Domingo à noite, clima ameno, avenida central da periferia. As ruas vazias, o lixo espalhado no meio-fio, as portas de aço fechadas, só uma pastelaria aberta, um cachorro dormindo na porta e meia-dúzia de pessoas esperando pelo ônibus no ponto.
O menino dormia em seu colo, a cabeça tombada sobre o ombro e ela tinha que se curvar um pouco para aguentar o peso todo com um braço só. Na outra mão, quatro sacolas cheias de roupas, vasilhas, os mantimentos para a semana e o fio do plástico pesado lhe cravando a pele nas dobras dos dedos.
Quando o SP-0846 recolheu aqueles últimos passageiros, ela ficou aliviada em poder encontrar um banco pra sentar. Colocou o menino de lado com a cabeça deitada sobre o colo, juntou as sacolas entre os pés e rendeu a cabeça no vidro da janela. Pelos seus olhos a cidade passava rápido, as avenidinhas movimentadas, a mistura das luzes das placas, dos semáforos, do neon, dos faróis. Do alto, sondava através das janelas dos carros, as famílias juntas, arrumadas, voltando de alguma celebração dominical.
Desceu do ônibus direto pela viela. O salto da sandália estalava e se arrastava pelo corredor. O menino crescia, estava pesado. Ameaçava chuva. O portãozinho de ferro rangeu quando ela abriu, deixou bater e seguiu até a casa dos fundos. Na TV ligada passava o Topa Tudo, no sofá, sentada, a senhorinha tirava um cochilo com uma bacia de pipoca no colo. Bateu devagar na porta.
– Dá licença.
– Ahn? Éé… Oi! Entra, menina. Tava aqui rezando um pouco.
– Desculpa incomodar.
– Magina, que nada, vem. Cheguei da igreja faz hora, tava te esperando. E já dormiu o meu rapazinho?
– Ih, esse aqui cansou bastante hoje, só correu o dia todo. No primeiro ônibus já estava entregue.
– Tanta inocência. Bota ele lá no quarto.
– Tá, vou ali, só um segundinho.
Atravessou o pequeno cômodo, a cozinha e seguiu lá para o quartinho dos fundos. Deixou cair num canto as sacolas, deitou o menino num colchão de berço que ficava no chão, tirou-lhe os tênis e foi fuçar a cômoda para pegar uma roupa limpa. Sorriu ao ver os Hot Wheels que lhe dava enfileirados no fundo da gaveta junto com os bilhetes. Vestiu nele um shorts, o cobriu com um lençol e acariciou seu cabelo até que suspirasse fundo antes de entrar num sono profundo.
Na cozinha, a senhora requentava algo no fogão.
– Vem, senta aí, toma uma sopa comigo.
– Obrigada, mas já está na hora. Tenho que chegar na casa da patroa antes de o Fantástico acabar.
– E tão te tratando direito naquela casa, menina?
– E tem outro jeito?
– Ai, Dolores, vê se te cuida. Você nem sabe como é que é essa gente. Porque não fala com a Ceição? Ela saiu de uma dessa e foi trabalhar num mercadinho. Trabalha até de domingo, mas pelo menos volta pra casa. Pelamordedeus, você sabe que eu morro de paixão pelo Jônatas, não é disso que tô falando, ele é um anjo, mas minha filha, esse menino aí precisa de você.
– Mas quem é que dá emprego pra alguém como eu? Quem é que confia?
– Você é boa, menina, não fala isso!
– Sou uma bandida – falava fitando o chão.
– Que isso… pensa no que Deus te fez, minha filha. Quanto livramento, pensa na beleza da vida.
– O que foi que ele me fez? Que alegria!? Ficar dois anos naquele inferno por causa de um infeliz? Fui parar naquela jaula porque estava cega! Eu achava bonito, achava romântico ele ficar me prometendo tudo aquilo, me dando flores, perfumes, amor, um filho, me chamando de “minha madame”. Ele falava que estava crescendo no serviço, que ganhava comissão e ia virar gerente. Eu nunca tive noção disso, de dinheiro, eu acreditava. Eu precisava acreditar. Burra! Aí, ele… aí ele morre. Me leva três tiros no peito, me deixa sozinha com o menino, me larga na casa, me chega a polícia e tem toda aquela droga lá no quartinho do fundo. Meu herói era um bandido, a senhora imagina? Eu achava que vivia um conto de fadas, mas era só um sonho. A minha realidade é esse pesadelo. Eu fiquei dois anos naquela cadeia, mas a vida inteira já acabou pra mim e eu continuo aqui. Que chance eu tenho? Deus me abandonou naquele dia e não me ensinou o caminho de volta. O que sobrou pra mim, Dona Graça?
Desandava então no silêncio. Travava os lábios, toda memória represada, nenhuma lágrima. Os dedos espremiam no antebraço a tatuagem que lhe fizeram na primeira semana encarcerada, a cicatriz que nunca a deixava esquecer da ferida que um dia se abriu e ainda doía. Ela esfregava o chão todo dia com tanta força, deixava tudo brilhante com seu empenho, tudo o que queria era se sentir limpa.
– Ele nunca te deixou, Dolores. Misericórdia, não se entrega assim, não. Confie em Deus, ele sempre esteve com você, menina. E a vida a gente reconstrói, num tombo depois do outro, tem que levantar. Tem que levantar! Você é moça ainda, pode ter de tudo. E lembra que você tem seu filho, esse tesouro que te ama mais que tudo, passa a semana falando de você em tudo que é canto. Faz diferente com ele, é sua chance.
Dolores ganhou um abraço, os ombros cederam. Então, se recompôs, ajeitou o cabelo atrás das orelhas, pendurou a bolsa no ombro e, antes de sair, encarou a senhorinha nos olhos.
– Só Deus pra lhe pagar o bem que me faz, dona Graça. Tomara eu consiga um dia ver tudo assim de um jeito bom, como a senhora.
Voltou ainda até o quarto para ver o menino uma última vez. Beijou-lhe a testa, fez uma prece e desejou no íntimo que ele se tornasse um homem como o que ela nunca teve.
– Mãe? – ele acordou.
– Oi.
– Eu dormi?
– Arrâm. Faz tempo. Mas descanse agora, fio, amanhã você tem escola.
– Tá.
– Eu te amo, meu príncipe.
– Você já tá indo?
– Já.
– Não queria.
– Eu sei, mas precisa. Sexta eu volto. Vou te trazer um presente.
– Eu não queria presente, queria não… eu queria vo..
– Jônatas, a gente já conversou. Mas fique em paz, eu vou tentar umas coisas, depois te conto.
– Vou te esperar.
– Se cuida direitinho. Obedece a Dona.
– Ta. Que Deus te acompanhe.
Ela suspirou.
– Nunca me deixou.
Lá fora, o céu desabava em água. Em certo momento, ela descalçou as sandálias para conseguir subir as ruas encharcadas até o ponto, onde um casal de namorados se abrigava sob um guarda-chuva. Chegaria atrasada, o último ônibus para a Zona Norte deveria demorar ainda um tanto. Do outro lado da rua, a tevê na padaria mostrava a abertura do Fantástico.
– Tomara que a patroa deixe a porta no trinco.
A chuva lavava o céu, as ruas, lavou-lhe a alma. Agora era esperar.
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