O ano possível

Não está nada normal. Não tem “novo normal” nenhum. A gente ainda está no meio do caos, no auge de uma pandemia, pessoas morrendo às centenas diariamente e autoridades perdidas. Isso não vai ser normal para ninguém, nunca, eu espero.

Sempre fui ligeiramente anti-social. Grandes aglomerações de qualquer tipo, dessas com sete ou oito pessoas, me incomodam. Tenho dificuldade até em receber massagens porque me soa estranho a ideia de alguém encostando em mim e cutucando partes do meu corpo com os dedos. Mas nesses dias, confesso, tenho sentindo falta de uma muvuquinha.

Sinto falta de jogar aquele futebolzinho às quintas-feiras (que eu nunca joguei). Vontade incontida de ir a um show em estádio de uma banda qualquer, de fazer um passeio na rua 25 de Março no sábado pela manhã e navegar naquele mar infinito de pessoas descendo a Ladeira Porto Geral, de me acotovelar na feira do bairro para escolher tomates e tomar um ônibus sem a certeza de que não sairei pela porta dos fundos contaminado por algum vírus. Mas, só sinto falta porque não posso, só tenho esse desejo em alguma fantasia distante porque, de algum jeito, esse direito me foi privado. Estivesse qualquer dessas opções à disposição, eu pagaria 50 reais para me ver livre delas.

Este, no entanto, não é o ano do desejo, nem dos sonhos realizáveis. Este é o ano do que é possível, tempo de fazer o que dá, de aceitar um pouco menos, de fazer concessões e entender que estamos limitados. Só para não pirar.

É assim que tenho chamado esse momento aqui em casa e procurado consolar as meninas quando batemos com a cara na muralha da frustração. Porque não tem dado mesmo para planejar as coisas. E com isso, a gente vive um dia de cada vez – ainda que eles sejam todos praticamente iguais – como o casal da letra de Cotidiano, música do Chico que, a propósito, substituiu o som do alarme do meu despertador. Todo dia fazemos tudo sempre igual.

Esse é o tempo em que a gente realmente não vai dar conta. E teremos que aceitar o desapontamento de não ter a festa de aniversário, não ter sessões de cinema, não ter familiares em casa no almoço de domingo, de não poder ir e vir quando e para onde queremos. E vai ter que estar tudo bem assim, porque é o que tem pra hoje.

Leio que tem muita gente ficando ansiosa nesses dias. Eu, que já sou ansioso, estou me sentindo normal agora, quase conformado. E estou percebendo que mesmo antes eu já não dava conta, eu já não era capaz de abraçar todas as coisas que gostaria e nem realizar tantos planos quanto anotava no caderno. Mas eu me enganava achando que daria, sim, e de que era capaz. Agora, parece que a vida é só a realidade, só o presente, apenas a rotina matutina de selecionar o que é essencial a ser feito.

E quando olhamos para o lado e fazemos essa breve pausa para reordenar as ideias, notamos que na maior parte das vezes o que é essencial de fato estava aqui com a gente o tempo todo. E me resigno dentro de minhas limitações, compreendo a particularidade das circunstâncias e me conforto nos braços de minhas meninas.

O Ano Possível. É assim que tenho chamado este tempo para ter algum conforto pessoal.

Você, chame como quiser. Só não me diga que isso agora é normal.

(Publicado originalmente no Estadão)

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Lucy está meio perdida

Lucy, nossa cadela, anda meio perdida. Mudamos de apartamento há pouco mais de um mês e ela ainda está estranhando o novo ambiente e os espaços da casa. Era uma mudança já agendada e precisou acontecer no meio da quarentena. Nossa sorte foi que a mudança aconteceu dentro do mesmo condomínio de prédios em que já morávamos. Ainda que sob o teto o ambiente todo seja diferente, a paisagem lá fora e a vida ao redor segue igual. Mas Lucy tem sete anos e todos os dias, quando descemos para caminhar, ela ainda se confunde com o lado para onde deve sair. E na volta, pobrezinha, força a condução do passeio para a porta do elevador do antigo prédio em que morávamos, cheira o tapete e me olha, esperando que eu aperte o botão (com o cotovelo, importante dizer) e suba para o lugar que ela acostumou a entender como casa. Está perdida ainda, coitada.

Desde a mudança, eu acordo no meio da noite e fico tentando lembrar onde estou. Na penumbra, reconheço as novas paredes pintadas de branco, a porta do banheiro e depois de alguns instantes me dou conta de que nos mudamos. A Manu pediu para que, na casa nova, trocássemos de lugar na cama. Quando viro para dormir, viro para o lado certo, com a barriga apontando para fora, mas ainda sinto que é o lado errado, porque o peso está sobre outro ombro. Então ouço um ruído e me dou conta de que a Lucy está dormindo (e roncando) na porta do nosso quarto. No outro apartamento ela costumava dormir na sala. Eu viro para o outro lado e tento dormir. Pobre Lucy, ela anda meio confusa.

Meus cotovelos, tornozelos e dedos dos pés estão doloridos. Já esbarrei involuntariamente em maçanetas, cantos de paredes, armários e pé da cama. Meti a testa em dois lustres diferentes e no canto de um armário da cozinha. Até a orelha – sim, a orelha esquerda – eu consegui bater na parede. Pois é, bati a orelha esquerda na parede ao tentar pegar uma caixa de papelão outro dia (e eu tenho sonhado com caixas de papelão, minhas roupas cheiram a papelão, meu perfume atual é um aroma que mistura pó, tinta Suvinil e caixa de papelão). E ainda que isso revele um bocado sobre pessoas distraídas, para mim é uma necessidade de adquirir uma adequada noção de ambiente, compreender limites e adaptar os sentidos à massa espacial desta casa em tudo nova. Lucy, nossa cadela, tem passado dias sem comer a ração ou beber água. Só abre exceções quando as meninas fazem pipoca e ela fica ao redor aguardando as sobras, mas me preocupa sua falta de apetite. Está meio desorientada, a Lucy.

Temos móveis novos, uma rede e uma estante para meus livros, armários e um sofá novo na sala. Há mais espaço agora do que antes. Pela primeira vez desde que começamos nossa família, fizemos uma reforma seguindo o sonho de casa que alimentamos nesses anos. Olho para essas novas superfícies, texturas e cheiros e, de algum jeito, fico esperando o momento em que os móveis serão presenteados com pequenas marcas descascadas dos patins que acidentalmente os ataquem, o sofá intacto ganhará manchas de chocolate e a porta da geladeira se encherá de ímãs com os telefones do açougue e da padaria e desenhos das meninas pendurados. Há certa expectativa, confesso, pela poeira sobre o móvel que envelhece, pelas manchas nos rejuntes, pela água escorrendo sob o vaso de manjericão na varanda. Mesmo minha obsessão por organização aguarda, levemente ansiosa, por brinquedos espalhados pelo chão da sala, por pias de banheiros desarrumadas e por ver meus livros sendo sequestrados da estante e distribuídos por outros cômodos (ato esse que, tenho certeza, é uma conspiração das três mulheres da minha vida para colocarem minhas obsessões à prova). Há nessas coisas, nesse acúmulo de desordem e tempo, o esperado processo que transforma uma casa em lar, o mero convívio em relacionamento e até um confinamento familiar em cumplicidade. Durante o dia, a Lucy passou a dormir em cima dos meus pés enquanto trabalho na escrivaninha. Entendi que ela precisa de algo que remeta à sua história, àquilo que é linear e imutável, para que se sinta acolhida. Cães são seres irracionais, afinal. Mas logo ela se adapta, a Lucy.

Ontem, acordei e vi uma nesga de sol invadindo o quarto pela janela. O céu de outono é bem azul. Tomamos o café, pendurei a rede na parede e Cecília quis subir para balançar. A Nina estava ouvindo música e Manu estava trabalhando na sala. Eu quis ler, peguei uns quatro livros e fiquei andando pela casa em busca de um canto onde me largar. Todos os cantos então me pareciam ótimos. O dia parecia finalmente ter um ritmo coordenado com o relógio que tilinta seus ponteiros dentro da mente da gente e as coisas todas estavam no lugar em que deveriam estar. O peito se encheu de repouso e a alma de gratidão. Estamos todos juntos e bem.

Minutos depois, calcei meu par de tênis, vesti a máscara, peguei a coleira e levei a Lucy para passear. Andamos pela rua aqui embaixo por quase uma hora enquanto o sol refletia sobre a pelagem dourada dela, que insistia em cheirar cada palmo de terra à sua frente. Na volta, quando nos aproximamos do antigo prédio onde morávamos, ela passou reto pela entrada e seguiu puxando a guia apressada até a entrada do nosso novo elevador. Subimos, entramos em casa, soltei a coleira e ela correu até seu prato para beber água e comer. Depois, encontrou um canto com sol na varanda, deitou por ali e dormiu.

Tudo está começando a entrar de novo no lugar para a Lucy.


(Texto publicado originalmente no Estadão)

O que ele disse?

– Olha isso aqui. Você viu isso, amor?

Entrei na cozinha pela manhã, ela estava preparando uma tapioca no fogão enquanto segurava o celular em uma das mãos. Virou o aparelho para mim e mostrou a tela. Limpei os olhos ainda embaçados pela noite de sono e vi que havia uma foto dele e uma citação.

– Não é possível. Você leu isso onde? É uma fonte de confiança? Hoje em dia tem gente fazendo de tudo para…

– Olha aqui! – ela me interrompeu – é do jornal que você assina. Você acha que eu tô lendo notícia falsa?

– Não é isso… É que é tão absurdo. É sério mesmo? Deixa eu ver?

– Toma – ela me deu o aparelho e se virou para fechar a tapioca na frigideira.

– Hum. É. Putz.

– Eu te falei… Agora, me diz, como assim?! Como pode? Como ele fala uma coisa dessas, como alguém diz um absurdo desses e ninguém fala nada, ninguém denuncia? Isso é uma manipulação descarada sobre o povo.

– E está esquentando, né?

– Esquentando nada. Continua tudo na mesma morosidade de sempre. Ninguém toma uma atitude.

– Tá esquentando a frigideira. Vai queimar o lado de baixo da tapioca.

– Ah, sim.

– Mas ainda tem muita gente que acredita no que ele fala. O que se pode fazer? Ele fala essas coisas e a base fiel continua lá, aplaudindo. É triste, mas isso tem muito eco no coração das pessoas.

– Aí é que está o problema. Ninguém faz nada, nunca. E as coisas continuam assim. O absurdo vai se normalizando. Ele fala um monte de barbaridades e, como nada acontece, vai esticando a corda.

– E o que a gente pode fazer?

– Passa a faca!

– Faca? Como assim?

– A faca, querido. Me passa a faca para tirar um pouco da manteiga aqui.

– Ah, sim. Tá aqui.

– E a gente achando que o que tinha antes era pior…

– Não gostou dessa marca de manteiga? Comprei achando que era a sua favorita.

– Não, estou falando dele.

– Ah. Que sonho era aquele? Eu dizia que antes a gente não tinha nada a “temer”. Saudades.

(Risos. Risos).

– Tinha que acabar com tudo “de uma” vez?

– Mas não foi de uma vez. Você lembra. Foi um processo. Foram fritando tudo aos poucos.

– Tô falando da manteiga. Você tinha que terminar tudo de uma vez? Não sobrou pra mim…

– Ai, desculpa.

– O problema é: o que dá pra fazer agora?

– Tem requeijão, se você quiser.

– Tô falando dessas declarações.

– Ah. Eu também fico perguntando se não é preciso uma atitude mais drástica.

– Passa a faca?

– Calma, não é pra tanto… Ah, sim, toma, tá aqui.

– Obrigado. Estava fora do meu alcance. Assim como isso tudo parece tão difícil de lidar. O que a gente consegue fazer senão ler essas coisas, se indignar e resistir da forma como sabemos fazer?

– E fazer a nossa parte para isso não contaminar as meninas, para que não sofram no futuro.

– Isso bem que podia acabar logo.

– Confesso que tô com medo é de não acabar tão cedo. A gente não sabe. Só acho é que não vai acabar bem. Como você falou: a corda está esticando.

– Sim. Você viu o que ele disse semana passada? Aquela fala sobre o outro assunto, o que pretendem fazer com a educaçãomeioambientedireitoshumanosagronegóciojustiçacidadaniatrabalhoimpostoseconomiatrânsito?

– Vi. É uma delinquência. Tem tanta coisa importante para fazer, o mundo empilhando tragédias, a sociedade sofrendo… Deveria haver um mínimo de coerência. Pelo menos agora, as coisas poderiam ficar um pouco mais…

– Doce.

– Não. Aí já é querer muito, né?

– Doce. O café ficou muito doce. Você já tinha colocado açúcar?

– Já.

– Putz, eu coloquei de novo.

– Esqueci de avisar, desculpe.

– E o que a gente pode fazer?

– Quer colocar um pouco de água quente? Vai ficar aguado, mas…

– Não. Sobre isso tudo, meu amor. O que a gente, aqui, pode fazer a respeito? Eles falam essas bobagens todos os dias, ficam postando e martelando isso na cabeça das pessoas. Parece aquele negócio do duplipensar. É tão evidente… e a gente não vai gritar que está errado, mostrar que é irracional?

– Mesmo ao usar a palavra duplipensamento é necessário praticar o duplipensamento. Porque ao utilizar a palavra admitimos que estamos manipulando a realidade; com um novo ato de duplipensamento, apagamos esse conhecimento; e assim por diante indefinidamente, com a mentira sempre um passo adiante da verdade.

– Oi?

– Você citou 1984. É isso o que o Orwell fala no livro sobre duplipensamento. Anotei no celular outro dia enquanto pensava nessa situação toda.

– E imaginar que o livro trata de uma distopia.

