Não tenho mais idade para isso


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É curioso como vamos nos sentindo menos aptos a fazer certas coisas à medida que os anos passam. “Não tenho mais idade para isso”, eu disse outro dia para um amigo que tentava me fazer voltar a andar de skate (sim, eu escrevi “voltar”. Mas para decepção geral ele não teve sucesso).

A lista é extensa. E cresce a cada levantada de mal jeito da cadeira, a cada comprimido de omeprazol, a cada forçada da vista para ler as legendas na tv. Escalar cachoeiras e fazer trilhas, caminhar horas a fio, passar a noite acordado e ir trabalhar no dia seguinte sem me sentir um zumbi, comer um biscoito de chocolate sem engordar três quilos instantaneamente, jogar bola a tarde toda, ouvir música e ver tv e mexer no computador e ler um tratado acadêmico, ao mesmo tempo. Mudar o mundo, acordar com a convicção de que somos capazes de fazer diferença no curso da história.

Não consigo mais.

É como se fôssemos perdendo, entende? Como se o momento tivesse passado. É como se ao nascer, pudéssemos tudo e aquele começo de vida fosse a plenitude e estivéssemos autorizados a fazer qualquer coisa. Não temos idade para nada ainda, mas já temos idade para tudo. E não porque alguém deixou, mas porque nos permitimos, porque não disseram que não dá. E ao longo da vida, os nãos, os poréns e os entretantos vão nos limitando.

Isso me ocorreu em uma noite dessas, quando passei pelo quarto das meninas em minha ronda noturna, parei para estender uma manta sobre a Nina e notei, meio assustado, que ela já tem quase o tamanho da cama. Está enorme. Os braços mais longos, os pés onde já não cabem sandálias cor-de-rosa, as mãos com pulseiras de tecido penduradas. Ela sabe que ainda é criança, mas já se nega a fazer coisas sob argumento de que são coisas de criança. E aí, ela, a minha Nina, agora já não tem mais idade para certas coisas.

Mas, de quanta idade é preciso para ficar velho demais?

Hoje, ela faz nove anos. Tomo essas notas e são 1:40 da madrugada. Ela não aguentou muito e cedeu ao sono lá pelas onze, enquanto tentava resistir bravamente para experimentar os primeiros minutos do dia do seu aniversário. Ainda há pouco, a Manú andava aqui pela sala procurando um esconderijo para guardar o presente e a Nina poder curtir a surpresa quando acordar pela manhã (ela adora essas coisas). Me pego pensando que nunca me imaginei como pai de uma menina de nove anos.

Eu lembro de absolutamente tudo da minha vida nessa idade. Os amigos, a escola, o skate, as tardes andando de bicicleta sob a chuva com a boca aberta tentando engolir as gotas no ar, o sonho de jogar na zaga do São Paulo, ter uma banda de rock e ganhar o Nobel (eu era bem modesto). Quando eu tinha nove, era 1989. E lembro da campanha presidencial passando na televisão: Collor e Lula, cada um a seu modo, esbravejando nos debates, num prenúncio do que seria a cena política dos próximos anos.

Sei que daqui 25 anos, quando tiver minha idade, a Nina também vai ter suas memórias sobre os dias de hoje – o ano em que sua irmã mais nova nasceu, o ano em que pedalava por aí atrás de alguma aventura para dedicar a tarde, os brinquedos preferidos, as primeiras verdadeiras melhores amigas (que talvez a acompanhem pela vida toda), a experiência de lidar com a morte de alguém próximo, o ano em que talvez muita coisa mude na história do país em que ela está crescendo. O sentido de mundo, a ideia de que ela não pertence apenas ao microcosmo do nosso núcleo familiar, a noção de que o mundo é um lugar muito maior, amplo e complexo. Ela tem feito perguntas cada vez mais difíceis de responder. E lá em 2041, desde que um skate não esteja nos planos, espero sinceramente que ela não se ache velha demais para fazer qualquer coisa.

Ao lado da cama da Nina, a Cecília dorme no berço. Em dez dias, ela vai comemorar seu primeiro ano de vida – meu Deus, como isso passa rápido. E talvez ela também, lá aos 35, faça suas reflexões. Mas se para a Nina a vida agora é uma transformação, para Cecília, hoje, o mundo é essa coisinha só, essa pureza toda, é brincar, comer e dormir. Ela dorme sem nem saber o que é o amanhã, ela vive agora e pronto. E a gente não consegue imaginá-la sendo outra coisa que não essa intensidade ruiva vivendo a 100 quilômetros por hora.

Ela aprendeu a andar essa semana. Eu ajoelhado no chão, a Manú e a Nina na outra ponta da sala e ela saindo de um abraço para outro com sua caminhada cambaleante. Eu continuei ajoelhado. São seus primeiros passos e adoro ver a forma como ela desbrava e descobre o mundo.

Um passo após o outro, a vida toda pela frente. O mundo é todo delas.

Hoje, elas podem ser tudo o que quiserem, porque elas são livres para tudo. E apesar de não ter idade para quase nada, crianças ainda tem idade para qualquer coisa.

São as crianças, disse Jesus, que herdarão o Reino de Deus. Pela pureza de seus corações, pela transparência de seu caráter. Devemos ser como elas, ele falou. E esse é um bom espírito para se ter.

Sempre acho que é disso que temos a maior falta: a ousadia infantil de pensar que nada é impossível, a liberdade de sonhar com a convicção de que qualquer coisa, qualquer mesmo, pode ser realizada. E que tenhamos 1, 9, 20, 35 ou 80 anos é sempre necessário acreditar que nunca, jamais, será tarde demais para começar algo, seja brincar, ter uma banda de rock, ganhar o Nobel ou mudar o mundo. Se é alguma “coisa de criança” o que pretendemos fazer, então temos um sinal de que estamos no caminho certo. Eu ainda tenho muita idade para isso.

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