Do direito de atirar pedras

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“A suprema tentação é a maior traição: fazer a coisa certa pelo motivo errado.” (T. S. Eliot)

Atirar pedras nos outros é um direito garantido por lei em certos países. Pelo que apurei, ao menos dez nações – entre elas, Irã, Somália, Indonésia, Arábia Saudita e Paquistão – ainda tem o apedrejamento como punição para crimes considerados graves.

Funciona assim: a pessoa é pega em flagrante, vai presa e segue todo processo de julgamento. Se condenada, marcam a data do apedrejamento. No dia agendado, um buraco com pouco mais de um metro de profundidade é cavado no chão. Mulheres são enterradas até o pescoço e homens até o quadril. Um grupo se reúne em volta do réu e, dado o sinal, o juiz atira a primeira pedra. A partir daí os demais seguem o rito. Como a parte do corpo exposta é bem pequena, o objetivo é acertar a cabeça. As pedras devem ser grandes, de forma que sejam capazes de matar. De tempos em tempos, um agente confere se a pessoa já está morta. Se não estiver, seguem arremessando as pedras até que o óbito seja confirmado. Ah, sim, a pessoa pode salvar a própria vida se conseguir se libertar do buraco e fugir enquanto as pedras são atiradas contra ela.

É hediondo. Eu leio, releio, reflito e não consigo acreditar que sejamos realmente capazes de executar alguém por esses meios. É de um primitivismo tamanho que é difícil imaginar que isso de fato aconteça no mundo de hoje. O homem aprendeu a voar, chegamos ao espaço, aceleramos partículas, temos refrigeradores na cozinha para preservar alimentos, descobrimos e reconstruímos esqueletos de dinossauros com centenas de milhares de anos, conectamos o mundo através de uma rede de computadores e fazemos cirurgias de alto grau de complexidade usando técnicas pouco invasivas e braços mecanicamente guiados. E ainda matamos nossos vizinhos com pedradas na cabeça.

Vale lembrar que o objetivo do apedrejamento é humilhar o criminoso em uma morte vagarosa. A punição não é apenas física, fosse assim um tiro na testa resolveria o problema de forma ainda mais rápida e eficaz (esses mesmos países também praticam outras formas de execução). A ideia do apedrejamento é a exposição pública, é punir pelo exemplo, é fazer com que o condenado se arrependa e pague pelo mal que cometeu.

Fossem mais espertos, aiatolás, ditadores e governantes dessas nações poderiam adotar medidas mais aceitas pela comunidade internacional e diplomaticamente adequadas ao redor do mundo para garantir o mesmo tipo de exposição pública: bastaria que liberassem o acesso ao Facebook em seus países.

Haveria, inclusive, alguns avanços no processo de apedrejamento: em redes sociais, mais gente participa do ato, o que faz com que o condenado seja rapidamente executado. O propósito principal de humilhação e exposição pública é imbatível. Diminuem também as chances de condenado conseguir fugir da punição e o processo de julgamento é popular, movido pela massa sedenta por descontar sua raiva, o que em certa medida tira o peso da decisão das costas de um juiz. O primitivismo é o mesmo, a irracionalidade dos gestos também e a motivação, acredito, segue os mesmos instintos.

É hediondo. Eu leio, releio, reflito e não consigo acreditar que sejamos realmente capazes de expor alguém por esses meios. É de um primitivismo tamanho que é difícil imaginar que isso de fato aconteça no mundo de hoje. O homem aprendeu a voar, chegamos ao espaço e tal… E ainda agredimos nosso semelhante por pensar diferente da gente.

Há patrulheiros vigilantes. Há diversos deles, navegando pelas redes sociais, assistindo diligentemente vídeos no YouTube, rastreando cada tuíte, cada foto no Instagram, cada texto publicado à procura de um deslize, um erro, um ponto de dúvida que justifique seu dedo em riste, que condescenda com a mão inquisidora, que possa finalmente sofrer sua punição. E, juízes que somos todos, atiramos a primeira pedra. E a multidão acompanha.

O critério para se decidir se o crime é grave ou não cabe tão somente ao juiz e seus seguidores. Não há lei. Basta não concordar, basta votar diferente, torcer para outro time, gostar de outra banda. Basta compartilhar aquele post polêmico, basta assistir Big Brother, não ser da mesma religião, não ser igual, ou não ser diferente. Basta estar ali, rolando sua tela, na mira de alguém e, de repente, uma pedrada lhe atinge a cabeça.

* * *

No Novo Testamento há uma passagem clássica que conta sobre o dia em que um grupo leva até Jesus uma mulher flagrada em adultério. Pela lei, ela deveria ser apedrejada até a morte. Querendo comprometer Jesus em seu julgamento, eles a colocam diante dele e questionam se a lei deveria ser cumprida. Eles tinham pedras nas mãos. Queriam, com isso, condenar a mulher, mas também encontrar caminho para incriminar Jesus, que vinha pregando o amor e desconstruindo conceitos arraigados da lei. A resposta de Jesus, tão conhecida, virou um ditado que ainda repetimos com frequência: “Quem nunca pecou, que atire a primeira pedra”.

Ninguém ousou dar o primeiro golpe. Deixaram a pobre mulher ali com Jesus e partiram.

No entanto, note, os inquisidores da mulher adúltera (alguns intérpretes do texto bíblico afirmam que se tratava de Maria Madalena) não a apedrejaram porque a lei os impediu. Pela regra, esse era um direito que tinham poderiam tê-lo exercido, aprovando Jesus ou não. Mas, abandonaram sua condição de acusadores porque foram constrangidos por Jesus com uma pergunta. Um espelho. Diante deles, a mulher em pecado era um reflexo de sua própria condição moral. Não de adúlteros, mas de pecadores. Os seres falhos que também eram, era a imagem da mulher jogada no chão de terra à sua frente.

Porque é no espelho que nos vemos, enxergamos nosso reflexo, nossa fragilidade, as rugas e a pequenez de nosso estado. No espelho, não vemos o outro, só a nós mesmos, diante dos defeitos que talvez só nós conheçamos. Ali, o dedo acusatório aponta para nós mesmos, as ofensas rebatem e voltam, a pedra arremessada estilhaça nossa própria imagem.

Espelhos.

Talvez seja isso. Diante da tela do computador ou do celular desligada, naquele instante de reflexão, seria melhor se no lugar de pedras, tivéssemos nas mãos o reflexo de nossa condição.

* * *

O problema são os outros, dizemos o tempo todo. O problema é da internet, o problema são as redes sociais, alguém diz. Então vamos acabar com as pedras. Mas, acabar com as pedras não resolve. O problema está no braço que as arremessa, outro poderia dizer. Mas amarrar as pessoas também não resolve.

O problema está no que nos motiva, eu diria. Está em olhar para o outro e não nos enxergarmos nele. O problema está em não amar o próximo, em não parar para pensar em suas motivações e perceber que também erramos.

Nos sentimos em meio a um fogo cruzado e nunca na posição de acusadores. Mas somos parte ativa do conflito. Porque atirar pedras, tecer comentários ácidos e levantar contendas são apenas gatilhos, atitudes que resultam de uma perda profunda que tem acontecido dentro de nós: a insensibilidade ao sentimento do outro.

E se fôssemos julgados com o mesmo critério que julgamos? E se fôssemos amados com a mesma medida que amamos?

Há muito, isso deixou a esfera política e virtual. Há tempos deixou de ser contra inimigos históricos e estranhos anônimos. Atiramos pedras com quem convivemos cotidianamente, desfazemos amizades, ignoramos a presença dos nossos semelhantes que estão segregados em nossa sociedade, vivendo à margem da dignidade, ofendemos gratuitamente o outro com nossa arrogância, diminuímos aqueles com quem dividimos um teto ao não reconhecer seu valor. Deixamos nossa atenção plena ser usurpada pelo entretenimento superficial que nos anestesia e emburrece. Nas pequenas e nas grandes coisas, temos fechado os olhos para o próximo. O próximo que dorme ao lado, o que vive ao lado, o que caminha ao seu lado na rua.

Ignoramos diferentes perspectivas, rechaçamos opiniões e atiramos pedras porque o outro… – e sua opinião e sua dor e sua história e seus anseios e suas dúvidas e sua vontade – o outro basicamente não nos interessa.

Onde abunda o egoísmo sempre falta compaixão.

Jesus chamou isso de amor. E ele disse que amar era o resumo de toda e qualquer lei ou mandamento.

Quando viveu entre nós como homem, na história que lemos e relemos nos evangelhos, Deus não queria salvar a humanidade do diabo, ele queria nos salvar de nós mesmos. Os exemplos, as mensagens, as atitudes, o sacrifício e a história de Jesus não revelam propriamente uma batalha entre Deus e um inimigo, nada entre duas forças espirituais opostas. A Bíblia mostra que Jesus veio salvar o homem do egoísmo, da tendência de procurarmos apenas nossos próprios interesses, ele veio nos curar de cegueira, da insensibilidade na alma, nos tirar da lama espessa em que afundávamos e nos purificar para que pudéssemos ser livres.

Ao viver entre nós, ele se ofereceu como imagem que pudesse nos servir de inspiração. Ao se tornar o ser humano perfeito, nos mostrou o caminho livre e perfeito que desenhou para a humanidade. Ao se revelar homem, Deus expôs diante de nós sua face bondosa para que pudéssemos contemplar o Criador e, finalmente, nos enxergar em nosso Pai.

Um espelho.

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O mundo que eu carrego nos braços

Estou andando pelo quarto, com a Cecília no colo há cerca de 30 minutos. Na verdade, já faz uns três ou quatro dias que a Manú e eu estamos nessa. Ela está febril, com algum mal estar e só choraminga, a toda hora. Não dorme direito, tira uns cochilos e já acorda berrando alto, muito alto. Ela só para de chorar, veja só, quando a pegamos no colo.

Tem um livro ou artigo ou ensaio, vai saber, que diz que na França os pais deixam os filhos chorarem por uns 10 minutos antes de atendê-los. Esse texto defende um modelo de criação diferente e diz que, como resultado desse tipo de tratamento, na França as crianças não fazem birra. Há quem diga que deveríamos copiar os franceses. Mas a França é longe demais e a Cecília está chorando aqui, agora, ali no quarto. E o instinto de coruja não me permite ver minha filhinha chorando doente e ignora-la solenemente para ver se algo diferente acontece.

O mais perto da França que a gente está aqui em casa é o biquinho que a Cecília faz quando chora no berço. E Ceci (ou Céci) é um apelido que até pode soar francês para quem a quiser chamar assim – no caso aqui, um parente ou dois.

A gente se preocupa com tanta coisa. Há tanto acontecendo no mundo agora, por esses dias. Coisas demais. Na França, na Turquia, na Somália, nos Estados Unidos e aqui no Brasil também. O noticiário pipoca escândalos, guerra e barbárie. Eu, que sempre figuro na ala dos otimistas, tenho andado ressabiado. Penso na minha família. E dá um certo medo ser pai, marido e cidadão num mundo assim nesses dias.

Lembro quando fui roubado pela primeira vez. Roubado, não extorquido. Fui extorquido aos 10 anos num fliperama quando um moleque mais velho me tomou os últimos 50 centavos que eu tinha paga comprar uma ficha de jogo. Mas fui roubado aos 14, sentado num ônibus ao lado do meu tio Beto, com meu boné azul novinho dos X-Men na cabeça, a caminho de um show dos Beastie Boys no Olympia. Eu pensava na noite bacana que teria pela frente (meu primeiro show!), pensava longe, a cabeça apoiada no vidro da janela, quando um braço se esgueirou pela fresta aberta, vindo do lado de fora, e tomou o boné da minha cabeça. Levei um susto, fiquei pasmo. Não pelo valor do boné, mas por sentir que alguém subtraia algo de mim, violentamente, subitamente, sem que eu visse e muito menos permitisse. Olhei para os lados, procurei o boné no chão, procurei entender o que aconteceu, até que a ficha caiu (uma outra ficha, não aquela extorquida).

É meio assim, pasmo, que me sinto hoje em dia. Roubam a gente todo dia. Ando pela rua com a sensação de que há dez – ou duzentas – mãos tentando puxar minha carteira, arrancar meu suado salário, exigindo que eu pague suas perdulárias contas. Respiro com dificuldade, com o estranho sentimento de que o ar me falta nos pulmões, de que falta aquela brisa fresca da aurora, porque a ganância – a nossa ganância – derruba galho por galho, gota por gota, canto por canto, da natureza que nos sustenta e garante nossa existência. Morremos aos poucos como humanidade, engolidos por essa lama que vai consumindo a vida. Sigo pelo mundo com a percepção de que minha liberdade vai sendo subtraída, de que tentam assassinar a pureza da nossa alegria, pedaço a pedaço, em cada ataque terrorista, em cada apedrejamento, em cada cuspe na cara, lá na Tunísia, no Quênia ou na França.

Mas a França, a Tunísia, o Quênia ou Mariana estão todos longe demais.

A Cecília chora outra vez. Largo correndo o computador aqui no sofá, corro até o quarto e a embalo no colo mais um pouco até ela pegar no sono novamente. A luz dos postes lá na rua atravessam pela janela aberta e refletem na parede onde fico vendo nossa sombra em movimento. Há um pouco dessa luz iluminando parte do seu rosto, o cabelo vermelho, uma das bochechas e os olhinhos fechados. Agora ela repousa, nessa segurança ela descansa. Coitada. Mal sabe sobre que monte de dúvidas ela deposita sua pequena paz. Eu a deixo no berço e volto para o texto.

Às vezes, tenho vontade de me alienar (às vezes nada, penso nisso todo dia). Queria parar de me preocupar com o mundo todo, ser um ignorante. Deixar de acompanhar a política, fazer pouco caso dos desastres distantes, trocar o noticiário pela novela. Penso o que seria se decidisse cuidar só da minha vida e dos meus, olhar para um alvo só e manter o foco. O mundo é grande demais, elaboro. Deveria me ater ao microcosmo de coisas e pessoas que já exigem tanto de mim. Mas logo me dou conta de que não tenho essa habilidade. Não descobri ainda se por virtude ou limitação, mas não consigo não me importar e sofrer profundamente.

O que não quer dizer que eu possa fazer algo, de fato, por eles todos. O que posso fazer além de dedicar àquelas vítimas todas as minhas orações, enviar pacotes de água para Minas Gerais e doar algum dinheiro para instituições de apoio presentes nessas regiões? Isso ajuda, é evidente – e procuro fazer – mas ainda é muito pouco.

É quando me dou conta de que não é bem de alienação que preciso, mas saber claramente que o que está ao meu alcance eu devo realizar agora. Ter consciência de que tem uma porrada de coisas que posso fazer hoje para mudar o meu mundo.

Porque sempre haverá uma calçada para varrer, um vizinho necessitado para alimentar, um voto para se pensar direito, um vereador preguiçoso para cobrar. Tem, todos os dias, um asilo que podemos visitar com as meninas (idosos adoram ver crianças correndo em volta), um pedestre para darmos a preferência no trânsito, uma criança carente a quem podemos pagar os estudos. Tem uma escola e o posto de saúde do bairro em que podemos ser atuantes, tem o condomínio em que vivemos onde podemos ser presentes, a igreja da comunidade em que podemos servir.

Tem esse mundo todo de coisas a serem feitas no mundo ao nosso redor. É, no duro, nesse meio ambiente que nos cerca que podemos fazer grandes mudanças, são as vidas ao nosso redor (vizinhos, amigos, familiares) que podemos transformar.

Um morador aqui no meu bairro conseguiu que uma rua que estava totalmente esburacada há mais de 30 anos (e onde jaz parte do meu dente da frente depois de um tombo de bicicleta em um dos seus buracos há 24), fosse inteira recapeada e reformada. O que ele fez? Pregou duas faixas, grandes, coloridas, destacadas, cobrando o prefeito de uma de suas promessas de campanha. Quando a obra foi concluída, ele colocou outras duas faixas: uma agradecia a nova rua que agora temos e outra cobrava que um parque público fosse construído num terro da rua debaixo. O parque já está em obras.

Parece insignificante perto da lama toda em Brasília. Soa pequeno demais diante de problemas tão críticos no Oriente Médio e na África. Mas, não é. No fundo, é nessa escala que tudo se transforma. No limite dos municípios, do bairro, da rua, dentro de casa, na verdade. Nas necessidades da vida cotidiana, na educação dos nossos filhos, mostrando a eles o que é ser um bom cidadão, o que é ter respeito pelo próximo, o que é estender a mão a quem precisa e ser a voz de quem não a tem para exigir o direito comum a todos. O mundo inteiro, cada cidadão de bem, fazendo sua pequena parte para compor o todo. Acredito nisso, de verdade. Porque não somos a França ou Mariana, nós somos indivíduos. Somos o Henrique, o Mohamed, a Sayuri, o Maputo e a Mercedez, na beleza da nossa diversidade e individualidade. Esse é o mundo que eu consigo abraçar.

“Não usemos bombas nem armas para conquistar o mundo. Usemos o amor e a compaixão. A paz começa com um sorriso”. A frase é de Madre Teresa de Calcutá, lembrada por sua vida dedicada à caridade e que passou a maior parte dos seus dias em um hospital indiano cuidando de leprosos. Essa era sua obra: um pequeno hospital. Esse foi o mundo que ela tocou de fato. Mas por alguma razão, os efeitos de sua vocação transformaram no mundo todo a maneira de se enxergar a fé cristã.

Jesus ministrou, ao todo, por três breves anos. Nasceu na Galileia, uma região da Palestina onde, estima-se, viviam na época cerca de 200 mil pessoas. Em Jerusalém, capital da Judeia naquele tempo, viviam aproximadamente 25 mil pessoas. Sua mensagem, não deve ter alcançado mais do que uma parte dessa pequena região. Se compararmos com o Brasil de hoje, o ministério de Jesus não teria uma cobertura maior do que uma cidade entre as 100 maiores do país. Mas, honestamente, não acho que ele tinha em mente que precisaria de amplitude para começar ou exercer sua missão de vida: o amor. Porque não se ama o mundo todo, ama-se o próximo, o cego, o leproso, a viúva, a criança, o guarda, o ladrão condenado ao seu lado na cruz.

Não é a amplitude, entende? É empenhar amor aqui, é amar o próximo. Faça o que está ao seu alcance e certamente isso tocará mais gente do que poderia imaginar. Não é o tamanho que faz a grandeza da obra, é o significado, é saber que nosso esforço tem como fim o bem estar comum de nossos semelhantes e que a justiça e o bem devem sempre prevalecer. Porque essa, a bondade, é a natureza com que fomos criados.

Transformar o que me cerca, trabalhando duro, pregando no deserto, estendendo a mão ao desamparado, doando um tanto do que recebo. Embalando minhas filhas no colo e orientando seus passos para o mundo. Elas, as duas, serão grandes heroínas. Não é para menos do que isso que as educo.

Cecília chora de novo lá no quarto. Ela só tem sete meses. Esta febril, respira ofegante. Em sua pequenez, em sua fragilidade, ela depende de socorro. Eu a embalo. A Manú chega e a pega também. Só precisa de um pouco de toque para poder voltar a dormir em paz.

Esse é o mundo que eu carrego nos braços agora. A gente fica querendo abraçar o planeta todo, mas todo meu mundo, todo universo, é esse bebê que eu embalo no colo. Agora.

