
Algumas situações ruins que vivemos, às vezes vem cercadas de tantos momentos mágicos que com o passar do tempo a memória se encarrega de nos fazer esquecer as partes negativas e nos apegamos à ideia de que tudo foi perfeito.
Nos últimos meses, as coisas meio que voltaram uns nove anos no tempo aqui em casa. E com a chegada tão esperada da Cecilia e toda alegria de ter um bebê trazendo o milagre da vida e dando seus primeiros passos na sala do nosso apartamento, chegou também – sem ser convidado, preciso enfatizar – a época da areia nos olhos, das overdoses de cafeína, dos sonhos delirantes com noites inteiras de sono que agora parecem tão remotamente impossíveis.
Nossos passeios no shopping acabam com nós dois parados lado a lado, dedos entrelaçados e aquele olhar melancólico em frente a uma loja de enxoval e a boca salivando em desejo por camas fartas, edredons fofos e lençóis de algodão egípcio com 12.000 fios. Tudo o que queremos são noites com horas ininterruptas de sono.
O fato é que a Cecília acorda muito durante a noite. A cada hora, às vezes. Várias vezes numa hora só, em certas ocasiões. Quando o ponteiro marca uma e tantas da madrugada, ela começa a chamar, numa escala de decibéis que certamente não cabem nos 75 centímetros que mede aquele pequeno ser:
– Mamamamamamamaaaaaa!
Levantamos correndo, muitas vezes correndo na direção errada (eu já cheguei a ir para o banheiro ao invés de entrar no quarto das meninas), tantas vezes chutando chinelos, crocs, quinas de cômodas e dando topadas com o cotovelo na maçaneta de alguma porta. O susto nos impulsiona, o despertar é quase um instinto.
Talvez alguém que leia isso recomende técnicas de sono. Alguém sugere um “nana, nenê” aqui, outro indica o “leito compartilhado” ali e talvez apareça também o modelo francês em uma conversa por aí. A gente tá ligado, estamos realmente tentando. Mas tem sido difícil contar para a Cecília sobre nossas metodologias e conseguir que ela concorde em participar dos testes.
* * *
Eu lamentava essa situação outro dia, quando me ocorreu que há pouco mais de um ano estávamos, nós dois, nesse mesmo quarto, vivendo esse mesmíssimo momento, mas ainda sem ela. Os olhos abertos, idas e vindas pela casa, o medo de acordar a Nina, coração aflito esperando Cecília chegar em algum instante daquela madrugada. Ela nasceria em poucas horas e essa era toda a expectativa que tínhamos então (e já nos acordava às duas da manhã para anunciar o que viria pela frente).
Hoje, ela mede alguns poucos centímetros, mas ocupa dois metros de altura entre nós. Pesa doze quilos, mas preenche a casa e nossas vidas com sua presença festeira e o sorriso fácil de poucos dentes separados. Tem apenas alguns meses nessa terra, mas ilumina a vida da gente inteira com aquele cabelo vermelho fogo e a pele branca reluzente.
Ontem ela fez um ano. Antes de ontem, ela nasceu. Amanhã, ela estará por aí ganhando o mundo.
Aquela sensação de que tudo estava sob controle e a certeza de que a paternidade era assunto dominado por aqui, obviamente caiu por terra. Achamos que a Nina e sua serenidade eram o padrão genético que imprimiríamos em qualquer ser humano que resultasse de nós dois. Achamos.
Não estávamos acostumados. Na vida pacata que sempre reinou sob esse teto, jamais imaginamos a chegada de alguém que virasse tudo de pernas para o ar, como Cecília faz. A Nina sempre foi tão calma, tão a gente mesmo, como uma extensão das nossas personalidades. A Cecília, por sua vez, é o conceito não lapidado de personalidade em si.
Se a Nina sempre foi calmaria, a Cecília é tempestade. Nina é solitude, Cecília é multidão. A Nina é “a capela”, mas Cecília é bloco de carnaval. Nina é Beatles e Cecília é Rolling Stones.
Ela tem pressa, ela voa. E se minha vida até então era sempre essa coisa de andar de olhos fechados para sentir a brisa e contemplar, agora eu fico, o tempo todo, de olhos bem abertos. Porque a todo instante, ela nos surpreende. E isso é a maior graça dessa história toda.
Mas, enquanto observo minhas meninas dançando juntas na sala, partilhando uma história na tv e caminhando lado a lado para a vida, sinto que me pesa sobre os ombros o preço do tempo, o limiar da história e me crescem novos fios brancos pelo corpo. Eu limpo as lentes embaçadas dos óculos e olho para o “agora há pouco” como um passado cada vez mais distante. Tenho medo.
* * *
A coisa não é abrupta, nunca é. Não há ruptura que se possa notar assustado, não há dia agendado para que uma despedida seja marcada a tempo. O tempo é sorrateiro, é fugaz como um fósforo que de chama reluzente vira cinzas num piscar de olhos. Só o notamos olhando para trás, só nos damos conta de que tudo foi tão rápido quando já passou.
Só vemos os sinais. Há riscos de giz de cera marcando a altura no batente da porta do quarto, há uma sacola de roupas que já não servem, há fotos, milhares de fotos, gigabytes de fotos, de muitos dias e eventos. Temos os brinquedos antigos esquecidos em alguma caixa velha, os desenhos em rabiscos arquivados nas gavetas do criado-mudo. A verdade é que só temos mesmo as lembranças e todas essas coisas que nos remetem às lembranças.
Elas vão passar, vão crescer e correr tão rápido que meus dedos não poderão alcançar, vão sair pela porta da sala para brincar lá embaixo e, de repente, voltar com as suas crianças para brincarem com a gente.
