Darwin, poesia e uma menina ruiva


Cecilia lendo 2

“E eu, que buscava apenas Deus, encontrei a ti.”
-Elizabeth Barret Browning

Às vezes, a vida precisa de explicações, mas tem momentos em que ela só precisa de poesia. É assim que eu entendo a fé. É claro que se trata de uma escolha – você decide encarar o mundo a partir dessa perspectiva – mas não dá para racionalizar. Escolher acreditar, abrir mão do controle, não tentar esmiuçar as coisas para as quais não tenho explicações. Porque Deus é grande, eterno e tudo, mas ele é também essencialmente simples.

Donald Miller escreveu no livro Blue Like a Jazz: “Meu mais recente esforço de fé não é do tipo intelectual. Eu realmente não faço mais isso. Mais cedo ou mais tarde você simplesmente descobre que há alguns caras que não acreditam em Deus e podem provar que ele não existe e alguns outros caras que acreditam em Deus e podem provar que ele existe – e a esse ponto a discussão já deixou há muito de ser sobre Deus e passou a ser sobre quem é mais inteligente; honestamente, não estou interessado nisso.”

Há algumas semanas, meu pai e alguns dos meus tios foram visitar minha avó de 96 anos no hospital em que estava internada. Era mais de meia-noite, eu estava sentado no sofá da sala, cumprindo meu turno e dando a mamadeira para a Cecília, quando abri o celular e vi que chegaram algumas fotos deles ao lado dela. Minha avó deitada no leito inconsciente, os filhos ao redor. “Estão todos muito mais velhos”, pensei quando vi a primeira foto (ao menos, muito mais velhos do que a imagem infantil que mantenho deles em minha mente). “Mas são crianças de 50 anos tentando puxar a barra da saia de sua mãe”.

Poucos dias depois, minha mãe avisou que ela faleceu.

Chorei pela minha avó. A vida é fugaz. Às vezes, nada parece ter muito sentido, tudo fica impossível de se explicar. O que me ocorria é que quando nasci, minha avó já estava lá e nunca pensei em um mundo sem a sua presença. De certa forma, suas crianças ali ao redor da cama, eu aqui, a Nina e a Cecília em casa, somos a sua eternidade. Essa linha contínua que é a existência do homem sobre a terra nas lembranças que deixamos, na história que vivemos.

Acho que todo homem merece ter um bebê nos braços e todo bebê merece o colo de um pai. É o nosso senso de existência, a coisa toda do pertencimento que temos um ao outro, de que dependemos um do outro.

Quando Deus nos diz que é nosso pai, quando Maria e José acolhem o menino Jesus nos braços, quando Jesus diz para o povo de Jerusalém que só queria poder abrigá-los sob as asas como pequenos filhotes, essas coisas dizem mais do que livros e livros inteiros da Bíblia.

A Cecília faz uns barulhinhos de bebê engraçados enquanto mama. Ela já sorri, abre a boquinha banguela, quando eu falo com ela. Ela é ruiva, tem os fios de cabelo bem vermelhos. Às vezes, ela fica encarando a gente bem dentro dos olhos como se tentasse descobrir algo, como se nos perguntasse todas as perguntas do mundo de uma vez. E a gente é que fica se perguntando um monte de coisas então.

Talvez Darwin explique que o cheirinho de bebê, os grunhidos fofos e os sorrisos banguelas sejam uma estratégia de defesa da nossa espécie nessa fase tão vulnerável da vida. Certamente a ciência pode explicar o porquê do cabelo vermelho numa família em que ruivos são figuras de um passado remoto. Mas, no duro, só Deus pode ter inventado um troço desses.

Outro dia, eu estava aqui na sala de casa quando a Nina chegou e perguntou se podia cantar uma música pra mim. Foram dois minutos. Eu queria que a câmera da minha memória registrasse tudo aquilo pra sempre. Pedi a Deus para não esquecer aquele instante nunca mais. Não só a cena, aquela sensação, a coisa toda, os olhinhos dela me encarando daquele jeito, a voz de criança desafinando e confundindo as frases.

Me explica isso.

Buscamos incansavelmente, o tempo todo, repostas. Mas há coisas incompreensíveis. Em certas horas, o melhor a fazer é se calar.

O desejo humano pela transcendência, o vazio primitivo da eternidade, o amor, o amor!, a inquietação diante da constatação de que a vida começa e acaba, que 96 anos passam como um sopro, que uma noite mal dormida dura quase a eternidade, que senhores de 60 anos são crianças aos pés de sua mãe no leito e isso tudo foge ao nosso controle.

Acredito na Evolução, mas como a casca de uma fruta que tiramos aos poucos e vai revelando sua essência. Para mim, é a descoberta do como, não do porquê. E adoro esse entendimento que vamos adquirindo, como espécie, ao longo dos anos (muitas das descobertas científicas que explicam parte de como tudo funciona, não eram conhecidas há poucas décadas). Isso não elimina, portanto, todo o resto no que diz respeito a fé, onde procuro motivos, onde escancaro minhas dúvidas, onde me rendo à certeza de que não saber não é se apequenar.

Porque jamais saberemos tudo. O universo se revela passo a passo, nos mostra fragmentos, mas diante de todo o resto, diante do inexplicável, só existem as nossas interrogações e assombro. Nessa imensa lacuna, reside minha fé. Mas em tudo, eu enxergo a Deus, que guia nossos passos nessa caminhada.

“Deus não é um argumento”, disse o Rob Bell outro dia num podcast que escutei. “Você não está tentando ganhar um debate, você quer viver. E alguns debates são apenas perda de tempo”.

Cecília só enxerga uns 40 centímetros à sua frente, talvez ela compreenda o que se passa a um metro ou dois. E isso é todo o seu universo, tudo o que pode compreender e, sabe lá, explicar. Com essas primeiras impressões do mundo, ela sorri, chora, interage como sabe e como pode, sem saber o que a aguarda. Ela depende de nós para isso.

É assim, através dos nossos olhos, conduzida pelos nossos braços, que ela vai sendo apresentada e se apresentando. Eu só a carrego, satisfeito por guiar os passos de mais uma menininha nessa jornada. Fico contemplando esses momentos, desejando não esquecer aqueles instantes todos nunca mais. Os olhinhos dela encarando tudo, absorvendo o que lhe passa a frente numa escala de processamento incontrolável. E ela começando a formar, naquela cabecinha ruiva, seu conceito do que é – e do que virá a ser – a vida.

Muitas vezes, queremos explicações. Mas nessas horas é que precisamos mesmo de poesia.

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