O semblante

Brasilia

Há uma mensagem entalhada na cruz; há um eco no túmulo vazio.

Somos pessoas remidas, somos seres eternos. Ao crermos em Jesus, em sua mensagem e na ressurreição, recebemos por antecipação a dádiva da eternidade. Somos salvos, isentos de culpa, somos amados e livres para ser e amar. A consciência disso deveria naturalmente transformar nosso semblante e inspirar nossa maneira de viver integralmente. Deveríamos ser mais gratos, mais afetuosos, caridosos, servis, menos egoístas. Deveríamos refletir o caráter gracioso de Jesus Cristo no mundo em cada fôlego de vida. Porque Deus, o dono do Universo, o criador de todas as coisas, o Pai, nos ama, habita em nós e nos chama de filhos.

Mas a obscuridade do mundo nos desvia o olhar. Deixamo-nos dispersar e perder a rota. Somos afetados pelas circunstâncias, pelas sombras que se projetam sobre nossas almas, pela dúvida que paira no canto do ouvido, pelo pecado que nos isola. Permitimos que a soma dos fatos cotidianos nos disperse. Os erros, nossos e dos outros, as notícias do cotidiano, da política, de guerras, um funk tocando alto, um cadarço desamarrado, uma discussão em casa, um pastor corrupto em evidência, uma tempestade que surge sem avisar. E tudo isso é tão pequeno, é fugaz, mas deixamos que questões superficiais, efêmeras e passageiras nos desviem da rota e afetem nosso senso sobre a realidade.

E a realidade não é, absolutamente, o que se passa sob nosso olhar inquieto. A realidade suprema, devastadora e pungente, é a eternidade, a paz, o amor transcendente da graça divina nos tomando nos braços para sempre.

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Noite de domingo

Domingo à noite, clima ameno, avenida central da periferia. As ruas vazias, o lixo espalhado no meio-fio, as portas de aço fechadas, só uma pastelaria aberta, um cachorro dormindo na porta e meia-dúzia de pessoas esperando pelo ônibus no ponto.

O menino dormia em seu colo, a cabeça tombada sobre o ombro e ela tinha que se curvar um pouco para aguentar o peso todo com um braço só. Na outra mão, quatro sacolas cheias de roupas, vasilhas, os mantimentos para a semana e o fio do plástico pesado lhe cravando a pele nas dobras dos dedos.

Quando o SP-0846 recolheu aqueles últimos passageiros, ela ficou aliviada em poder encontrar um banco pra sentar. Colocou o menino de lado com a cabeça deitada sobre o colo, juntou as sacolas entre os pés e rendeu a cabeça no vidro da janela. Pelos seus olhos a cidade passava rápido, as avenidinhas movimentadas, a mistura das luzes das placas, dos semáforos, do neon, dos faróis. Do alto, sondava através das janelas dos carros, as famílias juntas, arrumadas, voltando de alguma celebração dominical.

Desceu do ônibus direto pela viela. O salto da sandália estalava e se arrastava pelo corredor. O menino crescia, estava pesado. Ameaçava chuva. O portãozinho de ferro rangeu quando ela abriu, deixou bater e seguiu até a casa dos fundos. Na TV ligada passava o Topa Tudo, no sofá, sentada, a senhorinha tirava um cochilo com uma bacia de pipoca no colo. Bateu devagar na porta.

– Dá licença.

– Ahn? Éé… Oi! Entra, menina. Tava aqui rezando um pouco.

– Desculpa incomodar.

– Magina, que nada, vem. Cheguei da igreja faz hora, tava te esperando. E já dormiu o meu rapazinho?

– Ih, esse aqui cansou bastante hoje, só correu o dia todo. No primeiro ônibus já estava entregue.

– Tanta inocência. Bota ele lá no quarto.

– Tá, vou ali, só um segundinho.

Atravessou o pequeno cômodo, a cozinha e seguiu lá para o quartinho dos fundos. Deixou cair num canto as sacolas, deitou o menino num colchão de berço que ficava no chão, tirou-lhe os tênis e foi fuçar a cômoda para pegar uma roupa limpa. Sorriu ao ver os Hot Wheels que lhe dava enfileirados no fundo da gaveta junto com os bilhetes. Vestiu nele um shorts, o cobriu com um lençol e acariciou seu cabelo até que suspirasse fundo antes de entrar num sono profundo.

