Eu estava parado num engarrafamento na Marginal Pinheiros pela manhã, a caminho do trabalho. Em São Paulo, infelizmente, isso não é exceção – e quando você desemboca num trânsito desses parece que o relógio fica em câmera lenta, a vida se arrasta e absolutamente nada acontece, nunca chega. Os minutos passavam, o rádio ligado, eu tamborilava os dedos no volante, observava o movimento ao redor. À esquerda, o rio, morto, parado, marrom, a impressão é que se você se jogar naquela lama, ainda vai demorar uns 30 minutos até afundar. À frente e por todo lado, carros e mais carros, tão parados quanto as águas sem vida do rio. Motocicletas zunindo nos corredores entre os veículos, passando a 100 km/h e a dois dedos do meu retrovisor.
A Marginal, para mim, parece o retrato de um mundo pós-apocalíptico. É triste, seca, poluída, aquele filtro sépia enfumaçado distorcendo a imagem e as cores de tudo. As motos, muitas motos, acelerando violentamente, como numa cena do Mad Max. E à minha direita, finalmente, um muro alto e cinza separava o inferno do paraíso. Ali, poucos metros depois, atrás do concreto cheio de pixações de “Fora PT” (o mesmo onde se lia, anos atrás, o mesmo grito imperativo contra o FMI), a Cidade Universitária abriga a área com o menor índice de poluição no ar na cidade. Árvores enormes, alamedas verdes, passarinhos cantando, gente saudável correndo e uma raia de remo e canoagem com água limpa. Da vida em câmera lenta para a o pulsar dos pulmões a plenos ares. O caos e a paz divididos por um muro.
No carro, o rádio tocava notícia. Um correspondente internacional sediado no Oriente Médio fazia uma análise do panorama sociopolítico na região. “A que se deve o crescimento dessa onda de intolerância e ataques? Por que o Estado Islâmico atrai tantos jovens, do Ocidente inclusive, que aderem a um grupo terrorista? E essa onda de migração de refugiados para a Europa?”, perguntava o âncora.
“Em parte”, respondeu o analista depois de explicar o contexto, “atribui-se essa polarização ao silêncio dos moderados”.
A análise, basicamente, afirmava que há no mundo uma maioria de muçulmanos moderados, seguidores sinceros da religião e praticantes de uma doutrina baseada na paz a na tolerância. Mas essas vozes estão caladas, já não se manifestam. No lugar disso, o discurso de intolerância gritado pelos fundamentalistas ganha força. Não se pode culpar inocentes pelos atos criminosos dos terroristas, obviamente, mas a omissão dos líderes moderados ajuda na criação de um cenário de polarização. E, com cada vez mais ataques promovidos pelos ultra radicais, maior se torna a resistência do mundo ocidental ao islã – e às expressões religiosas que, de forma geral, passam a ser vistas como raiz dessa condição.
Ele completou dizendo que, por outro lado, há que se fazer uma crítica à forma como o Ocidente encara a expressão religiosa. Porque o escárnio também motiva esse silêncio. Charges e declarações antirreligiosas ofendem a radicais e moderados. Para esse grupo já acuado, cria-se uma situação contraditória: como sair em defesa de algo que se impõe contra sua crença mais íntima? No ponto em que chegamos, já não existe uma crítica dirigida exclusivamente ao pensamento fundamentalista. Há uma agressão, um míssil lançado contra todos os que creem e adotam uma religião como seu estilo de vida. Levantamos barreiras.
Enquanto pensava nisso, lembrei de uma notícia que li outro dia: há no mundo, hoje, mais muros separando fronteiras entre países do que havia na época da queda do Muro de Berlim. Quando a Alemanha, em um dia histórico, resolveu botar abaixo o muro que dividia o país, ainda havia outras 16 barreiras iguais erguidas mundo a fora. Hoje, temos 65. Separando fronteiras, povos e pensamentos. Crescem no mundo todo, manifestações de intolerância contra as diferenças (de raça, crença ou pensamento). Pessoas fogem de guerras, fogem do terrorismo que explode seus vilarejos e violenta suas crianças, deixam para trás suas casas, familiares e sua pátria em busca de esperança, de uma nova vida e dão com a cara em grandes barreiras erguidas diariamente.
O movimento migratório de refugiados do Oriente Médio para a Europa é o exemplo mais evidente disso porque tem ocupado a mídia nesses dias. Mas a África vive isolada de todo o mundo há séculos, abandonada em seu próprio fim miserável, enquanto nos escandalizamos apenas através de redes sociais. E aqui, em nossas cidades, crianças crescem em favelas, sem escola, sem perspectiva, escravizadas e condenadas a ocupar sub-empregos que mal lhe garantirão a subsistência. Suas mães frequentam nossos condomínios diariamente, mas vivem do lado de fora dos portões automáticos.