– Quem dera isso fosse só ficção… Lembra que te falei daquele livro do Amós Oz, “Como curar um fanático”? Ele fala isso. Diz que o fanático, no fim das contas, é um idealista, um ser cheio de boas intenções. Ele acha que tudo o que faz é para te salvar de algo que você não enxerga e só ele, alma caridosa e defensora do bem, é capaz de compreender.

– Então querem me salvar falando que vivo na cegueira?

– Utopia.

– Tem o quê na pia?

– Não é na pia. Eu disse utopia.

– Ah, o que tem?

– Acho que é pode ser disso que a gente precisa agora: construir nossa própria utopia. Começar a desenhar um mundo com o qual sonhamos e semear esse mundo aqui em casa, com as pessoas ao nosso redor. Porque se não dá para mudar o país todo, pelo menos a gente constrói um recomeço nesse núcleo, cuidando do microcosmo familiar, do nosso jardim. E aqui a gente pode ser e fazer o que quiser. Daqui, a gente estende generosidade, amor, compaixão e apoia a quem a gente puder e estiver ao nosso alcance.

(Silêncio).

– O que você acha?

– O Oscar Wilde disse que “o progresso é a realização de utopias”. Acho que você pode ter razão. É o que está ao nosso alcance agora.

– Me alcança o café?

– Sim.

(Suspiros esperançosos).

– Quer outra tapioca com manteiga?

– Quero, obrigado. Com manteiga e utopia.

(Silêncio).

– E se não der certo, o que a gente faz?

– Passa a faca?


(Publicado originalmente no Estadão)

Ficar como?

Fique em casa. Estamos ouvindo isso insistentemente nos últimos meses (pois é, já são meses). O lar, esse refúgio de prazeres familiares, se tornou também uma tentativa de proteção contra um inimigo invisível e poderoso que rendeu a humanidade e tem nos colocado em ameaça diária e em busca por cura, resposta ou qualquer sentido de direção ou perspectiva. Que não vem.

Mas o lar não foi refúgio para João Pedro, um garoto de 14 anos, negro, que morreu na última semana no Rio de Janeiro, dentro de casa, vitimado por um ataque de 70 tiros. Enquanto brincava.

Enquanto brincava com minhas filhas hoje, em casa, essa notícia me voltou aos olhos. Em meio a avalanche de notícias sobre a pandemia e a delinquência política que assolam nossa sociedade, esse fato, esse trágico, absurdo e chocante fato, passou como outros tantos. O menino virou uma estatística na conta de tantos números de mortos que se acumulam no Brasil.

Estamos ficando anestesiados, torpes com as contas de gente que morre por coronavírus, gente que morre no trânsito, gente que morre vítima da violência urbana. Pessoas, que se vão.

Nina, minha filha mais velha, tem 13 anos. Eu tenho falado muito para ela ficar em casa. E privilegiados que somos, temos no lar uma fortaleza. O João Pedro não tinha. Mas ele pensou que sim. “Estou dentro de casa. Calma”, ele disse para a mãe numa mensagem minutos antes de ser assassinado. Milhões de crianças em nosso país estão na mesma condição. Nós deveríamos protegê-los, não matá-los.

Esse vírus. O que nos inquieta e deixa ansiosos é que não podemos fazer muita coisa para combater um inimigo como esse. Ao menos não por hora. Mas, o que matou essa criança, esse menino, não foi vírus. Foi um mal social, foi uma escolha, foi fruto do tipo de sociedade que permitimos que exista quando promovemos a desigualdade, o racismo, a exclusão de nossos semelhantes do círculo de privilégios que habitamos. João Pedro foi mais uma vítima de um mal evitável. E os pobres e os negros que morrem viram estatística. E crianças assassinadas dentro de casa se tornam uma pequena nota segregada no jornal.

Enquanto brincava. Podia ser minha filha.


(Publicado originalmente no Estadão)

Já passamos por isso

Ano passado, li um conto que se passava durante a guerra civil espanhola. Lembro que enquanto mergulhava na história, me distraí pensando sobre o que, afinal, leva uma sociedade ao limite do enfrentamento nesse nível. A despeito dos interesses escusos dos senhores das guerras que lucram com a morte de inocentes, minha dúvida era sobre a gente aqui, o povo, que no fim das contas se permite e se empenha em tomar armas e partir para o combate contra seus semelhantes. E sobre as famílias, as esposas e filhos que ficam em casa e batalham para tentar levar a vida cotidiana enquanto a guerra acontece.

Por coincidência, estava na Espanha com minha família enquanto essa história me caiu nas mãos. Viajávamos em férias e era bonito observar as cores de Barcelona com as pessoas nas ruas, a arquitetura peculiar ornamentando as ramblas, as luzes do verão permitindo que o sol raiasse até dez da noite. A vibrante vida espanhola de hoje não remete em nada ao país que há menos de cem anos viveu uma guerra cruel que colocou em choque seus próprios cidadãos.

Dias depois, na mesma viagem, pegamos um táxi em Lisboa. Sentado no banco da frente, eu conversava com o motorista sobre a história de um monumento que vimos no centro da cidade. “Nada disso aqui é tão antigo”, disse ele, “a maior parte da cidade foi reconstruída depois do último grande terremoto”. Minha esposa quis saber a data. “Foi em 1755”, ele respondeu. Referências e relatividade, pensei na hora. Meu celular tem três anos de uso e eu já o acho pré-histórico e um monumento de quase trezentos é algo moderno na ótica daquele homem. Mas ele emendou uma observação que me trouxe de volta para a conversa: “Pois bem, assim vivemos até que venha o próximo. A verdade é que todos os dias acontecem pequenos tremores cá em Lisboa. Estamos sobre uma placa tectônica bastante instável. Então, pois que a qualquer momento…” ele impôs as reticências numa breve pausa, “…bem, nunca se sabe”.

À noite, no hotel, peguei o celular para me atualizar sobre as notícias do Brasil e passei a ler os jornais do dia. Rodei as redes sociais tempo o bastante para que a discussão política começasse a me deixar ansioso e desliguei tudo. Não é possível que alguém esteja feliz, eu acho. Mesmo quem se sente satisfeito com o resultado das últimas eleições, não me parece usufruir de um sentimento de vitória. Há ainda um clima de embate, as trincheiras ainda estão lá, com escudos levantados, com gente armada e balas na agulha. O clima tenso, o estômago embrulhado. Você também sente isso? A sensação de que alguma coisa ainda mais estranha vai acontecer ali na frente.

A distração momentânea com a leitura sobre a guerra espanhola e a imprevisibilidade iminente da natureza fazendo temer as terras portuguesas me fez olhar para aquelas cidades hoje e pensar que o ser humano, nossa espécie, até que passa bem pela história.

Guerras, pestes, furacões, ditaduras, governantes… há um tempo em que somos vítimas de circunstâncias ou escolhas que fazemos. Mas nos reerguemos, afinal.

Quando o ano de 2019 virou sua última noite, estávamos reunidos com familiares em um sítio no interior do estado e ninguém ali, na China e nem em qualquer canto desse planeta poderia imaginar que três meses depois estaríamos confinados em nossas casas temendo o contágio por um novo vírus. Um inimigo desconhecido, invisível, que nos colocou de joelhos. Diante dos nossos mercados assoberbados, dos objetivos profissionais, dos planos pessoais, do futuro breve que planejamos com nossas notas em bloquinhos de papel e que está agora todo rasurado. Por hora, não somos donos de amanhã nenhum. E acho que essa falta de controle, a imprevisibilidade, a incerteza sobre o futuro é que nos inquieta tanto.

No meio da pandemia (pandemia, nunca imaginei que usaria essa palavra de forma literal) tem sido difícil enxergar o outro lado, quando a vida voltará a seguir sua rotina. Seja lá como for rotina depois disso tudo. Porque certamente seremos pessoas diferentes. Eu espero, sinceramente, que sejamos pessoas melhores.

Há uma frase do arcebispo Desmond Tutu que sempre carrego comigo: “a maior prova de que somos, essencialmente, pessoas boas, é o fato de que o mal ainda nos escandalize tanto”. Tenho lido e assistido aos exemplos de solidariedade e generosidade de pessoas nesse momento. Gente que não se conhece prestando apoio psicológico, fazendo compras no mercado para seus vizinhos idosos, sacrificando o próprio tempo em família para cuidar de enfermos, doando recursos para os que neste momento carecem. Nessas horas, nossos filtros naturais nos fazem olhar para o que é mais importante. Certas atividades e compromissos que ocupavam nosso tempo e rotinas repentinamente deixam de ter importância. E o que mais desejamos é poder ter de volta os familiares e amigos em volta da mesa para um almoço no domingo.

A história nos mostra que em algum momento isso passará. Sim, vai doer, mas passará. Passará como a guerra civil espanhola, passará como o terremoto de Lisboa e talvez – assim faço preces – nos esqueçamos que vivíamos até então numa época em que nos separamos de gente querida porque tínhamos opiniões divergentes sobre, veja só, políticos. Essa fase passará. Olharemos para trás e lembraremos do que fazíamos da vida quando a pandemia passou por aqui e lembraremos com quem estávamos quando o mundo parou por alguns meses.

O salmista, na passagem bíblica que fica exposta no livro aberto na sala de nove entre dez avós católicas, diz que o Criador o acompanha mesmo quando atravessa “o vale da sombra da morte”. Um amigo sempre lembra que crises não são o vale da morte, são apenas a sua sombra. E uma sombra não tem o poder do objeto que a projeta.

Quando voltávamos para casa no avião, pegamos um vôo diurno. Eu tomava notas em meu caderno. Ao meu lado, Cecília assistia ao filme do Touro Ferdinando. É uma história infantil espanhola sobre um touro que não gostava de lutar em arenas. Ele gostava de flores.

No conto do Hemingway que eu lia, ele contava sobre um homem que abandonou o front de batalha. Do alto do monte de onde observava a cena, o personagem principal da história viu um soldado francês ser morto pelo exército pelo qual combatia. Uma morte estúpida de um homem que desistiu de um combate estúpido. “Ele enxergou o que era aquela guerra”, ele disse. Um combate idiota que não valia sua vida.

Vivemos tempos difíceis. Há conflitos, há crises diversas, uma pandemia e uma ansiedade sufocante no ar. Tudo hoje parece ter um jeito de fim iminente. Mas, passará, isso também passará.

Enquanto escrevia em meu caderno, Cecília me interrompeu. Ela subiu a janela do avião e me cutucou:

“Pai, olha lá fora. O pôr do sol!”

Quase me esqueci de que estávamos em um voo. Lá fora, as nuvens passam sob nós como se flutuássemos por cima daqueles algodões brancos. Logo acima, na linha do horizonte, em um risco laranja intenso, o crepúsculo.

Ficamos os dois ali espremendo as cabeças e olhando pelo quadrado transparente até o sol se apagar atrás da curva da Terra. Mais um dia, um de cada vez, assim a história se escreve.

Em um momento como este, o olhar fixo no horizonte talvez seja a única forma de enfrentar o que não podemos controlar.


(Publicado originalmente no Estadão)

Dia de caça

Embebido em álcool gel, eu saio valentemente à caça. Minha missão é chegar ao supermercado mais vazio e próximo de casa sem que meus dedos toquem superfície alguma que não as previamente imunizadas pelo meu jato de Lysoform, que desintoxica e perfuma (é… vá lá) quarteirões ao redor de mim. O cheiro é tão intenso que já confunde até o tempero da comida. Eu presumo que meu carro deve borrifar Lysoform pelo escapamento quando dou partida.

Faz dias que não saio do condomínio e, de repente, dirigir pelas ruas esburacadas e agora vazias do bairro parece um passeio de carruagem pela Champs-Elysees. Aceno animado e sorridente para os incautos que circulam pelas calçadas. Não fosse o mantra “dissstaaaannciiaaaaamm sssociiiaaallll” repetido em minha mente, teria oferecido carona a um desconhecido que subia a ladeira com dificuldade. Na virada do ano, eu sonhava em passar as próximas férias em uma praia do Nordeste, agora me deslumbro contando o número de postes entre minha casa e o supermercado.

Chego no mercado, imunizo cada centímetro do carrinho de compras e sigo para a missão que moveu meu traseiro do sofá até aqui: comida e mantimentos. Corrijo: comida, mantimentos e frascos de Lysoform.

Repentinamente, a obrigação que eu mais odiava ter que cumprir na vida – ir ao mercado – se tornou uma experiência magicamente satisfatória. Corredores longos, o piso liso, o cheiro das verduras. “Olá, amigo açougueiro!”, eu saudo. “Boa tarde, querida moça do caixa!”.

Eu, às cinco da tarde, flanando pelos corredores do Carrefour.

Consulto a listinha de compras anotada no celular. Limpo as mãos com o álcool gel que carrego o tempo todo no bolso em um pequeno recipiente. Uso tanto que minhas mãos já estão secas como uvas passas (e essa história de que tem aloe-vera no álcool é pura groselha. Pensei em reclamar no Procon, mas me ocorreu que, ganha a causa, seria um fornecedor a menos de álcool no mercado). Cada superfície ou embalagem tocada é uma nova apertada no potinho. Deviam criar uma embalagem que a gente possa pendurar no pescoço, eu penso. Ou na cintura, tipo uma arminha, que cospe álcool gel para eliminar coronavírus. Se fosse assim talvez o presidente apoiasse. Eu chamaria de X-Covid .40. Ponto quarentena.

Bom, as compras, meu Deus. Estou há 40 minutos no corredor de achocolatados admirando embalagens de Nescau. Paro no corredor de limpeza e acho 500ml de álcool gel pelo preço de uma garrafa de Barolo. Fico em dúvida. Se o teor alcoólico do vinho fosse 70+ eu até levaria, já que vem mais mililitros.

A mistura de aromas no corredor me ataca a rinite e começo a espirrar compulsivamente. Espirro naquela junta entre o antebraço e onde deveria ter bíceps. Quando olho em volta, estou sozinho e as poucas pessoas ao redor fogem me olhando escandalizadas.

