Um porta comprimidos repousava sobre a mesa da cozinha ao lado da minha xícara e de um copo de água, ali gentilmente colocados pela Manu um pouco antes de eu chegar para tomarmos o café da manhã. Um porta comprimidos, todo meu. O sinal supremo de que a vida adulta cobra uma conta um bocado alta quando escancara assim que… bom, pois é.
Eu troquei o meu há duas semanas. Até outro dia, usava um recipiente que ganhei de brinde em alguma farmácia de manipulação anos atrás. Constava o nome desbotado na tampa: “Principia” (farmácias de manipulação adoram nomes meio frescos em latim. Se tiver uma linha homeopática então, é quase mandatório) e um número telefônico para o qual nunca liguei. Estava velho, os cantos gastos já amarelados, pequeno demais para o tamanho dos meus remédios e às vezes a tampa ainda abria sozinha. Mas, mantê-lo assim por alguns anos era também uma forma de negação.
Mas, num fim de semana entrei numa loja de artigos orientais chamada Daiso. A Daiso promove a ideia de que se propõe a trazer um pedacinho do Japão e suas maravilhas para os shopping centers paulistanos. Nunca fui ao Japão, mas se aqueles corredores iluminados e ruidosos, com itens fora de lugar e despencando das prateleiras são uma amostra da realidade japonesa, então o subsolo do inferno fica na terra e está a um dia de viagem de São Paulo.
Enquanto as meninas procuravam por algo, comecei a vagar pelos corredores dantescos entulhados até que, sem me dar conta, já estava há longos minutos avaliando as características de uma meia-dúzia de porta compridos diferentes (sim, existe uma variedade e, pelo visto, toda uma demanda não reprimida para hipocondríacos que se aventuram naquele pedacinho do Japão). Espaços adequados para pílulas de diferentes tamanhos e formas, estética minimalista e dia da semana estampado na tampa do recipiente são diferenciais competitivos. Um bom acondicionamento para os remédios, efeito translúcido com boa visibilidade, abertura suave das tampinhas… dois andares! São muitos atributos para comparar e na hora achei que seria útil ter uma planilha para tirar a prova. Tentei ler melhor as letras miúdas para me inteirar das especificações, mas não consegui. Tirei os óculos e depois de forçar a visão e ajustar bem o foco, entendi que as letrinhas eram uma porção de caracteres de algum idioma oriental e, lá no finzinho do texto, a única coisa legível em letras ocidentais que pude captar: Made in China.
Ah, o Japão e suas maravilhas.
É de se lamentar a sensação de satisfação com que saí da loja, empunhando meu novo acessório comprado por módicos R$ 13,80.
Só depois, já em casa, é que bateu o mal estar. Enquanto abastecia os pequenos refis com os três tipos de remédios que tomo rotineiramente, me dei conta do potencial definitivo daquele gesto. Não importa quantos anos ainda me restam de vida, as chances daquele item fazer parte da rotina matinal são concretas. Qual seria o passo seguinte rumo à terceira idade? Dormir em frente a TV? Já faço. Usar chinelos com meias? Hum, não, isso os adolescentes é que fazem hoje em dia…
Cocei a testa incomodado. Comparado ao universo de homens no país, eu ainda deveria ser “jovem demais” para algo nessa vida. Parece injusto ter que encarar esse descarrilamento ladeira abaixo da minha moral, da pele do pescoço e dos fios de cabelo.
Na hora, me ocorreu uma ideia original que, sei lá, poderia reverter esse sentimento e trapacear com o inevitável: fazer um piercing no nariz. Isso, uma argola… Ah, não, piercing não dá, tenho rinite e dá aflição só de pensar em ter que assoar o nariz e acabar puxando o brinco junto. Talvez vender o carro e comprar uma moto, dessas grandes, que o sujeito pilota com os braços pra cima. Não, a moto também não rola, tenho dor nas costas. Fazer uma tatuagem no braço? Mudar o tipo de roupa? Tatuagem no pescoço! Sim, bem visível, com frase de efeito ou uma imagem que me defina como homem… Comprimidos, coloridos. É essa a imagem que me define agora. Vou tatuar um estojo cheio de pílulas acompanhado do CRM e telefone do Dr. Fábio, meu médico. Vai que eu comece a ter lapsos de memória, isso ajudaria.
Apesar de serem ótimas ideias, o problema é qualquer dessas coisas demoraria para se fazer e eu precisava ao menos de uma boa, drástica e corajosa atitude ali na hora, naquela cozinha. Abri a geladeira e, movido pelo impulso, saquei a garrafa e virei, direto no gargalo, meio litro – talvez mais! – de leite. E leite com lactose. Sambei na cara do perigo e fui dar uma volta para espairecer. Mas, só até a esquina, porque intolerância à lactose, você sabe, é um troço que ataca demais os jovens hoje em dia.
Quando voltei do banheiro, meu porta comprimidos estava lá, recheado com aquelas cápsulas coloridinhas. Uma graça. Eu precisava dar um jeito naquilo para ser menos deprimente. Olhei ao redor e achei um caderno da Cecília. Roubei alguns adesivos de unicórnios e corações da cartela e personalizei um pouco meu pequeno pote translúcido, estética minimalista, tampa de fechamento suave e dois andares. Não ficou nada jovem, reconheço, mas talvez agora um pouco mais discreto.
Rapaz, o pessoal do clube de bocha vai adorar!
(Publicado originalmente no Estadão)