Cenas natalinas: Simeão

por Luiz Henrique Matos

(Inspirado na passagem de Lucas 2:21-40)

Quando acordou naquela manhã fria, Simeão sentiu-se jovem como há tempos não era. Preparou seu desjejum, lavou-se, vestiu uma túnica limpa e caminhou até o jardim nos fundos da casa onde, sozinho, gostava de meditar.

Enquanto se dedicava às flores que cultivava com tanto zelo desde a morte da esposa doze anos antes, sentiu ressurgir um pensamento que há muito adormecera em suas lembranças. Antes quieto, agora bradava; distante, agora vinha a galope. A revelação que tivera na mocidade, de repente tomava sua mente outra vez: não morreria antes de ver surgir o Messias, o Cristo, o libertador de Israel.

E aquilo era real como a enxada que empunhava, perceptível como vento frio que lhe agredia o rosto, era urgente como o instante exato, como o fôlego de ar, era hoje.

Simeão não pôde mais se concentrar noutra coisa. Durante toda a vida, agarrou-se à esperança desse dia. Foi, de fato, o que o manteve vivo e apegado ao Deus de sua vida nos momentos de dor e dúvida. A perda iminente da esposa, atacada por uma doença que a devorou em poucas semanas, a desolação do seu povo oprimido pelo Império Romano, sua Jerusalém tomada de soldados, sádicos, que tratam os judeus com escárnio. Quando jovem, seu coração clamava por redenção e justiça, mas agora ele era um velho viúvo, cansado e resignado.

Mas hoje… como era possível tudo renascer assim? Esse era o dia pelo qual o homem esperou por toda a vida mas para o qual, percebia, nunca havia se preparado. Seu sonho tão íntimo, o segredo que mantinha com Deus, Simeão prometeu a si que jamais falaria no assunto até que visse, com os próprios olhos, o libertador do povo escolhido. Agora, enfim, o consolador surgiu.

Não conseguiu cumprir sua rotina. Largou o jardim como estava, deixou caída a enxada sobre a terra, limpou as mãos na túnica e caminhou, absorto, porta adentro. Lavou o rosto, respirou por algum tempo, tentando manter a lucidez, apoiado sobre os braços enquanto contemplava a própria imagem refletida na água da pia. Cada fio em sua cabeça branca o remetia à promessa da mocidade.

Do que se passou depois disso, lembrou muito pouco. Não notou o estado em que deixou a casa, tampouco os cumprimentos dos vizinhos, o grito do comércio, o barulho da cidade enquanto seguiu obstinado pelo caminho até o templo. Subiu a escadaria como se não lhe pesassem décadas sobre as pernas, atravessou apressado o pátio, a entrada principal e, finalmente, chegou ao interior do lugar sagrado. Cerrou os olhos miúdos, movendo-os ansiosos, procurando por todo o lugar sem saber quem exatamente deveria encontrar.

Mas o templo estava vazio. Num canto, sentada, estava a profetiza Ana, já idosa, que passava seus dias naquele lugar. Um pensamento irônico lhe ocorreu vagamente e Simeão sorriu. Conteve-se, caminhou até uma área mais ampla no interior do templo, longe da porta de entrada e se acomodou. Olhou em volta mas nada lhe prendia a atenção. Tentou orar, mas não conseguia se concentrar. Fechou então os olhos e aguardou em silêncio. Não sairia dali até que as notícias chegassem das ruas ou o próprio Deus lhe mostrasse onde estava o Cristo para que ele fosse lhe prestar culto.

Por uma hora, o homem esperou. Teve dúvida. Talvez fosse tudo uma bobagem, a vontade de ter alguma novidade em sua vida monótona, um desejo íntimo de finalmente partir da vida e descansar, poder ele mesmo florescer num jardim e ter a alegria lhe regando o espírito. Mas, não, não poderia. Era verdade, só poderia ser. Como se fosse ontem, Simeão podia reconhecer aquela sensação em si tal como no dia em que recebeu a revelação que o sustentara até aquele instante.

