Sei que tenho comparecido muito pouco a esse espaço ultimamente, mas o fato é que, de uns tempos pra cá, tenho sofrido com a falta de momentos para escrever. Não é ausência de tempo o problema. Esse sempre faltou. E mesmo escasso – como imagino que é para todo mundo – nunca me impediu de colocar algumas ideias no papel de vez em quando (menos do que eu gostaria, é verdade, mas muito mais do que a minha falta de talento deveria limitar).
Também não é a inspiração que sumiu. A Manú está grávida de mais uma menininha – e quem já frequentou essas páginas sabe o que isso significa para mim em termos de prolixitude -, viajamos recentemente para um lugar maravilhoso, a Nina cresce e nos surpreende diariamente. Várias são as fontes de novas ideias que não me deixam reclamar.
O ponto, no duro, é a falta daqueles momentos propícios, tão caros no dia, mas agora perdidos. Os momentos propícios eram aqueles intervalos de ócio rotineiro que se preenchiam de atividades tão repetitivas e vazias que abriam um vácuo oportuno para as ideias se afirmarem.
Para mim, sempre foram três esses períodos, mas as circunstâncias recentes os aniquilaram.
Meu favorito era o banho. Valiosos minutos de água morna correndo na cabeça, o corpo se livrando do peso de um dia inteiro de trabalho duro e a mente, de repente, despertava da inércia dos pensamentos automáticos com uma nova ideia, uma pequena frase, um título, algo para se escrever, uma história inteirinha às vezes. Sei que não estou sozinho entre os que se veem assaltados pela inspiração durante o banho e sei até que há uma explicação racional par ao fato de termos soluços criativos quando estamos no chuveiro. Cheguei a desenvolver toda uma técnica para não desperdiçar o que me vinha à mente nessas hora: sabonetes em barra funcionam como caneta no vidro do box e já povoei o blindex de casa com parágrafos inteiros de aloe e vera. Mas o problema é que agora só o que me vem à mente enquanto tomo meu banho é a face magra do Geraldo Alckimin me encarando e o último indicador do nível do segundo volume morto do Sistema Cantareira em contagem regressiva. A água cai, eu me enxáguo e penso “3,9… 3,8… 3,7% no nível da represa”, que vai escorrendo pelo meu ralo.
O trânsito era outro desses momentos. Não moro tão longe do escritório, mas em São Paulo distância nunca foi referência para tempo. Das 24 horas que o dia me dá, passo cerca de duas sentado no carro, entre a ida e a volta, tamborilando os dedos no volante, escutando o noticiário no rádio e atento, muito atento, às orientações do Waze, meu mais novo melhor amigo, que me ensina a cada dia uma nova rota e que me ajuda a economizar até, pasme você, 6 minutos no trajeto. E se antes o trânsito era feito de uma fila interminável, massante e extremamente fértil para as ideias (que eu anotava no verso de um recibo, na contra-capa do manual do proprietário ou no bloco de notas celular), agora meu aplicativo de rotas exige que eu fique atento – sim, muito atento – aos seus “vire à esquerda”, “vire à direita”, “na rotarória, pegue a terceira saída” e “cuidado com as obras (juro que ouço cobras) na via à frente”. Ganhei meus minutos na volta pra casa, mas deixei em alguma esquina o fértil celeiro de histórias que se elaboravam enquanto eu observava as pessoas caminhando nas ruas, sentadas no ônibus ou no carro ao lado. Chego ao meu destino exausto.
A atual conjuntura da cidade vem aniquilando os parcos momentos produtivos para algum texto, crônica ou desenho. Me restava ainda um desses espaços, mas há três semanas ele também se foi. Era o mais curto deles, meio reticente, que acontecia nos minutos entre o escovar dos dentes e o deitar no travesseiro. O mundo entrando em silêncio, a luz dando lugar à escuridão e a mente martelando em polvorosa. Nesses instantes, tantas vezes, me perdi. Abria o caderninho de anotações que deixo sobre o criado-mudo, sacava a caneta e deitava a tinta em algumas páginas. Em minha mente, o único ruído era das teclas da minha máquina de escrever imaginária que pareciam compor as histórias, frase a frase, um verbo após o outro, adjetivos após adjetivos (a serem devidamente cortados posteriormente) e disso, por tanto tempo, esse blog se alimentou. Mas foi um dia, no tilintar das teclas, que um ruído novo surgiu. Um zumbido agudo ao fundo. Depois, outro, vindo de longe e cada vez mais alto, ao pé do ouvido, chegando das profundezas, da escuridão do inferno. Pernilongos. Malditos insetos mutantes que resistem a venenos, repelentes e caçadas homem-a-inseto madrugada adentro. Já não reina a paz, não há silêncio. Me tiraram o sangue, o sono e as boas ideias.
E me pego, de repente, murmurando pelos cantos, irritadiço, inquieto, precisando despejar num pedaço de papel alguma coisa qualquer, só para me esvaziar de novo e renovar a mente. Ando querendo descobrir onde foram parar, nesses tempos, os momentos de quietude. Alguém deveria lançar a moda da solitude, do ócio e da contemplação para o homem pós-moderno aderir – mesmo sem se dar conta que o caipira, os monges, os espanhóis e os baianos já praticam isso há muito tempo – e chamar de inovação espartana frugal ou qualquer nome interessante e alternativo que mereça um ensaio, um documentário e um espaço dedicado na Vila Madalena.
Hoje, não fazer nada é o cúmulo da ostentação.
Sem meus momentos, confesso que ando meio perdido. E até que chova torrencialmente na cidade, eu ganhe um helicoptero de presente de Natal ou Deus reconheça que foi um equívoco a criação de certos insetos (e depois, salvá-los na arca!), meu principal hábito terapêutico está seriamente comprometido.
Volto quando possível.
Pois escreva sempre meu amigo, a despeito de pernilongos, secas e caos urbano. Estamos mal acostumados a receber sua lucidez poética de tempos em tempos. Não me parece justo ficar sem isso só porque você tem mais o que fazer!!!
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