Na cozinha, a senhora requentava algo no fogão.

– Vem, senta aí, toma uma sopa comigo.

– Obrigada, mas já está na hora. Tenho que chegar na casa da patroa antes de o Fantástico acabar.

– E tão te tratando direito naquela casa, menina?

– E tem outro jeito?

– Ai, Dolores, vê se te cuida. Você nem sabe como é que é essa gente. Porque não fala com a Ceição? Ela saiu de uma dessa e foi trabalhar num mercadinho. Trabalha até de domingo, mas pelo menos volta pra casa. Pelamordedeus, você sabe que eu morro de paixão pelo Jônatas, não é disso que tô falando, ele é um anjo, mas minha filha, esse menino aí precisa de você.

– Mas quem é que dá emprego pra alguém como eu? Quem é que confia?

– Você é boa, menina, não fala isso!

– Sou uma bandida – falava fitando o chão.

– Que isso… pensa no que Deus te fez, minha filha. Quanto livramento, pensa na beleza da vida.

– O que foi que ele me fez? Que alegria!? Ficar dois anos naquele inferno por causa de um infeliz? Fui parar naquela jaula porque estava cega! Eu achava bonito, achava romântico ele ficar me prometendo tudo aquilo, me dando flores, perfumes, amor, um filho, me chamando de “minha madame”. Ele falava que estava crescendo no serviço, que ganhava comissão e ia virar gerente. Eu nunca tive noção disso, de dinheiro, eu acreditava. Eu precisava acreditar. Burra! Aí, ele… aí ele morre. Me leva três tiros no peito, me deixa sozinha com o menino, me larga na casa, me chega a polícia e tem toda aquela droga lá no quartinho do fundo. Meu herói era um bandido, a senhora imagina? Eu achava que vivia um conto de fadas, mas era só um sonho. A minha realidade é esse pesadelo. Eu fiquei dois anos naquela cadeia, mas a vida inteira já acabou pra mim e eu continuo aqui. Que chance eu tenho? Deus me abandonou naquele dia e não me ensinou o caminho de volta. O que sobrou pra mim, Dona Graça?

Desandava então no silêncio. Travava os lábios, toda memória represada, nenhuma lágrima. Os dedos espremiam no antebraço a tatuagem que lhe fizeram na primeira semana encarcerada, a cicatriz que nunca a deixava esquecer da ferida que um dia se abriu e ainda doía. Ela esfregava o chão todo dia com tanta força, deixava tudo brilhante com seu empenho, tudo o que queria era se sentir limpa.

– Ele nunca te deixou, Dolores. Misericórdia, não se entrega assim, não. Confie em Deus, ele sempre esteve com você, menina. E a vida a gente reconstrói, num tombo depois do outro, tem que levantar. Tem que levantar! Você é moça ainda, pode ter de tudo. E lembra que você tem seu filho, esse tesouro que te ama mais que tudo, passa a semana falando de você em tudo que é canto. Faz diferente com ele, é sua chance.

Dolores ganhou um abraço, os ombros cederam. Então, se recompôs, ajeitou o cabelo atrás das orelhas, pendurou a bolsa no ombro e, antes de sair, encarou a senhorinha nos olhos.

– Só Deus pra lhe pagar o bem que me faz, dona Graça. Tomara eu consiga um dia ver tudo assim de um jeito bom, como a senhora.

Voltou ainda até o quarto para ver o menino uma última vez. Beijou-lhe a testa, fez uma prece e desejou no íntimo que ele se tornasse um homem como o que ela nunca teve.

– Mãe? – ele acordou.

– Oi.

– Eu dormi?

– Arrâm. Faz tempo. Mas descanse agora, fio, amanhã você tem escola.

– Tá.

– Eu te amo, meu príncipe.

– Você já tá indo?

– Já.

– Não queria.

– Eu sei, mas precisa. Sexta eu volto. Vou te trazer um presente.

– Eu não queria presente, queria não… eu queria vo..

– Jônatas, a gente já conversou. Mas fique em paz, eu vou tentar umas coisas, depois te conto.