As lembranças do passado se misturavam às daquela manhã quando o silêncio no interior do templo foi interrompido. Simeão despertou. O som cada vez mais alto de sandálias arrastando pelo chão denunciava que pessoas se aproximavam, chegando pelo corredor de entrada do templo. O velho sentiu sua espinha gelar. Num instante, o coração martelava em seu peito, as mãos suavam, a boca seca mal o deixava engolir. Ele sabia, Ele vinha.

Se havia algo em que Simeão jamais havia parado para refletir era na aparência do Cristo. A medida que os passos se achegavam, tentou construir para si a imagem. Em vão. Não era possível pensar qualquer coisa num momento iminente. Ele se pôs em pé, concentrou o olhar na entrada, começou a caminhar na direção da porta, titubeou, parou, coçou a barba, respirou fundo, ajeitou-se e, tal como se acostumou a fazer durante toda a vida, Simeão esperou.

O interior do templo era escuro e, olhando contra a claridade que vinha da porta, o velho não conseguia distinguir as pessoas que se aproximavam por detrás da luz. Quando finalmente seus olhos pequenos conseguiram se abrir, identificou um casal que chegava com um bebê nos braços, envolto num monte de panos.

Um misto de decepção e dúvida o arrebatou. Não, por Deus!, ainda não era o Messias que vinha bradando a libertação de Israel, cercado por uma multidão de anjos, trazendo a consolação para seu povo, redimindo os judeus dos pecados, do passado, da condenação eterna e trazendo, finalmente, a glória divina para a humanidade.

Eram apenas camponeses. Aproximaram-se com dúvidas, nem sabiam ao certo como deveriam proceder, vinham da Galileia e queriam apresentar seu filho homem, o primogênito, tal como mandava a tradição.

“Vocês precisam procurar o…”. Simeão sabia mas, seus olhos, o pensamento, a dúvida, como era possível? Era o dia, afinal? E a promessa? Ele sabia que o Espírito havia lhe revelado uma verdade, mas e agora? Onde ele estava? Como seria? A essa hora, tudo isso, essa família aqui…

“Bom, acho que posso ajudar. Deixe-me ver a criança”.

A mãe desenrolou os muitos panos que protegiam o menino e o pai o tomou no colo para mostrar ao velho homem.

Quando viu a criança, Simeão pensou por um instante que suas pernas não aguentariam o próprio peso. De repente, sentiu amolecer cada músculo rígido de seu pequeno corpo, seus lábios se moviam como num espasmo, sentiu inundar seu interior com um calor que, naquele momento, dissipava toda sombra de dúvida, a garganta presa, a promessa se cumprindo finalmente, a tempestade de sentimentos que brotava de suas entranhas e se convertiam em riso, em assombro, em paixão, em temor, em louvor, em lágrimas.

Simeão estendeu os braços e segurou a criança. Chegou a pensar que não seria capaz, mas num fôlego o ergueu acima de si e desabou a confissão que represara em seu coração por toda a vida:

“Ó Soberano, como prometeste, agora podes despedir em paz o teu servo. Pois os meus olhos já viram a tua salvação, que preparaste à vista de todos os povos: luz para revelação aos gentios e para a glória de Israel, teu povo”.

Os pais assistiam a cena admirados. E o homem envolveu nos braços aquele a quem gostaria de se entregar, agarrou junto ao peito o pequeno bebê a quem pensou prestar culto. A sua vida enfim estava completa, a promessa se cumpriu. Seus lábios exclamavam adoração ao Pai, seus braços embalavam o Filho de Deus. Era só um menino. Inocente, frágil, silencioso, o Rei de Israel chegou, o Deus vivo rasgou a eternidade e agora estava entre os homens. E seu nome… seu nome é Salvador, redentor, Deus Poderoso, Maravilhoso Conselheiro, Pai Eterno, Príncipe da Paz.

“O nome dele é Jesus”, disse o pai.

