Eu quero menos


16/4 – “Baste a quem baste o que lhe basta. O bastante de lhe bastar! A vida é breve, a alma é vasta: ter é tardar”, escreveu Fernando Pessoa. Ter menos coisas não basta, é preciso querer menos para que isso se torne legítimo. Eu quero menos.

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17/6 – Cecília na cama, no último suspiro antes de adormecer agarrada no meu braço, enquanto Lucy, nossa cadela de trinta quilos, ronca no chão ao lado da cama: “Hoje a noite está perfeita. Eu comi brigadeiro, estou abraçada com meu papai e vou dormir com meu cachorrinho”. Ela cai no sono e eu fico acordado, mirando o teto do quarto e grato por ser esse sujeito bem-aventurado.

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19/6 – No carro, a caminho de uma festa, a adolescente liga uma música eletrônica no som. O veículo se converte imediatamente numa loja de fast fashion com os graves e batidas fazendo pular os fragmentos de poeira que vinham se depositando sobre o painel nas últimas semanas. A adolescente aumenta o volume, vira o corpo inteiro para o banco de trás onde estão as três amigas: “Essa música é legalzinha! É beeem das antigas, mas é boa”. Ao que uma das amigas comenta: “Nossa! Antiga mesmo! Essa é muito 2017”.

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Estou lendo e relendo uma coletânea de sermões do Martin Luther King (um dos meus heróis) chamada A Dádiva do Amor, me deparei com isso aqui: “O evangelho, nos seus melhores aspectos, lida com o homem como um todo, não só com sua alma, mas também com seu corpo; não só com seu bem-estar espiritual, mas também com seu bem-estar material. Uma religião que professa preocupação pelas almas dos homens e não está igualmente preocupada com as favelas que os desgraçam, com as condições econômicas que os estrangulam e as condições sociais que os aleijam é uma religião espiritualmente moribunda.”

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13/7 – Manú comprou um secador de cabelos que é tão bonito que, toda vez que vejo, eu tenho vontade de usar. Já teria usado não fosse o fato de que cada fio em minha ovalada cabeça mede menos de um centímetro e, portanto, estão todos completamente secos com o primeiro lufar de vento quando abro a porta do box depois do banho.

Tudo culpa da Apple e seus computadores e celulares. Tudo tem design hoje em dia e eu sou especialmente sensível ao apelo estético dessas bugigangas. O lance é que esses equipamentos domésticos e eletrônicos estão ficando bonitos e, em vez de serem escondidos num armário da lavanderia, agora ficam expostos em cima da mesa como objeto de decoração. Que tristeza isso.

Outro dia, estava andando pelo shopping e vi um aspirador de pó na vitrine e fiquei parado contemplando como se fosse um Monet.

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Caem as máscaras. Há pessoas com quem encontro diariamente no elevador do prédio, na garagem e na rua, mas nunca vi sem máscara no rosto. Aprendemos a nos cumprimentar e interpretar através de olhares e agora fica informação demais.

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14/8 – Escrevo crônica porque vivo poesia.

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Os sábados precisam voltar a ser sábados.

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23/7 – Se eu fosse roteirista do Zorra Total na Globo (ainda existe o Zorra Total?), iria propor uma piada cuja cena teria dois homens das cavernas que passam o dia caçando, enfrentando chuva, predadores, vento e toda sorte de perigos. À noite, os dois chapas estão com suas famílias sentados em volta de uma fogueira em frente à suas cavernas, os olhares fixos no movimento das chamas como se fossem televisores passando a novela. Depois de algum silêncio, um deles solta: “Sabe, cara, sinto que está tudo mudando tão rápido ultimamente. O tempo voa. Eu me pego pensando todos os dias: que mundo é esse que eu vou deixar para os meus filhos?”

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24/7 – Faz um ano que Edu se foi. E quando as pessoas, as nossas, começam a morrer, acontece algo profundo em nós. Nossos familiares, amigos, primos, nossa geração começa a partir, aos poucos, e parte do nosso mundo, as memórias e histórias, ao mesmo tempo em que ressurgem em fragmentos, também se vão. Viram passado, viram saudade. Deixam uma lágrima, um lamento, essa dor. E ficam para sempre em nós.

Que o Edu esteja agora com o Criador, em amor, sem dor. Que dos seus olhos claros Deus recolha as lágrimas e que da eternidade ele desfrute finalmente em paz. Aqui, ele também fica. Na saudade. Até breve, primo.

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28/8 – Uma da madrugada, estou saindo da transmissão do debate presidencial num canal de TV e peguei um táxi com um cara que mede 2,06 metros (sim, ele disse). Ele não cabe no carro e dirige quatorze horas por dia naquele espaço, todos os dias, sem descanso. Mas só reclamava mesmo era do ciúme da esposa e do fato de estar ficando careca.