Consulto a lista de compras novamente e confiro cada um dos itens no carrinho. Passo álcool no celular inteiro e ligo para a Manu para me certificar de que não esqueci de nada.

– Mas você não anotou o que era para comprar?

– Sim, tá tudo aqui.

– Então está certo, não?

– Não sei. Vai que esqueço de alguma coisa. Não quer algo mais mesmo? Não quer que eu vá no atacado, no hortifruti, na padaria, no depósito…?

– Não. Quero você aqui. Está perigoso, Henrique. Vem logo.

Passei quatro vezes por cada corredor do mercado. Um dos pés apoiados na barra inferior do carrinho logo atrás das rodinhas enquanto o outro pegava impulso para que eu pudesse deslizar pelos corredores, como se fosse um patinete, sentindo a brisa de ar-condicionado e liberdade me soprando no rosto pálido carente de vitamina D.

Já era quase noite quando meu passeio… hum, digo, minha árdua missão teve fim. Paguei a compra. A moça do caixa estava protegida por uma barreira de plástica, quase uma cabine blindada. E máscara branca. E ela tinha um pote de álcool gel ao lado maior que uma garrafa pet de Coca-Cola Super Família. Deveria valer milhões. Perguntei se podia usar.

Lembrei de uma pergunta da Cecília, minha filha de cinco anos: “Pai, quem passa álcool gel no álcool gel?”. Desde então sempre pego uma sobrinha e besunto o recipiente depois de usar. A moça do caixa me olhou torto. “No crédito, por favor. E não precisa do CPF”.

Guardei a compra no carro, repassei mentalmente as superfícies que toquei para ver se tudo estava devidamente… Eita, as chaves do carro! Besunto tudo.

É bem difícil ser um sujeito com TOC e distraído nesses tempos.

Descarreguei a compra em casa. Manú chegou para ajudar a guardar. Me sentia como meu antepassado primata voltando para a caverna com a caça da semana. Nunca nosso aprazível apartamento pareceu tanto uma caverna.

– Nossa, você demorou!

Dessa vez não dava para culpar o trânsito.

– Acho que perdi o hábito de ir ao mercado. De ir a qualquer lugar, na verdade.

Desempacota aqui, desenrola ali, guarda acolá, até que…

– Henrique, você não trouxe leite?

– Leite? Tinha leite na lista?

– Não sei. Mas o leite acabou. Tinha que trazer.

– Mas eu te liguei e… Ah, deixa, tudo bem, eu volto lá.

– Não, amor. Está certo. Deixa que eu vou. Você está cansado, já saiu e suas costas…

– Mas fui eu que esqueci.

– Amor, eu vou. É que eu… eu tô querendo mesmo dar uma voltinha.

– Não esqueça o álcool gel.

Às dez da noite, deslizando pelos corredores de laticínios sem lactose. Ventinho no rosto. A liberdade.


(Publicado originalmente no Estadão)

O fim dos finais felizes

Já faz tempo que meu time não ganha nada. Há quase uma década, estimo assim meio por cima (e nem quero ser exato sob risco de estar sendo otimista), as temporadas começam cheias de esperança e, lá pelo meio do ano, me conformo em torcer para que o time ao menos alcance os pontos necessários para se classificar para esse ou aquele torneio continental.

Parêntese: esse não é um texto sobre futebol, fique tranquilo. À exceção do Tostão aos domingos, quase nenhuma crônica sobre futebol merece ser lida hoje em dia.

Ontem à tarde, eu lia as notícias do jornal dominical enquanto um jogo passava na TV e uma tempestade caía lá fora. Meio distraído, cheguei a comemorar um gol do adversário, que jogava com camisa semi-idêntica à do meu São Paulo, enquanto o tricolor estava em campo vestido de azul (azul, meus senhores! Mas que raios?). No final, mesmo com certa anuência do juiz, perdemos de 1 a 0 para o intimidador Botafogo de Ribeirão Preto. A tempestade era em campo.

Não sei dizer porquê gosto de futebol. Aliás, confesso que nem gosto tanto assim. Mas tem algo mágico no esporte que me atrai: a expectativa, a atmosfera da arena, o trabalho coletivo, a estética das jogadas improváveis, a bola sendo manipulada com os pés, o clímax do gol. E tem também o imponderável, uma vez que por melhor que seu time esteja em campo – ou pior, no meu caso – nunca se pode ter certeza do resultado final de uma partida. Há dias maravilhosos, há dias de empate e há, inevitavelmente, dias de derrotas trágicas.

O São Paulo tem caprichado em acabar com essa imprevisibilidade, garantindo que tudo vá mal quase sempre. Mas nada disso impede que, semana após semana, meus olhos estejam ligados na tela da TV ou do celular para alimentar a esperança de que ao menos naquele dia a tarde de domingo acabe em um final feliz.

Como consolo, tenho dito à mim mesmo que meu time é uma equipe de vanguarda. E aí, prolixidades à parte, caímos tardiamente no que gostaria de escrever hoje: me parece que há em nossa cultura, por esses tempos, uma espécie de celebração da desesperança. Os finais felizes, no cinema, nas séries e na literatura, se tornaram sem valor, impensáveis para a boa arte, sob argumento de que não refletem a realidade da vida. Porque a arte que imita a vida agora precisa ser bruta, ter tragédias que nos cicatrizem, deve nos fazer sorrir da melancolia, estar carregada de um senso de que há, sim, altos e baixos na vida, mas que na média as coisas acabam mal e que podemos nos contentar assim, resignados, em esperar que tudo seja um grande “mais ou menos” cheio de picos e abismos.

É o fim dos finais felizes.

Eu gosto de histórias que acabam bem. Não porque espero que a vida seja emoldurada por um arco-íris o tempo todo ou que manhãs ensolaradas aconteçam rotineiramente, mas porque prefiro ser um sujeito que alimenta esperanças, porque acredito em grandes sagas de redenção, no poder do afeto e da gentileza, no tetracampeonato do São Paulo na Libertadores, na capacidade humana de superar tragédias, perseguir sua felicidade e realizar utopias.

Mais cedo, passeávamos em uma loja e Cecília se encantou com uma par de asas de fadas colorido e cheio de lantejoulas que poderia ser vestido sobre a roupa. “Compra, pai? Por favor, eu adorei. E olha, ainda vem com essa tiara que tem um chifre de unicórnio! Compra? Porfavorzinho!”. Não resisti. Paguei pela fantasia e ali mesmo, na fila do caixa, ela vestiu o aparato e saiu desfilando orgulhosa pelo shopping center. As pessoas apontavam e riam, a mãe tirou fotos para registro, eu pedi para usar a tiara e a Nina andava um passo atrás com um pouco de vergonha.

– Nina, pare de rir! – ela taxou – E o papai tá é com inveja.

Ela voltou realizada para casa. Como chovia, a programação do domingo terminou em volta do sofá. Comemos, assistimos TV, esquentamos a pizza de ontem para o jantar e eu a levei para dormir, ainda com asas e tiara, enquanto Manu e Nina jogavam algo na sala. Na cama, ela me contou de um sonho que teve na noite anterior em que uma flor gigante nos perseguia e tentava nos engolir.

– Mas eu salvei todo mundo, papai.

– Sério, filha? E como foi? Você deu um golpe e cortou o caule dela?

– Não, pai, nada disso. Vocês todos saíram correndo e eu voltei e fiz um carinho nela. Aí ela acalmou.

Fadas.

Ela abraçou meu braço, pediu para eu fazer uma oração, deu dois bocejos seguidos (desde bebê, ela boceja de forma escandalosa) e pediu que eu contasse uma historinha. Contei sobre minha festa de aniversário de cinco anos, no dia em que resolvi me fantasiar de palhaço.

Cecília riu da história, deu boa noite, virou para o outro lado da cama e dormiu. Em poucos dias, ela fará cinco anos. O tempo não tem passado em ritmo diferente da intensidade com que ela vive e me pego revivendo sensações de quando a Nina, oito anos atrás, passava por esse mesmo momento. Ainda no shopping, ela me disse que vai querer se vestir de fada na festa de aniversário. A Nina, poucos dias antes dela completará 13 anos. E nessa idade, fantasia deixou de ser uma vestimenta e passou a ser um mundo todo em que ela habita às vezes, nos desenhos, nas leituras, nos poeminhas que escreve e no desejo que lhe assalta de que a vida continue sendo inocente. Às vezes.

Sei que isso não é um final. Manu e eu ainda estamos no começo da nossa jornada e muito da vida ainda está por vir. Mas até aqui, temos sido felizes (bem, falta meu time ganhar um campeonato na temporada, para variar). Nesse processo todo de um dia após o outro, da rotina doméstica em que vamos construindo nossa história juntos, cada ano tem sido melhor que o anterior e temos motivos para sorrir e ser gratos.

E porque temos um ao outro e ainda essas meninas crescendo ao nosso redor, porque temos um cão que nos lambe os pés sob a mesa enquanto comemos, porque há um teto sobre nossas cabeças e porque em nossa despensa há o bastante para viver com dignidade. E porque há Deus, nós temos esperança no triunfo do bem, na redenção, no sorriso banguela de pequenas fadas que são o futuro de um mundo tão carente de sonhos, fantasias e de sua insondável pureza.

E porque há uma revoada de pássaros cantando lá fora enquanto se acomodam nas árvores depois do fim da tempestade, somos autorizados a acreditar que nossas histórias podem ter finais felizes. Como aqui mesmo estaria uma, se um ponto final porventura aparecesse agora.

(Publicado originalmente no Estadão)

Confessionário

– Padre, eu pequei.
– Pois não, filho. O que aconteceu?
– Na última semana, eu precisava mandar uma mensagem no WhatsApp para uma pessoa e, mesmo estando livre para digitar, eu mandei um áudio. Perdão, padre.
– Hum. Não estou certo de que isso seja pecado.
– Se não é pecado, deveria. Eu sinto um peso…
– Bom, se você…
– Porque, veja, a pretexto da minha falta de tempo, eu ocupo o tempo do outro, que precisa parar o que está fazendo para me ouvir. Acho um abuso.
– Entendo. Nesse caso, reze um Pai Nosso e uma Ave Maria e fique em paz.
– Só isso? Uma reza de cada já paga um áudio de Zap?
– Só. Não sei que barganha você pretende fazer, mas não é assim que as coisas funcionam.
– É que, nesse caso, acho que o pecado meio que compensa. Eu estava me sentindo tão mal. Vocês não tem um catálogo com número de rezas versus infrações para calibrar melhor isso?
– Veja bem, Rodolfinho…
– Ah, puxa, você lembra de mim, padre?
– Lembro, menino, claro. Quando foi a última vez que você se confessou?
– Foi na primeira comunhão.
– Jesus. Isso tem o quê, uns dez anos?
– Vinte e poucos, padre.
– E desde lá o único pecado que te fez sair de casa para se confessar foi esse?
– É, padre, sinto muito. Mas eu estava com a consciência que não me aguentava. Aliás, esse lugar aqui parecia mais espaçoso antes. Não dói suas costas ficar o dia todo encolhido aí?
– Quando as confissões são mais objetivas, não.
– Perdão, eu não queria…
– Perdoo. Mas por via das dúvidas, reze mais uma Ave Maria.
– Tá, deixa eu anotar aqui pra não esquecer. Você tem uma lanterna aí?
– E a mãe, como está?
– A minha?
– Não, a de Jesus.
– Não sei bem, vou perguntar para ela hoje quando for rezar…
– É claro que é a sua, menino!
– Ah, sim, ela está bem, padre. Na verdade, acho até que ela é que deveria estar aqui. Manda áudios de dois minutos no grupo da família o tempo todo. Ia ter que rezar uma semana pra pagar tanto pecado. E ela manda GIFs com corações explodindo em um iluminado “bom dia”.
– Rodolfinho, meu filho, isso é relativo. Faça suas preces e apareça mais nas missas.
– Tá bom, padre.
– Vá em paz. Em nome do Pai, do Fil…
– Hum, padre?
– O que foi agora, menino?
– Não sei como te dizer. Mas me ocorreu agora que eu… bem, eu esqueci como reza.
– Como é?
– É. Faz tanto tempo. Estava aqui recapitulando e me dei conta de que um Pai Nosso eu acho que até encaro, mas a Ave Maria eu confundo toda e misturo numa música do Roberto Carlos e emendo no Hino Nacional…
– Minha Nossa.
– Pois é, nossa Nossa.
– Volte para as missas, Rodolfinho!
– Eu vou, padre, juro que vou. Digo, não juro porque dizem que jurar também é pecado, mas, você entende, né? Olha, padre, seria muito abuso eu pedir para o senhor me mandar uma colinha com as rezas?
– Agora são cinco Ave Marias e cinco Pai Nosso para você.
– Parece justo. Pode ser por mensagem?
– Seis de cada, rapaz! Me dá o número do seu celular antes que eu me arrependa.
– Eu já te mandei um “oi” aí no Zap, padre. Me adiciona aí.
– Te respondo mais tarde com as rezas. Agora vá.
– Muito obrigado, padre! Eu juro que… quer dizer, não juro. Juro que não juro. Mas eu farei o melhor que puder para vir às… bem, vou tentar lembrar de me esforçar mais para estar aqui aos sábados.
– Aos domingos, menino. Agora vá. A fila do confessionário já está grande. Daqui a pouco quem vai pecar aqui sou eu.
– Sim, sim. Vou indo então.
– Ah, Rodolfinho?
– Senhor.
– Só uma coisa: está uma correria danada aqui na paróquia. Vou te mandar as orações por áudio, está bem?

(Escrito originalmente para o Estadão)

Sala de espera

Eu tento ficar alheio ao que se passa ao redor mas não consigo. Comprei fones de ouvido novos, desses sem fio e com recurso que cancela o ruído ambiente. Um luxo, uma bolha de isolamento social e de imersão. Mas não consigo. Eu interrompo a música, dou pause no podcast, porque me interessa mesmo é saber o que conversam as duas idosas sentadas no banco à minha frente na sala de espera do consultório.