– Vou te esperar.

– Se cuida direitinho. Obedece a Dona.

– Ta. Que Deus te acompanhe.

Ela suspirou.

– Nunca me deixou.

Lá fora, o céu desabava em água. Em certo momento, ela descalçou as sandálias para conseguir subir as ruas encharcadas até o ponto, onde um casal de namorados se abrigava sob um guarda-chuva. Chegaria atrasada, o último ônibus para a Zona Norte deveria demorar ainda um tanto. Do outro lado da rua, a tevê na padaria mostrava a abertura do Fantástico.

– Tomara que a patroa deixe a porta no trinco.

A chuva lavava o céu, as ruas, lavou-lhe a alma. Agora era esperar.

Reflexos (uma foto para a quarta-feira)

Essa semana, postei essa foto aí no twitter. Eu estava no escritório, quando um amigo alertou sobre o pôr-do-sol que tínhamos na janela. Fiz a foto com o celular e postei com a observação: “Olhando esse pôr-do-sol, o rio Pinheiros até parece bonito.”

Sem nenhuma pretensão, sem crítica, eu só queria repartir à toa a bela imagem da minha cidade (bom, se você não vive em São Paulo, precisa saber que o Pinheiros é um rio poluído e totalmente sem vida – à exceção de uma família de capivaras mutantes que insiste em nadar por ali de vez em quando).

Então, passado um tempo, o Sérgio mandou um comentário na foto que me motivou a postar isso tudo por aqui: “Querido amigo. O rio é lindo quando reflete a luz… Assim, mesmo do jeito que somos, podemos ser belos quando refletimos Deus.”

O Sérgio é um poeta, ele é romântico de um jeito que eu não sou. E de certa forma, eu acho que ele está certo. Somos imperfeitos, sujos, insistimos em caminhar sobre a linha tênue entre a santidade e o pecado. Por isso somos humanos. Por isso, quando o caráter do Pai transparece em nossas vidas, refletimos sua beleza e graça.

-LHM

Jesus não tinha inimigos

por Luiz Henrique Matos

Quando ensinava nas sinagogas, pelos caminhos, pelas cidades ou à beira do mar, eles estavam ali. Sempre presentes, contrastavam com a multidão sedenta e admirada. Assistindo inconformados às manifestações e milagres, punham-se aqueles homens de roupas impecáveis, postura superior e a expressão fria da condenação nos olhos.

Eles o odiavam. Queriam entender as motivações por trás de tudo aquilo e revelar sua farsa. Queriam pegá-lo desprevenido, ter um motivo para expor sua fraqueza e a mentira de seu discurso. Mas nunca conseguiram.

Mas ele não, ele não os via como adversários. Jesus não tinha inimigos. Fariseus, escribas e sacerdotes não eram pedras em suas sandálias, atrapalhando a caminhada. Ao contrário, eles também eram o alvo de sua mensagem. Jesus os via como filhos que teimavam em não reconhecer suas próprias limitações.

Ele os conhecia, sabia quem eram, compreendia que seus corações estavam repletos de indagações a seu respeito. Eram como os tantos outros que o seguiam, mas ao ouvir sobre a graça, a esperança e o amor de Cristo, não podiam acreditar naquilo como verdade. Não era possível, isso contrariava toda a história e a base de suas crenças.

Jesus viveu por eles também. Ele sabia que não o aceitariam, mas ainda assim, ele os amou e consagrou-se por aqueles homens.

Envoltos pela superficialidade de seus cargos e posições, eles queriam calar-lhe a voz para que o “falso messias” não atrapalhasse seus costumes e tradições. Aquele Jesus, um incendiário social, precisava parar com seus milagres e o discurso que lhes tirava o domínio sobre o povo.

Eles o perseguiam. Eles o odiavam. Eles queriam entender. Tinham dúvidas. Tinham medo. Eles queriam matá-lo… Ele queria morrer por eles.

Eles desejavam tirar-lhe a vida, mas Jesus sonhava levá-los a viver uma nova vida ao seu lado.

E assim se cumpriu.