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Cenas natalinas: Inverno na Galiléia

por Luiz Henrique Matos

Belém (Vasily Polenov)

Maria observava. O menino crescia com saúde. Era inteligente, curioso e obedecia aos pais. Gostava de brincar nos quintais poeirentos do vilarejo, correndo entre seus irmãos e amigos, e às vezes se enfiava na oficina para observar o pai trabalhando que, orgulhoso, mostrava seu ofício ao filho. Ele era como qualquer criança entre as outras e era isso que a deixava angustiada.

“O que vai acontecer? Quando é que as coisas vão mudar, afinal?”

O passar dos anos nunca apagou o que lhe aconteceu, mas a construção de sua família, a rotina da vida atribulada em Nazaré cuidando dos filhos, o trabalho de José… isso tudo tomava tanto tempo que Maria chegava a passar meses sem refletir sobre o assunto.

Ela pensava em seu bebê que agora era um yeled formado, um menino alegre, com seus oito anos. E não fosse a verdade irrevogável dita por aquele anjo e o milagre que lhe sobreveio depois daquele dia, Maria julgaria que sua vida seguia o caminhar natural das coisas, tal como seria se nada tivesse sucedido.

Mas era só o inverno apontar e o velho pensamento a inquietava.

Era o chegar do vento seco, dos dias gelados e curtos, as lamparinas acesas sobre a mesa e a lenha estalando no fogo para que a casa pudesse aquecer um pouco. Os anos passavam fugazes, mas a cada novo inverno em Nazaré, a lembrança daquela noite lhe vinha à mente como um lampejo.

Cada momento da viagem a Belém eram nítidos para Maria e ela reconstruía a história de sua gestação em cada detalhe. A noite fria de inverno rigoroso, as hospedarias abarrotadas e sem quarto para a família, a estrebaria, as dores do parto, José ao seu lado lhe soprando a face, o choro da criança rasgando o silêncio da noite, a sensação indescritível de dar vida a um ser humano, os anjos louvando nos céus, o Deus vivo sendo acalmado pelo seu leite. A família reunida, a vida em sua plenitude, a promessa cumprida e descansando numa manjedoura. Glória, sono e o amor mais puro transbordando em seu coração.

* * *

“Mãe, está chegando a hora.”

Os anos passaram. O menino cresceu. Maria observava pela porta, apoiada com a mão espalmada sobre as ancas. Cansada. Viúva, pobre, fazia o possível para sobreviver, assim como grande parte da vizinhança. Os filhos todos crescendo e se aprumando, em pouco tempo estaria sozinha. Às vezes se pegava pensando em como as coisas seriam daqui a pouco.

Seu menino vinha do quintal em silêncio. Ele podia não dizer nada, mas pelos passos ela reconhecia cada um. Era assustador notar como o tempo passou rápido e estranho pensar que as crianças que brincavam por ali, agora já eram adultos.

Aos trinta anos, Jesus já estava na idade em que um homem deixa os pais e forma sua família.

“Mas não, ele não. O filho de Deus precisa cumprir sua missão. Ele estudou, era prodígio na Lei, seria Rabi por entre esse povo e querido por todos. Seria o profeta, o Deus vivo… Mas, o que dirão dele? Como o Messias pode ser o filho dessa viúva pobre e ignorante? Como será? Ah, querido, pode não ser fácil! Eu queria poder estar com você e te ajudar. O que o espera lá fora? Certamente o Poderoso guiará os seus passos, mas pudera eu fazer-te sandálias mais confortáveis… Agora, chegou a hora e eu só penso em como meu filho poderá ser profeta em Israel se tudo o que lhe ensinamos foi a disciplina da obediência, o temor a Deus e o ofício do pai? Ah, Deus, não me deixe ter errado em nada!”

Era inverno, já no começo. A noite se afundava fria, a luz do fogo aceso refletia no seu rosto e a imagem da estrebaria ainda era viva em sua mente.

Na companhia do filho mais velho, ela ainda tentava disfarçar. Enquanto o pensamento vagava, os olhos fitavam seu menino, de ombro apoiado na porta, banho recém tomado, um cálice nas mãos, o sorriso fácil estampado no rosto e os olhos vivos – ele não podia esconder o brilho – cheios de expectativa pelos dias que viriam.