É uma sala grande, eu conto sete sofás de couro marrom e aquele clima de lugar onde se fumava antigamente. Elas falam sobre a chuva que vai cair daqui a pouco, sobre a última visita à doutora, a médica que também cuidou da irmã de uma delas e sobre a dificuldade de andar pelas calçadas do bairro nesses dias.

Há gente no celular também. É epidêmico. A maioria dos que se espalham nos sete aconchegantes sofás, está submersa nas pequenas telas, passando os dedões pelo vidro.

Mas há um homem, talvez da minha idade, sentado quase à minha frente e ele não usa um celular. Ele não faz nada. Está parado, o olhar vagando pela sala, as vezes se fixando num ponto da parede, em uma pessoa, no chão por longos instantes. E eu me interesso ultimamente por observar pessoas que não usam celulares em salas de espera. Será que o pensamento está ocupado demais com coisas mais interessantes ou a mente está tão vazia que nem se dá ao trabalho de pensar em enfiar a mão no bolso e sacar o aparelhinho? Do que se ocupam as pessoas que não ocupam cada instante de sua existência com algum estímulo digital, que não alimentam o cérebro com a dopamina liberada pela recompensa de clicar, clicar e clicar o dedo em algum link?

Hoje, a caminho da clínica, o carro parou no semáforo e fiquei olhando um sujeito que guardava a porta de um comércio. Sentado numa cadeira virada para a rua, jornal jogado sobre o colo, a cabeça recostada na parede. Ele dormia. Centenas de carros e pessoas, patinetes e ônibus, bicicletas e motos passando logo em frente. E o sujeito dormia como minha filha quando desmaia no sofá da sala. Alguém então buzinou longamente. Era o carro atrás de mim avisando gentilmente que o semáforo estava verde e o carro da frente já estava uns 200 metros adiante.

A recepcionista chama a idosa para sua consulta. “Dona Rosa”, ela anuncia. A senhora não escuta. “Dona Rosa, pode subir”, ela repete. Mas a mulher não se move, continua na conversa truncada com a colega. “Dona Rosa!” outra vez e a amiga escuta. “Te chamou, Rosa”, “Oi? Não, não chamou. Não escutei”, “Chamou, sim, vamos lá”, “Será que chamou?”, “Chamou. Vamos lá ver”. Levantam as duas, com a vagareza de quem se desdobra. “Moça, você chamou?”, ela pergunta para a recepcionista. “Dona Rosa? Chamei, sim. Pode ir”. “Ela chamou mesmo”.

(Continua lá no Estadão)

Turbulências

Há gente no mundo – e conheço algumas – que apreciam certa melancolia e vivem com certo conforto em meio à tristeza. Há outros – e conheço muitos – que se não gostam da tristeza em si, gostam do escudo que ela se torna enquanto pretexto para sua imobilidade. Mas há aqueles, entre os quais me encontro, que tem dificuldade enorme em lidar com a contrariedade e a tristeza que certos fatos carregam, que ao engolirem as circunstâncias adversas o fazem deixando-nas ferir o íntimo e arranhar o esôfago. Qualquer garoa, para esses, vira tempestade.

Falando em garoa, fui de São Paulo ao Rio dia desses. Uma breve viagem a trabalho. Na volta, deixei o Rio quase ensolarado (quase, porque pousava apenas uma luz tímida sobre a cidade nesse dia) e me pus de volta para casa.

No trajeto, o avião planou em céu azul sobre as nuvens e eu, como toda vez que encaro essa cena, grudei a testa na janelinha da aeronave para contemplar as nuvens abaixo de mim, como se aquilo fosse uma mágica, uma inversão da minha lógica diária, que tenho por hábito olhar para o céu toda vez que estou na rua.

O piloto veio ao alto-falante e avisou sobre turbulências adiante. No horizonte, eu via aquela massa de algodão crescer e formar uma parede ao nosso lado e, aos poucos, uma muralha sobre nós, até que a aeronave mergulhou naquela imensidão branca e tudo o que eu via então era o branco pela janela e sentia um certo trepidar. De quando em vez, um raio de luz do sol atravessava e refletia sobre as nuvens e o branco intenso adquiria um tom platinado. Em outros momentos, o avião saia daquela massa de vapor e revelava novamente o céu azul, revelava alguma cidade lá embaixo, revelava que era tudo aquilo transitório, tudo o que se dissiparia em algum momento mais tarde com o cair da chuva sobre a terra.

(…continua no Estadão)

A história das quase histórias

Foi um caderno cheio de histórias, anotações, desenhos e ideias aleatórias. A maioria ainda incompletas, fragmentos de algo com algum potencial de texto. No mínimo, memórias de um tempo a serem revisitadas no futuro.

Foi comprado em uma papelaria de rua em Roma um ano antes. Capa dura azul, folhas levemente amareladas, pautas finas e discretas. Um belo caderno (para quem se dá o trabalho de apreciar esse tipo de coisa).

Foi levado em uma outra viagem, o caderno. No fundo da mochila, ao lado de um livro de contos ainda não lido, de uma caneta quase gasta, um pacote de chicletes, lenços de papel, algum dinheiro e um passaporte. A tralha toda foi deixada no chão de uma aeronave durante o voo.

Foi encontrada molhada, a mochila. Ao fim da viagem, por motivos ainda sem explicação, o fundo de couro e toda parte de baixo estava em sopa. O chão da aeronave estava seco, a almofada da poltrona também, mas a velha mala, não.

Foi esvaziada às pressas ainda no táxi.

(continua no site do Estadão)

Cortinas se fecham

Em algum momento nesses últimos anos adquiri uma habilidade que parecia um superpoder inalcançável na infância. Só me dei conta, no entanto, há poucos dias quando sentado à mesa da cozinha depois do almoço, as meninas me pediram para descascar laranjas e notei que o resultado foram laranjas branquinhas, perfeitamente descascadas, sem os buracos e machucados, e com a casca inteira enrolada em espiral.

Tive um flashback da infância naquele minuto. Quando garoto, eu admirava o meu pai por esse tipo de habilidade. Jogar bola como ele jogava eu sentia que poderia conseguir se me empenhasse. Ter um bigode como o dele era
mera consequência do passar dos anos. Mas descascar laranjas daquele jeito, estava além da minha compreensão e habilidade. Nas vezes em que me aventurei em pegar uma faca e uma laranja para descascar, terminei o processo uns 40 minutos depois com mais pedaços de fruta grudados na parte da casca do que no bagaço, que naquela altura já tinha se tornado uma polpa pastosa alaranjada que sobrava nas minhas mãos enquanto o suco escorria pelos antebraços até pingar pelos cotovelos.

Mas aí, chegando aos 40 – anos, não minutos – a vida te premia. Ou compensa. É como se o Criador dissesse “Beleza, meu filho, você ganhou essa dor aí no ciático, mas em contrapartida vai poder descascar laranjas como um ninja”. Dadas as minhas limitadas habilidades para diversas coisas, isso soa como uma troca justa até. E considerando que jogo bola com a mesma capacidade com que danço tango e ainda não aderi ao bigode porque virou coisa de hipster (só por isso), imagino que esse dom inesperado surja como algo a que me apegar e, talvez, uma opção satisfatória de legado para deixar na memória das minhas filhas.

Porque tenho pensado nisso mais do que deveria ultimamente. Aos doze anos, a fase mais lúdica da infância da Nina está quase no fim e me pego por vezes imaginando que tipo de memórias ela vai carregar desses anos quando, lá perto dos 40 – os dela, não os meus – revisitar o passado em um flashback qualquer do cotidiano.

Dias depois daquele almoço, passei na quitanda do bairro e enchi o porta-malas do carro com dúzias de laranjas e agora fico convidando as meninas para comer frutas depois das refeições. Nossa cozinha agora só não tem mais laranjas do que em certos partidos políticos.

Sei que é uma ansiedade tola, mas às vezes – tipo, todo dia – me ocorre a ideia de que se eu não fizer algo decente agora, mesmo que aos 40 minutos do segundo tempo da infância, aos 40 anos a Nina estará sentada na frente de uma terapeuta lamentando os efeitos nocivos da educação que dei para ela.

“Pai”, ela me interpelou outro dia enquanto eu estava parado na sala de casa mexendo em uns papéis, “sabia que… ah, eu descobri que tem uns meninos que até que são legais”. Eu a encarei por alguns segundos tentando ler seu olhar e ver se tinha algo mais que ela pretendia me dizer. Sem conseguir resposta, me ative a responder “Eu duvido. Até hoje não conheci nenhum”. Lá no fundo, ainda que ela não tenha se dado conta, eu sei o que aquilo significa, você também sabe e a gente não precisa tocar no assunto agora, tá ok?

Recentemente, numa viagem em família, soltei no carro um dos meus trocadilhos infames infalíveis e ela, que era a única que ria desse tipo de piada comigo, espalmou a mão na testa fechando os olhos e lamentou “Ah não, pai! Que piada horrível!”. E as coisas foram ficando mais claras em minha mente limitada. E descascar laranjas como um ninja, você vai concordar, parecer ter grande apelo.

Porque essa é a fase em que ela está. A menina que às vezes ainda me pede para lhe contar histórias, agora já julga algumas partes do mundo com seu próprio critério. Porque ainda que esteja, desde sempre, lendo a vida com seus olhos, até pouco tempo ainda dependia do nosso filtro para interpretar as coisas. Éramos nós quem, de certa forma, lhe abríamos as cortinas para as descobertas. Agora a Nina tem fechado essas cortinas e aberto as suas próprias, para ser protagonista da história que deseja contar. Agora ela quer explorar e formar uma visão independente das coisas, agora ela quer ouvir música sozinha às vezes, quer ousar achar minhas piadas ruins. Agora ela junta as amigas só para conversarem, sem que isso implique necessariamente em ter um brinquedo junto. E esse agora dela, essa fase que vai mudar tudo para sempre, ainda que seja exatamente o que precisa acontecer, é rápido demais para mim.

(…continua no Estadão)

Novos amigos

Tem dois seguranças que trabalham no condomínio onde moro e se revezam no turno da noite. Lá pelas dez, quando desço para o último passeio com a Lucy, sempre encontro algum deles perto do gramado onde minha cadela descarrega a base da pirâmide de Maslow que recolho civicamente. Um dos seguranças, há anos na atividade, já se tornou quase um amigo. O outro, ignora solenemente meus acenos e cumprimentos. O primeiro, assim que apareço, levanta o braço, saúda com um gentil “boa noite, sr. Henrique” e emenda um comentário sobre o clima.

O problema que me perturbava é que há coisa de três anos, quando ele chegou para trabalhar por aqui, esqueci de perguntar seu nome. E agora, depois de um sólido relacionamento já estabelecido, tenho vergonha de admitir que não sei e isso abalar nosso papo cotidiano. Grande, amigo, cara, rapaz ou um simples “Opa! E aí!” são as referências que uso para disfarçar minha falha.

Semana passada, o segurança que me ignorava foi substituído por um novo. Bigodinho no rosto, cabelo engomado, sorriso na cara. A simpatia em pessoa. De imediato, puxou assunto, fez carinho na Lucy, disse que adora cachorros e que tem um que dorme em sua cama. Na hora, lembrei da falha com meu outro amigo e decidi me precaver contra um remorso no futuro.

– Qual é seu nome, amigo?

(…continua no Estadão)

Tem um app pra isso

Comprei um carro novo há coisa de dois meses. O carro tem um sistema de bordo inteligente com telas e luzes por todos os lados. Ele mede coisas e fornece indicadores que eu nem sabia que precisava até conhecer e me viciar: estado geral do motor, nível de calibragem dos pneus, temperatura externa média, consumo de combustível durante a viagem, durante a semana e no longo prazo, além de velocidade média durante a viagem, a semana e o longo prazo também (ainda não descobri o que ele define como “longo prazo”, mas estou prestes a fazer uma pesquisa a respeito porque já não consigo viver sem isso). Tenho tantas informações na minha frente que gasto mais tempo analisando indicadores no painel do que olhando para a rua. Outro dia, me peguei curioso tentando entender porque, afinal, a temperatura média do óleo estava em 65 graus naquela manhã e na anterior chegou a 90, mesmo sem ter a mais pífia ideia do que isso significa.

Semana passada, estava a caminho da escola com minhas filhas e uma luz amarela acendeu no painel. Com a luz, um sinal sonoro estridente. Com o sinal, um ícone incompreensível (tenho que admitir que é um problema meu e não do designer, porque à exceção de emojis, nunca consigo interpretar ícones). Com o ícone incompreensível, veio uma mensagem alarmante na telinha à minha frente: “Atenção! Indicador de risco. Não siga viagem!”. Duas exclamações no espaço de um tuíte. Parecia grave mesmo. Cogitei estacionar e chamar o guincho, mas às seis e meia da manhã o serviço levaria duas horas e minhas filhas perderiam a aula. Então, eu, que aprendi a dirigir num Uno Mille vermelho semi-velho e com embreagem comprometida segui viagem até o colégio para desembarcar as crianças e estacionei no primeiro posto de gasolina que encontrei depois. Abri o manual do carro, segui até a página de indicadores do painel, mas não havia informações que me dissessem o que poderia ser o malogrado desenho piscando. No manual, uma orientação final: “Se não conseguiu esclarecer sua dúvida neste guia, consulte nosso app ou ligue para a central em 0800-ESQUECE”.

