Assisti a um vídeo na internet outro dia em que um sujeito corre de costas. Na verdade, era mais do que isso. A cena toda acontecia em uma arquibancada de estádio, com dezenas e dezenas daqueles degraus onde as pessoas se sentam para ver algum jogo ou espetáculo. E ali, no meio da pequena multidão reunida para outros fins, a câmera de algum celular captura a imagem de um homem, vestindo apenas shorts e sem camiseta, descendo em alta velocidade aquela arquibancada inteira. De costas, correndo. E pouca gente ao redor parecia perturbada, o que pode ser um sinal de que ele faz isso por ali com alguma frequência.
Revi a cena duas vezes para entender. Minha primeira reação foi ficar impressionado com o feito. A segunda, foi me perguntar: por quê? Que raios, oras, faz alguém despertar numa manhã e se convencer de que o melhor uso do seu tempo seria passar horas e horas treinando uma forma eficiente de andar para trás? Mais do que isso, correr para trás descendo escadarias. Soa como um retrocesso arriscado e em alta velocidade.
Há algumas semanas, entrei num táxi e estava tocando Nirvana na rádio. Agradeci em silêncio pelo gosto musical do motorista, até que a música acabou e escutei a vinheta da Alfa FM. A Alfa FM, prezada leitora que vive fora de São Paulo, é a estação de rádio que alimenta as caixas de som de consultórios e elevadores da cidade há décadas, com músicas de Diana Ross, Kenny G. e Emílio Santiago. Do Nirvana, não. Eram três da tarde, eu seguia para uma reunião de trabalho, os derradeiros acordes de Smells Like Teen Spirit ainda se arrastavam quando a apresentadora anunciou que estávamos escutando a Tarde dos Clássicos. Naquele momento, em elevadores corporativos de toda cidade, no consultório do meu dentista com seu paciente de boca escancarada restaurando uma obturação e nos lares onde radinhos ainda embalam o momento da faxina e das roupas sendo estendidas nos varais, naquela hora, a trilha sonora ambiente era Nirvana, com Kurt Cobain quebrando sua guitarra ruidosa e a canção que embalou minha adolescência pseudo-rebelde. Nada “smells” menos um “teen spirit” do que aquilo.
Acho que certas coisas, como bandas, filmes, livros e tendências de moda ou se tornam atemporais e nos acompanham indefinidamente – como Beatles, Chico Buarque, Machado de Assis, Os Goonies, Cidadão Kane – ou só deveriam ser reeditados e rotulados como clássicos depois que a geração que experimentou aquilo pela primeira vez já tivesse deixado de existir (ou já fosse velha o bastante para esquecer). É uma regra combinada para a boa moral. E tem ainda uma outra categoria de coisas – a maior parte, eu diria – que são desastres incontestes que deveriam nos envergonhar e não voltar jamais.
Por insistência da minha filha, comecei a assistir a nova temporada de Stranger Things. A Nina agora é adolescente e acha aquela estética oitentista muito exótica. Para mim, aquilo é apenas um flashback, um retrato constrangedor da minha infância aparecendo na tv. Tudo está lá: as bicicletas que eu tive, as roupas iguais às que usei, o jogo de RPG que joguei, os mullets no cabelo que tentei deixar crescer, as músicas que ouvi, o fato de não ser popular na escola, como não fui e, de quebra, acreditar em monstros vivendo em universos paralelos. Como, pois é, acreditei.
Às vezes, sinto que essa celebração exacerbada do passado é uma preguiça intelectual, um fracasso voluntário de nossa geração em criar algo original que estabeleça como marca desse tempo e que nos permita, algum dia, relembrar esses anos 20 como símbolo de algo que nos levou um passo cultural adiante.
Essa falta de originalidade vem intensificando o lançamento de produtos que ridicularizam as duas gerações. Toda essa insistência em reeditar continuações e releituras de filmes, bandas, roupas e afins tem grande potencial de consumo porque resgata uma geração que adquiriu poder de compra sem ter adquirido maturidade. De forma que até doces e bebidas da década de 80 estão sendo fabricados em embalagens com versão retrô para relembrar a infância de pessoas que hoje nem tem mais paladar, índice glicêmico e condição física para comer e beber esse tipo de guloseima. E assim, essa bolha de Ploc com gosto de nostalgia vai fazendo com que algumas pessoas alimentem as melhores lembranças de coisas velhas e outras tenham pesadelos com o passado.
Eu fico achando que cultivar nostalgia por coisas que ganharam fama depois que eu nasci, me tornei um rapazinho, já cultivava um pequeno bigode e alguma consciência cultural, é um pescotapa seco na minha cervical deteriorada. Mas, acho que revivi tantas cenas da minha infância ultimamente que eu também regredi em certos padrões de comportamento. Me peguei emotivo com uma música do A-HA outro dia, comprei uma calça baggy, voltei a beber Nescau (agora com leite sem lactose), comprei pacotes de biscoito Piraquê com embalagem vintage e, putz, voltei a ter pesadelos.
Há alguns dias, depois de uma overdose televisiva regada a Vecna e Demogorgon me assombrando, fui dormir e tive um pesadelo em que vivia em um mundo invertido. Eram os dias atuais e vivíamos numa terra com tragédias, valores distorcidos e condições escatológicas de existência.