Maria se admirava. Seu coração inquieto e cheio de dúvidas era sempre inundado pelo regozijo da promessa divina que se cumpria sob o teto de sua casa. “Foi para isso que ele nasceu!”. E nessas horas, o velho cântico dos anjos lhe saltava pelos lábios.

“Hosana! Hosana! Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade! Hosana!”

Jesus ria da mãe cantarolando.

“Vá, meu yeled, vá! Eu farei uma prece a cada instante. Que a paz reine através de você.”

Esse texto faz parte da série “Cenas natalinas”

1. O filho
2. Noite em Belém
3. Antes e depois

Cenas natalinas: Antes e depois

Por Luiz Henrique Matos

“No frio, no escuro, entre os montes pregueados de Belém, o Deus que não conhece nem antes nem depois adentrou o tempo e o espaço. Aquele que desconhece quaisquer fronteiras deixou-se restringir por elas: o chocante confinamento à pele de um bebê, as atemorizantes limitações da mortalidade. ‘Este é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação’, diria posteriormente um apóstolo; ‘Ele é antes de todas as coisas. Nele, tudo subsiste.’ Mas as poucas testemunhas oculares não viram nada disso. Elas viram uma criança lutando para fazer funcionar pulmões que nunca tinham sido usados.” (Philip Yancey, “Descobrindo Deus nos lugares mais inesperados”)

Um ano já havia se passado e eles mal se deram conta disso. Foi tudo absurdamente tão depressa que o tempo parecia ter consumido e embaralhado os fatos. Naquela noite fria, o casal acolhia-se em sua casa, nos fundos da carpintaria e, em família – sim, agora eram uma família completa e essa era sua maior satisfação – se preparavam para mais uma temporada do duro inverno da Galiléia.

Sim, era aquela uma data de festa para o bom José e sua Maria. Deus tem cuidado de nós, ele dizia. Mas nenhum dos dois podia evitar o olhar curioso e contemplativo ao sondar o pequeno Jesus crescendo em sua casa.

Foi um ano bom, pensou José enquanto se levantava para recolher qualquer coisa sobre a mesa e observava sua mulher amamentando a criança. Mas ele se dava conta do que se passava a sua volta e se preocupava. O homem, transparente que era em suas expressões, não conseguia esconder o peso da dificuldade que era sustentar sua casa no pequeno povoado em que viviam. E tinha medo. O medo de todo pai em trazer o bom sustento para o lar, em prover sempre o melhor. E o medo único do servo, o judeu que não aprendera de seus mestres como é, afinal, que se cria o filho de Deus.

Dará tudo certo, José, tenha paz homem. A pequena Maria sempre o acalmava. Ele admirava sua confiança. Que mulher incrível. Mas… Senhor, como será daqui dez ou vinte anos? Como sucederá essa história?

Jesus crescia bem. Era um bebê cercado de amor e cuidado. Às vésperas de seu aniversário, já ensaiava os primeiros e trôpegos passos, já balbuciava as expressões fundamentais: ma-mãe… papa… Aba!

E naquela noite, se passava um ano da viagem a Belém e o pernoite na estrebaria, um ano que brilhou no céu a estrela, um ano que José recebera um filho como herança de Deus. A plenitude dos tempos. Naquela noite, a família se reconfortava em casa, sem saber ao certo a proporção e grandeza do que tinham em seu colo, sem saber que viviam o tempo e o dia que dividiria e mudaria toda a história da humanidade.

Era Natal.

O dia em que o mundo todo então iria parar para sempre, e recordar a chegada entre os homens do Messias, do Salvador, o Cordeiro Santo, Filho do Homem, amigo, o princípio e o fim, mestre, Senhor, o bom pastor, o Deus vivo entre nós, uma criança nos braços de José e Maria.

Nessa noite, em que ainda se pode ouvir o canto dos anjos ecoando nos céus: “Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade!”

Antes de Cristo, depois de Cristo, em Cristo.