Sobre miniaturas, altares e choros a 120 decibéis

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Tem um ser humano em miniatura vivendo entre nós. É fêmea, mede 52 centímetros e já há duas semanas dorme na nossa cama, no meio da gente.

Ela saiu da barriga da Manú no domingo retrasado. Eu estava lá e a vi chegando ao mundo. Aquela coisa que se movimentava ali dentro até então era mesmo alguém da nossa espécie. Uma menina. A chamamos de Cecília.

Ela é de verdade. Respira, emite sons, dorme algo como 20 horas por dia, chora a impressionantes 120 decibéis e se alimenta de leite que sai dos seios da minha esposa. Se a pegamos no colo quando chora, geralmente se acalma. Nessas horas, dar tapinhas leves na fralda e caminhar pela sala em passos ritmados também tem certo efeito terapêutico.

Aos poucos, ela vai formando as primeiras impressões sobre o que é o mundo e a vida. E nós, bem, nós também. Uma nova perspectiva. Vamos nos conhecendo mais, vamos percebendo um novo tipo de amor criar raízes e frutificar em nossos corações.

Cecília não anda, não fala, nem se comunica de qualquer outra forma que não seja o choro. Ela depende inteiramente de nós para sua sobrevivência. Além de alimentação, higiene e cuidados fisiológicos, no futuro breve também estarão sob nossa responsabilidade a formação intelectual e moral dessa pessoa (e, confesso, tenho sérias dúvidas quanto à minha capacidade de cumprir essa tarefa). Somos uma família de quatro integrantes agora. Ela vai crescer e viver sob nosso teto de hoje em diante, até o dia em que decidir nos deixar para construir seu próprio lar.

Todas as suas atitudes e movimentos agora, disse o médico, são involuntários. Em algumas semanas, no entanto, haverá uma evolução drástica de comportamento. O período de sono, dizem, tende a ficar mais espaçado. A verdade é que da minha parte já não me lembro com clareza o que é sono, mas acho que vai ser bom para todos aqui.

Ainda assim, com seus “movimentos involuntários”, vez ou outra, sua mãozinha de 3 ou 4 centímetros se enrosca na minha barba e eu sinto algo estranho. Certas vezes, enquanto escuta nossa voz, seu olhar nos sonda, olha nos olhos e de alguma forma parece nos reconhecer, parece até que se familiariza com os sons, como quem reconhece finalmente a imagem do rosto associado a uma voz que já conhecia. E nos encara de um jeito tão absurdamente mágico que não importa o que aconteça no mundo a nossa volta, que mesmo que caia por terra a grande Muralha da China ou que o Rogério Ceni faça o milésimo gol da sua carreira em cima do Corinthians numa final de Copa Libertadores, é impossível desviar a atenção daquele rostinho quando ela nos escrutina com seu olhar de quem enxerga o mundo pela primeira vez.

Ah, o mundo. Fico pensando o que ele fará para merecê-la. Não dá pra racionalizar, claro que não.

E aquele ser humano em miniatura se converte no nosso universo todo de repente, vira a razão de estarmos aqui, a chamamos de filha, completamos uma família como gostaríamos que fosse desde o começo e acreditamos que nisso aqui, sob esse teto, existe um núcleo tão sólido quanto uma rocha milenar.

É claro que a todo momento, enquanto olhamos para ela, lembramos da Nina nesses primeiros dias. Os traços são parecidos, os olhos redondos e espertos, a boca rosada, as bochechas… E aí dá mais saudades ainda da Nina e mais nostalgia por vê-la agora, já aos oito anos, tão grande, tão independente, sendo e agindo como uma menina de oito anos, o que às vezes me faz lamentar. E me faz também querer participar mais do que resta da sua infância e aproveitar cada dia dessa vida fugaz.

Por que há algo em sua dependência que me faz agir de forma totalmente desprovida de qualquer interesse puramente pessoal. Por elas, eu não sou o egoísta que costumo ser. Por um instante, paro que agir como se eu estivesse no centro de tudo.

A paternidade é esse amor de entrega simples, de doação, porque não há troca, não há nada que se possa exigir do outro. Somos nós ali, madrugada adentro, acordando a cada 25 minutos para servir leite, para arrumar a manta, para conferir se estão mesmo respirando, para buscar água, para embalar no colo enquanto resmungam por alguma coisa que nenhum de nós sabe o que é. E até viramos compositores de novas canções de ninar com rimas simples e trocadilhos infames, assistimos aos filmes do Corujão com a TV no volume 1, cochilamos sentados no sofá da sala até o dia clarear pela janela. Com olheiras fundas, dores nas costas e os cabelos despenteados, nos surpreendemos sorrindo sozinhos tantas vezes e nos sentimos gratos, porque pudemos notar uma expressão diferente, porque ela deu um sorriso, porque nos olhou um instante nos olhos e aquilo tudo parece como o testemunhar de um milagre.

Porque é assim, queremos que sejam amados e não há um canal de comunicação, não há expectativa, não há ruídos. Esquecemos de nós para realizar uma outra pessoa que não faz ideia que recebe esse esforço. E quando notamos, realizados estamos nós.

Parece o jeito como todas as coisas deveriam ser, no fundo.

E as coisas vão acontecendo assim, numa hora que você não coloca na agenda e nem pode prever. De repente, aquela criatura começa a chorar e resmungar por alguma coisa qualquer, aí você resolve deitar um pouco e a colocar sobre seu peito. Ela dá um último resmungo, ajeita a cabeça, silencia, acalma e dorme. Dorme leve por horas. Você nem se mexe. E nem quer. Porque aquilo parece a mágica da existência humana. E quem é que explica uma coisa dessas? Por que a vida é essa coisa assim tão… tão tanto, tão aos montes dessas pequenas coisas que nos transbordam?

Esses momentos, as experiências… você sabe, os fragmentos de existência que justificam tudo. E que se nos oferecessem por um preço no mercado, não compraríamos, mas quando as vivemos já não trocamos por nada – ninguém pagaria por cinco minutos de filho dormindo no seu colo. Quanto você gastaria por aquele fim de tarde na pracinha empurrando uma criança num balanço? São nossa história, os pequenos trechos da nossa história. E é o tipo de coisa que nos preenche no fim das contas.

Pode me chamar de inocente, se quiser, mas esse é o tipo de acontecimento na nossa história que me faz acreditar em Deus. Um Deus pessoal mesmo. Não essa coisa cósmica e distante, não esse Criador abstrato do universo. Eu não consigo não acreditar que ele é alguém que contempla essa situação toda, que se comove e tudo. Porque Deus é o nosso Pai e também é o Filho.

Chego a ter vontade de erguer algum tipo de altar em momentos assim, só para, lá na frente, lá naquelas horas de mente ocupada pelas questões menos importantes do cotidiano (amanhã, quem sabe), eu possa olhar para esse memorial, relembrar o momento e voltar à essência. Meu altar são essas palavras, acho.

E minhas meninas são as chamas acesas que incandescem.

Faço então uma oração de gratidão, peço que sua luz nunca se apague, contemplo em sua pureza a face divina em sua expressão mais clara e bela, enquanto são crianças, enquanto a inocência é um reino em suas mentes e o filtro de seu olhar. E meu desejo mais íntimo é que elas possam preservar sua pureza, que sejam reflexo desse amor por toda sua vida, pregando paz por onde quer que passem, acreditando que são princesas, que podem voar, alegrando o mundo com seu riso, chorando a 120 decibéis e enxergando a vida, todos os dias, como se ela lhes fosse apresentada pela primeira vez.

Eu só quero estar lá por um tempo, só espero poder testemunhar. Quero sentar no chão em manhãs ensolaradas de verão, quero dedicar tempo, dividir experiências, tomar um lanche e estar junto enquanto elas crescem. Não para ter nada em troca. Não. Porque esse é um amor sem expectativas, é só entrega, é quando deixamos de estar no centro de tudo. É quando Deus nos deixa entender um pouco como ele é.

No fundo, parece mesmo o jeito como todas as coisas deveriam ser.

A Páscoa para os não religiosos

Uma coisa que às vezes me ocorre quando penso na Páscoa e na história que relembramos nessa data é que, evidentemente, nem todo mundo se identifica com o significado que isso tem para os cristãos (não estou ignorando o fato de que judeus também celebram a data, só estou restringindo a perspectiva para a leitura do Novo Testamento e do feriado prolongado).

É claro que isso não é de hoje. Fico tentando imaginar o que passaria pela cabeça de um cidadão da Palestina do primeiro século que eventualmente viajava por Jerusalém na ocasião da crucificação de Jesus. Entenda, nem todo mundo que estava na cidade naqueles dias fazia ideia do que aquilo representava e nem da própria existência de Jesus. As festas da Páscoa judaica atraiam peregrinos de todo Oriente Médio e, sem os meios de comunicação de massa (que só vieram a ser inventados quinze séculos depois), uma informação poderia levar semanas ou meses até ser minimamente difundida.

A cena que me vem à mente é a de um desses peregrinos, chegando à cidade naquela sexta-feira, observando a movimentação em torno de mais um condenado à crucificação que, movido pela comoção de discípulos que o seguiam (que tipo de criminoso atrairia discípulos?), resolve acompanhar a multidão e se vê, horas depois, aos pés da cruz de Jesus Cristo tentando compreender a história a partir dali.

Ele vivencia a morte do Messias e os fatos que a cercam. Nota a dor de seus familiares e amigos ao redor, acompanha o desfecho de mais uma tarde cruel patrocinada pelas autoridades judaicas e romanas que se impunham no local. Mas, ainda curioso, ele permanece ali e segue o caminho dessa história. Dois dias depois, ainda na cidade, testemunha o pequeno alvoroço daqueles mesmos homens, celebrando discretamente um milagre: diziam que o homem que ele viu morrer na cruz era, de fato, o Messias. E ele havia ressuscitado.

Com base no que observou, ouviu e percebeu da coisa toda, o que o peregrino poderia entender?

Acho que é algo assim que me vem à mente quando penso nessas datas religiosas e imagino que, se faz muito sentido para mim e alguns amigos, há muita gente no mundo que só acompanha essas histórias a partir desses fragmentos e de documentários e filmes mal produzidos que passam na Discovery ou na Record. Os três dias da Páscoa, a noite de Natal, são eventos pontuais em uma história que não se limita a esses dois fatos. Ela tão pouco se limita aos Evangelhos.

O que quero dizer é que, para os cristãos é muito claro que a Páscoa é uma data definitiva, no sentido em que carrega consigo todo o significado e a razão da nossa fé. A Páscoa é desfecho e recomeço, é morte e ressurreição, é sacrifício e vida, é a conjuntura de fatos que consolidam a nossa crença e divide a história. É difícil não ter, na reflexão sobre esses três dias, ensinamentos que preencham e fundamentem nossa filosofia por uma vida toda. É evidente que esse desfecho não pode ser dissociado de toda a vida de Jesus e do curto ministério que ele exerceu. A Páscoa cristã é uma confirmação da história toda e nossa espiritualidade e esperança tem grande parte de suas bases nesses três decisivos dias e nos fatos que o emolduram.

No entanto, em um mundo como o de hoje, no contexto do nosso tempo, o que uma data como essa pode representar para as pessoas não adeptas do cristianismo como estilo de vida? E o viajante que até observa as cenas, até lembra do que sua avó dizia, até assiste a um documentário no Discovery (filmes da Record não dá, né?), mas não carrega consigo o peso daqueles gestos?

Que significado tem a Páscoa para quem não é cristão?

Passeando por Jerusalém naquele feriado, o peregrino só enxergaria um fragmento dessa história. Aos pés da cruz, à porta do túmulo vazio, sem o pano de fundo da religião de seus seguidores e encarando apenas os fatos soltos, ainda assim lhe ficariam à vista as evidências e fragmentos do porquê muitos acreditavam em Jesus como sendo o Cristo.

Ainda dá para vê-lo de braços abertos e isso quase basta. Ainda é possível entender que seu gesto extrapola os limites da religião, que sua vinda não é para aquele pequeno grupo de seguidores, mas para a humanidade toda. Ainda ecoa retumbante a sua mensagem que no coração de cada homem encontra abrigo.

Amor, perdão e esperança.

Ainda é simples o seu plano. Por que um mundo com mais Jesus é um mundo que todos nós desejamos. Eternamente.

Ainda vale celebrar a Páscoa. Vale viajar por três dias a Jerusalém e relembrar a história do Deus morto na cruz e da sepultura vazia. Porque aconteceu dois mil anos atrás, mas ainda precisamos seguir o caminho para entender.

Somos todos peregrinos.

“Eu estarei com vocês enquanto procederem assim, dia após dia após dia, até o fim dos tempos” (Jesus, em Mateus 28).

A história sem fim – o capítulo final de um livro que não termina

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(1 de agosto de 2014)

Às vezes, tudo parece voltar ao começo. A sensação de que certas experiências se repetem, a história passa pelos olhos e concluímos que vivemos de começar e encerrar ciclos.

Agora é noite. Já fiz minha ronda pela casa. Fui até a cozinha, enchi os três copos de água que sempre deixo sobre os criados-mudos de todos. Fiz um cafuné na Lucy com o pé enquanto cruzava a sala. Entrei no quarto da Nina, a cobri melhor, ajeitei seu cabelo, beijei sua testa e fiz uma prece. Então vim para a minha cama escrever.

Lá fora está frio e alguns pássaros fazem festa nas árvores do campo ao lado de casa. O dia entra em repouso enquanto, ao meu lado, observo por um instante a mulher da minha vida. Ela dorme. A sutileza de seus gestos, a respiração leve, o rosto delicado, os cabelos soltos meio bagunçados sobre o travesseiro de fronha branca que ela faz questão de comprar pelo toque e não pelo preço. Temos sido felizes. Dividimos tanto que, ao longo dos anos, já nem sabemos o que é um e o que é o outro. Mas quando a vejo desse jeito, lembro que ela ainda é aquela menina, a minha menina de 15 anos atrás, para quem paguei um lanche e levei ao cinema no primeiro encontro, dei a mão para atravessar a rua na saída e nunca mais soltei.

Hoje ela me deu a notícia de que está gravida outra vez.

Seremos quatro.

E se havia um desfecho ideal para esse ciclo, ei-lo aqui. Não vou negar que não pensei nisso. Há alguns anos, quando esses relatos sobre paternidade começaram a se tornar uma seqüência e a Manú começou a me incentivar para que os compilasse — talvez, num livro — comecei a pensar que seria bom demais se pudesse, um dia, poder escrever um último capítulo narrando a sensação da paternidade outra vez e testificar que a história se repete, que as sensações de repetem, que a emoção toda vem à tona outra vez e o amor se multiplica em nova medida instantaneamente em nosso peito por um ser humano que já existe mas que ainda nem conhecemos.

Sim, acontece tudo isso.

Sim, o amor se multiplica. Seremos pais, tudo outra vez, a sensação toda outra vez. Dentro dela, um coração novo já bate, a vida pulsa, um ser humano virá ao mundo. Mais um pedaço de nós, mais uma criação de Deus, outra criança para nos realizar e fazer a felicidade, a tão desejada felicidade, ser essa coisa que a gente até alcança com as mãos, até ampara com as mãos, embala no colo até.

Porque já parecia impossível e tínhamos na conta a resignação de que nosso sonho de um par de filhos correndo em volta da mesa talvez fosse grande demais. Mas quem foi que disse que a capacidade de Deus se limita à nossa visão? O Pai ultrapassa barreiras pelos filhos. Seus braços sempre estendidos, o amor que rasga a eternidade para nos alcançar. Somos pequenos demais.

Gratidão. Não posso expressar outro sentimento agora. Impossível imaginar estado de espírito melhor. E sei que não será como da outra vez. A Nina mudou completamente quem somos. Somos pessoas melhores graças a experiência de ter uma filha como ela. Porque tem sido ela, do seu jeito, que nos transformou em pessoas mais preocupadas com outro ser humano além de nós mesmos. Ser pai é ser um pouco mais de si duas vezes, é ser você mesmo e também o outro, é continuidade e desapego. É o nosso amor que se concretiza plenamente em um coração fora de nós.

Porque pais doam, pais protegem, ensinam, enxugam lágrimas e contam histórias. Pais acham bonito até o que é de gosto duvidoso, rolam no chão, brincam de boneca, pegam no colo, constroem mundos imaginários numa barraca no meio da sala. Pais comem os restos, dividem, abrem mão só para ver aquele rosto feliz. Pais disciplinam, falam duro e depois choram escondido, pais atrasam o passo para o filho acompanhar. Pais arrancam dentes moles, pais fazem corpo mole no jogo para ver o pequeno vencer, deixam de lado o futebol na TV para ser derrotado numa batalha de cócegas. Pais curam com beijinhos, pedem beijinhos o tempo todo, têm essa carência eterna do toque de sua cria. Pais saem mais cedo de uma reunião importante no escritório só para ver o ensaio-da-cantata-para-a-festa-de-encerramento-do-primeiro-bimestre-do-pré-primário e depois ficam até mais tarde no trabalho para garantir o pão na mesa toda manhã. Pais sonham, tem esperança, enfrentam e vencem os monstros, reais e imaginários, para que seus filhos trilhem caminhos mais serenos. Pais observam enquanto eles dormem, escutam até o que eles não falam e atendem as necessidades que eles não pedem. Pais acham graça nas semelhanças que tem com os filhos e carregam a convicção de que o universo se tornou um lugar melhor depois que aquela criatura abriu os olhos pela primeira vez e deu o ar de sua graça.

Deus é pai.

Me pego chorando nos cantos da casa, rindo a toa enquanto espero o elevador. Apaixonado que estou de repente por mais essa criança que ainda nem vi o rosto, ainda nem cheirei o pescoço, sequer toquei e sussurrei em seu ouvido sobre meu amor, na esperança que grave em sua mente virgem a primeira mensagem de seu pai.

Talvez seja um prêmio, essa coisa toda. É possível que Deus nos recompense pelas fraudas trocadas, pelas noites em branco e os fios de cabelos brancos, nos pagando com essa moeda tão cara, o amor. Ele faz multiplicar em nós um sentimento que não podemos comprar. E brota na gente esse negócio, surge e fica ali pra sempre. E não há dinheiro que pague, não há preço pelo qual se venda, não há valor que se exija. Porque quem ama, ganha um presente que doa. E quanto mais amor se dá, mais dele se tem. Sim, o amor multiplica. E filhos são a materialização disso.

Eu diria que já quero mais filhos, quero três ou quatro agora. Mas a Manú me mataria se eu falasse esse tipo de coisa.

Queremos que eles cheguem longe, que enxerguem além do que vimos, que caminhem além das linhas que cruzamos, que evitem os erros que comentemos, que não sofram tanto com uma derrota da Seleção, que escutem a Deus, que sonhem um mundo melhor e o transformem no que não fomos capazes de fazer. Os queremos tão bem que queremos que o mundo seja digno de sua existência.

Porque no fundo é isso. Pais e filhos, imagem e semelhança, Deus e o homem.

É claro que essa história não acaba.

E agora, essa criança, esse outro nós dois que vem para nos transformar mais uma vez em pessoas novas. Porque certamente não é a mesma experiência que se repete — já mudamos tanto desde então. É uma nova etapa, a família crescendo, a partir de agora seremos “nós e as crianças”. A árvore e seus frutos, que dão frutos, que darão frutos, que serão árvores.