Na cruz, Jesus morreu pela humanidade toda. E ele morreu pelos fariseus que tramaram sua prisão, pelos sacerdotes judeus que lhe cuspiram no rosto, pelos guardas que o açoitaram, pela multidão que ainda há pouco o seguia fervorosa, mas que agora, com o mesmo fervor, o condenava aos brados: “crucifica!”.

E ainda ali, inabalável, ele amou.

“Porque Deus amou o mundo…” (João 3:16).

Amou porque essa era a sua condição, porque esse é o seu olhar pelos homens, esse era o presságio da história que ele já conhecia. Pendurado numa cruz, sangrando e ofegante, Deus não se ofendeu com os que lhe impuseram essa dor.

Não podemos saber o que lhe passou à mente. Nunca compreenderemos como é possível que isso tenha acontecido. Jamais seremos capazes de entregar nosso filho para morrer no lugar de pessoas que o perseguiram. Mas ao olhar seu gesto, pelo lampejo da história, pelo fato consumado, sabemos que esse amor nos comprou e que Deus, o próprio Criador, nos adotou como filhos.

Porque Deus não tem inimigos entre os homens. Ele não entra no campo de batalha para guerrear com sua criação. O Pai não olha nossas vestes, não se importa com nossa posição social ou opinião a seu respeito, porque isso não é condição para seu amor paterno e eterno. Nós somos o alvo do seu sacrifício.

“Deus nos amou primeiro.” (1 João 4:19).

Jesus ama os fariseus, os políticos, os ladrões, os ateus, as prostitutas, os publicanos, os pecadores, os discípulos, os traidores. Ele ama até os cristãos.

Deus não se importa com o que somos, ele se importa com quem somos. Ele não quer saber como estamos, ele quer que estejamos nele, guardados em seus braços, remidos por seu amor, lavados em sua pureza, atentos à sua voz, felizes, juntos, em Deus.

Nunca o entenderemos, não conseguimos racionalizar seu gesto, não sabemos como retribuir. Por isso, nos prostramos e adoramos.

“Deus é amor. Todo aquele que permanece no amor permanece em Deus, e Deus nele.” (1 João 4:16).

Arrependimento

por Luiz Henrique Matos

Deus não é como nós. Ele não se ofende, não se ressente, não fica com raiva quando traímos sua confiança. Ele vê o nosso erro e engole seco, sente a dor do pai que não quer ver seu filho caminhando em direção à própria destruição. Ele chora em silêncio, sozinho e lamenta.

“Ahh, meu filho… como eu gostaria que você não tivesse feito isso.”

E às vezes até esperamos que ele nos castigue. Queremos uma bronca dura, um tapa na cara, uma indulgência algo que nos faça pagar pelo erro que cometemos e, de alguma forma, nos alivie o remorso.

Mas ele não faz. Ele é sempre melhor do que nós. O amor é sua essência e ele se compadece, ele perdoa, estende os braços esperando para nos abrigar, morre em nosso lugar para nos dar de volta a vida. Ele paga o preço da nossa culpa.

E isso dói. Dói o sentimento de remorso, a afiada lâmina da culpa nos rasgando por dentro, a humilhação do nosso orgulho ferido. Como é amargo o gosto da consciência do erro, A cruz de Cristo parece uma luz ofuscante demais, para a qual não conseguimos mais olhar.

“Pai, se for possível, me perdoe! Errei outra vez.”

Então, mais uma vez ele chora. Mas de alegria incompreensível. Então, o pai faz festa para o filho perdido que regressa. Ele não quer nada em troca, ele só nos quer de volta. Ele limpa a casca de sujeira que nos envolve, nos dá água fresca e comida quente, prepara um descanso numa cama macia. E abrigados em seus braços, ele ainda nos chama de amados, ele cala a nossa voz e sussurra sua canção de ninar

“Não diga, não diga nada… Minha graça, minha graça é o que basta.”

Sentado em sua imensa cadeira de balanço, o pai está feliz vendo sua criança que agora dorme. Porque o filho que caminhava distante e perdido em direção à morte voltou para casa.

E os anjos silenciam e observam. O exército do céu cerca a singela cena, são testemunhas do amor vivo, são os olhos eternos contemplando a razão de o mundo ter sido criado: o homem em sua condição de filho dependente e o Pai… o Deus que só quer ser amado.