O app. Que eu não tinha instalado. Que comecei a baixar ali na hora. E que usei meu suado pacote de dados e mais 25 minutos daquela manhã inalando a mistura de aromas de combustíveis fósseis e esperando pelo download de 250 megabytes. E depois de instalado, fiz um cadastro em que me pediam nome, endereço completo, idade, e-mail e número do chassi do carro (o chassi, gente? Jura, gente? É óbvio que eu não lembrava onde isso estava escrito). E uma vez concluído o cadastro e aceitos os termos de uso e identificado a área de suporte e ter clicado nos devidos procedimentos e botões, recebi a orientação para que apontasse a câmera do celular para o tal ícone no painel e tirasse uma foto para que o sistema de inteligência artificial me dissesse do que se tratava o problema. Eu fiz. Deu erro. Fiz de novo. Deu erro de novo. Se o app era artificialmente inteligente, estava claro que o burro ali era eu. E na quinta vez, depois de um minuto ou dois processando a informação, uma mensagem apareceu na tela do celular com a reveladora orientação que evidentemente salvaria minha vida: “Calibre os pneus do carro”.

Um app, pra isso. Pois é.

“Ô, amigo”, gritei para o frentista que assistiu a cena toda em silêncio, “posso calibrar os pneus aí?”. Depois, comprei uns chicletes para não parecer que estava abusando dos serviços do estabelecimento e fui embora.

* * *

Meu celular agora tem uma função chamada Bem-estar. O seu também tem. Na verdade, é algo mais chique do que isso, eles chamam Bem-estar digital – estudos dizem que se você adicionar a palavra “digital” a algo, ele fica mais sofisticado. É um app. E ele te diz quando você está fazendo um uso abusivo do celular. Mostra indicadores que você nunca imaginou que precisaria, tais como a quantidade de vezes que você desbloqueia o aparelho no dia, quanto tempo gasta em cada app e a quantidade de notificações recebidas. Agora eu confiro o app todos os dias para medir se meu bem-estar digital no momento está mais para bem do que para mal. Várias vezes por dia, na verdade. O que, pensando bem, talvez esteja influenciando negativamente meus indicadores.

(…continua no site do Estadão)

Devagar

“Calma, você está na Bahia, não na Berrini.”

Me peguei falando isso para mim hoje enquanto meus pés, um após outro, afundavam na areia fofa de uma praia e eu o fazia no ritmo de quem sai de um vagão de metrô rumo à rua.

O processo de contemplação e desfrute quando se está na natureza não é automático. Não basta o paraíso logo ali, é necessário que ele esteja aqui dentro também.

E isso é um passo mais complicado, porque eu não só pisava a areia como se fosse concreto, eu era também tomado pelo turbilhão de eventos, demandas e pendências que a rotina paulistana me impõe.

Comentei algo com a Manu na momento: de que a impressão é que hoje, quando viajamos e chegamos a um destino diferente, aquele deslumbramento inicial que sentíamos ao contemplar uma paisagem nova e pessoas novas é prejudicado pelo fato de que ao continuarmos conectados em nossos dispositivos e rotinas ao longo da viagem, acabamos trazendo muito daquilo na bagagem. No fim, o corpo chega ao destino mas o espírito ainda não aterrissou.

Estou lendo um livro chamado Digital Minimalism, mas já já eu falo dele, porque eu li um outro livro recentemente chamado Devagar e do qual eu preciso falar antes. E li um salmo ainda hoje a respeito do qual gostaria de escrever uma linha ou cinco depois.

Carl Honoré publicou Devagar lá no começo dos anos 2000. Demorei uns sete anos para ler esse livro, não porque o título fosse uma regra, mas por circunstâncias que pouco importam neste momento. Fato é que meio movido por curiosidade e meio por uma busca pessoal, seu livro me caiu na consciência como aquele tipo de verdade na qual você sempre acreditou lá no fundo, mas nunca tinha ouvido alguém dizer para poder concordar.

Honoré nos prova e provoca: precisamos desacelerar o passo, a vida é melhor — e mais saudável e mais bela — quando nos permitimos degustar em vez de engolir.

Cal Newport, um quase xará do Honoré, é autor do outro livro (agora sim) Digital Minimalism, um termo que me fisgou de imediato porque resume um bom tanto da minha obsessão recente em tentar expurgar da vida doméstica o excesso de tecnologia, de dispositivos e serviços digitais que nos estimulam à exaustão. Eu achava que era TOC, mas então entendi que não apenas eu e uma meia-dúzia de amigos, mas um bocado de gente no mundo vem expressando uma preocupação crescente com o espaço que isso tudo está tomando em nossas vidas.

Eu vinha tentando praticar um certo grau de minimalismo e a assimilação disso seria natural. Mas, fato é que a opção por ter menos é, no fundo, um tremendo luxo num mundo em que tantos tem tão pouco justamente por falta de opção. Então, o esforço mais recente aqui em casa é para sermos mais generosos. Ter menos, dividir mais e ser alguém melhor vale mais do que um capricho primeiro-mundista.

(…continua lá no site do Estadão)

Os jardineiros da Escandinávia

Na Dinamarca, a diferença de renda entre uma pessoa na base da pirâmide social e a que figura entre as mais prósperas é de apenas quatro vezes – o dado consta em um estudo da OCDE que li há poucos dias. E muito disso se deve ao fato de os limites serem mais curtos, já que ninguém recebe salários excessivamente altos e ridiculamente baixos. Esse nível tão baixo de desigualdade coloca o país escandinavo na posição de segunda nação menos desigual no mundo.

A título de comparação – e chegando no que nos toca – no Brasil, segundo o IBGE, a diferença de renda entre os mais ricos e os mais pobres chega a 36 vezes. Esse abismo é o que nos coloca na outra ponta do ranking e nos confere a condição de nono país mais desigual do mundo. Com um detalhe agravante: os 50% mais pobres em nosso país não contam com uma renda mensal suficiente para uma vida digna (R$ 747 em média, menos de um salário mínimo) como recebem os mais pobres da Dinamarca. O IBGE diz ainda que no último ano a renda do 1% de brasileiros mais ricos cresceu, enquanto os mais pobres ficaram ainda mais pobres.

Fiquei pensando nesses números enquanto conversava com a Nina, minha filha mais velha, outro dia sobre outra questão. Ela me perguntava sobre meu trabalho e tinha curiosidade em saber o que eu gostaria de fazer durante o dia se não fizesse o que faço hoje. Hum. Me perguntou ainda se a faculdade que cursei tinha mais relação com o que eu faço ou com o que eu gostaria de fazer. Hums.

Tive que explicar que em nosso país a maior parte dos que tem o privilégio de cursar uma universidade, faz essa escolha considerando não apenas sua vocação, mas principalmente o potencial de renda que aquela profissão pode lhes garantir no futuro.

“Por quê?”, ela perguntou.

Bem, aí minha filha de 11 anos e eu emendamos uma conversa sobre privilégios, o mercado, injustiças, desigualdade, vocações e sobre as pessoas que podem escolher o que querem fazer com seu tempo entre oito da manhã e seis da tarde. Como, por exemplo, os cidadãos dinamarqueses.

E daquele dia em diante, tenho preenchido parte do meu tempo nas ruas observando outras pessoas exercendo suas profissões e pensando se o fazem com algum senso de realização. Venho tentando imaginar também se, excluindo a questão do talento – ou a falta dele – eu poderia preferir fazer algum daqueles trabalhos em vez de fazer o que eu faço cotidianamente há 23 anos. O balconista do café, o motorista de táxi, o cabeleireiro, a dona de uma floricultura, o dono da imobiliária, o balconista da livraria, o professor universitário, o padeiro, o jardineiro… pessoas com quem costumo cruzar no caminho para o trabalho e que vêm passando pelo escrutínio da minha análise.

(…continua no site do Estadão)

O dia em que a TV morreu

Procuro na memória mas não consigo encontrar quando foi o momento exato em que a televisão morreu aqui em casa. Não lembro sequer o ano, algo entre 2015 e 2018, em que ela deixou de ter o reinado que sempre lhe foi garantido desde que me conheço por telespectad… digo, gente. Não me refiro ao dispositivo, que continua ocupando cada vez mais consideráveis polegadas na sala, mas à TV linear, aos canais sendo transmitidos, a programação regular, os programas intercalados por intervalos comerciais – eu gostava quando chamavam de reclames, mas se eu disser isso alguém pode me chamar de nostálgico – diante dos quais sempre fomos observadores pacientes e conformados.

Fazendo uma conta rápida, eu diria que hoje em 98,5% do tempo que a TV de casa está ligada, o consumo se divide entre Netflix e YouTube. No 1,5% do tempo que resta, sou eu, sentado aqui, escrevendo no computador e com algum canal qualquer transmitindo esportes que não pratico. Assim acontece nesse instante.

Por “um canal qualquer transmitindo esportes que não pratico” entenda o Off. Adoro o Off. Não sei se é porque acho que aquilo tudo é ficção pura ou se, de fato, existem pessoas que passam suas vidas sem estar doze horas por dia em um escritório, fazendo reuniões e respondendo e-mails. Aquela gente bronzeada, viajando por lugares paradisíacos, encarando grandes aventuras e fazendo cotidianamente coisas que eu jamais sonharia fazer uma vez sequer na vida. É tipo o Senhor dos Anéis. Só pode ser ficção.

Então, a TV funciona como uma espécie de proteção de tela, um pano de fundo enquanto estou sozinho na sala. E geralmente aquilo fica só ali, ocupando espaço, um respiro e show de luzes piscando para que eu possa me concentrar nas palavras que preciso juntar. Mas hoje, ao olhar para aquela tela, esse lance todo sobre a morte da TV me distraiu e perdi a linha do que estava escrevendo e comecei a redigir isso que você lê agora.

Esse era para ser um texto sobre desigualdade de renda na Escandinávia. Juro. Mas fica para uma próxima.

(…continua no site do Estadão)

A perda da inocência

– Davi, que machucado é esse no seu joelho? – a tia preocupada perguntou para o sobrinho.
– É que eu fui voar. Só que não deu.

Se tem uma coisa que eu tenho medo é de algo que martela em minha mente como “a perda da inocência”. Falo como pai, tenho pesadelos com isso. Temo a chegada do inevitável momento, o fatídico dia em que os olhos de minhas filhas se abrirão e compreenderão que existem questões subjetivas escondidas sob a superfície, sob as máscaras, sob essa espuma de artificialidades e das quais elas vinham sendo poupadas até ali pelo invólucro da pureza da infância.

Tenho medo do momento em que elas deixarão de ter esse poder, essa espécie de bolha que envolve os primeiros anos de nossa espécie e que faz com que crianças enxerguem o mundo e o percebam sem malícia, que vivam convictas de que são capazes de voar. Para elas, tudo ainda é cru, puro, é só aquilo mesmo que está sendo dito e feito naquela hora.

No fim do ano passado, estava na reunião de classe da Nina quando a professora recomendou aos pais que, para o ano de 2019, lessem um livro sobre a criança aos doze anos – idade que a maior parte da turma fará neste semestre. Eu tinha ficado com a tarefa de escrever a ata da reunião e tomava notas em um papel enquanto ela falava.

Então ela disse: “Neste ano, as crianças estão no ápice da infância e ainda estão aprendendo a fazer a conexão de sua presença no mundo. Elas estão vivendo a alegria de estar no mundo plenamente, estão no “topo da montanha”. E a partir de agora, elas começam a despedida da infância para entrar, aos poucos, na adolescência”.

Eu parei de escrever naquele momento e por alguns minutos deixei de ouvir o que ela dizia. Passei o olhar pelos rostos de outros pais e mães sentados em círculo diante de mim para ver se eles se espantaram com aquilo tanto quanto eu, mas a reunião seguiu em frente.

Eu não. De lá para cá, me pego entrando no quarto da Nina para observar como ela organiza suas coisas sobre sua mesa, os brinquedos, as bonecas, os livros, seus desenhos. Eu me sento mais para ouvi-la e, mais do que saber o que se passa, tento notar as transformações em seu jeito de pensar e enxergar o redor. Eu encaro seus olhinhos brilhantes (rapaz, se tem uma menina com olhos sorridentes e brilhantes, essa menina é a Nina) e fico aliviado em perceber que a pequena camada de pureza ainda está lá, que a inocência ainda reside em seus olhos.

(…continua ali no site do Estadão)

Primavera, poesia e livros como presentes

Tem circulado nas minhas bolhas uma mobilização entre os amigos incentivando que sejam dados livros como presentes neste Natal. Alguns o sugerem como forma de celebrar e incentivar a leitura, outros como caminho para ajudar a fomentar o mercado editorial no Brasil que anda em crise – no resto do mundo, o cenário é diferente e o consumo de livros, especialmente impressos, tem crescido, enquanto no Brasil, dada a crise pela qual passam país, livrarias, editoras e cidadãos, as vendas de livros padecem.

Acho a campanha um tanto piegas. Quem gosta de livros, afinal, já os compraria de qualquer forma. E quem não tem por hábito ler, não me parece que será incentivado a mudar em função de um movimento na internet. Mas como sou um bocado influenciado quando leio em redes sociais coisas que endossam meus interesses, me animei e propus à minha esposa que aderíssemos.

Fiquei com a incumbência de comprar para as crianças da família – leia-se filhas, sobrinhos e afilhados – livros adequados às suas idades e estilos (bem, aos meus irmãos e compadres que eventualmente me leem por aqui, peço desculpas pelo spoiler natalino). Crianças, afinal, são o objeto de nossa tentativa de exercer alguma influência positiva no mundo. E com estímulos eletrônicos por todos os lados, ganhar livros pode ser uma boa chance de conexão com outro tipo de universo.

“É sopa”, pensei, “me dê 15 minutos numa livraria e eu resolvo tudo”. Mas ignorei meu retrospecto em livrarias ao pensar tal coisa. Ignorei, sobretudo, meu retrospecto sozinho em livrarias. E fato foi que duas horas zanzando pelos corredores e folheando exemplares não bastaram para eu comprar os presentes que gostaria. Acabei comprando mais livros do que temos de crianças para presentear e mais da metade eram histórias que eu mesmo gostaria de ler.