A Nina, desde o minuto em que soube da notícia, ficou inquieta. Anda agitada pela casa, manifesta sua alegria incontida com abraços e gritinhos (ah, mulheres…), começou a tomar nota de uma possível lista de nomes para a irmã — por razões compreensíveis ela não considera outra hipótese de sexo — e se preocupa excessivamente com o estado de saúde e a barriga da mãe. Ansiosa, tardou a deitar essa noite.

Agora elas dormem. E eu sonho.

Sonho que veremos outra vez um bebê engatinhando pelo chão da sala. Aqueles pezinhos descalços marcando o assoalho com os primeiros passos, os choros, as primeiras palavras, o cheiro de creme Johnson’s no ar, as noites em branco, as fraldas aos quilos, as canções de ninar, os contos de fadas, as histórias inventadas, as “primeiras vezes” em tudo. Sonho também poder ser um pai mais seguro dessa vez e cometer menos falhas nesses dias que são o começo das vidas das pessoas que mais amo nessa Terra. E sonho também que a Galinha Pintadinha já tenha saído definitivamente de moda nos próximos oito meses (quem merece aquela tortura!?).

Tal como no princípio, continuo sonhando com o tempo em que envelheceremos lado a lado, de mãos dadas. Os dois heróis da vida cotidiana sentados junto à mesa, à espera das crianças para um almoço no domingo. E esse será o verdadeiro prêmio da caminhada toda, eu acho. O quintal verde, um balanço perdurado na árvore, passarinhos, a bagunça dos netos espalhada, um cachorro correndo, os braços abertos para quem volta ao lar. Eu sei que vou me vestir com a melhor roupa para esses momentos e vou usar o perfume que algum deles me deu de presente. Estaremos lá. Sim, porque sempre estaremos à sua espera.

E o tempo dando uma trégua e parando naqueles instantes, aqueles pequenos instantes, que definem nossa eternidade.

A vida só começou.


(capítulo final da série Imagem e Semelhança)

Páscoa – O mergulho nas profundezas

O homem observa o céu a procura de Deus. Mas não o encontra. Ele procura no extremo, sonda o sobrenatural, arrisca-se nas mais grandiosas e místicas experiências, mas nem ali está Deus.

O homem perde-se em seus caminhos. Preso em um buraco, chega a cavar para tentar sair. Ele vaga, tolo, sobrevive, está sujo e fraco. Tenta encontrar, mas já nem sabe o quê.

Deus é um menino pobre.

No resgate da humanidade, Deus se embrenhou na escuridão. Por amor ao mundo, deu. Fez-se homem, na condição do homem e, como homem, libertou o homem.

Ele mergulhou nas profundezas, desceu no vazio da alma, na consciência perdida, na vastidão sem sentido. E acendeu uma luz, tomou o homem pela mão, lavou sua sujeira, o guiou pelo caminho.

Jesus resgatou o homem. O Deus homem é o homem perfeito. Com sua vida, revelou salvação. Com sua mensagem revelou propósito, com seus gestos revelou caráter, com seu serviço revelou um exemplo, com sua cruz deu redenção e, ressuscitando, a vida toda sem fim. Jesus Cristo revela o amor do Pai.

O novo homem observa Jesus à procura de Deus. E lá está. O homem contempla o céu.

“Porque Deus tanto amou o mundo que deu o seu Filho Unigênito , para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna. Pois Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para condenar o mundo, mas para que este fosse salvo por meio dele.” (João 3:16-17)

Sete anos e outra vez a eternidade como tema

Seguir a vida dos outros. Se tem uma coisa que o advento da internet trouxe para a vida urbana moderna e que era, até então, privilégio das pequenas cidades e de tempos muito anteriores à própria rede, foi a possibilidade de saber o que se passa na vida das pessoas com quem temos ou tivemos algum vínculo.

Sem julgamento de valor. Especialmente as redes sociais, como o Orkut (até ontem) e o Facebook (hoje e sabe-se lá até quando), que ajudam na busca por parentes distantes, colegas de colégio, amigos de infância e toda uma variedade de pessoas com quem possivelmente não trocaremos um aperto de mãos tão cedo, mas de quem gostamos de saber o que comeram no almoço, onde passaram as últimas férias, o que pensam do trânsito e por quem torcem no futebol, nas eleições, nas manifestações, nas enquetes de reality show e até nas competições de curling das Olimpíadas de Inverno.

Corro disso, confesso. Não é esse interesse pela rotina que me atrai. Não gosto de ficar na janela, olhando pra rua e tentando entender os fatos. Sou nostálgico demais pra isso. Em geral, me distraio, olho para o céu, vejo alguém passando pela timeline e me perco nas lembranças do passado. Admito que minha curiosidade digital é, em certa parte, alimentada pelo que não vejo. Me concentro pensando sobre o espaço de tempo entre a época em que, há 10 ou 20 anos, convivi com aquelas pessoas e sobre o agora, quando os revejo como adultos.

Quem eles se tornaram, essas pessoas? Era pra ser isso mesmo? O menino que empinava pipas, o menino que contava piadas, o que aprontava na escola, a menina que se vestia estranho, a menina mais inteligente da classe, o menino que tinha um videogame em casa – o herói da rua – e o menino que era dono da bola. Fico tentando imaginar se eles se tornaram o que gostariam de ser.

O fato é que, em algum momento da vida, os planos e projetos passam a ocupar espaço em nossas mentes. Talvez exista uma fase na infância em que tomamos consciência do futuro, de que há perspectiva e algo a se projetar. Talvez, quando adultos abordam crianças com a insistente pergunta: “O que você quer ser quando crescer?”.

Crianças não projetam futuro, não fazem planos. Crianças são o que são agora e afirmam querer ser para sempre aquilo que mais as anima nesse instante exato. E você sabe que não estou querendo fugir das minhas responsabilidades como pai e cidadão adulto, mas acredito que tem uma beleza nisso tudo, há graça nessa inocência. Elas não andam ansiosas.

Até que o negócio todo de “ser alguém na vida”, atender uma vocação e perseguir um certo padrão de sucesso comece a ser incutido. E aí, o menino que soltava pipas e queria ser bombeiro começa a ter que pensar no tipo de carreira pretende seguir.

E aí, crescemos. Já estamos mais velhos do que achávamos que seríamos quando achávamos que estaríamos velhos. Será que nos tornamos a resposta que dávamos?

É uma pergunta retórica.

Não que deveríamos. Acho meus sonhos de agora bem melhores do que ser o camisa 3 do São Paulo FC, o Rocky Balboa ou vocalista de uma banda.

Circunstâncias que nos afetam, fatos que nos afetam, a vida que segue o rumo sem que nos preocupemos em ser protagonistas e donos de nossas escolhas. Às vezes, somos vítimas, não temos opção. Mas outras tantas, simplesmente nos conformamos.

Tenho claras para mim e ainda frescas na memória as cenas e momentos da infância. E confesso que guardo em mim o sentimento do menino. Lembro dos medos, dos sonhos, da impressão que o mundo me causava. Lembro que as preocupações eram tão pequenas. Sei que sou continuação dessa existência, consequência das escolhas que fiz. Hoje, carrego uma tatuagem desbotada na perna, barba no rosto, 93 quilos (oscilando) e fios de cabelos brancos brotando em ritmo preocupante. Mas ainda alimento sonhos. Ainda tenho em mim aquele garoto de sete anos.

Daqui alguns dias a minha filha fará sete anos.

E, assustado com a impiedade do tempo, me pergunto como estaremos, a Manú e eu, quando a Nina tiver nossa idade?

Ela dorme abraçada com um coelho e uma tartaruga. Dois bichinhos de pelúcia, não dos mais bonitos, que compramos numa viagem recente de férias. E às vezes, como ainda há pouco, me pego pensando em como ela já está grande, nas coisas que já faz sozinha, nos argumentos e explicações que acredita serem plenamente factíveis para os pedidos mais absurdos, nas pequenas cartas e bilhetes que agora deixa sobre meu criado-mudo, na sua voz lá do quarto, lendo alto os primeiros livros de histórias que alimentam sua imaginação.

Então, só preciso observá-la dormindo por um instante, só ter que pegá-la no colo adormecida no sofá para levá-la para o quarto… e ver toda sua inocência, sua graça, a minha dependência, a nossa pequenez diante da grandeza da vida.

Não pode ser só para agora. Nessas nobres horas, tudo adquire uma dimensão maior. Não consigo acreditar na finitude do ser que somos se resumindo em matéria, num pacote de átomos que existe até que tudo acabe.

E sei que não entendo seus motivos na maior parte das vezes, mas agradeço a Deus. Eu me rendo, reconheço. Cresce em mim a reverência ao eterno que se fez finito, ao Deus que se fez homem, ao Criador que se diz pai. Que traçou a vida com essa riqueza de detalhes e a singeleza necessária para que pudéssemos compreender que está em nós e na intimidade dos nossos lares, a habitação do altíssimo. O universo inteiro numa canção de ninar, a glória divina numa brincadeira no chão da sala.

Aquieto-me quanto ao futuro. Já não importa o que serei ou como estarão meus amigos de infância daqui outros 30 anos. Há beleza ao redor, há grandeza em cada história. Seja a vida fugaz, o dia de hoje é pouco, sei que tudo vai tão rápido. De novo, aquieto, observo minha criança dormindo. A eternidade precisa ser contemplada.

Orações não respondidas

igreja

Era um dia desses de ficar à toa em casa e eu arrumava qualquer coisa num canto quando ouvi a Nina me chamar lá do quarto. Fui ver o que era e ela estava quieta na cama, meio amuada e reclamava de uma dor de cabeça. Dava pena. Queria fazer algo para ajudar mas não gostaria de, logo de pronto, dar algum remédio. Sugeri então que fizéssemos uma oração juntos e que ela esperasse um pouco ali deitada.

Minutos depois, ela saiu da cama e foi até onde eu estava dizendo que a dor havia passado. Animado com a oportunidade de ensinar para minha filha os sólidos fundamentos de fé que tantas vezes me são fracos, comecei o discurso:

– Está vendo, filha? Quando a gente ora, Deus nos responde.

– É, pai.

Três segundos de silêncio até ela disparar:

– Mas, pai, eu já pedi um montão de vezes para Deus me dar asas e ele nunca me respondeu.

– Asas?

– É, para eu poder voar. E pedi também pra eu poder mandar um dia mas ele não deixa.

– Mandar?

– É. Poder mandar em você e na mamãe, só um dia.

Orações não respondidas.

Certo domingo, um pastor muito querido da nossa comunidade nos visitou para ensinar e, dentre tantas coisas marcantes, disse algo que lembro com frequência de repetir para os outros: “Quando Deus nos diz não, ele não está nos privando, está nos protegendo”.

A Nina pede para comer mais um prato de sobremesa, ela pede para ficar acordada até mais tarde, ela quer ter amigas e amigas por perto todos os dias e noites, quer faltar na escola às vezes, ela quer ver TV além do tempo combinado, quer brincar, quer mais uma, só mais uma história antes de dormir. Ela quer providências inofensivas e também quer feitos inalcançáveis. Em geral, me pede coisas que posso dar. Mas em muitos casos eu preciso dizer não.

Às vezes, ela me faz perguntas que não tenho condições de responder, ela quer motivos quando eles não existem, quer respostas que não sou capaz de lhe dar ou que, como adulto, sei que ela ainda não está preparada para ouvir.

E não é que eu tenha qualquer satisfação em ver minha filha frustrada. Sou tentado, quase todas as vezes, a atendê-la só para ter de volta aquele sorriso, um abraço e o beijo de gratidão na bochecha. Entretanto, deixar de atender o seu pedido não significa uma privação, mas cuidado. Minha negativa para algo que lhe parece tão legítimo e saudável, é porque eu sei que o melhor para ela, certas horas, é apagar a luz e ir dormir, é não abusar do açúcar, é não receber uma satisfação.

Quase sempre adoro esse conceito. Quase sempre. Eu o detesto quando sinto seu efeito sobre mim. Não que Deus me negue coisas de forma taxativa, mas com frequência chego a pensar que ele não parece ter tanta certeza do que vai responder. A espera me parece insuportável, eu tento dizer: “Na dúvida, Deus, que tal fazer o que te pedi e depois a gente vê como é que fica?”. Mas minha sugestão nunca foi aceita.

Das coisas que peço, tão legítimas, não peço dinheiro, não desejo bens ou futilidades, nada que possa me favorecer ou prejudicar alguém. Em grande parte, em minhas orações mais repetidas e íntimas, só quero respostas que dizem respeito a mim e minha família. No fundo, eu gostaria é de entender. Gostaria de discernir os caminhos, de ter revelações grandiosas sobre os próximos passos que preciso dar na vida. Há tantas escolhas a serem feitas. Queria saber por que certas coisas aconteceram de um jeito e não de outro. Por quê pessoas fazem o que fazem? Por quê existe o mal? Por quê, como disse Paulo, o bem que eu desejo fazer eu não faço e o mal que não gostaria de fazer, acabo fazendo? Por quê uma doença, uma tragédia, tal fatalidade, justo com aquela pessoa? Por quê justo comigo?

De circunstâncias a questões existenciais, de um prato de comida pedido por um pai de família às asas desejadas pela Nina, existem orações que nos parecem sem respostas.

Não acho, porém, que Deus se cale, não acredito em seu consentimento com o sofrimento e a incerteza. Tenho para mim que o Deus Pai responde, fala, se relaciona conosco e expressa o tempo inteiro a sua opinião. E quando não posso ouvi-lo, é que surdo, tão surdo, tão insensível acabei me tornando que já não percebo. Dirijo minha busca na direção errada, me expresso sem permitir que ele fale, desabo tentando decifrar enigmas quando sua resposta, sua voz, está bem na minha frente, está na paisagem, em alguém, dentro de mim. Não existe oração sem resposta.

Porque ele fala aos ventos e através dos ventos se manifesta, escancara, faz o mundo gritar sua verdade, tanto e tão alto. Porque ele fala no íntimo e no coração se manifesta, revela, faz nossa consciência perceber sua vontade, tanto e tão perto.

Porque pais querem ensinar seus filhos a buscarem por resoluções e não que as tenham de mão beijada. A Nina quer voar, quer saber porque precisa ir dormir tão cedo, eu quero que ela aprenda a fazer perguntas, que aguce os sentidos e explore o redor. Ela quer um par de patins como presente de Natal, eu quero que ela esteja sensível para perceber e ouvir o sentido de sua existência, que compreenda o amor que a mãe e eu sentimos por ela e que descubra que existe um amor ainda maior em Deus que ela pode experimentar. Ela quer tomar dois sorvetes depois do almoço, quer poder mandar em nós por um dia, eu oro para que ela seja inquieta e determinada em sua busca mas, ao mesmo tempo, seja humilde para compreender que o “não” de um pai é cuidado e não castigo.

Outro dia, ela fazia uma oração antes de se deitar enquanto eu recostava na cabeceira da cama até que adormecesse. Meu pensamento ia longe, confesso, distante um pouco da oração usual que ela fazia. Até que ela concluiu a prece pedindo:

– E Deus, por favor, mude o coração dos vilões.

Crianças. É possível que ela não lembre do que pediu no futuro. É possível que ela não lembre do que pediu hoje. Pode ser que nunca ouça claramente uma resposta para sua oração, mas em sua fé infantil sei que ela acredita que acontecerá.

Não tenho respostas tampouco. Como pai ou como filho, também acredito. Ela quer um mundo sem maldade, ela pede que o bem triunfe sobre o mal e que os homens perdidos encontrem redenção em Deus.

Ela tem asas.

Eu oro. Recostado na cama, cerro os olhos, junto as palmas das mãos, baixo minha fronte e peço que um dia possa ver que ela será parte dessa resposta.

O engano da felicidade

Banksy

Banksy

Está nos comerciais de TV, está nos livros, está nas estampas de camisetas descoladas, nos posts compartilhados pelo Facebook e nas reportagens especiais do Globo Repórter nas noites de sexta. A felicidade retumbante é só o que desejamos, perseguimos e refletimos com a camada da nossa vida que expomos ao mundo.

Mas é um engano danado isso aí.

Outro dia, véspera de uma data comemorativa qualquer, recebi por email o link para um vídeo novo do Google. Um comercial lindíssimo, daqueles com marido e esposa trocando um com o outro momentos singelos da vida a dois. Uma trilha sonora charmosa ao fundo, aquela edição com cortes de vídeo-clipe e um filtro, uma película sobre a imagem que quisera eu ter uns óculos para só enxergar o mundo com aqueles tons. Era a felicidade, o ideal dela estampado num vídeo de 30 segundos que queria me dizer que eu teria tudo aquilo se… se, juro por Deus, se eu instalasse um software para navegar na internet. Sim, a vida é mais bonita e cheia de sorrisos sinceros de uma linda esposa quando você usa o Chrome para acessar seus emails ou o site do banco para pagar uma conta.

Mas o discurso que nos fazem é tudo o que queremos ver. Já não se vendem mais produtos nos comerciais. Quem, afinal, quer saber sobre o índice de gordura hidrogenada e o sabor pasteurizado de um pote de margarina? “Pra quê vender margarina?” – pensa o publicitário enquanto morde a tampinha da sua Bic e pensa em algo genial, segundo seu próprio julgamento genial. Muito melhor é vender o sonho de um lar aprazível, os primeiros raios de sol entrando pela janela da cozinha, a família reunida em torno da mesa, um labrador saltitando por perto e a mulher maquiada servindo uma torrada na boquinha do marido engravatado. Sim, você compra 500 miligramas de creme vegetal e leva junto a felicidade para a geladeira da sua casa.

Automóveis, cartões de crédito, lâminas de barbear, cerveja, apartamentos. As mensagens são nada originais: compre felicidade.

Porque vivemos na era das sensações. E compramos coisas não mais para usar, mas para “sentir” algo. Como se a vida fosse assim, de fato. Como se mais nada importasse. O negócio todo é ser feliz. Queremos um estado de espírito, queremos ser enganados.

Já nem é preciso ser muito esperto para afirmar que essa busca por uma sensação de realização plena da alma soa meio artificial. As carinhas felizes com piscadelas que nos enviamos ao final de mensagens ;-) essa coisa do “felicidário” que andam circulando por aí, o lance do Butão com seu indicador nacional de Felicidade Interna Bruta, tudo isso vem dando nas ventas.

É implicância minha achar que estamos exagerando? Essa busca toda não vai provocar em nossa geração – e na dos nossos filhos – o sentimento de que qualquer experiência contrária, as frustrações e dores, são repulsivas, incomuns e devem ser evitadas a todo custo? Qualquer contrariedade deve ser rejeitada ou esquecida. Como se não pudéssemos aprender nada com isso. Tropeços, dores e frustrações não nos ensinam tanto ou mais do que momentos de júbilo?

A vida, esse todo da existência, é recheado de imprevistos, de circunstâncias e fatos que, gostemos ou não, compõem o que fomos e nos tornamos. É feita de altos e baixos. E são os pontos baixos que fazem os altos ficarem maiores quando então neles.

