
Crédito da foto: A. Strakey (Creative Commons)
É um senhor, deve ter seus 70 anos. Usa um uniforme preto sobrando largo num corpo de 1,60 e passa todos os dias lá pelo andar recolhendo o lixo reciclável acumulado embaixo das mesas.
Ele gosta de discutir o noticiário internacional. Começou há coisa de três ou quatro semanas, quando chegou de manhã, eu já estava em minha mesa trabalhando e lançou a pauta:
– Os Estados Unidos sempre fizeram essas coisas, agora é que vão reclamar?
– Como? – às oito da manhã, tem pouca coisa que eu consigo absorver assim de cara. Naquele dia especialmente, confesso que não esperava a abordagem.
– Espionagem.
– Ahn. Verdade.
Nunca me chama, ele chega e aborda, surge detrás de uma baia com o assunto pronto. O boné baixo esconde os olhos que nunca encaram ninguém. Anda torto, mancando, arrastando o saco preto onde acumula os papeis.
A conversa foi ganhando ares mais complexos, ao ponto que passei a correr os olhos na editoria internacional do jornal pela manhã com mais atenção para poder discutir as questões à altura. Ele não quer falar das mazelas da cidade, não toca na agenda cultural, jamais fala de futebol, o negócio é a política externa.
E só puxa papo quando estou sozinho. Se tem mais alguém por perto, passa calado, nem responde ao “bom dia” de quem quer que o cumprimente, murmura alguma coisa e segue invisível, queixo colado no peito, peso apoiado nas costas.
Ontem, só tinha eu no andar. Estava respondendo e-mails triviais e ele me veio com a crise no Oriente Médio:
– E a Síria, hein? Vai virar a nova Coreia do Norte?
– Pois é, rapaz. Pena daquele povo. Imagina? Não dá pra deixar o Assad fazer o que está fazendo.
– Mas olha o coreano, falou um monte, ameaçou com bomba nuclear e agora ninguém toca mais no assunto. Vai ser assim na Síria também. Não pode, alguém tem que fazer alguma coisa lá.
Então eu fiz a lição de casa e devolvi:
– Mas isso é uma demagogia danada. A mídia só coloca isso na pauta mas a mesma coisa acontece em outros lugares também. Os EUA ficam levantando essa bola porque tem interesse na região. Mas e a África? Tem ditador lá dizimando a população lá há quanto tempo?
– Arre! Da África eu escuto desde criança. Já tem 30, 40 anos e ninguém faz nada, ninguém intervém!
Então vai embora, ele nunca para pra conversar. Começa a falar enquanto chega, passa recolhendo as sobras e tal como chegou, vai. Não sei seu nome, ele não sabe o meu. No peito, não leva um crachá, só o logotipo da empresa bordado em vermelho: Viking.
Suas preocupações passam ao largo da pequenez cotidiana, estão longe da crise do meu tricolor, bem distantes da cotação do dólar. Ele leva sobre os ombros um saco com pilhas de lixo de papel e os problemas complexos do mundo. Ele tem prioridades claras. Só está de olho no que precisa ser reciclado.