Embebido em álcool gel, eu saio valentemente à caça. Minha missão é chegar ao supermercado mais vazio e próximo de casa sem que meus dedos toquem superfície alguma que não as previamente imunizadas pelo meu jato de Lysoform, que desintoxica e perfuma (é… vá lá) quarteirões ao redor de mim. O cheiro é tão intenso que já confunde até o tempero da comida. Eu presumo que meu carro deve borrifar Lysoform pelo escapamento quando dou partida.
Faz dias que não saio do condomínio e, de repente, dirigir pelas ruas esburacadas e agora vazias do bairro parece um passeio de carruagem pela Champs-Elysees. Aceno animado e sorridente para os incautos que circulam pelas calçadas. Não fosse o mantra “dissstaaaannciiaaaaamm sssociiiaaallll” repetido em minha mente, teria oferecido carona a um desconhecido que subia a ladeira com dificuldade. Na virada do ano, eu sonhava em passar as próximas férias em uma praia do Nordeste, agora me deslumbro contando o número de postes entre minha casa e o supermercado.
Chego no mercado, imunizo cada centímetro do carrinho de compras e sigo para a missão que moveu meu traseiro do sofá até aqui: comida e mantimentos. Corrijo: comida, mantimentos e frascos de Lysoform.
Repentinamente, a obrigação que eu mais odiava ter que cumprir na vida – ir ao mercado – se tornou uma experiência magicamente satisfatória. Corredores longos, o piso liso, o cheiro das verduras. “Olá, amigo açougueiro!”, eu saudo. “Boa tarde, querida moça do caixa!”.
Eu, às cinco da tarde, flanando pelos corredores do Carrefour.
Consulto a listinha de compras anotada no celular. Limpo as mãos com o álcool gel que carrego o tempo todo no bolso em um pequeno recipiente. Uso tanto que minhas mãos já estão secas como uvas passas (e essa história de que tem aloe-vera no álcool é pura groselha. Pensei em reclamar no Procon, mas me ocorreu que, ganha a causa, seria um fornecedor a menos de álcool no mercado). Cada superfície ou embalagem tocada é uma nova apertada no potinho. Deviam criar uma embalagem que a gente possa pendurar no pescoço, eu penso. Ou na cintura, tipo uma arminha, que cospe álcool gel para eliminar coronavírus. Se fosse assim talvez o presidente apoiasse. Eu chamaria de X-Covid .40. Ponto quarentena.
Bom, as compras, meu Deus. Estou há 40 minutos no corredor de achocolatados admirando embalagens de Nescau. Paro no corredor de limpeza e acho 500ml de álcool gel pelo preço de uma garrafa de Barolo. Fico em dúvida. Se o teor alcoólico do vinho fosse 70+ eu até levaria, já que vem mais mililitros.
A mistura de aromas no corredor me ataca a rinite e começo a espirrar compulsivamente. Espirro naquela junta entre o antebraço e onde deveria ter bíceps. Quando olho em volta, estou sozinho e as poucas pessoas ao redor fogem me olhando escandalizadas.
Consulto a lista de compras novamente e confiro cada um dos itens no carrinho. Passo álcool no celular inteiro e ligo para a Manu para me certificar de que não esqueci de nada.
– Mas você não anotou o que era para comprar?
– Sim, tá tudo aqui.
– Então está certo, não?
– Não sei. Vai que esqueço de alguma coisa. Não quer algo mais mesmo? Não quer que eu vá no atacado, no hortifruti, na padaria, no depósito…?
– Não. Quero você aqui. Está perigoso, Henrique. Vem logo.
Passei quatro vezes por cada corredor do mercado. Um dos pés apoiados na barra inferior do carrinho logo atrás das rodinhas enquanto o outro pegava impulso para que eu pudesse deslizar pelos corredores, como se fosse um patinete, sentindo a brisa de ar-condicionado e liberdade me soprando no rosto pálido carente de vitamina D.
Já era quase noite quando meu passeio… hum, digo, minha árdua missão teve fim. Paguei a compra. A moça do caixa estava protegida por uma barreira de plástica, quase uma cabine blindada. E máscara branca. E ela tinha um pote de álcool gel ao lado maior que uma garrafa pet de Coca-Cola Super Família. Deveria valer milhões. Perguntei se podia usar.
Lembrei de uma pergunta da Cecília, minha filha de cinco anos: “Pai, quem passa álcool gel no álcool gel?”. Desde então sempre pego uma sobrinha e besunto o recipiente depois de usar. A moça do caixa me olhou torto. “No crédito, por favor. E não precisa do CPF”.
Guardei a compra no carro, repassei mentalmente as superfícies que toquei para ver se tudo estava devidamente… Eita, as chaves do carro! Besunto tudo.
É bem difícil ser um sujeito com TOC e distraído nesses tempos.
Descarreguei a compra em casa. Manú chegou para ajudar a guardar. Me sentia como meu antepassado primata voltando para a caverna com a caça da semana. Nunca nosso aprazível apartamento pareceu tanto uma caverna.
– Nossa, você demorou!
Dessa vez não dava para culpar o trânsito.
– Acho que perdi o hábito de ir ao mercado. De ir a qualquer lugar, na verdade.
Desempacota aqui, desenrola ali, guarda acolá, até que…
– Henrique, você não trouxe leite?
– Leite? Tinha leite na lista?
– Não sei. Mas o leite acabou. Tinha que trazer.
– Mas eu te liguei e… Ah, deixa, tudo bem, eu volto lá.
– Não, amor. Está certo. Deixa que eu vou. Você está cansado, já saiu e suas costas…
– Mas fui eu que esqueci.
– Amor, eu vou. É que eu… eu tô querendo mesmo dar uma voltinha.
– Não esqueça o álcool gel.
Às dez da noite, deslizando pelos corredores de laticínios sem lactose. Ventinho no rosto. A liberdade.
—
(Publicado originalmente no Estadão)