No relacionamento que procura estabelecer com o homem, Deus jamais promete essa infinita felicidade. Não há um conto de fadas em que habitaremos de forma encantada, cercados de passarinhos em coro, sem dor, sem decepções, sem uma topada com o mindinho do pé na quina de uma penteadeira.

Não, Deus não promete essa sensação de torpor ou uma anestesia para a vida. Isso é justamente o oposto do seu plano, de que tenhamos uma existência livre e rica. Ele não promete um estado de espírito, promete seu Espírito e uma nova perspectiva nos orientando para enxergar o mundo.

Porque a suprema felicidade a que, sim, podemos almejar, é que Deus promete estar presente. E isso nos basta, nisso não há engano. Não é um comercial, não é margarina, um sorvete ou espuma. Não é uma família sorridente ao redor da mesa. Nada efêmero. Essa presença é a promessa inabalável do puro amor e seu reino, nos inspirando para viver a vida como ela é e como deveria ser.

O espelho

“Quando nos livramos do ego, estamos livres para ver o divino”
-Karen Armostrong

Tem dias, em que por mais que eu me esforce, não consigo encontrar alguém ou algo em que eu possa colocar a culpa por meus problemas. Eu olho no espelho e o vidro está rachado. Preciso reconhecer que fracassei. Admitir que a culpa é toda minha, olhar aquele reflexo torto e fitar a dura realidade nos olhos. Perdi uma, ou mais uma.

Imperfeito, incompleto, pecador. Toda vez que me deparo com a frustração de não poder fazer algo contando apenas com minhas forças, caio abraçado com meu orgulho. A consciência de que não sou auto-suficiente é o choque de humildade de que necessito para reconhecer que preciso de ajuda. No fundo do poço, expelidas todas as camadas de superficialidade, eu me revelo. Resta pouco ou quase nada do que é rótulo, cai a máscara, sobra a essência.

E talvez a surpresa mais escandalosa seja, na hora inglória, olhar em frente e enxergar a imagem do Cristo. A notícia pungente é ter que encarar o fato de que, em meu resgate, Deus não me leva de volta a ponto de conforto algum onde eu gostaria de estar. Ele se rebaixa, se acomoda. Deus já estava ali.

Toda vez que me humilho e me sinto inferior à condição do mundo, estou, na verdade, me aproximando da imagem de Jesus. É controverso, mas o padrão de sucesso dele é assim. O Deus que vira homem, o Messias que caminha com ladrões e prostitutas, o Mestre que lava os pés dos seus discípulos, o Senhor que a todos torna e trata como iguais. É na simplicidade da alma que ele me encontra, na essência do que fui criado para ser, sem as cascas, que ele se revela, me cura e me guia de volta pelo Caminho.

Ficamos cegos às vezes, insensíveis. O fato é que Deus nos dá sua presença e temos tanto dele o tempo todo – nos eventos cotidianos e na natureza – que já não nos damos conta do deserto cruel que seria a sua ausência. Não sabemos o que é sentir fome. No entanto, quando nos deparamos com o que somos de fato, como num espelho, entendemos nossa natureza.

Precisamos reaprender a viver carentes da influência de Deus. Com fome, com sede, ansiosos por aprender e ter mais da sua pureza influenciando nossas mentes.

“Ele tinha a natureza de Deus, mas não tentou ficar igual a Deus. Pelo contrário, ele abriu mão de tudo o que era seu e tomou a natureza de servo, tornando-se assim igual aos seres humanos. E, vivendo a vida comum de um ser humano, ele foi humilde e obedeceu a Deus até a morte – morte de cruz.” (Filipenses 2:6-8)

Jesus veio ao mundo e nos mostrou que é debaixo para cima que se olha para o céu. E é lavando os pés que nos relacionamos com o próximo. Cada vez que enxergo o reflexo da minha fragilidade e me reconheço nele, me aproximo, me preencho de seu Espírito e sou renovado. Porque a consciência de que dependo totalmente é a revelação de que só sou, de fato, quando estou em Deus.

“Portanto, eu me gloriarei ainda mais alegremente em minhas fraquezas, para que o poder de Cristo repouse em mim. Por isso, por amor de Cristo, regozijo-me nas fraquezas, nos insultos, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias. Pois, quando sou fraco é que sou forte.” (2 Coríntios 12:9-10)


(Crônica publicada no site carisma.com.br)

A estranha coleção de lanternas

por Luiz Henrique Matos

semelhancas

“Filha, com quem você acha que é mais parecida, com o papai ou com a mamãe?”

Mãe e filha partilhavam um momento a sós e, numa tarde primaveril qualquer, aquela delicada progenitora fazia uma pergunta inocente. Enquanto isso, não imaginava que a menina, cravada nos cinco anos de idade, ainda não havia aprendido o sentido da palavra ponderação.

“Mãe, sabe o que é…”, a menina arqueou as sobrancelhas, olhou para baixo, contraiu um pouco os lábios, “Me desculpe, mas é que eu sou a cara do meu pai”.

A história me foi contada horas depois. Fiz de conta que não achei nada demais, “Ah, que nada, ela tem os seus olhos, seu jeitinho, as bochechas…”, enquanto, por dentro, uma onda de satisfação das mais imaturas me lavava a alma.

Talvez alguém um dia ainda explique – talvez – o motivo pelo qual pais, tios, avós e amigos chegados insistem nesse jogo esquisito de discutir e tentar descobrir semelhanças com algum familiar nem bem a criança saia da barriga da mãe.

Quando olho para minha filha e paro pra pensar nesse tipo de coisa, acho tudo uma grande bobagem. Qual o sentido, afinal, dessas discussões tolas? Não levam a nada. Ela parece comigo, é a minha cara, vai gostar das mesmas coisas que eu e a opinião dos outros que se exploda.

* * *

Adoramos frequentar livrarias, jogamos o mesmo joguinho do Snoopy no iPad, dançamos ao som de Strawberry Fields Forever e Blitzkrieg Bop no carro, montamos Lego no chão da sala, assistimos às Crônicas de Nárnia com ela deitada sobre meu peito infinitas vezes, temos a mesma mania de ficar parados segurando o braço esquerdo acima do cotovelo e alimentamos uma estranha obsessão por colecionar lanternas – sim, temos por toda a casa, várias delas nas gavetas e, apesar de mal fazermos uso, são tidas como item de primeira necessidade no lar.

Qualquer pai se enche de orgulho ao notar sua pequena cria desenvolver os hábitos e traços que lhe são peculiares. É um sinal da nossa continuidade, da herança que deixaremos, uma espécie de legado para a humanidade que nos identifique – bem, talvez não a humanidade toda, no sentido amplo da coisa, você entende, mas aquela dúzia e meia de parentes com certeza.

Adoramos nos ver em nossos filhos porque amamos que sejam parte de nós. Queremos, claro, que sejam melhores do que seremos, em tudo, que sigam a caminhada numa jornada bem-sucedida, feliz e com realizações. Sonhamos que suas vidas tenham significado e que façam história. E poder imaginar que existe um pouco da gente ali sendo carregado naquele ser humano que amamos mais do que a nós mesmos, é alegria das mais radiantes. Provoca, de algum jeito, um certo conforto, uma falsa sensação de segurança ao imaginar que sabemos o que estão passando.

E seria muito bom se tudo parasse por aí.

Entretanto, em medida sem igual, preciso dizer, dói como poucas coisas notar, vez por outra, que minha menina sofre ao carregar o peso de males que herdou de mim. Das patologias às manias e defeitos mais complexos. Ela é alérgica, ela é sistemática até o último cromossomo, precisa usar um aparelho nos dentes para corrigir um problema genético e tem uma carga exagerada de nostalgia para com as coisas que não cabem nos seis anos vida que acumula.

Imagens e semelhanças.

Ela não tem culpa. Eu a amo tanto, não gostaria que sofresse por nada, muito menos por defeitos que são meus. Não quero que a Nina pague esse preço. Seja dos problemas físicos, seja dos morais. E nesse sentido, Deus sabe como não quero que ela repita os meus erros. Não, ela não precisa.

Eu oro por ela. Gostaria que Deus me dissesse o que ele tem em mente. Que tipo de aprendizado ainda não fui capaz de assimilar e que minha filha, alguns pontos de QI a mais do que eu, pode superar mais cedo? Cedo na vida, eu rogo em minhas preces, quero que ela conheça a Jesus, que desenvolva seu caráter e descubra o sentido da sua existência.

Oro a Deus, o pai sem defeitos. Para que do alto de sua perfeição, aprimore sua criação corrompida. Porque eu sei que nele podemos ser transformados e, ele em nós, corrige nossas falhas, limpa nossas impurezas, cura as doenças, muda a condição em que estamos e até, há de se esperar, faz sumir as manias mais estranhas.

A imagem e semelhança perfeitas, em Jesus.

* * *

Eu a observo brincando, sentada em sua mesinha desenhando cuidadosamente. Tal como a Manú, ela tem um certo talento pra isso, um bom traço, é criativa, passa horas concentrada em seu “trabalho” – como ela chama. Eu a ouço falando qualquer coisa sobre seu dia, cantando a trilha sonora do desenho da TV, contando das amigas da escola, das brincadeiras, tudo nos mínimos detalhes. Fico olhando enquanto ela come com a cabeça apoiada numa da mãos, espetando os legumes com o garfo. Passo um tempo em silêncio, admirado com a velocidade ingrata com que minha menina está crescendo sob nossos olhares. O tempo é um velho cruel e indomável. Preciso desfrutar, tento reter cada instante que posso ao seu lado nessa infância que passa tão rápido. Queria dar pra ela uma lanterna para ajudar a iluminar melhor o caminho que terá pela frente. Que ela vai seguir com as próprias pernas, que ela vai descobrir com seu olhar brilhante, desbravar com sonhos que Deus plantou só na sua mente. Porque é tudo o que eu quero ver nela: nada de mim na verdade. Mas dela. Quero viver para ver o que ela se tornará, sua identidade, sua a visão do mundo, sua imagem graciosa refletindo na vida dos netos que nos dará um dia.

Ela dorme no chão da sala. Estávamos vendo um filme quando pegou no sono. Levanto, preparo sua cama no quarto, aumento a quantidade de cobertas, está frio, então volto para a sala e a pego no colo. Ela está ficando maior, eu estou ficando mais velho, mas esse é o lugar onde espero que ela sempre caiba. Carrego minha menina para a cama com todo o peso desse sentimento no peito, ajeito seu pijama, tiro a franja que lhe cai no rosto e ela suspira inocência.

Admiro minha cria. Ela é bonita. E Deus, que ninguém me ouça, mas é a cara da mãe.


(Esse texto faz parte da série Paternidade)

Livres da irrelevância

“Em um mundo em que 840 milhões de pessoas irão para a cama com fome nesta noite por falta de condições financeiras para fazer uma refeição, em um mundo em que 1 milhão de pessoas cometem suicídio todos os anos.

Jesus quer salvar nossa igreja do exílio da irrelevância.

Se tivermos quaisquer recursos, qualquer poder, qualquer voz, qualquer influência, qualquer energia, devemos convertê-los em bênção para quem não tem nenhum poder, nenhuma voz, nenhuma influência.”

(Rob Bell, em Jesus quer salvar os cristãos)

O escândalo da bondade

Semana de Páscoa.

Estava rolando minha página do Facebook enquanto procrastinava alguma tarefa importante quando vi a foto de uma criança portadora de deficiência raríssima. A legenda dava conta de que passou muito tempo internada, enfrentou inúmeras cirurgias e depois de muito esforço dos médicos, da família e de tantas boas almas que se juntaram nessa corrente, estava curada e vinha se recuperando. Na tela azul da rede social, em meio a outras postagens com imagens de filhotes de cachorros e flores silvestres com frases de autoajuda, a foto da criança era chocante. E o autor fazia uma pergunta, estampada em letras garrafais sobre a imagem: “E aí, quantas curtidas essa pequena guerreira merece?”. No rodapé, centenas de milhares de procrastinadores haviam clicado sobre o pequeno polegar estendido em sinal de solidariedade.

Três ou quatro rolagens abaixo, outra foto. Dois homens tiveram suas casas invadidas pela enchente. Um deles carregava sobre a cabeça sua televisão de tubo, coisa de 21 polegadas e a muda de roupas que conseguiu salvar. O outro, com a água barrenta quase na altura do pescoço, erguia sobre si um cachorrinho vira-latas assustado e livrava a sorte do seu fiel amigo. A legenda dizia algo sobre eleger prioridades, exaltava a conduta do rapaz e convidava os demais admiradores desse herói a curtirem e compartilharem a sua atitude.

Eu não cliquei no joínha e quase fiquei com um peso danado na consciência, questionando se, afinal, sou um indivíduo frio e sem coração. Como eu não podia curtir a pequena guerreira? Como eu, dono recente de um cachorro que encanta – e destrói – o nosso lar, não iria me juntar às miríades que clicavam e comentavam a boa ação do sujeito na enchente?

À noite, em casa, o William Bonner reservou parte do último bloco do Jornal Nacional para contar a história do dono de um supermercado que doava cestas básicas para as pessoas desabrigadas, vítimas da mesma enchente. Havia certa celebração na voz do jornalista, louvando a boa e generosa alma do comerciante como um Super-Homem da periferia carioca.

Um último fato. Tem uma seguradora investindo alguns milhões de reais em uma campanha de publicidade que convida os motoristas de São Paulo a serem mais gentis no trânsito – e quem vive em São Paulo sabe o quanto o trânsito é algo crítico. Fizeram um adesivo, com um coração e tudo, para que as moscas brancas da ética grudem na traseira de seus automóveis e avisem ao cidadão do carro de trás que, sim, respeitam seu vizinho de congestionamento e que, não, não arremessam seus carros em cima dos pedestres pela rua.

Vivemos em um tempo da história – ou talvez nunca tenhamos saído dele – em que o que deveria ser regra se tornou uma exceção esdrúxula. A generosidade, a ternura, a compaixão e os pequenos gestos de solidariedade são noticiados em horário nobre, mobilizam interações em redes sociais e são foco de campanhas de marketing de empresas.

Vivemos em um tempo em que a humanidade sente saudades do que deveria ser um sentimento elementar do homem para a vida em comunidade. De forma espantosa, os valores que mais louvamos no ser humano são os que julgamos serem tão pouco praticados pelas pessoas ao redor, a ponto de darmos destaque, como notícia, quando alguém se voluntaria em cumprir o seu dever cívico, ser gentil ou respeitar o direito do próximo.

Vivemos num tempo em que Jesus faz uma falta danada.

* * *

É no mínimo curioso observar que Jesus viveu de forma escandalosa e integral o exemplo de ser humano que admiramos ainda hoje. Eram suas atitudes, a doçura e a gentileza que encantavam e atraíam multidões. Era a predileção pelos mais fracos, a compaixão pelos carentes, a defesa dos oprimidos, o olhar além da superfície que encarava, constrangia e revelava a alma para aquele que não julgava, mas compreendia. Era o amor abundante, o toque restaurador, a paciência em ouvir. Era ele, o Deus encarnado, a humanidade em sua plenitude.

O mundo hoje destila indignação contra o cristianismo. Quando não indignação, um certo desdém. Não sem razão, se tomarmos como partida que o Cristo que as pessoas enxergam é o que a igreja anuncia em seus templos e canais de televisão. Mas o mundo que rejeita o Cristo é mesmo que o adoraria se o conhecesse, porque se o mundo ainda se comove com gestos de compaixão, ternura e generosidade, então ainda está aberto a Jesus Cristo e sua mensagem.

Ele só pode ser realmente conhecido através dos que afirmam refletir sua imagem. Se a imagem que projetamos é de intolerância, preconceito, atraso e egoísmo, até mesmo Jesus se afastaria – e se afastou – do que ele mesmo chamou de hipocrisia e cegueira.

Seus primeiros seguidores foram chamados “cristãos” pelos outros judeus porque eram vistos como “pequenos cristos”, tal era a semelhança que tinham com seu mestre. Eram também vistos com simpatia pelas pessoas e era justamente essa graça que fazia com que tantos desejassem ser como eles e saber mais sobre o Messias que anunciavam.

Jesus faz muita falta nesse mundo. Ele confiou a seus seguidores a responsabilidade de agir e falar em seu nome. Ser sal para escandalizar uma sociedade insossa, ser luz num mundo cheio de sombras, ser uma fagulha para incendiar a Terra de amor, servir para destruir o egoísmo.

Esse não é um compromisso que se deve cobrar da igreja. Não é a dívida moral de uma instituição. Não é uma mudança que alguém deva assumir porque se diz cristão. Esse é um voto que precisamos assumir como seres humanos. Uns pelos outros, de cada um para Deus.

Porque Deus não escolhe filhos, os homens é que escolhem seus deuses. Deus é um só, o Pai da humanidade toda, o criador do mundo. Para os que acreditam e para os que não acreditam também.

* * *

Na Páscoa, refletimos por um instante na vida de Jesus. Paramos para olhar principalmente os momentos finais de sua jornada na Terra, culminando na morte de cruz no Calvário numa sexta-feira e, dois dias depois, em sua ressurreição redentora.

A Cruz nos diz muita coisa. A gruta vazia está cheia de significado. Mas a histórica da Páscoa não é só sobre morte e ressurreição, mas sobre o renascimento da esperança, sobre o resgate da humanidade da condição de escravos do egoísmo para a de pessoas livres. Os dias da Páscoa antecedem em algumas semanas o momento do Pentecostes em que Jesus cumpre a promessa feita aos seus amigos de que voltaria, em Espírito, para habitar em cada um e inspirá-los na caminhada que os conduziria a uma semelhança total com seu mestre. Antecedem em poucos dias o encontro em que Jesus pede que eles sigam, mundo afora, anunciando e sendo uma boa notícia.

A humanidade inteira parecendo com Jesus.

Isso é urgente, é para agora, é a semente de um novo fruto que desejamos plantar para que nossos filhos colham. É preciso uma revolução. Não dá para procrastinar.

“Venham a mim, todos os que estão cansados e sobrecarregados, e eu darei descanso a vocês. Tomem sobre o meu jugo e aprendam de mim, pois sou manso e humilde de coração, e vocês encontrarão descanso para as suas almas. Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve” (Jesus, em Mateus 11:28-30).

Seis anos e a eternidade pela frente

Ninaversario_6anos

Seis anos. Eu ainda me lembro da festa. Foi uma surpresa tramada pelo meu irmão e minha mãe. À tardinha, saí de bicicleta para buscar um jogo na casa de um amigo e, quando voltamos, tudo escuro, já estavam todos escondidos na cozinha. Amiguinhos, vizinhos, primos e familiares saltaram detrás da geladeira, da porta e debaixo da mesa. Eu lembro da farra, do bolo, de alguns presentes e do meu pai dizendo: “É, cara, já encheu uma mão inteira e agora vai começar a contar na outra”. E aquilo era toda a maturidade com que eu podia imaginar.

São dessa idade as primeiras lembranças ordenadas que guardo da infância. Bom, tem realmente pouquíssimas coisas que eu faço acima da média, uma delas é ter uma memória visual impecável. Eu não sei jogar bola, sou incapaz de tocar uma guitarra, mas sou bom pra burro com a memória. Fatos, cores, cenas, detalhes, diálogos, nada me foge. E desse tempo na infância, às vezes as lembranças me resgatam como uma âncora. Lembro em detalhes da vila onde morávamos lá na Barra Funda, as casas pequenas, todas iguais, grudadas umas nas outras. O cheiro e o som da fábrica de asfalto cujo sinal apitava toda manhã na avenida, os bem-te-vis que cantavam numa árvore cuja copa se projetava sobre o nosso quintal bem perto da janela do quarto onde dormíamos, os três irmãos.

