por Luiz Henrique Matos
Numa noite dessas, depois da alucinação toda de outro dia cheio no trabalho e a paralisia toda de outro dia entupido no trânsito de São Paulo, cheguei em casa mais tarde, mais estressado e cansado que o habitual. Mas, depois de passar pelo meu Portal Mágico da Paz – ou, porta da sala adentro – segui a rotina ritualista e purificadora: beijei minhas meninas, conversamos um pouco, comi algo, tomei banho, conversamos outro pouco e vimos TV até que deu a hora de a Nina ir pra cama. Banheiro, escovação, um protesto, pijama, um copo d’água, um beijo na mãe, uma enrolada no pai, uma oração, várias interrupções e, sem falta, a historinha do dia.
E como fazemos diariamente, escolhemos juntos uma história para eu contar. Nessa hora, pode ser que nos aventuremos pela septuagésima vez através de um dos livros da estante dela, por uma narrativa resgatada na lembrança (leia-se: historinha clássica sem livro) ou “alguma coisa de quando você era pequeno”, como ela costuma pedir. A verdade, é que as historinhas são o grand finale do nosso dia como pai e filha, é quando encostamos juntos por alguns minutos na cabeceira da cama, longe da correria, de celulares, televisores, computadores ou outros estímulos digitais e unimos nossa imaginação em algum ponto, uma pequena saga que habita fora – ou muito dentro – de nossas mentes. Todos os dias, um capítulo novo, misturando as nossas experiências cotidianas com a ficção e virando uma página, uma etapa e uma metáfora da vida.
Mas naquela noite, quando entramos no quarto, notei que a cama dela estava inteira ocupada por peças de Lego.
– Tava brincando de Lego, Nina?
– Sim. Essa é uma casa que eu tô construindo – era uma sequência de peças grudadas umas nas outras, enfileiradas, formando ainda a planta baixa da construção toda.
– Que linda.
– Pai, você quer montar comigo?
– Quero. Mas hoje não, tá? Agora é hora de dormir. Vamos arrumar essa bagunça.
– Tá.
Esqueci o assunto em cinco minutos, a cabeça estava cheia. Mas no dia seguinte, à noite, quando ia para meu quarto e olhei pelo corredor, notei que a pequena construção colorida estava ali no chão, ao lado da caixa com as peças e havia avançado um pouco mais, com mais detalhes e as paredes começando a ser erguidas.
Senti-me péssimo. Poucas coisas me frustram tanto quanto perceber que deixei de honrar um compromisso com a Nina. E não é porque ela se lembra da promessa não cumprida e me recorda disso também, mas porque eu, de fato, gosto de sentar ao lado dela, mergulhar um pouco no seu universo e viver aquilo ao seu lado. Fantasiar, deixar as coisas serem, por alguns minutos, como gostaríamos que fossem, simplesmente porque temos o controle da situação.
Ela cria, constrói, compõe mundos inteiros, apenas com um punhado de lápis coloridos e me guia pelas mãos em suas aventuras. Naqueles instantes, a gente esquece a correria toda e tem a sensação de que pode viver nisso, jogar de lado o peso do cotidiano, retroceder no tempo uns 27 anos e lembrar de como era tudo e ficar ali, de short, camiseta e chinelo, sentado na rua da vila, olhando uma formiga atravessar a calçada com uma folha verde nas costas e fazendo de conta que eu era o terrível gigante de quem ela se escondia.
Mas, talvez o mais curioso dessa relação das crianças com a fantasia, seja notar que elas não vivem aquilo como uma experiência momentânea, um faz-de-conta premeditado. Ao contrário, elas mergulham de forma tão natural e intensa como se pudessem assumir aquela verdade para si. Para elas, cada brincadeira é real tanto quanto o que se pode tocar. Para nós, funciona como uma espécie de fuga da realidade nos momentos em que ela quase nos sufoca.
Às vezes, julgamos tudo isso como uma bobagem, aprisionamos nossa infância nas fotografias e avaliamos as nossas crianças como seres imaturos, inferiores e despreparados. E tentamos conduzi-los, adestra-los e determinar suas escolhas em conformidade com algum raio de visão do mundo que elaboramos ou lemos em alguma revista no salão do cabeleireiro.
Tudo isso é mentira. Eles não tem nada de menores. É bem possível que seja dessa “grandeza” infantil que tanto carecemos. Essa maturidade de não se deixar influenciar por pequenos problemas, a nobreza de não julgar, a confiança integral de que o pai é capaz de suprir e providenciar o que for necessário.
Olhamos a vida do alto, mas somos tão, tão pequenos. Tentamos enquadrar a vida numa caixa, tentamos controlar a situação, tentamos e tentamos em vão e, diria o sábio rei, só “corremos atrás do vento”.
Jesus falou disso também, da pureza das crianças e tudo, advertiu sobre o quanto é fundamental que sejamos como elas para entender – e habitar – em seu Reino. E vivia cercado delas, deixava que cantassem. Pode imaginar? Deus vivendo entre os homens, andando na Terra, com todo monte de atribuições, decisões e estresse que esse “cargo” representa? E ensinava sobre a importância de alimentarmos um coração ingênuo, desinteressado e sincero.
Um reino de crianças. Um céu colorido, divertido, sem o peso de ontem ou a preocupação de amanhã.
– Papai, como é que a gente vai parar lá no céu?
Eu respirei fundo. Acessei, nos porões da mente, o pouco de teologia que me atrevi a estudar e o vasto (arrãm) repertório de releituras bíblicas e psicologia familiar que adquiri. E engasguei. Fiquei quieto por um minuto, dois e então tentei mudar de assunto. Tive algum sucesso, a conversa enveredou por alguma superficialidade qualquer, mas foi ela, instantes depois, que concluiu:
– Pai, vai ser assim: vai ter uma festa no céu e Deus vai chamar a gente. E vou com um brinco, um anel e um vestido de princesa.