Porque comprar livros exige tempo. Foi o que pensei ao final das compras, ainda na livraria, enquanto sentava para um café. Não estou romanceando a questão, mas a escolha é um ritual. Ao dar um livro, você endossa aquela história como algo ao qual acredita que o outro deveria dedicar suas horas, dias, às vezes algumas semanas. E o faz porque confiou na sua sugestão. Você não dá a alguém de quem gosta um livro que desaprova. De preferência, deve dar um livro que já leu e sobre o qual gostaria de conversar depois (se não pensa em conversar depois com a pessoa, não deveria dar presente, né?).

Com as meninas em casa, o legado da leitura é levado à sério. Temos uma estante com alguns exemplares, temos livros nas cabeceiras das camas, deixamos sempre algum na sala. Em casa, só lemos livros de papel para que talvez o exemplo crie nelas o desejo de ler também (tenho um Kindle, que até uso bastante, mas só o ligo depois que as crianças já dormiram ou em viagens a trabalho). Tem funcionado, devo dizer. Assim como funcionou para mim observar minha mãe passar algumas tardes às voltas com romances policiais de Agatha Christie, minha tia nos levar para passear em feiras de livros e bancas de jornais e a professora que nos levava todas as terças para uma rodada de histórias na biblioteca perto da escola.

Isso tudo me vinha à mente enquanto eu relia as páginas de um livro do Ziraldo trinta anos depois de tê-lo em mãos pela primeira vez. “Acho que ele vai gostar desse”, concluí enquanto o separava para um sobrinho.

(… continua ali no Estadão)

Só queria que as eleições fossem Copa

“Antigamente as coisas eram piores. Mas foram piorando” (Paulo Mendes Campos).

Naldo queria que as eleições fossem Copa do Mundo. Desejava que passado o jogo derradeiro, fosse bom ou ruim o resultado, que o povo se juntasse na segunda-feira para se recompor e seguir de novo a rotina, festejando a glória de mais uma taça ou compartilhando a fossa e o consolo de um ombro amigo. A euforia tem seu fim, o poço chega ao seu fundo, mas o dia seguinte estaria logo ali e a vida seguiria, com a temática do noticiário e nas conversas finalmente adquirindo outras cores. Mas Naldo vem dizendo que a vida segue em piorar, que as últimas semanas pareciam uma prorrogação sem fim desde que seu candidato nem passou do primeiro turno.

Dani queria que as Eleições fossem Carnaval. E o dia seguinte, uma quarta-feira de cinzas. Dia para curar o corpo, limpar a bagunça, retomar o trabalho e seguir em frente com as energias prontas para mais um ano que enfim começava nesse país. “Só o Brasil e a China tem seu Ano Novo em outras datas”, ela brincava. Ela queria que as lembranças dos dias que antecederam fossem só festa, serpentina e que gente em passeata na avenida fosse sinônimo de samba e axé. “Muito axé”, dizia Dani. Mas as madrugadas andavam frias demais e a batucada aqui e acolá tinha som de panelaço. Seu candidato estava no segundo turno.

Plínio queria que as eleições fossem um sonho. Desses que resultam de um dia estressante. Uma noite longa e cheia de solavancos, mas com certo alívio depois de um despertar assustado e de perceber que a realidade, a boa e velha realidade com seu chão sólido, permanecia inalterada. Mas ele vivia mesmo era um pesadelo, uma interminável madrugada escura em que pessoas se afastaram, ele viu seus valores serem colocados em cheque e ele próprio se questionava se estava mesmo apoiando uma visão de mundo coerente com o que sempre lutou. Plínio votou arrependido.

Alice queria que as Eleições fossem um churrasco com bebedeira. E a segunda-feira, só aquela ressaca insuportável, arrependimento, o sentimento de ter sido pisoteada por uma manada, mas a certeza de que amanhã tudo estaria bem. Mas, a família havia brigado, o clima andava azedo, nenhum candidato a representava e no dia seguinte, repetia Alice, as coisas não ficariam bem. Ela anulou os votos, todos eles.

Alice era casada com Plínio, que era irmão da Dani, que se casou com Mônica, que era amiga de infância de Naldo, que era casado com a Isa e pai de três filhos cujos melhores amigos eram os gêmeos de Plínio e Alice.

(…continua. Crônica pós-eleitoral para o Estadão. Leia aqui no site do jornal).

O subversivo da sexta-série

Era aula de Matemática e a professora Maria Cristina 1 (você vai entender já já) entrou na aula com um recado em mãos. Na próxima terça, ela disse, faríamos o hasteamento da bandeira e cantaríamos o hino nacional no pátio da frente. O sexto ano, continuou a professora, ficaria com a incumbência de puxar o coro para as demais turmas. Aquilo virou uma euforia só na classe.

Eu tinha 12 anos e estava na sexta-série. E a professora de Matemática, talvez já antevendo que não seria exatamente na matéria dela que eu me destacaria no futuro, teve a ideia de me indicar uma outra área e perguntou se eu aceitava escrever uma redação ou poema para ser recitado naquele dia. Eu não lembro como foi exatamente que eu aceitei a sugestão, mas quando cheguei em casa aquela tarde, tinha essa tarefa em mãos.

Na manhã da terça-feira, passei algum tempo antes da aula fazendo rascunhos e terminando meu poeminha. Por alguma razão que só a adolescência explica, o texto virou uma paródia do Hino Nacional recheada de analogias e críticas ao governo e rimas bem ruins. Hoje, estranhamente, à exceção do teor, eu não lembro de nada do que escrevi.

– Luiz Henrique – chamou a professora de Matemática durante a primeira aula, toda animada – você escreveu a redação para ser lida hoje?

– Ahãm, professora – respondi – tá aqui ó.

Entreguei o texto a ela, que desdobrou a folha, leu atentamente, deu aquela virada no papel para ver se não tinha nada no verso, depois olhou pra mim com um sorrisinho no canto da boca e disse:

– Deixe isso aqui comigo por enquanto, tá bom?

Ela dobrou o papel e colocou no bolso do guarda-pó branco que usava.

Chegou a hora do hino, as classes desceram para o pátio, alguém puxou a corda para subir a bandeira, nos postamos todos em silêncio e reverência, cantamos o hino enfileirados em volta do mastro e voltamos de forma ordenada para as salas de aula. A professora não estava conosco.

Nada de me devolverem o papel, nada de me chamarem para ler o poema (e, poxa, a turma toda sabia que eu iria falar e ficou me pressionando…), nada de falarem qualquer coisinha a respeito, até que…

Até que perto da última aula, a inspetora do corredor abriu a porta da sala e avisou que eu deveria me dirigir até a diretoria do colégio e procurar pela Dona Fulana, coordenadora do sexto ano.

– Oi, Luiz Henrique, pode sentar aqui, por favor.

Eu me sentei e vi que ela estava com meu papel em mãos.

– Foi você quem escreveu isso aqui?

– Foi, sim, Dona Fulana.

Eu, que quase nunca esqueço nomes, esqueci o daquela senhora. Ela tinha uns 587 anos de idade, usava o cabelo pintado de amarelo ocre com laquê para ficar meio enrolado no entorno de todo seu rosto e uns óculos foto-sensíveis que deixavam a lente meio esverdeada. Ela continuou:

– Você acha mesmo que nosso povo é assim? Que o país é desse jeito que você diz aqui? – e citou um trecho do texto.

– Dona Fulana, é só uma sátira. Eu quis fazer algo meio engraçado, na verdade. Mas, é sim, também uma crítica ao que eu acho que…

– Rapazinho, você é um anti-patriota?

– O quê? Eu não, claro que não.

– Menino… – ela titubeava enquanto balançava o papel na mão – é sim. Isso aqui é anti-patriotismo, garoto. Eu não vou nem falar o que… Você sabe o que pode acontecer com você se isso aqui cair nas mãos erradas? Você sabe o que pode acontecer com seus pais se isso aqui parar nas mãos das pessoas erradas?

– Eu não acho que…

– Eles podem ser presos. Você gostaria que seus pais fossem…? – ela não continuou a frase, mas eu entendi.

– Não. Mas…

– Olha aqui. Para sua segurança, isso aqui vai ficar comigo. Para a sua… segurança.

Mas, não era exatamente de temor ou proteção o tom em sua voz. Era de inquisição mesmo. E inquisição foi uma palavra que eu só aprendi anos depois, mas cujo significado entendi ali naquela mesa.

Me levantei e voltei para a classe. Do que me lembro, mesmo com a pressão dos colegas para contar o que a Dona Fulana queria (nunca era boa coisa ser chamado na diretoria), fiquei quieto a respeito por um tempo. Depois eu relatei o que havia acontecido.

Eu tinha alguma noção do que ela estava falando. Estávamos em 1992 e a ditadura militar era um assunto com o qual eu havia tido algum contato durante as aulas de História do Brasil e entendia que havia terminado alguns anos antes. No entanto, para mim isso se referia a um passado tão distante que soava ultrapassado e um pouco ridículo aquele discurso. A distância significava quase metade da minha vida até o momento e, aos 12 anos, com toda relatividade que o tempo possui na infância, eu não cogitava que a ditadura fosse algo pelo qual alguém vivo teria passado.

Tinha uma outra professora na escola, a Maria Cristina 2 (pronto, entendeu?), lecionava Geografia e era a única funcionária negra no colégio inteiro que não trabalhava na limpeza. Era sempre muito exigente e dura com todos. Ninguém na classe tirava nota maior do que 9 em Geografia.

Na semana seguinte ao episódio, ela entrou na classe, passou por mim e antes da aula começar, me chamou na mesa dela.

– Ei, menino, vem cá.

Me aproximei e ela disse:

– Que história é essa do seu poema? Eu fiquei sabendo.

– Ah professora, então, né? A senhora viu? O texto ficou lá com a Dona Fulana, ela disse que é perigoso para minha família se aquilo cair em mãos erradas. Disse que eu sou anti-patriota, mas eu não sou. Não sou mesmo.

Ela me fitou por alguns segundos e sorriu.

– Estou tão orgulhosa.

E aí, algumas coisas começaram a fazer sentido para mim. Ali, naquela sala, alguns papéis se enquadraram em uma perspectiva que eu não possuía até então. Dali em diante, comecei a notar que haviam campos e lados que as pessoas assumiam para julgar os outros, para olhar para o nosso passado, para seus próprios passados, para as histórias e jornadas das quais vinham e fazer suas escolhas sobre por onde seguiriam.

– Seu texto está comigo – ela disse. Eu pedi à Fulana para ver, disse que cuidaria disso e guardei na minha bolsa.

– Ah é? – eu ri.

– Ahãm. Posso ficar com ele?

– Pode.

– Se você quiser, tiro uma cópia e te devolvo.

– Tá bom.

Nunca mais vi aquele pedaço de papel. E confesso que não tenho na memória o que afinal de tão grave ou transgressor eu escrevi. Daquele dia em diante, a professora de Geografia me via no corredor e fazia um afago, enquanto a coordenadora a todo custo me evitava e procurava razões para me inquirir. Jamais a vi sorrir. Mas, o ponto é que as duas haviam vivido o mesmo tempo, presenciado os mesmos fatos, passado juntas pelas consequências daquele regime. Cada uma a seu modo, porém, olhavam para o mundo a partir de óticas diferentes. Talvez porque de um lado estava o oprimido que afinal era livre e, do outro, a mão pesada de quem julgava justo o rigor aplicado pelo opressor.

Existiam lados na história. Os olhares de ambas escondiam um passado que eu não conhecia, mas eram naquele momento como janelas para mim, revelando que nem todo mundo, como eu, observava aquele tempo da história olhando para trás. Aprendi a interpretar aquele silêncio. Para alguns, havia uma sombra que relembrava tempos recentes, recentes demais, algo perto demais para não sentir soprar um vento gelado quando o assunto surgia inesperadamente. Aprendi – depois daquilo e ao longo dos anos seguintes – que há momentos em que é preciso fazer a escolha por um desses lados, é preciso se posicionar, sob risco de, calados, condescender com a injustiça ao silenciarmos diante do mal.

Entre os amigos de turma, a história circulou. Fiquei famoso por um bimestre ou menos. A gente não sabia direito o que era ditadura, mas agora sabíamos o que era censura. E foi assim que a coisa foi tratada entre todos.

E eu, um nerd do sexto F, me tornei um subversivo.

* * *

Continuei escrevendo depois daquilo (a professora de Matemática tinha razão). Escrevi fanzines, panfletos, escrevi em jornais, blogs, escrevi um livro e centenas de emails para grupos de amigos. Nunca mais fui censurado em qualquer coisa que quisesse dizer – por mais que eu ainda acredite que a maior parte não merecia ser publicada, porém por outros motivos – e tenho na escrita a forma com a qual acredito poder expressar com mais clareza meus pensamentos. Mais do que isso, escrever é uma forma que encontro para colocar certa ordem nas ideias e descobrir o que penso sobre algo.

Jamais poderia imaginar que aquela repressão falada em vozes baixas pela escola e que já era um passado tão distante para mim e se tornaria um passado ainda mais e cada vez mais distante em nossa sociedade, poderia um dia retornar à pauta, voltar às rodas de conversas (agora em alta voz) trinta anos depois. Jamais imaginar que o horror do passado que assombrava uma jovem professora na minha adolescência viraria uma alternativa aceitável e um passado glorioso para parte significativa do nosso povo. Me nego a acreditar que, independentemente de candidatos ou partidos, o mal que a simples sombra disso pode representar em nossas vidas seja um assunto menos importante do que outros tópicos na agenda política deste momento.