Estávamos nos anos 80, era o tempo do meu primeiro ano na pré-escola, das brincadeiras de bola, de pipa, figurinhas da Copa União e rachas de carrinho na rua. Foi naquele ano que aprendi a decifrar as primeiras palavras escritas e todo o mundo de descobertas que surgiu depois disso. O mundo. O mundo para mim era aprender, era o som dos Titãs tocando “cabeça, cabeça, cabeça dinossauro…” no micro-system do meu primo, era aquele presidente bigodudo anunciando coisas e coisas na tevê com uma voz estridente e preocupante, era a vinheta do jornal da Jovem Pan tocando no rádio do Fusca do meu pai enquanto eu ia pro colégio e o sol nascia através do pára-brisas. E tirando uma viagem por ano para a Praia Grande, meu mundo todo era aquela pequena vila de 30 casas que eu explorava tarde afora em cada detalhe.

Era tudo o que eu tinha. Eu tinha seis anos e nem imaginava o que vinha pela frente.

Hoje a minha filha faz seis anos.

Ontem, antes de dormir, a Manú e eu recapitulamos para ela a história do dia em que nasceu – ela adora ouvir – e depois, enquanto fazíamos a nossa prece rotineira e casualmente me dei conta do tamanho que a Nina tem agora, essa criança cheia de personalidade e graça que já ocupa seu espaço na casa e nas nossas vidas, me senti intensamente grato, fingi um cisco nos olhos, mudei o rumo da conversa e saí de lado. “Hora de dormir, filha, vê se pega logo no sono. Tenha bons sonhos”.

Com o quê nossa menina vai começar a sonhar? Como será que ela vê as coisas hoje?

Não foi um dia de festa surpresa para ela. Teve escola como todo dia, teve trabalho, consulta médica e lição de casa. A rotina que se impõe sobre a gente fez com que o aniversário dela corresse como num dia qualquer. Só mais a noite, já no fim do dia, é que a levamos para um passeio, um sorvete, um livro novo, brincadeiras, uma bonequinha, o lanche e, em poucas horas, a sensação infantil de que o dia era todo dela.

Não sei dizer se daqui a 26 anos ela vai se lembrar desse dia. Tentamos tornar as coisas memoráveis, nos esforçamos nessa busca tola por grandes experiências na vida, mas sabemos bem que não são exatamente essas situações que nos marcam. A memória nos trai, a vida faz curvas e no fim as histórias que levamos na bagagem são, em geral, as menos prováveis. Mas fico tentando imaginar o que a Nina vai guardar desse tempo. Do que ela vai se lembrar? Quais serão, quando adulta, as lembranças remotas que ela terá da infância? Os amigos, a casa, as Escrituras, a escola, a cachorrinha nova que chegou por aqui há duas semanas – Lucy, muito prazer. Será que ela terá consigo a raiz ainda firme com os princípios que a Manú e eu tentamos ensinar diariamente? Que princípios devemos ensinar para ela? A paternidade é um fardo adorável.

Ela tem pressa. Tenho quase certeza de que esses seis anos se passaram, na verdade, em três. Papo sério, acho que tem gente conspirando e fazendo tudo andar mais rápido e os cabelos ficarem brancos mais cedo. E eu bem sei que nesse ritmo, já, já ela vai ganhar o mundo, vai sair de debaixo das nossas asas e voar por aí sem que a gente possa controlar ou prover, vai descobrir e construir seu próprio mundo, sua visão de mundo, vai notar um dia que não passávamos de um casal bem-intencionado que, entre muitos erros, deixaram escapar alguma coisa boa que servirá para que ela seja alguém muito melhor do que jamais imaginamos ser. Esse é o sonho, é um desejo, é até uma oração agora. Sua liberdade será a nossa eterna insegurança. E então, só o que poderá trazê-la de volta vez ou outra para nosso ninho, é essa mesma liberdade, o desejo de vir e sentir-se querida. O único princípio que podemos ensinar pra ela é o amor. A paternidade jamais é um fardo.

Ainda ontem, antes de dormir, enquanto eu me esgueirava quarto afora com aquela lagriminha correndo num canto dos olhos, ela me lançou uma pergunta:

“Pai, quando a gente for pro céu, nossa vida nunca mais vai acabar?”

“Não, filha. Deus fez a gente para viver pra sempre.”

“Pra sempre?”

“É. Isso que chamamos de eternidade.”

“Pai, quando eu for pro céu, eu queria continuar sendo criança.”

Isso deveria ser uma condição, certo? Não resisti: “Faz bem, querida. Você sabia que Jesus falou que todo mundo, os adultos todos, deveriam mudar e tentar ter um coração como as crianças tem?”

“Boa noite, pai” – ela não estava interessada em teologia.

Ela tem seis anos e nem imagina o que vem pela frente. E aí mora toda a beleza da coisa. Somos filhos. Quem é que imagina, afinal?

A melhor história real de todos os tempos

Belíssimo projeto do Voa Flor.

Vocês afirmam ter um Salvador. Por que não parecem salvos?

Mais de cem anos atrás, o filósofo ateu Friedrich Nietzche censurou um grupo de cristãos com as seguintes palavras: “Eca! Vocês me enojam!”. Quando o porta-voz dos cristãos perguntou por que, Nietzche respondeu: “Porque vocês, remidos, não parecem remidos. São tão cheios de temor, tão dominados pela culpa, tão ansiosos, tão confusos e tão sem direção quanto eu. Mas eu posso ser assim. Eu não creio. Não tenho nada sobre o que lançar a minha esperança. Mas vocês afirmam ter um Salvador. Por que não parecem salvos?”

– Brennan Manning, em Convite à solitude (p. 26)

Ravel

A mãe ficava rosada, cruzava os braços de um jeito duro, os punhos cerrados e falava fitando o chão enquanto enxugava as lágrimas. Era assim sempre que suas emoções vinham à tona. Tanto quando estava feliz quanto muito brava. E só dava pra saber se era de um ou do outro quando ela falava. E naquele dia, era do outro.

“Que ideia, menino, toma juízo! O que você tem na cabeça? Titica? Cocô? Onde já se viu essa história? Não vê seu pai e eu aqui fazendo de um tudo pra você estudar, ter alguma coisa na vida? E vem com essa agora… Toma tenência, toma noção do que você é, donde nasceu. Isso aqui é a Vila São Paulo, Ravel, não é a capital”. Ela ergueu os olhos e me encarou num instante. “Guarda esse papel aí e vai fazer teu curso que já está na hora”.

Eu ia levantar argumento, mas ouvi a botina do meu pai mastigando a terra do quintal na direção da porta. Sua sombra era tudo o que eu via, crescendo e tapando cada vez mais o sol que entrava no final de tarde. Ele não disse nada, entrou, passou por nós dois e foi fuçar uma caixa de papelão no canto da cozinha.

“O café tá fresco na garrafa, Cícero. Se quiser, já leva pra oficina.”

Quando ele levantou com uma ferramenta na mão e já passava a outra pela garrafa de café, ela então fez o desfecho:

“Piano, Ciço, você já ouviu essa, já soube da extravagância?” – ela adorava usar essa palavra para qualquer coisa – “Seu filho deu agora de querer largar o curso de Torneiro pra tocar piano, como se…”

Nem fiquei. Fui pro meu quarto, peguei o caderno, sentei na mesinha, liguei a fita no walkman e fingi que estudava enquanto, lá no fundo, apesar da raiva, concordava com a mãe. Que idiota eu era, que idiota! Aquilo não tinha o menor sentido. Não pra mim.

É que eu só queria era ser livre, queria ir pra longe daquela prisão de vida, daquela vila suja marrom e laranja, do barulho do martelo lá na oficina na minha orelha o dia inteiro, da poeira impregnada em tudo, da mesma comida no prato, do sapato arrebentado, do colarinho apertado. Eu amava a mãe e o pai, queria levar os dois na bagagem. Mas, eu só queria ter opção de vez em quando, sabe? O rico acha que o pobre quando sofre, sofre menos do que o rico. O branco acha isso do preto, o forte acha isso do fraco, o homem acha que tem ser humano que é menos humano no mundo. Aí, se você é pobre, preto e fraco, às vezes quase começa a acreditar nisso. Tratam a gente como bicho, descartam como objeto. Como se não doesse igual.

O negócio é que eu não queria mais. E também não queria um jeito pra esquecer, queria era ir pra longe. Eu não queria ir pro campinho, nem correr atrás de balão ou brincar de pescotapa. Eu queria ouvir a música, me enfiar no quarto, ficar de barriga pra cima escutando uma das duas fitas K7 que ganhei de prenda na quermesse e tentar adivinhar quais teclas os dedos do pianista estavam tocando naquela hora. Não era nada erudito que me invocava, mas a poesia. Até ali, eu não queria descobrir uma técnica, não queria saber como é que o homem era capaz de realizar aquele milagre, eu queria era ser levado naquela melodia, como o vento, como um passarinho. E se o encantamento com a música foi o que me alimentou até aquela hora, então parecia de repente que eu precisava transbordar, jogar tudo aquilo pra fora. Eu queria aprender a tocar. E música, além de tudo o que eu amava então, era também meu jeito de fugir daquela condição.

Queria poder dizer pra mais alguém o que eu pensava e não só pra mãe, que me ouve, mas retruca, que se altera toda. Bom… pelo menos ela conversa. Ali na pia, o avental molhado na barriga, o cheiro de perfume que ela usa é de tempero, aposto. Mas ela ainda fala. E ele, lá fora na oficina, bate e martela o ferro, é só isso que eu sei. E assobia, a mesma música, toda vez que o trabalho está difícil. Com o pai não tinha carinho, não tinha brinquedo, não tinha conversa, nem conselho. Tinha o jeito dele, tinha um pacote de figurinhas da Copa União na minha penteadeira de vez em quando e uma goiaba cortada em quatro em cima da mesa, junto do prato de comida, quando eu chegava do curso técnico à noite.

Na outra semana, cheguei pro almoço e ele estava lá no fundo, martelando. Pisei na cozinha e a mãe lá, daquele jeito de novo. Nem falava, era só o rosto rosado e molhado, os braços cruzados. Eu quis saber o que que foi e então vi que era braveza outra vez.

“Eu não sei de nada, nem quero saber de nada. Não quero nem ver! Nada! Ai, menino! Agora, olha… Ai, meu Jesus santo…”

Vai saber lá do quê? Enchi o prato, sentei calado, almocei quieto numa só garfada e levantei sem falar. Ela ali na pia, eu passei batido. Fui pro quarto, joguei a mochila num canto e vi um piano perto da janela.

Voltei pra cozinha, parei na frente dela. Nem levantou o rosto, só tapou a boca com a mão, fez que não com a cabeça e desandou no choro enquanto me apontava a porta por onde saí num salto, assustado, engasgado, aquela bola, a coisa toda estranha na barriga e na garganta e corri pra oficina onde o pai estava lá, martelando e batendo. E sei que ele estava agachado trabalhando, de costas pra tudo e nem se mexeu quando chamei, nem quando cheguei perto, nem quando o abracei e deitei a cabeça nas suas costas e chorei.

Aí ele passou a mão devagar na minha cabeça, eu saí, ele passou a mão no martelo e passou os seis meses seguintes trabalhando dobrado e assobiando sem parar.

A mãe só voltou a conversar quando prometi que ia fazer as aulas de piano lá na igreja de manhã e continuaria o técnico à noite.

E toda tardinha, depois da aula, eu mergulhava no piano. Eu treinava os exercícios e depois ficava ali, ainda sem saber direito, eu martelava e batia nas teclas e era só o que eu sabia. A mãe aumentava o som do rádio, os passarinhos armavam um ninho na goiabeira do quintal e o pai eu via lá no fundo pela janela, quase como se quisesse que ele me ouvisse.

Ia para o curso escutando os K7’s no walkman e dormia com os fones no ouvido tocando sem parar. Xopân, eu soube depois que era o nome do rapaz do piano que me ocupou tantas tardes. No começo, eu só dizia nas aulas que queria tocar como ele um dia. Mas ganhei depois no curso uma fita nova. O professor, um pastor moço da capital que vinha até a cidade só para dar as aulas como voluntário, deixou uma música para eu treinar.

A danada da fita tocava a música do pai. No fim, o assobio todo era uma peça famosa de um cara de nome difícil. Escutava a maldição da música no walkman para aprender direito, ensaiava sem parar durante as aulas lá na igreja e o tempo todo eu lembrava era do martelo castigando o aço. Mas aí eu aprendi.

E cheguei em casa um dia e vi que o pai estava lá fora, assobiando na oficina. Entrei no quarto e o vi de novo pela janela, agachado, forjando uma peça no braço. Sentei no piano e toquei a música. Na quinta nota o barulho parou, o assobio parou, o pai parou, ficou em pé, olhou pro céu um minuto, respirou fundo e, num fôlego, tomou o cabo do seu instrumento na mão, agachou e voltou a tocar o martelo. Eu sabia, ele sabia.

Toda tarde então era assim. Eu ensaiava, tocava, enquanto o pai trabalhava lá fora esculpindo suas coisas no torno, moldando as chapas de ferro, fundindo o aço que seria usado depois em novos serviços, atendendo um cliente vez ou outra, sorvendo o café da garrafa sem parar. Sem assobios do pai, sem o radinho da mãe, só o metal gritando na oficina e os sabiás cantando entre as goiabas. Essa era minha música por horas, até que vinha o cheiro do café novo, a hora do banho, o macacão azulado do Liceu e a partida para aula no novo turno.

E na mesma semana em que a escola avisou sobre a data da minha formatura no curso de Torneiro Mecânico, o pastor chegou da cidade com um folheto novo, me convidando para um recital na capital, junto com a ficha de candidatura para uma vaga num conservatório.

Cheguei berrando em casa, sem fôlego, tropeçando, contando tudo para os dois que almoçavam. A mãe ficou daquele jeitinho e o pai de jeito nenhum.

Na noite do recital, em dezembro, eu já estava formado no técnico. O diploma virou quadro na parede da sala e era ali, naquele canto, que eu queria abandonar tudo aquilo. Viajamos para a cidade numa Kombi emprestada de um amigo do pai. A mãe costurou um vestido novo, todo azul escuro, longo, meio fofo e de alças presas nos ombros. Botou um xale bege nas costas, fez um coque no cabelo e usou a maquiagem de festa que ficava guardada na gaveta da cômoda. O pai vestiu o terno da missa. E eu passei um mês torneando na oficina do Liceu para juntar uns trocos e alugar um fraque.

Toquei Báh. Toquei Xopân. E mergulhei tão fundo naquele piano novo, e martelei tão convicto aquelas peças brancas que quase acho que deixei um pouco de mim por ali. E só então, depois, vazio de tudo, reparei que estava num palco, que tinha uma luz sobre mim, que tinha um bocado de gente no teatro e tinha os dois ali. A mãe com as duas mãos tapando a boca, toda rosada da maquiagem e da emoção. E o pai, aplaudindo junto, respirando fundo com a boca aberta e os olhos marejados. E era tudo.

* * *

E foi o pai quem, de novo, duas semanas depois, deixou em cima do piano os papeis: a carta e uma ficha do conservatório me convidando para ingressar no grupo.

Já era Natal e dessa vez a mãe era toda emoção. Mas do outro jeito. Quando desandou a falar, depois de me dar uma fita K7 nova e uma partitura de presente, disse que estava morta de medo, mas que “é bonito demais, bonito demais esse piano. Vai, menino, dá mais graça pra esse mundo com essa sua extravagância, dá orgulho pra sua vila. Só não esquece da gente, promete? Seu pai e eu… promete que não me esquece, tá?”

Gostei demais do presente. Também me sentia emocionado. Perguntei se lhe daria orgulho sendo músico e não Torneiro, igual ao pai.

“De qualquer jeito dá”.

O pai estava lá fora. Assobiava.

Naquela noite, sem música, eu sonhava. Finalmente, era hora mesmo de ser livre, finalmente ver o mundo e outras cores, ser parte daquela arte que eu amava, expressar o dom de Deus, de ganhar a vida com minha música finalmente.

Eu tinha as malas prontas e uma pergunta martelando na mente que não me largava. Como é que seria a música sem o chiado do radinho e o tilintar da louça lá na pia? De que jeito ia soar sem minha terra no quintal, sem o vento atravessando as folhas da goiabeira, sem os sabiás? Como é que seria agora, meu piano ressoando sem a sinfonia do martelo?

Porque eu bem sei que queria ter quem me escutasse e então eu tinha. Queria agora ser maestro, ainda queria ser Xopân, talvez queria ser Torneiro. Eu queria transbordar mas não precisava mais fugir. Lá no fundo, acho, queria era a poesia, eu só queria os passarinhos. Agora nada mais doía. Eu tinha uma opção, sabe?

Eu quero menos

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Dia desses, eu fazia qualquer coisa no Facebook quando me dei conta, observando a linha do tempo na página, que já faz quatro anos que freqüento aquela tela azul. Eu quase alimentei um certo orgulho do meu pioneirismo não fosse uma resistência velada que tenho pela ferramenta. Não sei o que é, eu uso mas não gosto. Ou gosto de não gostar, só pra ter algo do que reclamar.

Zapeei pela página e vi que o Facebook sugeria que eu ficasse amigo de um parente distante. Ele acreditava que eu poderia adicioná-lo à minha rede, dado que temos 26 outros amigos em comum. Senti-me tentado, cliquei, adicionei, tal como se incluísse um item num carrinho de compras. Aproveitei as ofertas do dia e incluí também dois ex-colegas de trabalho e um amigo de infância a quem não via há muitos anos. Saí do Facebook de sacola cheia naquela manhã. E apesar das novas e velhas amizades virtuais, não fiz contato real com ninguém.

Sendo muito sincero, acredito que isso se deva muito menos a um interesse real de resgatar relacionamentos que eu acredite que ainda vão avançar para um novo grau de intimidade – a ponto de eu querer saber, numa conversa pessoal, que o cachorro do Beltrano acabou de sair do petshop de penteado novo e curtir a ideia de que a filha da Fulana ganhou uma festa porque completou aniversário de um ano, três meses, duas semanas e oito dias de vida – e muito mais ao fato de que, tendo por perto todas essas pessoas que frequentam apenas minhas lembranças distantes, sabendo o que elas curtem, comentam e compartilham, eu me sinta menos culpado em não manter um contato real.

Pois é, veja você, cá estou eu reclamando de redes sociais.

Mas veja, não é contra novas formas de se vincular às pessoas que eu tenho andado inconformado – nem poderia, se você está lendo isso agora, muito provavelmente foi porque publiquei em algum canto obscuro da internet – mas contra o tipo de personalidade que assumimos nesse ambiente e, pior, o tipo pessoa que nos tornamos – ou revelamos ser – desde que esses meios passaram a afetar a nossa rotina de forma tão significativa.

