Ócio involuntário


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“A gente vive muito em voz alta e às vezes não se ouve.”
(Guimarães Rosa)

Já disse o quanto aprecio a oportunidade casual de, vez ou outra, ficar sem fazer nada. Gosto de poder escolher alguns momentos de pura falta de obrigação. Ficar deitado no sofá olhando para o teto, gastar uma hora ou duas ou três lendo um livro, sentar num banco na rua, passear em algum lugar com as meninas sem ter um item da lista de pendências a ser resolvido. Para mim, nessas horas a mente se renova e o espírito se acomoda. Algumas vezes, esses momentos coincidem com meus instantes de solitude e contemplação. No entanto, entendo como “fazer nada” algo mais amplo, que inclui, por vezes, o fazer “alguma coisa” trivial e sem obrigações.

Mas, ainda que tenha queimado dois parágrafos com o assunto, não é exatamente esse o tópico agora. Porque aprecio também – numa escala menor, é evidente – certos momentos de ócio involuntário.

Eu não sabia disso. Em geral, esses momentos surgem acompanhados de certa frustração. Você sai de casa cedo, o carro quebra numa rua calma, você liga para o seguro e descobre que precisará aguardar 50 minutos até o guincho chegar. A internet no celular não funciona, você não tem um livro na mochila. Não há nada que possa ser feito a não ser comer o resto daquele pacote de biscoitos que ficou solto no porta-luvas e esperar. Ao redor, só uma padaria vazia e você até tem uns trocos para ir até lá e beber um pingado… Ócio involuntário.

Você está gripado e não pode sair de casa numa quarta-feira. Você precisa descer às nove da noite para caminhar com o cachorro na pracinha. É sábado, acabou a energia elétrica em casa e chove torrencialmente lá fora. O trânsito está engarrafado e você descobre que seu carro é capaz de se mover a 3 km/h. Seu voo atrasa e você já está dentro do avião, parado na pista, com o aviso de desligue os aparelhos eletrônicos aceso. Você está, a contra-gosto numa fila de banco, numa fila de repartição pública, fila de lava-rápido, filas de pronto-socorro, filha da mãe do marceneiro que combinou com você às oito e te deixou plantado esperando na obra por uma longa hora.

Como disse, nenhum desses acontecimentos pelos quais qualquer sujeito gostaria de passar. Nenhuma alternativa de lazer ou passatempo ao alcance das mãos. E, uma vez neles, nenhum grande prazer na experiência em si.

Mas, passados aqueles 30 ou 60 minutos, há um efeito – bom, pode haver – positivo.

Porque se ao invés de resistir e brigar com os ponteiros do relógio para que passem mais rápido ou amaldiçoar a operadora de celular que não provê um sinal decente de conexão à internet, em resumo, se nos resignarmos com a ideia de que não adianta estressar porque a situação é inevitável, bem, há boas chances que tais “acidentes” se tornem ocasiões oportunas para um saudável “fazer nada”.

Meu ócio involuntário.

Nessa fase da vida em que temos um bebê de dois meses em casa, esses momentos acontecem com frequência cada vez maior e chegam a se estender madrugada adentro. Até faço, algumas vezes, um certo malabarismo equilibrando bebê e celular numa mão enquanto dou a mamadeira com a outra e desvio da Lucy deitada no meio do caminho. Mas há certas horas, embalando a pequena pela sala às três da madrugada, em que tudo o que se pode fazer é caminhar de forma ritmada, cantarolar uma canção de ninar e pensar na vida durante o breu da madrugada. Ou melhor, esquecer da vida, o que tantas vezes é necessário para colocar as coisas em ordem.

O silêncio, o nada, essa oração não forçada que é deixar a mente vagar por onde queira. As velhas ideias desordenadas então se encaixam, ideias novas aparecem, entendemos um pouco do porquê algo foi como foi, nos ajeitamos para encarar o que vem do jeito que vem. Fazemos resoluções das coisas necessárias para os próximos dias. Reverenciamos a Deus por aqueles detalhes, aqueles instante fundamentais que deixamos de notar por alguma razão ainda há pouco. A vida ganha mais espaço quando a alma pode escoar um pouco do que a vinha afogando. Há realmente um efeito positivo nisso.

Para me prevenir, passei a carregar um livro porta-luvas do carro, de forma que um ócio involuntário possa eventualmente se tornar numa solitude desejada. Não é nenhum livro do qual eu tenha tanta pressa de terminar (em geral, algum de contos ou ensaios), então ele fica ali, esperando para ser lido nessas ocasiões pelas quais nem eu, nem ele, esperamos. Tenho também papel e caneta sempre à mão (para situações como essa agora, enquanto anoto essas palavras), um folheto de propaganda imobiliária, óculos de sol, chicletes de menta e água. Carrego também um canivete suíço falsificado que, ainda que nunca, jamais tenha tido qualquer utilidade, me ajuda a alimentar a ideia de que em algum momento da vida eu possa finalmente me deparar com a necessidade de revelar o MacGyver que vive em mim. Esse é meu kit de suprimentos.

Porque a verdade é pode acontecer a qualquer hora. Vai acontecer quando eu menos esperar. E eu só quero estar bem preparado para fazer absolutamente nada quando isso me for exigido.

Um comentário sobre “Ócio involuntário

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