Cenas natalinas: Noite em Belém

por Luiz Henrique Matos

Por Yeshi, pastor de ovelhas em Belém, ano 0 da era cristã:

“Era noite, como fora outras tantas daquele ano. Estávamos no campo cuidando do rebanho e o silêncio da madrugada fazia o frio parecer ainda mais duro. Às vezes o vento vinha forte, deitando o pasto, movendo os sinos de algumas ovelhas e queimando a pele do rosto. Recostados nas pedras do monte, nos revezávamos num sono superficial.

Foi então que repentinamente apareceu aquele homem subindo da parte baixa, vindo do lado oposto da cidade. Alto, branco, iluminado pela luz radiante da lua cheia e de uma estrela que brilhava absurdamente intensa. Alguns pastores ao meu lado julgaram ser um peregrino, outros um ladrão. Ele se aproximou, saudou-nos com um aceno e parou à distância de alguns metros. Confesso que temi. Então tirou o capuz, olhou-nos a cada um e em uma atitude de euforia anunciou com sotaque que até agora não consigo identificar: ‘Não tenham medo; trago-vos a notícia mais feliz e que se destina a toda a gente! Esta noite, em Belém, a cidade de David, nasceu o Salvador – sim, o Cristo, o Senhor. É assim que o reconhecerão: encontrarão a criancinha envolvida em panos e deitada numa manjedoura.’.

Corremos. Eu já nem me lembro dos instantes posteriores ao que ele disse. Do que falava, afinal, aquele homem? Era um anjo, disse um dos nossos. Subiu entre outros ao céu, entoando um cântico de louvor. Ó Deus, eu não lembro!

do pasto, depois a terra da estrada, até que chegamos à aldeia em Belém, para onde indicou que fôssemos. Ofegante, cansado, eu arfava. Pensava nas minhas ovelhas. Com quem as deixei? E se uma delas fugir? É inverno, preciso tosquiar as lãs. O que estou fazendo nessa aventura? Seguimos ao passo da noite, num ruído intenso de vozes, de sandálias pisoteando a grama.

Avistamos o local, diminuímos o passo. Pelas frestas dava para perceber a luz do fogo aceso. Pelo som discreto, pudemos perceber e chegar ao local que o homem indicara: um estábulo!

Sim, eu ouvi o que o homem havia dito, mas… seria mesmo assim? É bem verdade que nos últimos anos minha presença na sinagoga não vinha sendo muito freqüente. As noites no pasto me deixavam com muito sono e mal conseguia me concentrar nas longas rezas. Mas eu me lembro, conheço as profecias, as mais antigas tradições, a esperança de Israel e, não, o Messias viria em Glória, desceria dos céus. Que lugar é esse?!

Não havia anunciação, trombetas, anjos ou louvores. Não chegávamos a uma celebração. Não havia comida ou bebida abundante. Mas, inexplicavelmente, era possível notar que estávamos para encontrar algo especial. Em todo tempo eu me perguntava por que, afinal, eu havia corrido até ali. Mas meu coração explodia no peito. Eu nem sei o que sentia.

Então me acheguei. Então, eu vi. Por entre os animais, um homem de gestos nervosos, coçava a cabeça com fios grisalhos, limpava as mãos com as mangas arregaçadas na túnica que vestia, recolhia água num pote de barro, limpava o suor que escorria pela testa e movia-se zeloso com a mulher. Vi a mulher, uma jovem, pequena, deitada num leito improvisado, exausta, o rosto inchado, os fios de cabelo soltos e embaraçados, o pescoço erguido com o olhar embriagado e inquieto tentando enxergar algo ao redor, a criança. Vi, sim, eu vi uma manjedoura coberta com alguns panos.

Meus sentimentos se confundiam, o estômago parecia revirar. Subia pela garganta um nó que me fazia respirar e soprar o vapor branco da noite fria. E eu sentia calor e calafrios, euforia e medo, esperança e dúvida, decepção e amor. Amor?

Ali, deitado, inocente, os movimentos curtos, frágil, o ruído de choro, um bebê… o Salvador, o Cristo, o Senhor. Nasceu então. Veio ao mundo! Veio? O Bom Pastor, o Cordeiro Santo. Era Deus? Era só um menino. Era Deus!