A superficialidade das relações nos anestesia, tem nos tornado indiferentes às dores e à vulnerabilidade dos que estão ao nosso redor. Não temos mais nada uns com os outros, senão vínculos cada vez mais frágeis.

O excesso de estímulos e o simplismo das informações, que já quase assimilamos pelos poros, nos torna também impacientes. Já não temos tempo ou não queremos despender esforços com a parte do outro que não nos agrada. No fim, só queremos o que “curtimos” e bloqueamos o resto.

Vivemos uma busca desorientada pela felicidade, como se ela fosse um fim, um destino, e estamos ansiosos, queremos ver pessoas felizes e nos mostrar como pessoas felizes acreditando nisso como um ideal projetado de realização. E cada vez menos essa busca tem como objetivo o bem-estar comum, cada vez menos as conquistas que celebramos tem a ver com a comunidade em que vivemos. Porque estamos sozinhos, à caça da aprovação alheia, vivemos a explosão do ego, a incrível era da contemplação do umbigo e o mundo já não é da nossa conta.

Nesse tempo, relacionamentos amorosos duram pouco, amizades são casuais, casamentos são contratos, efêmeros, buscas existenciais são feitas pelo Google. Não contemplamos mais o horizonte, literal ou figuradamente. Só vemos o que está um palmo à frente e amamos o que temos ao alcance das mãos, literal ou figuradamente. Só merece nossa atenção o que nos oferece, uma pílula que seja, de êxtase instantâneo.

Porque só pensamos em nós, nos bastamos e desejamos, coisas, pessoas, experiências e um deus que nos satisfaça.

* * *

Meu amigo Rui diz que se os primeiros textos bíblicos fossem escritos nos dias de hoje, Deus trocaria a palavra “pecado” por “egoísmo”. Egoísmo é a melhor tradução para o tipo de comportamento tão condenado no homem ao longo da história.

Bem, talvez você não pense em pecado como algo com o que você deva se preocupar porque, afinal, isso trás consigo um vínculo religioso e, em geral, a gente não costuma gostar de ter o nosso senso de liberdade podado por uma regra definida sabe lá onde por alguém alegando se expressar em nome de Deus.

Talvez você, assim como eu, também não pense em egoísmo como algo que lhe diga respeito. Somos, afinal, tão cheios de compaixão, tão desprendidos e beneficentes. Não matamos, não roubamos, não cometemos crimes, doamos algum dinheiro e brinquedos para instituições de caridade, somos capazes de construir relacionamentos sólidos.

No entanto, ao contrário disso tudo, nos animamos com a ideia ou conceito de altruísmo (do latim *alter*: outro + *ismus*: adepto, seguidor). Somos bons cristãos, transbordantes de generosidade. Nos levantamos entusiasmados em defesa do outro, com profundo desejo de nos doar pelo bem-estar alheio. Deixamos de lado nossos interesses para ter como prioridade o bem-estar coletivo, nos doemos pelas feridas do nosso próximo, compartilhamos os “posts” com fotos de criancinhas malogradas na África.

Hmm, bem, talvez a gente pense em egoísmo, sim.

Finalmente, se nós pensamos em Jesus como alguém que conseguimos reconhecer como nosso Deus, então é possível que nossa expressão de devoção esteja sendo feita na direção errada.

De novo, vou gastar uma dose do eruditismo que eu não tenho para recordar que *hamartia* é uma palavra grega que pode ser definida como “errar o alvo, fracassar”. É essa mesma expressão que aparece nas escrituras em parte das referências a pecado.

O egoísmo foi, possivelmente, o sentimento que Jesus mais combateu com seus ensinos. Suas atitudes mostram uma caminhada na direção oposta a isso. E seu caráter, sua história e mensagens revelam que é bem possível que a gente precise dar razão ao Rui.

E, no duro, eu acredito que Jesus é o alvo em cuja direção precisamos seguir. Ele é o padrão perfeito de humanidade, é o Deus encarnado, o ser humano apaixonante e gracioso, o Deus que senta à mesa e divide o pão. Jesus não era egoísta. Suas relações eram profundas, seu interesse no outro era verdadeiro, ele era tolerante com as falhas e defeitos dos que estavam ao seu lado, ele dividia tudo o que tinha, doava de si, do seu tempo, para ouvir e estar junto. Ele sofria verdadeiramente com a dor dos mais frágeis. Compassivo. Lembre-se: ele morreu por cada um daqueles que o insultaram, cuspiram em seu rosto e o penduraram numa cruz de madeira.

Mas, ora, o que raios isso tem a ver com o Facebook? Com Facebook, nada. Mas sinto dizer que a conversa não é sobre redes sociais. Também não estamos discutindo sobre egoísmo ou pecado. Estamos falando de amor. E de falta de amor.

O amor, que em instância primária, não existe, não se constrói e se sustenta sem que tenha no outro – algum outro – seu alvo. Amamos alguém e ao nosso objeto de amor nos entregamos, nos doamos, cedemos, sem pensar absolutamente em extrair qualquer benefício disso que não a própria realização, pura, de poder amar.

A superficialidade das relações de hoje mata o amor. A indiferença mata o amor. Nossa insensibilidade em relação ao próximo mata o amor. O nosso egoísmo mata a Jesus – o amor em essência – e exclui sua face graciosa da Terra.

* * *

Nas horas vagas, quando não estou fazendo qualquer coisa no Facebook, eu leio livros. No último Dia dos Pais, ganhei da Manú e da Nina um livro do arcebispo anglicano sul-africano Desmond Tutu – não, ele não está no Facebook, mas eu curti.

Desde que comecei a leitura, descobri que Tutu é o cara que eu gostaria de ser. Não, não quero ter a vida dele e tampouco usar aquela túnica lilás brilhante com um chapeuzinho de côco, eu só queria ter um doze avos do caráter, da sabedoria e história desse homenzinho negro que foi capaz de liderar um movimento em seu país com a finalidade de perdoar – isso, leia bem – perdoar as pessoas que massacraram seu povo durante o regime de apartheid na África do Sul, enquanto todo o povo ainda sorvia sua sede de vingança pelo sofrimento.

Tutu resgata em sua abordagem uma expressão africana que eu quase gostaria de tatuar: Ubuntu. Em xhosa, diz ele: “Umntu ngumtu ngabantu”, que mal traduzida seria algo como: “Uma pessoa é uma pessoa por intermédio de outras pessoas”. Segundo essa ideia, ninguém vem ao mundo totalmente formado, por isso, um ser humano precisa de outros seres humanos. Ele defende: “Para nós, o ser humano solitário é quase uma contradição”.

“Ubuntu é a essência do ser humano. Ele fala de como a minha humanidade é alcançada e associada à de vocês de modo insolúvel. Essa palavra diz, não como disse Descartes, ‘Penso, logo existo’, mas ‘Existo porque pertenço’. Preciso de outros seres humanos para ser humano. O ser humano completamente autossuficente é sub-humano. Posso ser eu só porque você é completamente você. Eu existo porque nós somos, pois somos feitos para a condição de estarmos juntos, para a família. Somos feitos para a complementaridade. Somos criados para uma rede delicada de relacionamentos, de interdependência como nossos companheiros seres humanos, com o restante da criação.” (…) “A ênfase do Ocidente no individualismo tem mostrado, com frequência, que as pessoas estão sozinhas em uma multidão, despedaçadas pelo próprio anonimato.” (…) “Ubuntu nos ensina que nosso valor é intrínseco a quem somos. Temos importância porque somos feitos à imagem de Deus. Ubuntu nos lembra de que pertencemos a uma única família – a família de Deus, a família humana.”

A internet ainda funcionava a lenha quando Desmond Tutu escreveu e ministrou sobre isso. E não me parece que tenhamos feito algum avanço.

Mas, e se levarmos essa idéia adiante? E se colocarmos em prática todo o conceito, se decidirmos, no mundo contemporâneo, lutar contra o egocentrismo arraigado em nossa formação e seguir o exemplo de vida de Jesus Cristo? Não parece tão simples quanto desconectar o computador e sair por aí distribuindo abraços e oferecendo ajuda a estranhos. Nossas relações mais difíceis são, em geral, as mais próximas, com os que estão ao nosso lado e são capazes de nos fazer revirar as entranhas na busca por uma solução. Quão áspero parece ser ter que esbarrar nas falhas e contradições das pessoas. É tão mais simples, tão mais cômodo e confortável construir nossas bolhas, protegidos pelo escudo de uma tela de computador, atacando e defendendo com nossos cliques, alheios ao mau cheiro do efeito de nossos defeitos sendo expostos e sem precisar engolir o cálice amargo desses encontros.

Eu quero menos, confesso. Gostaria de poder tornar as coisas mais simples. Se tudo anda tão superficial, tão cheio de espuma, às vezes, precisamos mesmo cortar coisas para ganhar, ‘ter’ menos para ‘ser’ mais. Estar ao lado de quem amamos. E a vida toda só parece ser possível através de transparência e troca, de relacionamentos sólidos que se constroem com conversas, com sentimentos revelados, curtindo juntos, compartilhando, estando no Face… no face a face.

Chegadas e partidas

Minha avó está doente. Ela tem 93 anos e até alguns meses atrás, parecia seguir com tanta firmeza e lucidez rumo ao seu centenário quanto eu caminho em direção aos quarenta. Mas uma sequência recente de breves enfermidades a deixou combalida. O negócio é que ela não está exatamente doente, não sofre de nenhum sintoma específico, ela só está cansada. Dorme muito, come pouco, já não reconhece filhos e netos com a clareza de antes. Para quem até pouco tempo estava habituada a frequentar regularmente as reuniões dominicais da igreja e visitar os filhos, não é nada entusiasmante ver-se limitada a uma rotina tão pacata.

Tenho me preocupado com seu estado. E além dos pensamentos habituais sobre sua condição de saúde, por esses dias tem me ocorrido também que minha avó, de alguma forma, é o elo vivo mais antigo que eu tenho com o passado. Nem tanto pelas questões genéticas, que também existem, mas pela relação histórica. Ela carrega vivas as lembranças, as raízes do que somos, os frutos lá da roça que ela semeou um dia.

– Ah, pai, deixa eu aproveitar pra te perguntar uma coisa: como tá a vó?. Tenho pensado nela esses dias – aproveitei um telefonema casual com meu pai para ter notícias.

– Ah, filho… ela tá daquele jeitinho que você viu, não mudou muito. A gente chega lá e ela se levanta um pouco, conversa, fica mais animada. Mas quando a gente sai, ela fica murxinha, só quer dormir. Agora tem uma senhora lá ajudando a cuidar dela. Vamos ver.

– Tsc. Tadinha.

– Bom – longos segundos se passam – ela está se despedindo da gente.

Quando muito, eu a vi duas ou três vezes no último ano. Admito que não sou um neto muito presente, é uma falha que agora eu lamento. A última vez em que a vi, faz coisa de um mês.

– É o Nelinho?

– Não, mãe, esse é o Rique.

– Oi, Rique – e sorriu largo.

Passei calado quase toda a hora em que estivemos ali. Observei meu pai na condição em que quase nunca o percebi: a de filho. Temeroso, abraçado à mãe, honrando tudo o que ela significa com seu silêncio habitual. E tudo o que ela tem é um quarto apertado, arranjado na casa da minha tia, com uma cama, um armário pequeno, uma mala de roupas e um mundo inteiro de apreensão dos filhos e seus corações rendidos naquele espaço.

Quem é que ensina a gente a perder?

Com o que será que ela sonhava quando era criança? Quando ela chegou, jovem, era essa a vida que ela imaginou que teria? Na volta para casa, no carro ao lado do meu pai, enquanto as ruas passavam pela janela, eu pensava em minha avó ali sentada na beira da cama quando me despedi dela. O pijama velho de flanela, um gorro de lã branco cobrindo os ralos fios brancos que ela já não corta desde que se converteu a uma denominação religiosa conservadora e o mingau que ela sorvia de uma xícara. Mas, o tempo todo fina, preocupada com a boa postura. Suas posses se resumem em tão pouco… mas é tudo de que ela precisa. Tem sua família, seu Deus, tem um prato de comida, roupas, tem amor e um teto sob o qual dormir.

Pensei nas palavras de Jesus: “não se preocupem com o que vão comer ou o que vão vestir, não se preocupem com o dia de amanhã, não sejam ansiosos. Busquem o Reino de Deus e todo o resto lhe será dado”.

Mas será que ela pensa nisso? Será que entende que o Criador cuida dela através das mãos das minhas tias, que lhe dão banho, trocam sua roupa, trazem o mingau quente? Deus, com as mãos estendidas, lhe acaricia o rosto marcado, alivia a dor e divide o jugo de quase um século que lhe colocaram sobre os ombros.

Será que entendemos?

Do que o homem precisa na vida, afinal? Perseguimos tanto, trabalhamos duro… e será mesmo que o começo e o fim se resumem, essencialmente, em amar e se relacionar, em estar e cuidarmos uns dos outros?

Parece que faz sentido. Mas não parece que queremos que tudo seja tão simples.

Por que desviamos tanto o olhar e a rota ao longo da vida, que é tão fugaz? Eu não sei. Erramos o alvo. Peregrinos que somos, buscamos preencher o vazio na alma com os milhares de meios que transformamos em fim, até descobrir, já exaustos, a única razão capaz de nos suprir. Uma palavra, o Verbo, o amor.

“Pois, que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?” (Jesus, em Marcos 8:36).

Quais eram os sonhos daquela moça? Eu me perguntava, tentando construir na memória a sua história até onde a conheço. Casou cedo, trabalhou no sítio, deu à luz 12 filhos, conseguiu criar os sete que sobreviveram às dificuldades da vida no campo na década de 1930. Perdeu o marido ainda jovem, deixou a terra, os amigos, a família e a vida em Minas Gerais quando se mudou para São Paulo. Fez os filhos crescerem, viu quando casaram e se foram, se multiplicaram, ficaram velhos com ela. Viu o mundo ficando cinza, urbano, digital, viu a história das últimas décadas passando na televisão, em preto-e-branco e colorida, que nem existia quando ela nasceu, que ela trancava no armário, de “castigo”, quando as notícias ficavam tristes demais. Viu guerras, presidentes, novelas, crises e bonanças.

E que diferença isso fez? Que diferença faz toda a história do país e do mundo, a humanidade, o dinheiro, as conquistas e os grandes projetos quando, no fundo, a coisa toda é sobre a vida simples, a rotina comum do homem, da avó de família, de cada um?

Ela está fraca, fala pouco, mas seu olhar vai longe, entra fundo e, nele, ela expressa todo seu legado. Nele, ela pergunta o que é que estou fazendo com a semente que ela plantou. Ela me deu sangue, deu seu filho para ser meu pai, deu carinho, café aguado, limonada e doce de leite feito na panela. Ela me ensinou a ler as primeiras palavras, quando passava uns dias em casa lá na Barra Funda e repassava comigo as letras de algum parágrafo do livro que trazia.

– Rique, que letras são essas?

– S, I, L, E, N, C, I e O.

– Isso, muito bem, “silêncio”.

Ela só não me ensinou as palavras para descrever o que estou sentindo agora.

Enquanto minha avó se despede (e desejo que ela só o faça depois de uma demorada e animada festa de 100 anos, em 2019), me consolo em saber que ela já descansa, amparada pelas mãos do Deus de sua vida. E penso que talvez não faça mesmo diferença, não valha realmente sofrer pelo dia de amanhã. Precisamos hoje – HOJE, eu penso como um grito – buscar pelo Reino dos Céus. Esse reino que, segundo as Escrituras, é “paz, justiça e alegria no Espírito Santo”. E o Espírito Santo é Deus e Deus é amor e o amor se declara, se escancara, se revela explicitamente no Verbo, na palavra, num desabafo, no toque, no convívio, na presença e a vida toda ao lado de quem amamos. Hoje.

A vida é uma centelha. No riso e na dor, nas chegadas e partidas, o contorno de um belo e admirável ciclo. A vida é eterna.

Assombrações

“Não tenham medo!” (Mateus 14:27)

Hora de dormir. Noite após noite, o ritual se repete: ela veste o pijama, faz xixi, escova os dentes, enrola a gente, pede uma história, conta um milhão de coisas da escola, faz uma oração e dorme. No meio da madrugada, invariavelmente, a vozinha rouca chama lá do quarto e – sim, nos condenem os pais super eficientes – ela encerra as últimas horas da noite dormindo na nossa cama.

Temos tentado, juro, mas parece em vão. Se as experiências de amiguinhas e personagens de desenhos animados servem de lição e inspiração para convencê-la sobre quase tudo, o mesmo não acontece com a ideia fixa de que é difícil dormir sozinha. Ela continua choramingando e nós, às quatro e tantas da manhã, não temos a menor condição física e mental de discutir a relação com nossa filha de cinco anos.

Noite dessas, enquanto ela vestia o pijama, fui até a cozinha buscar o copo de água que sempre deixo sobre o criado-mudo. Cheguei no quarto e vi que ela estava atravessada em cima do colchão, debruçada, procurando algo atrás da cama.

“O que foi, filha?”. Achei que ela procurava algum brinquedo perdido.

“Pai?”. Ela perguntou, ignorando minha dúvida.

“Oi.”

“Tem uma cobra ali atrás?”

Ela tem medo de monstros. E naquele momento, muita coisa sobre essa dificuldade toda fez sentido. Cobras, morcegos, a escuridão, bandidos, dragões, ela acha que algum perigo pode surgir no meio da noite para atacá-la. E não há argumento, parábola ou estudo de caso que a faça abandonar o temor e aceitar uma verdade simples que afirmo todos os dias: “isso é bobagem, você não precisa ter medo”.

Curiosamente, tudo passa, tudo pode ser vencido, se eu simplesmente ficar ali ao seu lado. Ela não dorme sozinha porque tem medo, mas descansa como um anjo – ou princesa, como ela prefere – se me sento ao pé da cama e vigio seu sono. Se estou por perto, as cobras se transformam em minhocas, bandidos voltam para casa janela afora, monstros se apequenam e escondem-se resignados, a escuridão perde a frieza. Então, ela pode repousar e sonhar com suas fantasias coloridas.

Até que se sinta sozinha no meio da noite, acorde, resmungue e cambaleie descabelada para nossa cama. Até que se sinta desamparada e clame pela proteção que o abrigo paterno parece oferecer.

E ainda que isso soe como uma tremenda massagem na auto-estima de um pai que gosta de sentir-se o amparo de sua prole – gosto de falar “prole”, mesmo que minha prole seja de uma pessoinha só – sei que não é bom que seja assim, não é saudável para ela. A Nina precisa saber que já tomei as providências para que nenhum perigo se aproxime e que ela pode fechar os olhos sem esse tipo de preocupação. Eu não estou lá ao pé da cama, mas estou o tempo todo com ela, cuidando, com meus limitados poderes, para que tudo vá bem e ela se acolha guardada em meus braços.

Mas, às dez da noite, às voltas com esses pensamentos enquanto a observo, fico tentando descobrir como fazer para minha filha de cinco anos – com a imaginação fervilhando de fantasias – acreditar que esses temores são tolice, devaneios da imaturidade e que ela pode ter paz, descansar, porque seu pai está de vigia?

“Em paz me deito e logo adormeço, pois só tu, Senhor, me fazes viver em segurança.” (Salmos 4:8)

Ela dorme.