No sonho, as pessoas andavam para trás. As ruas foram tomadas por gente gritando palavras de ordem e acreditando ser nobre a ideia de assistir militares desfilando em tanques de guerra enquanto tomavam novamente o poder. Homens e mulheres, com seus lares ornamentados com retratos de família e sua vida pacata de novela das seis, agora rendiam homenagens a personagens brutais e torturadores assumidos. Jovens e velhos celebravam os piores dias da história da nação com uma nostalgia anestésica. O país atravessava um período de inflação nas alturas, com a cesta básica em valores tão altos que tinha gente trocando o gás de cozinha por lenha, comprando osso de vaca e pé de galinha para cozinhar e trocando a carne do frango pelo ovo. Eu queria escapar daquele pesadelo, mas não sabia como acordar. Eu tentava fugir, mas as pernas não obedeciam. Quanto mais força fazia para correr, mais rápido eu andava para trás.
Enquanto trafegava em marcha a ré por aquela distopia, tomava ciência (não, ciência não, essa palavra virou palavrão e tinha sido banida do vocabulário) de que recursos naturais do planeta eram dizimados ao som de motosserras e com sorrisos sarcásticos dos que trocavam o futuro por um punhado de ouro e nióbio (não, nióbio não, nem no pesadelo eles queriam saber do nióbio). Grupos minorizados eram excluídos, os direitos humanos comuns a todos eram atropelados protocolarmente como se fossem heresia diante de um novo dogma nacional. Falando em dogma, fui levado no sonho à visão de um templo religioso, para onde corri em busca de refúgio e respostas, mas os líderes espirituais benziam e consagravam armas e munições em nome de uma guerra santa a ser combatida para a defesa da integridade e poder de seu líder. Era um mundo invertido. Havia um grupo que se autodeclarava pró-vida, mas defendia a pena de morte. Outro, em nome da liberdade religiosa achava nobre ser classificado de terrível. Em favor de uma ideia específica de amor, proclamavam que esse deveria ser condicionado a quem os amou primeiro. Nem Dante imaginou um inferno daquela forma, nem em Stranger Things as coisas pareciam tão estranhas.
Acordei suando, com medo de monstros. Abri os olhos e fiquei aliviado por lembrar que vivemos em uma sociedade obviamente distante dessa fantasia, grato por saber que o tipo de horror que realmente assombrou nossas vidas por décadas não era uma moda, filme ou canção que alguém ousaria reeditar. Imagina esse tipo de coisa hoje em dia? Até parece… Quem, afinal, ainda pensa em andar para trás?
Ainda assustado com aquelas cenas e meio preso às lembranças da criança que fui na década de 80, tive dificuldade para voltar a dormir. Pensei em deixar uma luz acesa no corredor para afastar os fantasmas, mas então lembrei que a conta de energia subiu de novo este mês, pela quinquagésima vez consecutiva e achei que era melhor economizar.
“E o futuro não é mais como era antigamente”, dizia o trecho de uma canção que tocava nas rádios em 1989, já no apagar das luzes daqueles dias sombrios e sob a voz gutural do Renato Russo. Mas, aos nove anos de idade, eu só achava que aquilo era um tipo de conjugação de verbos que eu ainda não tinha aprendido na escola. Meu pretérito imperfeito.
Correndo para trás em alta velocidade. Treinando arduamente uma forma eficiente de caminhar em marcha a ré. A vida soa como retrocesso e, às vezes, queremos acreditar que basta dar ao tempo seu devido espaço e controle para que as coisas se curem aos poucos. Não tem sido assim nesses últimos anos. Em vez de evoluir, habitamos esse estado de suspensão permanente em que, no lugar de progredir como espécie, insistimos em regredir.
Mas, para certas coisas, não basta o tempo para transformar. Não bastam os anos após anos, crepúsculos sem fim, não bastam as grandes descobertas e invenções – do fogo, da roda, da vacina e das viagens ao espaço. A alvorada de novos dias carece da transformação do pensamento que ainda nos enraíza na ideia primitiva de querer ter poder e controle, em conceitos arraigados que nos impedem de deixar ruir nossos privilégios, reconhecer o outro, celebrar o diferente, pedir perdão e promover a reparação necessária. O dia em que seremos irmãos e irmãs, unidos no santo vínculo do Eterno, com nossas relações regidas pelo respeito e pelo amor não virá pela força, mas pela consciência de que pertencemos uns aos outros, à mesma espécie, a essa terra que nos alimenta, às comunidades que edificamos e à ideia comum de sentido nessa existência.
É uma ideia que não é nova, parece coisa do passado. Na verdade, tem uns dois mil anos que circula. Mas talvez ela nunca tenha sido tão necessária como um próximo passo para que tenhamos dias melhores neste mundo.
Estávamos a caminho da escola outro dia e a Nina me pediu para ligar o som. Eram sete da manhã e botamos para tocar Brazuca, nossa seleção particular de MBP. “Põe no modo aleatório, pai”, ela pediu. E assim, aumentamos o volume e deixamos surgir o que seria a trilha sonora para um discreto sol numa manhã de inverno cercada pelo trânsito da Marginal Pinheiros. No banco de trás, Cecília se concentrava nos primeiros acordes de um samba. Sentada ao meu lado, Nina tamborilava os dedos na perna. Naquele carro, tinha comigo um pedaço do que tenho de mais valioso na vida e o que faz ter sentido continuarmos essa luta que nos leva adiante, com alguma pressa, numa caminhada firme e convicta que siga sempre em frente. Para que elas desfrutem um novo tempo em suas vidas e o futuro, finalmente, volte a ser o sonho bom que ele já foi um dia.
Nas caixas de som, Chico cantava, como cantou no fim dos anos 70 e, diferente dos flashbacks constrangedores a que temos assistido, sua letra parecia ecoar como um hino para os dias de hoje: “Apesar de você/Amanhã há de ser/Outro dia/Você vai ter que ver/A manhã renascer/E esbanjar poesia…”
Haverá amanhã.
(Publicado originalmente no Estadão)