em seu dia de aniversário,,pois ela tem um lar onde o amor , o respeito, carinho e acima de tudo Deus presente na vida de vocês diàriamente.Não pode existir presente maior!!!!Felicidades para a princesinha de voces.Nina você é muito especial.Beijos tia Dinah

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