E enquanto ela sonha em ser “uma heroína com asas, coroa dourada, maquiagem e muito brilho” – um dos pedidos que ela dirigiu a Deus na oração que fez -, eu luto com os monstros. Os meus. O estresse da vida cotidiana, a sensação de não estar dando conta do recado, dos recados, da lista enorme de pendências que se acumula. Sem que eu percebesse, a vida adulta foi tomando conta de tudo, lembro à distância, ainda com certo romantismo, da espontaneidade juvenil que regia as coisas e percebo que vou me tornando o tipo de sujeito saudosista que costumo criticar. Alguns fios de cabelo começam a cair, os que não caem vão se tingindo de branco, uma sombra parece se projetar sobre a alma. Está difícil dormir, preciso acender uma luz.

Tenho medo. As minhas assombrações adquirem as formas do cotidiano. Sei que jamais serei totalmente suficiente, que me apavoro com tolices, mas minha imaturidade não me deixa enxergar que não há nada que eu possa fazer, não há nada que eu deva ou precise fazer, que a graça deveria bastar. Cego, não percebo os braços que me acolhem. Eu também sei que monstros não existem, que bandidos não escalam prédios para invadir apartamentos no décimo primeiro andar e que, a menos que se viva na selva, cobras não costumam montar seus ninhos embaixo de camas.

Sei que não preciso ter medo da escuridão porque o Pai zela por mim o tempo todo. Ouço suas histórias, suas promessas e acredito, acredito mesmo, em suas palavras. Mas ainda assim, mesmo sabendo de tudo isso, percebo muitas vezes a inquietação e a dúvida ganhando espaço em minha mente e titubeio, eu paro, retrocedo.

O medo manipula. Dá aparência de dor ao que é só ameaça, dá sensação de trevas ao que são tão somente sombras. Então parece mais fácil fugir, fazer de conta que o problema não está lá e buscar amparo numa muleta qualquer do que encarar a verdade assombrosa de que os monstros, em grande parte, se escondem dentro de nós.

Mas ao tentar ensinar a Nina, tenho aprendido que fugir do problema não resolve o problema, fingir que ele não existe não faz com que ele desapareça. E às vezes, é preciso aceitar que o conflito é necessário e que devemos encarar a realidade, vencer o obstáculo e finalmente seguir em frente. E jamais estamos sozinhos.

É nessas horas em que preciso tomar a decisão que já conheço mas da qual quase sempre me esquivo: eu preciso confiar e seguir em frente. Crer e saber, de forma pura, que o mal já foi vencido e que o Pai, ao meu lado, me protege e preenche.

E eu posso apagar a luz, fechar os olhos e viver em paz.

Abaixo da superfície

Quando você vê a dor nos olhos de outra pessoa, no dia em que presencia o sofrimento explícito na expressão e nas lágrimas de alguém, é impossível ficar indiferente. Qualquer barreira, qualquer resistência se dissipa. Gostaríamos de poder dizer algo, estender a mão, um lenço. Por um instante que seja, você perdoa, deseja sinceras condolências e as diferenças se vão.

De repente, você entende o que se passa de verdade no coração do homem.

Eu gostaria de falar sobre compaixão.

* * *

Há alguns meses, pude testemunhar o sofrimento de um pai que perdeu o filho em uma tragédia. Eu vi a sua dor, vi a sombra negra sobre sua face engessada e, no olhar taciturno, o vazio desesperador. O que seria a vida então?

Na mesma semana, senti o abraço aflito da filha que perdeu seu pai, já idoso, vítima do tempo, do Alzheimer e da morte da esposa que o deixara um ano antes. Amparei seu choro, chacoalhei com os soluços que a faziam descarregar em lágrimas o peso que lhe caía sobre a alma.

De novo, a dor. Mas não somente então, não só na morte – só!? – mas também naqueles que alimentam o sofrimento oculto por detrás dos breves risos, da espuma de sociabilidade, das curtidas no Facebook, do senso comum que nos carrega. As coisas tem que estar mais ou menos bem, porque no dia seguinte tem aula, tem trabalho, tem trânsito, tem hora marcada no dentista, tem uma dúzia de pessoas esperando que você não surte e a rotina deve seguir seu fluxo.

Um dia… ele sempre surge, vem à tona quem somos. Nas medidas desesperadas, nos atos mais grotescos, pessoas revelam o que se passa abaixo da superfície, aquilo que se acumulava nos porões sobe a escada até a sala, abre-se a porta do quarto escuro e ele não tem um bom aspecto.

O garoto tímido que se esconde num computador, atrás de suas dúvidas sobre o mundo e suas escolhas. O velho casal que ainda se ama mas já não se respeita. A menina e sua boneca, olhando pela janela, para o muro, para cada adulto que passa apressado pelo orfanato, pensando se é hoje que ela poderá ter alguém que lhe faça uma trança e que possa chamar de mãe. O vizinho mal humorado que tosse a noite toda, que sobe o elevador com um envelope sob os braços. O filho que ainda espera um telefonema. A jovem mulher, seu bebê ressonando no berço e um travesseiro em silêncio ao seu lado na cama.

O estranho ao seu lado no trem, o conhecido ao seu lado na festa, o amigo ao seu lado na sala, a esposa ao seu lado o tempo todo. Eles podem estar sofrendo. Se esperarmos por evidências talvez seja tarde demais e talvez devêssemos observar mais e tentar entender, estar sensíveis ao outro, nos envolver, tocar sem luvas, viver sem máscaras, ser cúmplices do que se passa sem tecer comentários, sem julgamentos. Carecemos da capacidade de olhar nos olhos e entender o que se passa antes que a tragédia aconteça. Precisamos nos antecipar, porque a dor, estranhamente, é algo que a gente acumula, mas é urgente.

Eu acho que estou falando sobre compaixão.

* * *

A compaixão é uma das coisas que me fazem acreditar em Deus. Bem, eu falo sobre minha fé vez ou outra, mas é raro que alguém me pergunte por que eu creio em Deus, por que desse jeito, em Jesus Cristo e a coisa toda da cruz e da Bíblia. Mesmo entre meus amigos agnósticos, nunca precisei responder a essa pergunta. Mas confesso que eu, entretanto, me questiono o tempo todo a respeito.

Tenho diversos motivos que me trazem à mente a razão da minha fé, mas a que cabe nesse parágrafo e me afeta sensivelmente é porque Jesus é compassivo. Se você ler os evangelhos, verá um sujeito totalmente sensível às pessoas. Pela primeira vez, acompanhamos a história de um deus que jamais desejou devotos ignorantes prostrados diante de seu egocentrismo. Ao contrário, ele se revelou ao homem na condição de homem, homem simples, que foi até o fim. A história conta que ele olhou para as pessoas que o seguiam famintas e foi movido de “íntima compaixão”. Eram para ele “como ovelhas sem pastor”. Perdidas e desamparadas.

“Eu sou o bom pastor”, ele disse em outra ocasião, “e o bom pastor dá a vida pelas suas ovelhas”. Ele olhava nos olhos e compreendia. E porque compreendia, se aproximava. Estando perto, tocava, oferecia consolo. E sentindo a dor do outro, curava. Porque ele amou. Escolheu não ignorar o que se passava, procurou olhar além do que um rosto revela. Jesus enxergava abaixo da superfície, das cascas e máscaras que o tempo todo escondem quem realmente somos.

E se deu. Ofereceu-se ao cego, à adultera, aos religiosos extremistas, aos doentes, aos pobres, às crianças, a cada um dos excluídos. Ele se revelou Deus sendo o filho o carpinteiro. Era seu mestre e seu cúmplice. Ele não quis sacrifícios, ele foi sacrifício. E porque sofreu, tornou o sofrimento humano santo. E porque triunfou sobre a dor, tornou a vitória possível.

* * *

Ter algo ou alguém como seu deus, imagino, é ter nisso a imagem total do que afirmamos com a perfeição e diante do que aceitamos nos curvar em devoção resoluta. Eu me dobro em louvor ao Nazareno, diante de sua índole, seu amor desinteressado e puro. Sou devoto do Deus que se fez homem, do homem a quem chamo Deus e firmo esperança em suas palavras que prometem que esse seu caráter – espírito – acompanharia aqueles que o seguissem, que então como um espelho, poderiam refletir sua imagem ao mundo, que então como filhos poderiam se dirigir a Deus como Pai.

Porque precisamos olhar para as pessoas – nossos semelhantes – sem que seus sentimentos nos sejam invisíveis. O porteiro do prédio, a faxineira no escritório, o chefe rabugento, o trombadinha no semáforo, o familiar esquecido. O que se passa realmente? Lá no fundo, dentro da embalagem, quem é, como está? Não podemos permanecer indiferentes, devemos compreender o coração do homem e nos aproximar, estender a mão e tocar, oferecer um ombro, oferecer consolo, um milagre, talvez perdão. E sentindo a dor do outro, finalmente podemos ser sua cura. Porque Deus em nós é amor.

Compaixão.

Fantasias

por Luiz Henrique Matos

Numa noite dessas, depois da alucinação toda de outro dia cheio no trabalho e a paralisia toda de outro dia entupido no trânsito de São Paulo, cheguei em casa mais tarde, mais estressado e cansado que o habitual. Mas, depois de passar pelo meu Portal Mágico da Paz – ou, porta da sala adentro – segui a rotina ritualista e purificadora: beijei minhas meninas, conversamos um pouco, comi algo, tomei banho, conversamos outro pouco e vimos TV até que deu a hora de a Nina ir pra cama. Banheiro, escovação, um protesto, pijama, um copo d’água, um beijo na mãe, uma enrolada no pai, uma oração, várias interrupções e, sem falta, a historinha do dia.

E como fazemos diariamente, escolhemos juntos uma história para eu contar. Nessa hora, pode ser que nos aventuremos pela septuagésima vez através de um dos livros da estante dela, por uma narrativa resgatada na lembrança (leia-se: historinha clássica sem livro) ou “alguma coisa de quando você era pequeno”, como ela costuma pedir. A verdade, é que as historinhas são o grand finale do nosso dia como pai e filha, é quando encostamos juntos por alguns minutos na cabeceira da cama, longe da correria, de celulares, televisores, computadores ou outros estímulos digitais e unimos nossa imaginação em algum ponto, uma pequena saga que habita fora – ou muito dentro – de nossas mentes. Todos os dias, um capítulo novo, misturando as nossas experiências cotidianas com a ficção e virando uma página, uma etapa e uma metáfora da vida.

Mas naquela noite, quando entramos no quarto, notei que a cama dela estava inteira ocupada por peças de Lego.

– Tava brincando de Lego, Nina?

– Sim. Essa é uma casa que eu tô construindo – era uma sequência de peças grudadas umas nas outras, enfileiradas, formando ainda a planta baixa da construção toda.

– Que linda.

– Pai, você quer montar comigo?

– Quero. Mas hoje não, tá? Agora é hora de dormir. Vamos arrumar essa bagunça.

– Tá.

Esqueci o assunto em cinco minutos, a cabeça estava cheia. Mas no dia seguinte, à noite, quando ia para meu quarto e olhei pelo corredor, notei que a pequena construção colorida estava ali no chão, ao lado da caixa com as peças e havia avançado um pouco mais, com mais detalhes e as paredes começando a ser erguidas.

Senti-me péssimo. Poucas coisas me frustram tanto quanto perceber que deixei de honrar um compromisso com a Nina. E não é porque ela se lembra da promessa não cumprida e me recorda disso também, mas porque eu, de fato, gosto de sentar ao lado dela, mergulhar um pouco no seu universo e viver aquilo ao seu lado. Fantasiar, deixar as coisas serem, por alguns minutos, como gostaríamos que fossem, simplesmente porque temos o controle da situação.

Ela cria, constrói, compõe mundos inteiros, apenas com um punhado de lápis coloridos e me guia pelas mãos em suas aventuras. Naqueles instantes, a gente esquece a correria toda e tem a sensação de que pode viver nisso, jogar de lado o peso do cotidiano, retroceder no tempo uns 27 anos e lembrar de como era tudo e ficar ali, de short, camiseta e chinelo, sentado na rua da vila, olhando uma formiga atravessar a calçada com uma folha verde nas costas e fazendo de conta que eu era o terrível gigante de quem ela se escondia.

Mas, talvez o mais curioso dessa relação das crianças com a fantasia, seja notar que elas não vivem aquilo como uma experiência momentânea, um faz-de-conta premeditado. Ao contrário, elas mergulham de forma tão natural e intensa como se pudessem assumir aquela verdade para si. Para elas, cada brincadeira é real tanto quanto o que se pode tocar. Para nós, funciona como uma espécie de fuga da realidade nos momentos em que ela quase nos sufoca.

Às vezes, julgamos tudo isso como uma bobagem, aprisionamos nossa infância nas fotografias e avaliamos as nossas crianças como seres imaturos, inferiores e despreparados. E tentamos conduzi-los, adestra-los e determinar suas escolhas em conformidade com algum raio de visão do mundo que elaboramos ou lemos em alguma revista no salão do cabeleireiro.

Tudo isso é mentira. Eles não tem nada de menores. É bem possível que seja dessa “grandeza” infantil que tanto carecemos. Essa maturidade de não se deixar influenciar por pequenos problemas, a nobreza de não julgar, a confiança integral de que o pai é capaz de suprir e providenciar o que for necessário.

Olhamos a vida do alto, mas somos tão, tão pequenos. Tentamos enquadrar a vida numa caixa, tentamos controlar a situação, tentamos e tentamos em vão e, diria o sábio rei, só “corremos atrás do vento”.

Jesus falou disso também, da pureza das crianças e tudo, advertiu sobre o quanto é fundamental que sejamos como elas para entender – e habitar – em seu Reino. E vivia cercado delas, deixava que cantassem. Pode imaginar? Deus vivendo entre os homens, andando na Terra, com todo monte de atribuições, decisões e estresse que esse “cargo” representa? E ensinava sobre a importância de alimentarmos um coração ingênuo, desinteressado e sincero.

Um reino de crianças. Um céu colorido, divertido, sem o peso de ontem ou a preocupação de amanhã.

– Papai, como é que a gente vai parar lá no céu?

Eu respirei fundo. Acessei, nos porões da mente, o pouco de teologia que me atrevi a estudar e o vasto (arrãm) repertório de releituras bíblicas e psicologia familiar que adquiri. E engasguei. Fiquei quieto por um minuto, dois e então tentei mudar de assunto. Tive algum sucesso, a conversa enveredou por alguma superficialidade qualquer, mas foi ela, instantes depois, que concluiu:

– Pai, vai ser assim: vai ter uma festa no céu e Deus vai chamar a gente. E vou com um brinco, um anel e um vestido de princesa.

O próximo

Quem é meu próximo? Meu próximo é todo aquele que eu penso que é e ainda cada um dos que eu gostaria que não fossem.

Um copo de leite, três biscoitos e um legado para a humanidade

por Luiz Henrique Matos

Um copo de leite gelado e três biscoitos de coco, todas as noites, antes de dormir.

O hábito já me domina há bons meses, mas só me dei conta mesmo alguns dias atrás. Eu observava a cena montada sobre a mesa da cozinha, desviando o olhar que deveria estar sobre o livro aberto ao lado e quando ameacei dar o primeiro gole no leite, me peguei falando sozinho: “É, amigão, a idade chega pra todo mundo.”

A idade. Uma entidade clássica, a fase crucial da vida. Sabe-se lá quando ela vem, nessas horas não importa muito se você está fazendo 64 ou 19 anos, quando seus hábitos ficam velhos, é sinal de que “a idade” chegou. No meu caso, a terceira década foi determinante. Eu nem bem fiz 30 anos num dia de 2010 e, no outro, expressões tais como “no meu tempo”, “não tenho idade pra isso” e “ai, meu ciático!” surgiram como mágica em meu vocabulário cotidiano.

Acabou a minha juventude, lá se foram os vinte e poucos, definitivamente. Agora eu tenho casa própria, sou pai de família, dirijo um sedan prateado, encontrei uns fios de cabelo branco na barba – bem no queixo! – e ouço minhas bandas favoritas tocarem no programa “Clássicos do Rrrrrock” na rádio. Eu penso no futuro, me preocupo com as consequências dos próximos passos, estou deixando a mocidade lá atrás e uma certa melancolia me ocorre vez ou outra.

Hoje é dia de vez ou outra.

* * *

Como serão, afinal, as coisas daqui 30 anos? Desde que deixei três décadas para trás, às vezes me pego lucubrando sobre as próximas.

Terei o dobro da idade de hoje. A Manú e eu estaremos embarcando nos 60, aposentados, gozando das ricas benesses da previdência social na década de 2040. Nossa casa, um bolinho novo sobre a mesa, uns biscoitos, o café fresco na xícara e aquele leite lá do primeiro parágrafo em seu devido copo. A sala toda cheia de fotos, os rostos cheios de rugas, o quintal cheio de netos e as lembranças cheias de pó. E eu ali, gordinho e grisalho, na minha cadeira, fazendo um balanço das escolhas e caminhos que trilhamos.

Legados.

Na etapa final da vida, me conheço bem, estarei encucado com o fato de a altura da grama no quintal estar muito grande para tal época do ano – qualquer época do ano – e pensando que tipo de marca eu terei deixado nas vidas dos meus filhos, na humanidade e em todas essas indagações tão fundamentalmente pequenas e típicas dos seres humanos.

No fundo, essa é a questão. Os anos vão passando e o sujeito começa a refletir sobre essas coisas. Vale para o leitor de auto-ajuda e para o de filosofia clássica também. A gente pensa, quer saber: que tipo de lembrança deixaremos no mundo? Queremos que nossas vidas, de algum jeito, tenham um significado, queremos saber se fizemos as coisas certas.

É nessas crises, com o cérebro embalado por mais uma dose fresca do mais puro leite semi-desnatado que eu considero que, já que não consigo enxergar como é que serão as coisas daqui 20 ou 30 anos, deveria ao menos começar alguma coisa que cresça e dure até lá. Sei lá, talvez plantar uma árvore, escrever um livro de memórias, abrir uma caderneta de poupança. Talvez semear alguns valores na vida da minha filha.

* * *

“Na verdade, quem sabe o que é bom para o homem, nos poucos dias de sua vida vazia, em que ele passa como uma sombra? Quem poderá contar-lhe o que acontecerá debaixo do sol depois que ele partir?” (Eclesiastes 6:12)

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Quem é que sabe? Pode ser até que isso, os legados e tudo, sejam uma grandessíssima bobagem. Nessa semana, enquanto pensava justamente nessa história, esbarrei no verso do rei Salomão que me fez repensar o rumo desse texto algumas vezes. Afinal, vale alguma coisa a gente gastar, neurônios ou tostões que sejam, tentando edificar algo para a posteridade? Faz algum sentido eu querer projetar alguma imagem que gostaria que o mundo – as 11 ou 12 pessoas que me cercam – tivesse de mim quando envelhecer?

Eu penso na minha carreira, penso nas fotografias da família, penso nas convicções que defendo e em cada lição de moral que aplico na Nina. Mas eu sei bem que o que vai marcar a vida da minha filha não são exatamente as coisas que conquistei ou as mensagens registradas, mas o tipo de ser humano que fui. Coisas, isso de fato nós deixamos como herança, mas o caráter é o nosso legado.

