Quem vive em Biscoito Duro?


Na estrada, rumo ao interior do Estado, a paisagem de poucas curvas e a vegetação uniforme das lavouras de soja e plantações de eucalipto só tem a monotonia vencida por raros eventos no trânsito e pela distração momentânea das inscrições nas placas que se enfileiram ao longo dos quilômetros. Para um leitor contumaz, textos em placas são a única leitura possível – e uma distração inevitável – enquanto se dirige.

De tempos em tempos, a sinalização das cidades, bairros e distritos saltam aos olhos: Morro Alto, Ribeirão de Cima, Pedrinhas, Rio Branco, Campina Verde, Lavras. Para todo lado, como a paisagem que se repete, os nomes se acumulam e mal se distinguem no lugar-comum das nomenclaturas habituais. Rio das Pedras, Riacho Verde, Vargem… dá para se escolher um elemento da paisagem, a topografia e juntar uma cor e com isso criar basicamente qualquer nome de cidade: Rio Verde, Vargem das Pedras, Riacho de Cima, Morro Branco e segue.

Mas, a quinhentos metros, na saída 182-B meus olhos descobrem que é possível chegar a Biscoito Duro. Nada de rios, morros, rochas ou vargens. Ali é biscoito.

Quem vive em Biscoito Duro? O que há em Biscoito Duro para que assim seja batizada essa terra? Do que se orgulham os habitantes de Biscoito Duro? Tem pracinha com igreja, coreto e pipoqueiro em Biscoito Duro? Ele vende pipoca ou biscoito? Há opção de se comer coisas macias em Biscoito Duro? A comunidade biscoitodurense, unida, celebra quais festas e cerimônias?

O mesmo se pergunta aos cidadãos de Anta Gorda, aos habitantes de Faxina, ao povo de Bofete, à toda gente redundante, repetitiva, que gira em torno do mesmo assunto, circulante, pleonástica lá de Volta Redonda. Gente criativa que resolveu inovar na forma como se identifica como comunidade.

Eu acho preferível essa ousadia na identidade de um local à ideia sem graça dos nomes de santos que se multiplicaram tanto por aí, que hoje lembram mais cidades do que padroeiros. Há centenas de São Paulo, Santo André, São Pedro, São Francisco, São João, São João de-alguma-coisa, São Tomé das Letras (bem específico esse), Santo Amaro, Santa Rita do Passa-Quatro, São Caetano (quem, raios, foi São Caetano?) e todo um mapa devocional que tira a individualidade do lugar e dificulta um bocado a vida da cidadã que precisa dizer que é “santa-rita-do-passa-quatrograndense”. Tem também as variações religiosas que procuram uma via paralela para se diferenciar: Espírito Santo, Salvador, Natal, Santa Cruz do Calvário, Belém. Até que, um dia, chegaram as autoridades de uma certa cidade litorânea aqui perto e, pra zerar o jogo, generalizaram a coisa e assumiram logo um nome geral: Santos. Quase dizendo “somos todos esses aí e os que mais vierem a existir”.

Tem também os nomes de cidades com raízes em línguas indígenas, E são tantos que a gente quase esquece quantos idiomas influenciam e compõem as origens dessa terra.

Houve cidadãos, no entanto, que preferiram refletir a paisagem de suas terras em nomes um tanto mais poéticos. Nasceram os olhares de Belo Horizonte, os bons ânimos de Porto Alegre, o conformismo praiano em Cabo Frio, a confiança de Fortaleza e a auto-congratulação da população tão orgulhosa de si mesma em Palmas.

E tem um Biscoito Duro logo ali adiante. Tinha, na verdade. A entrada para a cidade passou há alguns minutos enquanto o pensamento se perdia em outros rumos.

Biscoito Duro. A placa passa, outras a sucedem, a estrada à frente se estende por quilômetros e quilômetros e quilômetros enquanto esse motorista sorve um gole d’água na garrafa e recompõe o foco apreciando um punhado de bolachas murchas.

(Publicado originalmente em meu blog no Estadão)

Publicidade

Comente aqui

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.