Não sei o que se passou com Dona Fulana ou a professora de Matemática depois que saí do ginásio. A segunda Maria Cristina, eu encontrei em um estacionamento próximo à escola poucas semanas antes de me formar no Ensino Médio. Ela me abraçou e perguntou se já tinha decidido o que fazer na faculdade. Quando disse que estava em dúvida entre estudar Economia ou Publicidade, ela se mostrou desapontada. “Puxa, menino, então você vai ser mais um desses?”. Eu sorri, sabendo o que ela queria dizer e respondi que não. Até hoje, 26 anos depois, sempre que passo na porta daquela escola, a bandeira hasteada sendo balançada pelo vento me traz essa história toda à memória. Mas nunca achei que um dia ela deixaria de ser uma piada. E quase sempre, quando preciso exercer meu compromisso cívico ao votar, ao escrever, ao educar minhas filhas, ao escolher como tratar meu próximo, eu me lembro, de algum jeito, que muitas vezes é preciso decidir de que lado estou.

Vivemos hoje um momento crítico em que essa escolha precisa ser feita. Porque a questão não é apenas sobre o que acontecerá no país nos próximos anos, mas especialmente sobre o exercício de olhar para trás, para nossa história tão recente e escolher de que lado queremos ficar, de que lado estaríamos se os tempos de hoje fossem aqueles de 1964. É hora, agora, de abandonar as discussões rasas e refletir nessa questão com a complexidade que ela merece. Porque isso é muito maior do que partidos políticos, condutas e dinheiro. Falamos de uma questão moral, da nossa liberdade, de direitos adquiridos com suor e sangue sendo ameaçados.

E ainda que sejamos um só povo e um país e a sociedade inteira vá viver as consequências – boas e ruins – do resultado das eleições deste ano, a escolha que fizermos agora dará a medida do peso em nossa consciência no futuro. Porque também há fundamentos em uma sociedade que jamais deveriam ser negociados: a liberdade, a democracia, o respeito à identidade de cada cidadão, os direitos humanos, a igualdade entre homens e mulheres, o compromisso de incluir os que foram excluídos, o dever de garantir a voz aos que foram calados pela mordaça da injustiça e da opressão.

O voto é um depósito de confiança que fazemos no futuro que desejamos. Meu voto é, sobretudo, sobre o recado que quero dar a mim mesmo nos anos que virão pela frente e a satisfação que precisarei dar às minhas filhas.

Olhando para trás agora, relembrando a história daquela terça-feira em 1992, me ocorre que talvez o sentimento que habitava a consciência daquelas mulheres era o mesmo: medo. A força capaz de paralisar, de calar, de nos levar a fazer escolhas que supostamente nos preservam ou garantam a estabilidade que desejamos. Medo que é também a força que se contrapõe e cala em nossa consciência e apaga de nossos olhares a esperança.

Esperança da qual precisamos tanto nessa hora. Para poder seguir em frente apesar do frio paralisante, para resistir com otimismo e fé, para jamais negociar nossos valores mais preciosos em troca do que for, jamais perder de vista a imagem clara de que somos melhores quando somos juntos, quando somos livres, quando nos unimos e nos permitimos sonhar e semear como sociedade um futuro melhor.

(Minha crônica dessa semana para o Estadão).

Ato patriótico

Aprendi a dobrar a bandeira Nacional quando era escriturário em um banco.

Uma das minhas tarefas de rotina era recolher a bandeira do mastro no final do dia. Para tanto, havia um protocolo a ser seguido. Pelo menos foi o que Leonildo, meu chefe na época, me disse solene da primeira vez.

Na forma de retirar o mastro, de recolher a bandeira, chamar alguém para ajudar a segurar as pontas, jamais deixar cair ou raspar no chão (eu achava que um raio cairia do céu na minha cabeça ou um esquadrão da Rota apareceria atrás de mim se eu derrubasse aquilo) e dobrar, que era um ritual à parte. Primeiro, uma dobra longitudinal em toda a bandeira e depois, formar um triângulo com uma das pontas e ir juntando até ela ficar num formato triangular compacto. Sem sobras, rebarbas, sem amarrotar. Ao final, levar a bandeira repousando sobre as duas mãos, como se fosse uma bandeja – nunca embaixo da axila ou com uma mão só – e guardar no lugar apropriado.

Até hoje, não sei dizer se existe mesmo um jeito oficial de dobrar a bandeira e se é assim mesmo que se faz. Nunca busquei isso no Google para conferir se aprendi, de fato, algum gesto cívico ou fui vítima de trote. Tenho medo da resposta em qualquer dos casos – ainda que ache bonita nossa bandeira e tenha uma guardada em casa e devidamente dobrada, tal qual o protocolo, para ocasiões de Copa do Mundo. Mas sei que foi assim que o Leonildo me ensinou e assim me supervisionava diariamente.

Era preciso um certo espírito de reverência para recolher aquele pedaço de pano que ficava o dia todo pendurado ao relento em uma avenida comercial na periferia da cidade, sujeito à fumaça dos veículos, chuva e vandalismos e depois dormia em berço esplêndido no armário da nossa repartição.

– É patriotismo, menino. Tem uma lei, um protocolo para seguir.

Ele adorava a palavra protocolo.

(…minha crônica dessa semana para o Estadão. Continua lá no site)

O taxista e a ditadura

Entrei em um táxi semana passada. Era fim de dia, garoava e a tradicional puxada de assunto perguntando sobre o clima não adiantava muita coisa. Lembrei que o debate presidencial havia terminado há pouco tempo e, como eu não tinha visto, usei o tema como gatilho para uma conversa com o motorista:

– Tá na rua faz tempo?
– Não, senhor. Peguei agora.
– Viu o debate na TV hoje?
– Debate? Eu não! Não quero ouvir o que esses caras tem para falar.
– Ué, mas o senhor não vai votar?
– Voto, sim. Mas não pra presidente. Esse eu anulo. Para mim, nenhum ali presta. Eles só vão nos debates para contar mentira pro povo.
– Entendi.

Era um senhor com mais de 70 anos, negro, sotaque nordestino arrastado, um bigode ralo estampando o rosto. Insisti:

– O senhor não fica preocupado? Digo, o que vai ser desse nosso país?

Ele virou levemente o corpo para olhar para trás e respondeu:

– Menino, vai ser ruim, vai ser péssimo.
– As pesquisas dizem que vai dar Haddad e Bolsonaro no segundo turno. Eu acho preocupante.
– O PT não presta. Não voto neles nunca. E… esse Bolsonaro, esse homem… quanto anos você tem? 38?
– Tenho 37.
– É quase a idade do meu filho. Então, menino, te digo o que falo pra ele: vocês não sabem o que foi a ditadura. O povo, essa meninada agora… ficam falando que aquele tempo foi melhor, que tudo era bom. Ninguém sabe o que era aquilo. Não sabem o que era gente com medo, gente sendo torturada. Todo mundo vivia era com medo. Não sobrava só pra bandido e pobre, não. Vou te falar: sobrava pra filho de rico e filho de pobre, pra branco e pra preto. Se desse bobeira, tomava sarrafo. E se fizesse coisa errada, morria mesmo. Agora ele quer dar um revólver pra cada cidadão? Isso é uma estupidez! Se já tem violência com tanta arma na rua, imagina se tá todo mundo armado? O bandido não pensa duas vezes, ele já vai chegar atirando. Isso aqui vai virar guerra, meu filho.

Ainda que meu senso e valores pessoais dessem razão ao homem, seu discurso apaixonado só me fazia enquadrá-lo numa caixa ideológica da qual partilho e eu pensava que tinha caído no raro caso de um taxista de esquerda (considerando minhas experiências). O que dava indícios de que vinha pela frente uma conversa tranquila.

O trânsito estava parado. Ele estava ofegante e às vezes me fitava pelo espelho retrovisor. Seu sermão acalorado me fez pensar no que ele poderia ter passado nas décadas de 70 ou 80. A família, os filhos, o motivo de ter migrado para São Paulo. Emendei outra pergunta:

– O senhor falou isso tudo… O senhor sofreu muito durante a ditadura?

Ele virou o corpo todo em minha direção e me encarou por um tempo até soltar uma avalanche:

– Sofrer? Sofrer?! Meu filho, eu era policial.

Engoli seco.

Depois de dois segundos, ele continuou:

– Só eu sei o que eu fiz naquele tempo. Só eu sei o que a gente fazia por aí naquela época. Foi muito sofrimento pra esse povo.

A conversa seguiu, com ele me dando detalhes de como levavam ladrões de rua para serem torturados, sobre como atiravam ao menor sinal de suspeita (“não tinha essa de esperar ambulância no local, a ordem era atirar e já ligar pro rabecão vir buscar o corpo”), sobre métodos de tortura para estupradores e ladrões e sobre como ele foi expulso da corporação porque abordou um jovem que consumia maconha na rua e descobriu, dias depois, que era filho de alguém com patente superior que exigiu sua demissão (quer dizer, a justiça não era bem assim para todos, né?). E longe de ser alguém de esquerda, meu taxista era um conservador convicto, defensor de valores morais que o levavam declaradamente para o campo da direita. Mas ele não podia aceitar, dizia, que alguém apoiasse ou falasse em favor desse tipo de ideia.

O carro se aproximava da porta do meu prédio, a conversa tinha enveredado para coisas sobre nossas famílias, os filhos dele e rumos da vida. Antes de me despedir, perguntei:

– E o que o senhor pretende fazer depois de novembro?

– Eu vou embora, menino. Tenho uma terrinha lá na Paraíba, tudo ajeitado. Já estou em São Paulo há 52 anos. Agora vou pegar minha velha, meu mais novo e vamos morar por lá. Planto uma coisa ali, consigo outra lá, vou montar uma lanchonete na cidade pro meu filho. Isso aqui não dá mais. Isso aqui vai virar guerra e eu já tô cansado. Estou me desfazendo desse táxi aqui e dia 4 eu vou me embora.

– Bom, então boa viagem. E boa sorte para nós todos.

– Obrigado. Fica com Deus aí garoto.

Subi o elevador, beijei minhas filhas e minha esposa. Tomei um banho, desfiz as malas e fui para o quarto. Deitei em minha cama. Era tarde. Talvez, tarde demais.

Quando já não escuto os pássaros

Estacionei a bicicleta por um minuto ou dois porque minha atenção foi capturada por aquele som. Olhei para o alto, mirei os menores galhos das árvores que se projetavam até o outro lado da rua e tentei encontrar o pássaro que cantava daquele jeito, aquele canto que nunca havia escutado.

Não foi a primeira vez que me vi interrompido por um pássaro. Minha vida toda foi assim, mas só recentemente me dei conta desse comportamento involuntário. E admito que comecei a desfrutar esses pequenos momentos.

Por motivos de hereditariedade, trago essa mania de meu pai. Andando na rua, pedalando, parado numa mesa de restaurante, basta que um passarinho comece a piar nas redondezas e minha atenção se desvia. Diferentemente do meu progenitor, no entanto, não sou capaz de distinguir raça, estilo ou gênero dos bichos. Meu pai nasceu com a base de dados da Grande Enciclopédia das Aves implantada em seu cérebro, com aquele tipo de ouvido absoluto para pios e cantos, de forma que balbucia “É um Curió” à meia-voz quando um desses se manifesta. Eu, enquanto isso, mal posso distinguir o chamado do Sabiá de um Sanhaço. Mas, escuto passarinhos e tenho um prazer contido em deixar a mente ser levada por um instante na direção daquele som.

Há um grande campo ao lado do prédio onde moro e às vezes, enquanto escrevo durante a madrugada, posso escutar uma revoada de centenas deles nas copas das árvores. Já cheguei também a gastar uma hora ou mais sentado em um parque, observando pássaros reunidos em pequeno lago e depois ser presenteado com seu voo desordenado até que finalmente se agruparam e voaram sobre minha cabeça naquela formação em M e migraram para o oeste. Em outra ocasião, estacionei minha bicicleta no meio da Cidade Universitária para poder ouvir, por cinco minutos, o canto de uma espécie que me era nova.

No fundo, isso não me diz nada. Não há uma mensagem aqui, uma moral, não há contemplação programada, é só um hábito meu, quase instintivo, de escutar aquele som por um tempo e seguir adiante pelo dia. Mas há uma coincidência que envolve o estado de espírito em que tais ocasiões ocorrem.

Porque há, no entanto, períodos em que meus ouvidos se fecham. E eu passo pelas mesmas ruas, caminho pela mesma via e ando com a Lucy pela calçada e sento nas mesmas mesas, mas só ouço os ruídos de sempre, as vozes, motores, as mensagens em minha mente sobre o que se deve fazer agora, sobre os compromissos de amanhã, os conflitos políticos, a crise, sobre as preocupações, martelando um turbilhão de afazeres que parece não ter fim. Já não há passarinhos cantando quando o fluxo da rotina se converte na inércia em que me permito habitar, quando a vida é só existência, quando a rotina perde seu encanto e vira repetição tola.

Nem chego a buscar um antídoto porque não noto tais desvios. Fica lá dentro aquele incômodo, fica a sensação de que tem algo errado, algo faltando na vida quando me permito viver nas condições em que há coisas demais, há estímulos em excesso, quando falta o ócio necessário, não há música, não há brisa e não sobra espaço para eu poder me distrair.

É quando outros cantos também silenciam. Quando brincar com minhas filhas no chão da sala vira só obrigação paterna e não a hora mais legal do dia, quando as “surras de cócegas” antes de dormir duram um calculado minuto e não uma era inteira, quando a saída de casa pela manhã para ir à escola vira pressa, só pressa e uma pressão para que elas se arrumem logo, para que comam logo, para que andem logo e o carro fica em silêncio até chegar ao colégio. É quando o café da manhã em casa com a Manu vira só o tempo para resolver pendências e não os momentos para dividir nossos sonhos. Para mim, os dias sem distração são os mais frios e distantes. Nos dias em que a mente não tem espaço para vagar pelo nada, é o tempo em que o corpo se distancia do momento e sinto que eu deixo de estar presente para aqueles a quem mais amo.