Existe uma alegria pura e inconteste que reside no fato de encarar a vida de forma mais simples, desfrutando plenamente do que recebemos de graça e deixando de lado as preocupações vazias com o dia de amanhã – a ansiedade, por definição. Jesus falou sobre isso certa vez. Mas o problema que enfrento em desfrutar de forma livre o dia de hoje é que o amanhã demora muito pra chegar – minha ansiedade, por definição.

Por si só, a vida é uma dádiva. E filhos são um bom legado. O presente, a felicidade irreprimível de ver uma vida crescer sob seu teto, do começo à eternidade. Os primeiros passos, as palavras, o ensino todo sobre alguns impasses da humanidade, sobre a fé em Deus e sobre a importância de guardar seus brinquedos na caixa após o uso.

Ter filhos é experimentar e entender, em alguma proporção, o amor de Deus pelo homem. Eu sei que isso é um clichê bem redundante, mas fatos são mesmo coisas que se repetem incansavelmente até que notemos.

Ter Deus é perceber, a certa altura, que ele não se preocupa com legados ou marcas. Ele simplesmente é, ele está, eternamente, aqui e em todo lugar.

Nós crescemos, adquirimos novos hábitos, somos moldados pelo ambiente e tudo o que nos cerca ao longo do tempo. Mesmo à revelia, jamais abandonamos a condição de filhos, de criação do Pai eterno. Carregamos seus sonhos incrustados em nossos propósitos de vida, refletimos sua imagem, herdamos seus traços. Temos em nós o sentimento de pertencimento ao Criador, ainda que questionemos sua existência ou critiquemos seus atos por tantas e tantas vezes. Ele não liga, ele ama, se oferece e é nele que encontramos o refúgio para onde podemos voltar. O Pai sempre estará lá. Aqui.

Vai chegar o dia em que nossos filhos terão filhos. Vai chegar o dia em que a Nina vai morar longe e virá nos visitar num final de semana com sua família. Ela vai entrar em casa, largar a bolsa sobre o sofá, abrir a geladeira e perguntar da nossa vida, dos parentes que não vê, do que ando lendo. Ela vai descalçar as sandálias, ajudar a mãe na cozinha, vai querer comer um pouco do que quer que seja que estiver em meu prato, vai me cobrar, reclamar que não cuido da saúde direito, que fico tomando café o tempo todo e que isso acaba com o estômago. Ela vai agradecer pela ajuda com as crianças ontem à tarde, vai criticar minha roupa, minha barriga, minha mentalidade retrógrada sobre a política e o mundo e vai ficar brava por ter que repetir cada frase duas ou três vezes porque eu já não escuto direito. E ela vai sair para o quintal, batendo o pé porta afora, cheia das suas razões, mas deixando no rastro cada pequeno gesto que contemplo hoje. Eu, minha xícara na mão, observando aquela mulher, minha filha, a pequena Nina, e a vontade absurda de poder pegá-la no colo, rodar contra o vento e jogar pro alto outra vez. A esperança de que tudo aquilo seja só um truque da imaginação, que ela ainda seja criança e que volte logo, escalando minhas pernas e me cochiche no ouvido o pedido para que eu conte mais uma história.

Meu legado.

Bons samaritanos

“Os bons samaritanos sempre serão necessários para socorrer os que foram assaltados e roubados; entretanto, seria melhor acabar com os bandoleiros na estrada de Jerusalém a Jericó”, escreveu Stott em seu livro A Cruz de Cristo. “Por isso, a filantropia cristã em termos de alívio e ajuda é necessária, mas muito melhor seria um aprimoramento a longo prazo, e nós não podemos fugir da nossa responsabilidade política e da necessidade de participar da transformação das estruturas que inibem este aprimoramento. Os cristãos não podem olhar com tranquilidade as injustiças que arruínam o mundo de Deus e degradam suas criaturas”.

John Stott, citado no artigo “Evangélicos sem espetáculo” de Nicholas D. Kristof para o The New York Times (publicado no blog de Ed René Kivitz)

Quando coisas ruins acontecem a crianças boas

por Luiz Henrique Matos

“A dor é inevitável, sofrer é opcional.” (Haruki Murakami)

Já faz alguns meses que estou tentando escrever esse texto e nunca consigo terminar. Fico me enganando, dizendo a mim mesmo que é um lance meio autoral, de preciosismo literário (ahãm, como se eu sofresse mesmo disso), mas o fato é que tenho certo medo de escrever sobre esse tema. Virginia Woolf disse certa vez que todo texto carrega em si um pedaço de quem o escreve. No meu caso, um fato concomitante a esse é que muitas vezes algum assunto só fica claro para mim depois que eu o coloco no papel. No fundo, a escrita acaba sendo um exercício de reflexão. E confesso que em alguns momentos não quero refletir sobre certos temas.

Tenho medo de sofrer. E também tenho medo de pensar sobre o sofrimento. Não é por superstição, nada, mas é porque na maior parte do tempo eu sou aquele tipo de pessoa naturalmente otimista, que vê as coisas pelo seu lado bom e, em geral, isso é bem positivo, uma certa vantagem no traço de personalidade. No entanto, isso carrega um fato inegável: nunca estou preparado para as coisas darem errado.

E se tem uma verdade indelével que rege o universo da paternidade das aves estrigiformes, das famílias dos titonídeos e estrigídeos (vulgo, corujas) é que só existe uma coisa pior do que pensar que algo ruim possa acontecer com a gente e essa coisa é pensar que algo ruim possa acontecer com nossos filhos.

* * *

Nenhum pai quer ver seu filho sofrer. Bom, deixe-me corrigir: nenhum pai suporta ver seu filho sofrer. E nunca estamos prontos para isso.

Eu voltei a esse assunto, outra vez, há alguns dias, quando enfrentei duas madrugadas correndo com a Nina entre clínicas e hospitais, tentando encontrar alívio para a dor que ela sentia. Sentado na sala de espera de um pronto-socorro, eu pensava que, se pudesse, tirava aquilo dela ali na hora, com as próprias mãos. Se fosse possível, sofreria toda a dor no lugar dela, só para que pudesse dormir em paz outra vez. Observar aquela criaturinha chorando sem poder fazer algo que solucionasse seu problema imediatamente me doía em dobro. Queria eu ter poder para curá-la. Queria eu ser Deus para tocar em sua testa e mandar embora o que quer a fizesse sofrer.

Mas eu não sou Deus, sou só mais um filho assustado, pedindo socorro também, e ainda queria que Deus me atendesse no pedido quase desesperado para que ele parasse um pouco de resolver os problemas tão complexos de toda a humanidade e viesse cuidar da minha criança por alguns minutos.

Outro dia, a Nina chegou da escola com uma marca vermelha nas costas da mão esquerda. Era uma mordida, obra de um coleguinha com instintos canibais que frequentou a classe dela por um tempo. Na agenda, um recado da professora dava satisfações sobre o ocorrido e explicava que, no fim, tudo ficou bem entre os dois, com o pedido de desculpas e o perdão devidamente concedido.

Eu podia jurar que um filhote de crocodilo invadiu a pré-escola e atacou minha princesa.

– Você chorou, filha? – perguntou a mãe, já chorando.
– Ahãm.
– E doeu muito?
– Muito, muito.

Em mim, crescia a certeza de que era preciso tomar alguma providência para que aquele elemento, o pequeno meliante, jamais ousasse mostrar suas presas-de-leite para minha Nina outra vez. Eu tinha sede de justiça. Mas no fundo, eu também sabia que as coisas não podiam caminhar por aí. Eu precisava ter calma, ser adulto, racional. Falei com a Manú:

– Tadinha, né?
– É, aperta o coração da gente.
– Mas e aí, o que a gente faz?
– Acho melhor matricularmos ela no jiu-jitsu.

Coisas ruins acontecem a crianças boas.

E por mais que eu realmente me esforce para ignorar a realidade e prefira concentrar meus neurônios mentalizando coisas positivas e tentando acreditar que a fé cobrirá minha família contra todo e qualquer mal… bem, por mais que eu afirme que gostaria que as coisas fossem mesmo assim, eu sei que nem sempre poderei ajudar. Reluto em aceitar, mas o fato é que minhas asas não possuem a extensão que eu gostaria que tivessem e eu devo reconhecer, penosamente, que minha filha vai sofrer.

Nem sempre poderei livrá-la da dor ou impedir que o sofrimento venha. Um tombo no parquinho, uma medida disciplinar mais rígida, um resfriado pesado, um fora do primeiro namoradinho (daqui uns 30 ou 35 anos, quem sabe), uma topada na porta com o dedinho do pé.

– Aaaaaaaaaaaaahhhh!!! – era madrugada e a Nina gritou desesperada enquanto dormia. Estava tendo um pesadelo. Assustei, pulei da cama, corri até onde ela estava.
– Nina!? Calma, querida, calma. Está tudo bem, o papai está aqui.
– Ahn!? – ela acordou confusa.
– Tá tudo bem… pronto, calma. Viu? Não foi nada… O que aconteceu, filha?
– Uma cobra… tinha uma cobra querendo me pegar.
– Não tinha nada, filha. Você estava sonhando. Olha só, está tudo bem.
– Tinha sim… ela estava aqui. Mas o papai apareceu e mandou ela embora.

Ela acha que eu tenho poderes para solucionar todas as coisas. Pensa que sou capaz de pega-la no colo e carrega-la por quilômetros sobre meus ombros e que posso abrir as tampas de todo e qualquer tipo de pote. Ela acredita que tenho como fazer a viagem de carro de quase quatro horas durar menos, que posso protegê-la de monstros que assombram seus sonhos.

Não bastasse, soma-se nessa conta o fato de que uma das grandes satisfações em ser pai está em notar, nos pequenos gestos, que minha filha me admira, acha bonito e tem em mim uma referência boa. E soma-se ainda nessa mesma conta o doloroso fato de que uma das grandes paranoias de ser pai seja notar, em algum momento, que minha filha passará por alguma situação difícil em que eu não estarei lá para ajudar.

Ou, estarei mas não poderei impedir o sofrimento. E ela não vai sofrer porque eu deixei de agir e sim porque havia uma pedra para que ela tropeçasse no caminho que escolheu seguir. Circunstâncias, uma palavra necessária aqui. E aí, a questão já nem é o fato de eu poder ou não livra-la da dor, mas de que se eu intervir, aquilo já não será resultado das decisões que ela tomou.

O amor pressupõe liberdade. E quem ama, ama a liberdade do outro.

E na intensidade desse sentimento apaixonado, muitas vezes o pai abre mão do seu poder para dar ao filho a opção de escolha, por saber que o aprendizado é necessário e que nem tudo o que é bom, é necessariamente bom para todo mundo. Deus prefere não ser chamado de Deus do que ser esse deus sádico que alguns pensam que ele é, entende?

Ele é o Pai.

Um pai não deseja o sofrimento do filho, não o permite e tampouco provoca. O sofrimento de um filho, em tudo, rasga o coração do pai, dilacera sua alma. É errado culpa-lo pela dor. Mas o homem todo, em seu crescimento, aprende pela experiência. Sabemos o caminho certo a ser trilhado pelos conselhos que ouvimos e pela vida que trilhamos. Conhecemos a estrada à medida em que a percorremos. E os buracos estarão lá, nem todos provocando acidentes. E as belas paisagens estarão lá, nem todas provocando suspiros.

O sofrimento nos forja.

Ninguém jamais disse que não vamos sofrer, os textos sagrados não afirmam isso, avôs não contam histórias assim para seus netos. Mas as palavras que nos dão esperança, lembram a todo instante que em qualquer circunstância, em cada passo dessa aventura, o Pai está ao nosso lado.

Bem, eu não estou querendo explicar o sofrimento ou sistematizar a dor. Não pretendo. Isso não se explica, não tem teoria válida que sirva de alento. Alento é o ombro amigo, é o lenço cedido, é o choro solidário. O que eu gostaria, de alguma forma, como pai apaixonado, é que minha menina soubesse que se não existem superpoderes em minhas mãos, existe consolo. Que se não existe uma palavra mágica que cure a dor ou a incerteza, existe sempre uma companhia silenciosa, um copo de água com açúcar e um colo à disposição.

Eu sei não poderei explicar na maior parte das vezes – eu nem entendo na maior parte das vezes. E ainda que eu possa, é bem provável que não faça a menor diferença para ela naquela hora. Mas eu estarei lá.

O Pai sempre está por perto.

Filhos, distâncias e talvez um documentário do Discovery Channel

por Luiz Henrique Matos

Às vezes, a Nina passa alguns dias longe de nós. Acontece duas ou três vezes no ano, quando por ocasião das férias escolares, ela fica um tempo na casa da avó materna, que mora no interior.

Ao contrário do que pensam muitos amigos, a opção não é nossa. Ela é quem pede, a avó é quem insiste, os parentes fazem coro e eu acabo cedendo, contrariado na maior parte das vezes.

É que eu detesto ficar longe dela. Fico repetindo para mim mesmo aquela conversinha de que ela já vai passar tanto tempo – a maior parte da vida – longe de casa que eu gostaria de tê-la sob minhas asas tanto quanto fosse possível.

Acho até que já escrevi isso em alguma nota antes, mas o fato é que eu realmente lembro muito pouco da minha vida de casado sem minha a Nina com a gente. A Manú e eu esperamos quatro anos para ter filhos e quando penso nessa época, a ausência dela nas lembranças me parece mais um equívoco do que a história de fato.

Quando ela sai assim e depois volta, a sensação que dá é de como se a gente participasse de um desses documentários do Discovery Channel em que eles acompanham filhotes de cervos que se perdem na savana africana. O bichinho desgarrado, perdido, ao relento… e a mãe desamparada, incansável, segue desesperada na busca por sua cria. Depois de dias, perigos e muitas aventuras (!) eles se reencontram – em geral, quando chega nessa parte do programa, eu já estou dormindo no sofá há algumas dezenas de minutos, mas quando consigo assistir até o fim, não posso negar que a coisa toda é emocionante. A câmera mostra o filhote atrás de uma moita qualquer, aqueles olhinhos e tudo. Depois, fecha a imagem na mãe, que sente o cheiro familiar nas redondezas. Então ela procura, inquieta, os olhos semi-serrados sondam todo o ambiente e, finalmente, ela vê seu filhote à distância. Ela dispara, corre o quanto pode até que esbarra no pequeno animal, finalmente, que se entrega e eles rolam naquela vegetação e ela fica lambendo sua cria sem parar.

A sensação que dá é de como se a gente participasse de um desses livros das Escrituras… filhos perdidos, um pai preocupado, a busca incansável, Deus rasgando a eternidade em busca de suas crias para salvá-los, para mostrar que ele está por perto, que vai ficar tudo bem, existe uma sombra tranqüila, uma água fresca, um caminho seguro.

Filhos precisam voltar para os pais.

Hoje a Nina voltou de viagem. Sete dias na casa da avó, setenta vezes sete dias incontáveis de vazio aqui em casa. Então ela chega, as malas cheias, um pacote de biscoito de polvilho nas mãos, aquele sorrisinho puro que mal sabe o quanto nos domina. Eu a trago para perto, eu cuido, eu rolo com ela, eu lambo minha cria. Família. E a casa está cheia outra vez.

– Papai…

Já é tarde. Ela está na cama deitada e pede que eu conte uma história. Quer saber sobre a minha infância, ouvir alguma aventura, quer saber como era quando eu era filho.

Me faço de macho, me faço de sábio, faço de conta. Faço um esforço danado pensando em como explicar que pai, um dia a gente vira, mas filho… ah, filho a gente nunca deixa de ser. Precisando de colo, precisando aprender o caminho de volta, precisando ouvir que tudo ficará bem, precisando do amor paterno. Eu só dispenso as lambidas.

Da minha lista de pendências 3

“O amor deve ser sincero. Odeiem o que é mau; apeguem-se ao que é bom. Dediquem-se uns aos outros com amor fraternal. Prefiram dar honra aos outros mais do que a si próprios. Nunca lhes falte o zelo, sejam fervorosos no espírito, sirvam ao Senhor. Alegrem-se na esperança, sejam pacientes na tribulação, perseverem na oração. Compartilhem o que vocês têm com os santos em suas necessidades. Pratiquem a hospitalidade. Abençoem aqueles que os perseguem; abençoem, e não os amaldiçoem. Alegrem-se com os que se alegram; chorem com os que choram. Tenham uma mesma atitude uns para com os outros. Não sejam orgulhosos, mas estejam dispostos a associar-se a pessoas de posição inferior. Não sejam sábios aos seus próprios olhos.”

“Não retribuam a ninguém mal por mal. Procurem fazer o que é correto aos olhos de todos. Façam todo o possível para viver em paz com todos. Amados, nunca procurem vingar-se, mas deixem com Deus a ira, pois está escrito: Minha é a vingança; eu retribuirei, diz o Senhor. Ao contrário: Se o seu inimigo tiver fome, dê-lhe de comer; se tiver sede, dê-lhe de beber. Fazendo isso, você amontoará brasas vivas sobre a cabeça dele.”

“Não se deixem vencer pelo mal, mas vençam o mal com o bem.”

(Paulo, na carta aos Romanos, capítulo 12, versos 9 a 21)

Cenas domésticas – Todos dizem eu te amo

por Luiz Henrique Matos

sunshine

Um: Tenho o hábito de beber a água e deixar o copo vazio sobre a pia, bem ao lado do filtro. Depois, saio, faço minhas coisas, brinco um pouco, vejo a TV. Mais tarde, volto até a cozinha e noto que o copo está lá, cheio outra vez, no mesmo lugar em que eu o havia deixado. Eu acho estranho, bebo e ao sair em direção a sala dou de cara com a Nina, que me observava e sorri simpática: “Pai, você já bebeu a água que eu deixei pra você?”

Dois: Costumo dormir tarde aqui em casa. Em geral, quando me deito, a Manú e a Nina já estão na cama há algum tempo. Vez por outra, quando entro no banheiro para escovar os dentes, encontro minha escova repousando sutilmente sobre a pia, já com a pasta colocada. E é assim desde que nos casamos.

Três: Às vezes, eu vejo o sol nascer. Acordo cedo, preparo a lancheira da Nina para a escola, me arrumo, ajeito algumas coisas e, nesse meio tempo, percebo os primeiros raios de sol atravessando as frestas da janela. Então eu paro para espiar. Abro a cortina devagar e contemplo o dia nascendo, o sol, um ou outro pássaro cantando, a cena da cidade acordando, a lembrança das manhãs amarelas da infância. E isso muda toda a dinâmica do dia, sempre. Fico pensando que Deus faz essas coisas de propósito, ele insiste em me mimar.

Não custa nada, mas ninguém também precisaria fazer. Eu não preciso disso, elas tão pouco, mas existem gestos, esses assim, que tornam as coisas melhores. Não é uma carta ou uma declaração explícita de amor, nada espantoso ou absurdamente caro. Mas é aquilo que se faz para o outro, simples, com afeto, só porque é para o outro.

Já é noite e preciso descansar. Escovo os dentes pensando nisso tudo. Depois, faço a ronda pela casa e sigo até a cozinha para o último copo d’água antes do sono. Acendo a luz e o copo está lá, cheio, no lugar de sempre, com toda expressão de amor que isso carrega.

(Escrito em 19/12/2010 e 15/07/2011)