Temos mais divisões. No século XXI, no tempo da economia globalizada em que a China espirra e o planeta adoece, em que se debatem temas de interesse planetário e o Facebook conecta 1 bilhão de pessoas ao mesmo tempo, durante um único dia. A globalização é um livre trânsito que serviu ao Capital mas nunca às pessoas. Uma reportagem do jornal inglês Independent no ano passado revelou que, entre 162 países no mundo monitorados pelo Institute for Economics and Peace’s (IEP’s), apenas 11 não estão envolvidos em alguma guerra. Sim, 151 nações do planeta estão envolvidas, de alguma forma, em uma guerra. O Brasil está entre as 11 exceções.
Mas, ainda assim, também temos erguido nossos muros de barro e tijolinho baiano. Barreiras sociais, de ideologia política, de opção sexual, de ordem religiosa, de questões futebolísticas, de mobilidade urbana. No lugar de pontes, temos empilhado tijolos. No lugar de diálogo, temos cuspido ofensas. Ao invés de paz, cresce o ódio. Temos muito mais em comum e tão poucas diferenças, mas temos preferido nos apegar a essas pequenas exceções.
Sempre nos orgulhamos de ser um povo de paz, uma nação que se alegra ao exaltar sua diversidade. Mas agora temos caído nas armadilhas dessas pequenas divisões e nos apegado a cada uma delas com veemência, como se disso dependessem as nossas vidas. Até que a próxima grande questão apareça (na semana que vem, quem sabe) e pulemos para outro barco.
Esses debates meio idiotas que testemunhamos na internet são apenas uma pequena expressão de um tipo de sentimento que tem nos acometido há mais tempo.
Tenho falado disso com amigos próximos. Escutamos, cada vez mais estridentes, as vozes extremistas ecoarem pelos telejornais, púlpitos, redes sociais, assembleias e palanques políticos. Há, nessas vozes, que ficam nos empurrando para um lado ou outro da trincheira, um discurso nocivo que contraria as boas intenções que alegam defender.
Os moderados não podem se calar.
Contrariando o ditado popular, estamos falando aqui de política, futebol e religião. Sobretudo, religião. Especificamente, sobre o cristianismo que confesso.
Não há cristianismo na intolerância contra as diferenças, no preconceito racial, na homofobia, na defesa do uso de armas de fogo por civis, na redução da maioridade penal. Não há cristianismo na bancada evangélica, no show tele-evangelista nos horários nobres, na pregação da teologia da prosperidade. Não há cristianismo quando não se tem o senso de pertencimento a algo maior e o próximo como centro de nosso empenho sincero de promoção do amor, da inclusão e da paz.
Os primeiros cristãos – os discípulos que continuaram se reunindo depois da morte e ressurreição de Jesus – recebiam novos adeptos para seu iminente grupo atraídos, em boa parte, por sua simpatia. É o que diz a Bíblia no livro de Atos. Ainda segundo o mesmo relato de Lucas, eles ministravam o amor, curavam doentes, alimentavam os pobres e dividiam suas posses para que ninguém tivesse falta de nada.
Ainda é assim, acredite. Os bons são a maioria. Os honestos, os pacificadores continuam atuantes e perseverando diariamente. Estão recebendo refugiados, alimentando os famintos, estão estendendo suas mãos aos necessitados nos confins da Terra. Mas estão calados. Em um caso raro na história, os argumentos e pensamentos a serem combatidos pelos cristãos estão vindo de dentro e não de fora da igreja. Ultimamente, as principais mensagens contrárias aos ensinamentos de Jesus têm saído da boca de supostos líderes cristãos.
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Motoristas enfurecidos, refugiados sírios, terroristas, a crise política brasileira e as bobagens da internet.
Não podemos nos calar. O ódio dos doentes se perpetua em seu discurso de ódio e intolerância vociferado aos ventos. A indiferença pela dor do próximo se alastra com a falta de empatia e de amor pelos nossos semelhantes. A falta de esperança leva o homem a esperar que o pior aconteça, sempre.
Os moderados, os que procuram viver suas vidas sob a ótica de suas crenças (e não o contrário), são os que deveriam se manifestar, afinal. Se pedimos por vozes que nos representassem em algum momento, talvez agora seja hora de tentarmos nos fazer ouvir. Para servir de ponte, para abrir o diálogo, para pregar a paz e o amor em que acreditamos. Sob risco de toda forma de crença cair em desprestígio, sob a iminência de vermos a desesperança dominar o pensamento de uma geração inteira e nossa omissão ofuscar a mensagem que confessamos.
“Deus, salve-nos da irrelevância”, tem sido uma oração frequente para mim.
O trânsito anda, finalmente. O carro segue o fluxo, a vida seu rumo, o rio morto para seu leito. Alguém xinga um motoqueiro, que buzina de volta. Dirigimos em direção a uma zona cinzenta, não há destino bom se as coisas continuarem nessa inércia. Olho para a barreira de concreto à minha direita e tenho a vontade pixar outra mensagem por cima: “Fora daqui… Há vida, ar puro e pássaros cantando.”
Só precisamos derrubar o muro.
“O que me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons” (Martin Luther King)
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Ainda nessa linha:
Com licença, me desculpe
Eu quero menos
O que eu ganho com isso?
O engano da felicidade
85 pessoas e metade do planeta todo