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30/8 – No saguão do aeroporto, assistindo o Canal Off com o som da tv desligado enquanto espero pelo embarque e um sujeito recorta com sua prancha de snowboard uma montanha de neve em um vídeo em câmera lenta. Ao redor, tem gente falando e falando nos celulares, aquela mistura infinita de todos os perfumes possíveis no ar, o ruído de rodinhas de malas sendo arrastadas para todos os lados e a voz sempre em um volume acima do tolerável do funcionário avisando sobre as filas do voos a serem abertos para embarque, estarem embarcando, prioridade, passageiros platinum, passageiros gold, prata, premium, estarem na última chamada para embarque, no embarque, fechando as portas. “Atenção passageiro Luiz Henrique Matos, por favor comparecer ao portão de embarque número doze”. Off. Chegou minha hora.

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Em São Paulo, os patinetes estão voltando à Faria Lima. Junto com os carros enfileirados e gente com copinhos de café na mão andando com pressa.

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9/9 – Jean-Paul Sartre disse que “somos escravos da nossa liberdade”. Não escolher, portanto, também é um tipo de escolha. No momento de país em que estamos, tudo, tudo é uma ação em favor de algo. Não podemos silenciar.

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Crise de ansiedade. Já faz tempo que era ontem e eu não estava lá. Amanhã era ontem o tempo todo e era lá que eu ficava. O amanhã era meu hoje, o tempo todo, onde eu nunca estava presente.

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“Doenças são palavras não ditas”, teria dito Lacan, citado pela minha terapeuta em circunstâncias que aqui não cabem. Fiquei pensando nessa minha insistência em anotar tudo.

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18/9 – Lúcia andava com um problema, meu terceiro livro,  está a caminho! Pobres crianças.

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25/9 – Se eu fosse roteirista do Zorra Total (dei um Google agora e o programa saiu do ar em 2015. Acho que parei de ver tv uns dez anos antes disso) e não tivesse sido demitido por conta da piada ruim anterior, escreveria uma continuação para a cena com os homens das cavernas.

Num futuro não muito distante dos dias de hoje, duas mulheres passam o dia trabalhando em suas máquinas e telas, enfrentando reuniões infinitas, chefes abusivos, competidores aguerridos, ar-condicionado descalibrado e toda sorte de ameaças. À noite, as duas chapas estão cada uma em sua cama e conversando em uma ligação de vídeo. Os olhares fixos no piscar das telas como se fossem chamas de uma fogueira. Depois de algum silêncio, uma delas solta: “Sabe, amiga, tem tão pouca coisa evoluindo ultimamente. O futuro já não é mais como parecia ser antes. Eu me pego pensando todos os dias: que passado é esse que eu vou deixar para os meus filhos?”

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28/9 – O perdão é por onde nossa cura começa.

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1/10 – Comecei a ler O Pequeno Príncipe para a Cecília antes de dormir. Nunca tinha lido esse livro antes. Desde então, vou deitar me sentindo a própria candidata a miss, podendo citar Saint-Exupéry e falar que “A gente corre o risco de chorar um pouco quando se deixa cativar” em algum discurso regado a lágrimas quando ganhar um concurso de beleza.

Durante o dia, no entanto, a coisa muda. A única diferença entre elas e eu – a única – é que pra mim anda um bocado difícil acreditar na paz mundial neste momento.

João e Maria toca na rádio. Eu penso em biscoitos, migalhas e uma casa feita de doces quando leio esse título. Mas o Chico Buarque achou pensar que  “pela minha lei, a gente era obrigado a ser feliz” e que “Vem, me dê a mão/A gente agora já não tinha medo/No tempo da maldade/Acho que a gente nem tinha nascido”. 

Poderia ser do Pequeno Príncipe também. Mas era Chico. E se não dá pra confiar em paz mundial, pelo menos a gente ainda pode se apegar a poesia, o que dá um pouco na mesma.

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3/10 – Na minha mente ultimamente é só política, política, política, política, política, política, política, política, política, política, política, política, política, política, titica, titica, titica, titica, titica, titica, titica, titica, titica, titica, titica, titica, titica, titica, titica. Última mente.

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5/10 – Ontem à noite saí pra correr. Estava cansado, eram quase dez horas e tudo escuro na rua. Mas criei coragem e segui diligente cada passo ofegante. No meio de uma subida, senti que pisei em algo macio, meio fofo. Assustei pensando que era o côco de algum cachorro e voltei para olhar, já condenando mentalmente o vizinho irresponsável que deixou aquilo por ali. Parei a corrida, retrocedi uns dois metros, fixei o olhar na mancha escura no chão que marcava o que eu havia esmagado: era um sapo.

Segui a corrida, com um misto de aflição, nojo e, confesso, uma satisfação culpada. Tenho engolido tantos sapos nos últimos dias que, de alguma forma, foi bom ter vencido um deles no caminho.

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6/10 – Li em um livro do Richard Rohr ano passado, quando esse mato sem cachorro em que estamos agora ainda era capim: “Onde não existem espadas, os escudos não são necessários”. Me soou apropriado.

(Publicado originalmente no Estadão)

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