(…continua no site do Estadão)

À prova de desapegos

Um pequeno baú de madeira com cartas de amor manuscritas e alguns desenhos feitos pelas meninas, uma caixa de papelão com álbuns de fotos da era não-digital, uma dúzia de livros, cadernos usados e uma embalagem cartonada com dois carrinhos arranhados, um Playmobil careca e um apito velho. São esses os objetos que me vem à mente sempre que surge a ideia de que um dia minha casa possa ser tomada por um incêndio e eu precise abandoná-la à pressas.

Nenhum eletrônico, nem jóias, nada de dinheiro, documentos ou a escritura da casa (mas pensando bem, seria útil considerar levar ao menos a apólice do seguro residencial). Penso apenas nesse conjunto de papéis velhos e pedaços de madeira e plástico pelos quais ninguém lá na rua me pagaria dez reais, mas carregam um tesouro que pretendo guardar até o fim. A seu modo, são pedaços da história, um tipo de prova de momentos que gostaria de recordar adiante e que não posso confiar na memória para preservá-los. Uma espécie de museu particular.

Quando abri o jornal na semana passada e li sobre o incêndio que atingiu o Museu Nacional no Rio de Janeiro, o sentimento de perda foi um pouco esse que mencionei acima. Gosto de museus muito mais pelo significado e contexto das peças expostas do que por seu valor ou raridade. Daí a preferência familiar, quando viajamos em férias, pelos museus de história, ruínas e monumentos arquitetônicos.

Hoje, é triste constatar que viraram cinzas as tantas relíquias dos tempos de nossa história que não chegamos a testemunhar, as últimas provas da existência de povos que se extinguiram, as memórias da trajetória nacional que se perderam para sempre. Porque todo museu é um compêndio de narrativas que podem ser contadas, uma espécie de janela no tempo para que possamos contemplar e reviver as riquezas que já fomos capazes de edificar.

(… continua lá no site do Estadão)

Cenas urbanas – No táxi

#1

– De onde você é? – perguntou o motorista quando entrei no táxi.
– Sou do Brasil. E você?
– I’m from India. Mas já vivo aqui em Nova York há mais de 10 anos.

Passava das onze da noite, eu voltava de um jantar para o hotel e, depois de um dia inteiro trabalhando, só queria um banho quente e uma cama. Mas, nunca resisto à tentação de dar corda em conversas com pessoas de lugares diferentes de onde vivo.

– Você conhece o Brasil? – emendei.

E para minha surpresa, ele respondeu que sim.

– Sim, conheço. Já fui muito ao Brasil.
– Rapaz, sério? – okay, eu não disse “rapaz” em inglês – que cidade você conheceu?
– Ah, algumas. Eu trabalhava em uma empresa de engenharia aeroespacial. Ainda sou da área. Trabalho como motorista para complementar minha renda. Conheço São Paulo, Rio de Janeiro, já fui à Bahia…
– Que interessante. E o que você mais gostou de lá?
– Oh man, eu adoro o Brasil. Na verdade, acho seu país muito parecido com o meu. As pessoas são calorosas e a comida tem um tempero parecido também.

Eu ia discordar, mas como nunca estive na Índia, fiquei quieto. E ele, cada vez mais empolgado, continuou:

– Mas o que eu mais gostava no Brasil era uma bebida a base de cana. Eu bebia um copo de meio litro todos os dias.

“Cachaceiro”, pensei, “desse jeito não é difícil confundir pastelzinho com samosa”. Mas resolvi conferir:

– Meio litro de cachaça? Really?
– Não! Cachaça, não. Era outra bebida. Queria muito lembrar o nome. Eles fazem na rua, com um motor. Pegam a cana inteira e moem ali mesmo na sua frente. E aí sai um suco que misturam com limão, com abacaxi, côco.
– Garapa?
– Isso! Isso! Garapa! Oh my God, I love garapa!

(…continua lá no Estadão)

Papel passado

Não tem nada a ver com minha viagem recente, mas o fato de ter voltado de lá há pouco mais de dez dias me fez lembrar de uma notícia que li no The Guardian por esses dias a respeito de um carteiro italiano que foi preso após a polícia encontrar em sua casa cerca de 400 kg de cartas não entregues. Segundo o próprio, ele ficou três anos sem entregar as correspondências como forma de protestar contra o baixo salário que recebia.

Me espanta saber que na era do WhatsApp e outros mensageiros, quando o fax já desapareceu e até o e-mail já é dado como morto, ainda exista tanta gente que se encarregue de postar cartas à moda antiga. E há quem entregue. Chego a suspeitar do motivo real do Jaiminho italiano, acreditando que pretendia, no fim, tentar provar o valor e sua função. Ou talvez seja ele um nostálgico, entusiasta da velha arte da escrita à mão, temendo pelo fim do meio em que atuava.

Ano passado, durante uma semana de férias no interior, fui com a Nina a uma agência de correio.

(… continua no site do Estadão).

Vim. Vi. Venci?

toscana

Vi que falta um texto por aqui. Faltam três, na verdade. Preciso atualizar meu blog aqui no jornal há três semanas, mas não consigo escrever nada durante as férias.

Curiosamente, os lugares com mais paisagens e experiências que supostamente deveriam ajudar a me inspirar, sempre são onde me sinto bloqueado.

Deveria escrever um pouco todos os dias, tal como recomendaram meus mestres. Mas acho que sou preguiçoso demais. Ou indisciplinado. Ou sem talento. Combine como preferir.

Estou em Roma agora. Sonhadas férias em família. Passamos antes por Veneza, por uma praia no mediterrâneo, Florença e por uns vilarejos na Toscana. Até a Lucy, nossa cadela que ficou em casa, escreveria um poema se estivesse aqui. Eu não.

Mas eu vi, semana passada, um pôr do sol enquanto estava recostado em uma mureta no alto de uma colina, de mãos dadas com a Manu, que valia por um soneto. As meninas brincavam de qualquer coisa ao nosso redor enquanto o mar castigava de leve as rochas logo abaixo e ouvíamos aquele som do vai e vem das ondas. No horizonte, a luz amarelo-alaranjada se impunha no céu e tingia todo o mediterrâneo de dourado. Ficamos ali, afortunados com a beleza daquela imagem, até o crepúsculo.

Eu vi também o sol nascer atrás de uma montanha da Toscana enquanto dirigia por uma pequena estrada vicinal. E sua luz iluminou plantações de uva, casas, construções medievais, campos de girassol e meus olhos que se encheram de lágrimas por poder contemplar aquela imagem.

Eu vi, com olhos incrédulos e míopes, telas de Michelângelo, Caravaggio, Da Vinci e tantos gênios que passei a crer na possibilidade de que Deus tenha marionetes nessa Terra em cujos ouvidos às vezes sopre ideias para dar vida à sua criação.

Eu não vi um jogo do Brasil contra o México durante a Copa, mas escutei a partida num rádio, sentado no alto de um morro de uma fazenda enquanto observava as meninas brincarem em uma piscina lá embaixo e comemorava contido os sofridos gols de Neymar e Firmino que recompensaram o sacrifício.

E depois eu vi, das cenas mais lindas, quando a Nina me pediu para brincar com ela na piscina e nadamos juntos até uma pequena cascata e ali, atrás da cortina de água, a luz refletia em seu rosto e seus olhinhos brilhantes de onze anos voltaram a ser os olhinhos de um ano. Aquele olhar, aquele de quando ela me encara sorridente como se aquilo ali, aquilo que vivemos no instante, bastasse. E para mim, basta. E pedi a Deus para não me deixar esquecer aquele momento nunca mais.

Eu vi o Brasil perder para a Bélgica por 2 a 1 em full hd, mas preferia não ter visto.

(… continua no site do Estadão – peço desculpas, mas por questões contratuais, não posso publicar os textos na íntegra por aqui).

Bola dividida

Alimento pelo futebol o mesmo tipo de amor platônico que tenho pela música. Aquela admiração distante de quem um dia vislumbrou um relacionamento íntimo mas precisou se conformar com a contemplação como forma de contato com o alvo de seu afeto.

Sempre fui ruim de bola. Quer dizer, eu seria feliz se fosse apenas ruim de bola. Talvez seja boa ilustração mencionar que o ápice de minha carreira futebolística foi quando me tornei o zagueiro titular da categoria Dente-de-Leite do time do meu bairro, aos dez anos de idade, época em que ainda alimentava o inocente sonho de um dia me tornar jogador profissional enquanto suava sob o olhar rígido do Moleza, um morador do bairro que nos finais de tarde se propunha a desempenhar o papel de técnico da criançada. A equipe tinha um nome oficial e dois jogos de camisas, mas era mais conhecida como o Time da Rua de Baixo (ainda que muitos garotos de outras ruas que não eram a “de cima” também treinassem ali).

Agora, me diga você: no duro, que menino sonha em ser zagueiro? Em uma década que tínhamos Careca e Romário brilhando em campo com gols memoráveis já era de se compreender que ambicionar o posto do Ronaldão ou do Aldair era um sinal evidente de admissão de fracasso e um certo conformismo disfarçado atrás do sonho. Sinal que só eu não enxergava. Eu e o Moleza, que na ausência de mais voluntários para a posição, me escalava também na categoria Fraldinha (todos os outros garotos, das ruas de cima, ao lado e mais abaixo, queriam ser centroavantes).

Cresci e tornei-me um adulto conformado com o fato de que não teria, na vida, um próspero relacionamento com os gramados. O que não quer dizer que tenha abandonado a torcida eufórica, os jogos do meu time e o prazer contemplativo, quase invejoso quando observo que alguém é capaz de desempenhar o que não fui.

Nick Hornby escreveu no livro Febre de Bola a definição dessa relação platônica do torcedor com seu time:

“Se tem uma coisa de que tenho certeza sobre ser torcedor, é a seguinte: não se trata de um prazer de segunda mão, apesar das aparências, e aqueles que dizem que preferem fazer do que ver não entendem nada. O futebol é um contexto no qual ver se torna fazer — não no sentido aeróbico, porque é bem improvável que ver um jogo fumando que nem um condenado o tempo todo, depois sair pra beber e ainda ir pra casa comendo umas batatinhas fritas possa transformar alguém na Jane Fonda, algo que correr pra cima e pra baixo num campo de futebol é capaz, supostamente, de fazer. Mas, quando acontece um triunfo de algum tipo, o prazer proporcionado não irradia dos jogadores até chegar a nós, no fundão da arquibancada, já como um eco diminuído da sensação original; nossa fruição não é uma versão aguada da que têm os jogadores, embora eles é que marquem os gols e subam os degraus de Wembley pra encontrar a princesa Diana. O júbilo que sentimos em ocasiões assim não é uma celebração da boa fortuna dos outros, mas da nossa; e, quando há uma derrota terrível, o sofrimento que nos envolve é, na verdade, autopiedade, e qualquer pessoa que queira entender como o futebol é consumido deve entender isso, acima de tudo. Os jogadores são meramente nossos representantes, escolhidos pelo técnico em vez de eleitos por nós, mas ainda assim estão lá nos representando (…)”.

A cada quatro anos, durante a Copa do Mundo, volto a ser menino. O moleque plantado na beira do campinho de terra, a bola esfolada sob o braço, esperando para jogar e levar o Time da Rua de Baixo a mais uma vitória gloriosa (sim, como zagueiro e, não, não era comum vencermos).

(… continua no site do jornal)

A busca pela felicidade

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Quando foi que transformamos um sentimento em ideal a ser alcançado? Em que estágio do século que passou, eu queria saber, nos tornamos uma raça que ambiciona a felicidade como estado permanente de existência?

No futuro, pode ser que alguém resolva estudar o tempo da história em que vivemos e chegue à conclusão de que fomos uma geração superficial e vazia. Talvez seja algum rebote pós-guerra, fulano argumente, talvez o excesso de prosperidade nunca antes experimentado ou quem sabe o surgimento e expansão no consumo de drogas e antidepressivos. O que nos fez, questionará o historiador do século XXV, incluir emojis e emoticons com sorrisos :-) ao final de nossas mensagens para que soassem simpáticas? Algum filósofo deve ter uma teoria que explique o fenômeno. Eu não tive tempo de buscar detalhes porque estava buscando minha dose cotidiana de satisfação e felicidade.

Não quero cair na conversa fácil de mencionar posts em redes sociais influenciando nossos sentimentos. Isso é consequência e não causa. Me preocupa a origem disso. A origem disso em mim, a existência disso em minhas filhas, na minha esposa, o quanto isso afeta meus amigos, colegas de trabalho, familiares e o quanto vejo uma geração de jovens emergir dependendo de sensações que os satisfaçam e êxtases como recargas de suas energias. A nossa não-capacidade de lidar com o contraditório, de rejeitar o que não nos satisfaz, de alimentar a expectativa de que as coisas, as pessoas, as experiências e o mundo todo supra esse vazio o tempo todo e nos preencha com um estado de espírito.

E pensar que talvez a coisa que mais nos afaste desse ideal seja justamente o esforço em persegui-lo.

O curso mais popular na história da Universidade de Yale, li outro dia em uma reportagem da revista The Cut e no The New York Times, é um programa que procura ensinar aos alunos a ciência de ser feliz e do bem-estar. Um quarto dos alunos matriculados na universidade no último ano se inscreveu no curso da professora Laurie Santos chamado “How to be happy”. A ONU, descobri na sequência, tem um relatório global de felicidade e bem-estar e faz um ranking de nações mais ou menos felizes no mundo. A Finlândia lidera a lista, o Brasil consta na 28 posição. Entendo que os critérios tratam de indicadores relevantes como acesso a saúde e educação, mas, entenda também, é realmente sensato que tenhamos nisso um objetivo pessoal a ser alcançado? Como se fosse algo possível de ser comprado, acessado, como um mundo plástico onde podemos habitar longe de riscos.

Curiosamente, uma das lições do curso de Yale conclui que “quase tudo o que você pensa que irá torná-lo mais feliz não irá”.

O que está acontecendo com a gente?

(… continua no Estadão)