O casal – um casal aí, uns amigos, alguém que a gente conhece – decidiu vender o apartamento onde morava e se mudar. Depois de ótimos anos vivendo no local, a oportunidade de ir para um lugar mais agradável somada à dura convivência com o barulho do salto dos tamancos da vizinha do apartamento de cima martelando em suas cabeças desde as cinco e quarenta da manhã, os levou a decidir pela mudança.
Na ordem geral das coisas, depois de decididos pela mudança, o casal (um casal aí, de amigos, uma família que a gente conhece) começou os arranjos para a venda do apartamento. Providenciaram os reparos básicos e necessários, uma boa organização nos brinquedos das crianças espalhados pela casa, uma ordem nos banheiros, nos livros, nos fios expostos atrás da TV e finalmente tudo parecia pronto para receber potenciais compradores.
– Precisamos fazer um anúncio – disse a esposa em certa manhã enquanto preparavam o café.
– Verdade – respondeu o marido.
– Você escreve?
– Eu?
– É. Quem escreve aqui em casa é você. Faz um anúncio bonitinho para eu publicar no grupo de classificados.
– Tá bom – e bocejou.
Dias mais tarde, depois de meia dúzia de cobranças e uma semi-ameaça de divórcio, o marido (um amigo meu aí) sentou para escrever o anúncio. Na primeira linha, veio a dúvida:
– Querida, que valor nós vamos pedir no apartamento?
– Pelo que tenho visto em outros anúncios, vale uns 90.
– Hum. Falei com um colega e ele comentou que dá para vender até por 100.
– Legal. Então divulgue por 130.
– Por quê?
– Porque aí a gente chega em 100.
– Mas se a gente quer 100, porque já não anunciamos por 100?
– Porque aí a pessoa vai oferecer menos.
– Mas se a gente colocar mais caro, aí é que fica fora do que pretendem pagar.
– Não é assim, Enrico. A gente anuncia por mais, a pessoa oferece menos e aí chegamos num meio termo.
– Então a gente quer 100, mas vamos anunciar por 130. Aí, alguém que não tem 130 para pagar virá até aqui olhar o apartamento assim mesmo e, se tiver interesse, vai nos propor 80 para tentar negociar e, no fim, pagar os 100 que gente quer e, pelo jeito, ele também?
– Isso.
– Qual é o sentido disso?
– É a negociação. A pessoa sente que pagou menos do que pedimos e nós conseguimos uma vantagem sobre a proposta inicial.
– Mas, no fim, os dois queriam o mesmo preço.
– Deixa que eu escrevo o anúncio então.
– Não, pode deixar, Malu. Desculpe. Vou trabalhar no texto aqui.
Horas depois, já no trabalho, ela recebeu uma mensagem do marido no telefone:
“oi, td bem? te mandei um email com uma ideia pro anúncio. vc vê se ficou bom?”
“Tá bom =) Já vejo e te falo”
“pensei em numa proposta um pouco mais ~transparente para o anúncio…”
“Sei.”
“depois me liga :-*”
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De: Lucio Enrico Gramas
Para: Malú Doisber
Assunto: Anúncio do nosso apartamento (aka sincericídio?)
Amor, segue a ideia para o texto do anúncio. Se gostar, me fale e já posto nos classificados:
VENDO. Lindo apartamento com três quartos na Rua do Limoeiro (bom, nós o achamos lindo, mas pode ser que você tenha um gosto diferente). Temos sido felizes aqui e certamente sua família também pode ser. Ele vem com armários, uma linda vista do parque, pintura nova e trilha sonora bate-estaca embutida no teto. Achamos que vale $100, mas estamos anunciando por $130. Se você visitar e gostar, pode nos oferecer $80 para fecharmos negócio nos $100 que ambos queremos. Caso tenha interesse, ligue ou escreva para o número abaixo.
Me fala?
bjs, E.
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O telefone do marido não tocou naquela tarde.
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(Publicado originalmente no Estadão)