A diferença de idade entre as duas é um duro contraste. Até outro dia, era a Nina a personagem de parágrafos tão parecidos com esses que agora eu dedico à Cecília. E fico pensando que toda descoberta e novidade de ser pai novamente será, outra vez mais, essa experiência encantadora e assustadora e vou ter que lidar com a Cecilia, daqui oito anos, nesse tamanho que a irmã tem agora – e que já terá 17 anos (de-zes-se-te!) então.
A Nina agora me pergunta sobre o significado da vida. Quando ela começou, pensei que era uma revisão para a prova de ciências. Mas (como sou tolo), a questão era pura filosofia:
– Pai.
– Oi, filha.
– Assim, eu tenho essa pergunta… essa… eu queria saber, o que é a vida?
– Como assim, filha?
– A vida, pai. Isso que eu quero entender. O que é a vida? Eu fico todo dia com essa pergunta. Por que a vida, pai?
Eu digitava qualquer bobagem no computador nessa hora, paralisei uns 15 segundos, até que notei que precisava fechar a tela e conversar à altura.
Tentei ser convincente em alguma explicação sobre existência e propósito, falei de Deus e de como a vida é uma criação dele e vivemos para ele, nosso Pai. Mas sabia que não a supriria, não há argumento racional para isso. Porque uma coisa eu sei: esse é o tipo de pergunta que só nós mesmos podemos responder, é a busca existencial que nos cabe encontrar, é o colo divino que tem a nossa medida. E o que ela não sabe é que o pai dela se faz essas perguntas diariamente.
Semana passada, ela tocou uma música inteira no teclado. Eu voltava de uma viagem a trabalho e havia chegado em casa há pouco, então ela foi até o outro quarto e nos chamou para ouvir o que tinha aprendido. Fiquei em pé, encostado no batente da porta enquanto a olhava de frente. E ela, não a música, era tudo o que eu percebia. Os dedinhos pressionando as teclas de forma coordenada, aquele olharzinho inseguro lendo a partitura, as bochechas formando um sorriso quando acertava as notas. Aí eu chorei. Poxa. Olhando aquilo, tudo aquilo, vivendo aquilo, fiquei comovido. E abracei minha filha. Não exatamente pelo que ela fez, mas por ela e porque a fico observando fazendo essas coisas para nos deixar felizes, sem saber que tudo o que fazemos na vida é tentar fazer coisas que as deixem felizes.
E o significado da vida, esse que ela tanto procura todos os dias, para mim estava naquele instante.
* * *
Abri a porta de casa outro dia e elas estavam, as três, espalhadas pela sala enquanto algum musical passava na TV. Cecilia brincava em um canto quando me viu chegar. Ela deixou o brinquedo de lado (leia: arremessou no chão) e correu, cambaleante, em minha direção. Me abraçou as pernas e eu a peguei no colo e levantei bem no alto, para depois lhe dar um beijo. Então ela também fez um bico, mirou minha bochecha esquerda e deu aquele estalo. Me abraçou, abriu o sorriso, me encarou fundo nos olhos e soltou: “Papa!”.
Ela tem esse olhar que escrutina a gente e tudo ao redor. O mesmo olhar que revela tudo o que ela é. A Cecilia não tem mistério. Eu brinco que ela não é branca, ela é transparente. E amo enxergar nela a pureza da infância, essa autenticidade e liberdade em poder oscilar do pranto ao riso em segundos, em não se limitar às convenções. E penso no quanto disso me falta hoje. Ela tem medo do secador de cabelo, mas adora dormir ao som do aspirador de pó. Ela gosta de comer sozinha com o garfo, mas pede que a gente segure a mamadeira para ela. Ela agarra e penteia os pêlos da Lucy o tempo todo, mas tem aflição de passar a mão em bichinhos de pelúcia. Ela fala “não” quando não quer alguma coisa e fala “não” quando quer também.
Me encanto em perceber que estou vivendo, de novo, essa satisfação da paternidade, o privilégio de testemunhar mais um ser humano dar seus primeiros passos cambaleantes diante dos meus olhos, de ter uma menina pendurada em minha mão passeando pela rua enquanto me faz perguntas sobre a Peppa Pig, sobre brinquedos, sobre minha infância e, talvez, sobre o sentido da nossa existência. Esses dias tão mágicos e excepcionais da vida da gente que, numa fração de segundos, suplantam qualquer parte ruim, qualquer noite mal dormida, qualquer desejo individualista e superficial. E na mesma fagulha de tempo, tudo vai embora. Daqui a pouco ela me pega de surpresa, como a Nina, com perguntas difíceis. Daqui a pouco ela sai por aí com sua mochila nas costas.
Lembrei, outra vez, de uma história que vivemos há coisa de sete anos. Estávamos em férias, viajando para algum lugar que já não recordo. Era noite, a Nina dormiu e eu a carregava no colo. Já não lembro se estávamos em um avião ou um elevador, mas lembro que enquanto esperávamos alguma porta abrir, uma senhora, parada ao lado da Manú, nos observava. Ela contemplou a cena, parou o olhar sobre a Nina, sorriu por longos segundos e emendou:
– E na semana que vem ela fará 20 anos.
Já é tarde agora. As duas dormem juntas num quarto. Não resisto e vou até lá ver como estão. Faz bastante frio nesses dias e tentamos manter tudo bem fechado e aquecido. Puxo a coberta sobre a Nina, que se mexe a noite toda. Coloco mais uma manta em cima da Cecilia, que nunca pára de se mexer. Ajeito os travesseiros sob suas cabeças. Faço minha prece por elas.
Nos olhos, não tenho areia. Tenho talvez um cisco. E as observo admirado. De olhos bem abertos. Porque num piscar de olhos, a vida inteira passa.
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