– Qual o nome da criança? – balbuciei com a voz afinada pelo nervosismo. Em seguida me odiei por ter me manifestado. Quem é que pergunta o nome de Deus? Mas…

O pai nos avistou, virou-se, sondou com estranheza a presença de tantos homens à porta do estábulo. Olhou para a esposa deitada, fitou a criança. Seus olhos marejaram como eu vira poucas vezes antes num judeu adulto. Ele olhou para o céu, avistou a estrela reluzente. Sorriu.

Eu jamais me esquecerei. Naquela noite em Belém, eu ouvi pela primeira vez o nome.

– Jesus… O nome é Jesus.

Então, repentinamente, me veio um cântico à mente. Nem sei de onde me lembrei. Talvez de tempos antigos, talvez dos tais anjos que nem vi no campo. Foi que, posto à cena, meus lábios tremeram e entoaram em gratidão imensa: ‘Gloria a Deus nas alturas! E paz na terra aos homens de boa vontade!’. Hallelujah!”

Cenas natalinas: O filho

por Luiz Henrique Matos

Olhando para aquele berço improvisado a mulher e seu marido observavam o fruto daqueles nove meses que se passaram. Deitada, ainda fraca e cansada pelo esforço do parto, a jovem tinha sono e tentava cobrir-se para proteger o corpo daquela madrugada fria. Tudo parecia um tanto confuso, mas agora ela era mãe e nada lhe parecia mais glorioso do que esse fato.

O homem trouxe-lhe a criança, um menino, que tomou sem jeito nos braços na tentativa de amamentar pela primeira vez. Um bebê tão frágil, os gestos curtos, o choro sufocado, os pequenos olhos que mal se abriam, tinha fome.

Ela olhava a criança de forma contemplativa. Sem desviar o olhar, sondou o marido que, de pé à frente, a observava cuidadoso. Seus olhares se cruzaram na cumplicidade do momento, em união por aquela nova vida. O que dizer? Era difícil acreditar, os dois sabiam. E foi sem querer que lhe escapou pelos lábios um pensamento. Num misto de dúvida e adoração a jovem Maria disse: “Esse é Deus…”.

A poucos quilômetros, não longe dali, em um campo de ovelhas próximo a Belém, os anjos se reuniam para cantar seu coro de louvor: “Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade!”.

Para os pastores que ouviam a anunciação e a festa celestial, o Messias era nascido. Para aquele casal, milagrosamente seu filho viera ao mundo. Uma criança! “O que fazer?”, pensavam Maria e José. O que ensinaria uma camponesa pobre para o próprio Deus que saíra de seu ventre? Um menino…

“Maria, porém, guardava todas essas coisas e sobre elas refletia em seu coração” (Lucas 2:20).

* * *

E cresceu o nazareno nas terras da Galiléia, discreto, sem nada de especial em sua vida que merecesse algum relato. Ajudava o pai nos serviços da carpintaria. E por trinta anos foi assim. Tão homem, tão simples, pobre e até comum. Ele não era diferente dos outros jovens senão por sua bondade, simpatia e graça naturais. Tinha autoridade e era aplicado no estudo das Escrituras, gostava de todos, mas não havia nada do que um judeu esperaria do Messias naquele galileu.

Sim, é verdade, ele veio a operar milagres pouco tempo depois, curando enfermos, expulsando demônios, caminhando por sobre as águas e até multiplicando alimentos. Mas também ele mesmo disse que qualquer um daqueles que nele criam também seriam capazes de realiza-los.

Jesus, o Cristo. Sim, era totalmente Deus. Mas não viveu como tal. E era ele homem também, plenamente. E assim decidiu viver, pleno homem em seus sentimentos e dúvidas. Nas amizades, sentado à mesa, deitado em seu sono, prostrado em suas preces. Caminhava, trabalhava, vivia a vida como viveria qualquer outro judeu pobre daqueles dias. Anunciou seu propósito com a voz de sua própria garganta, tocou as pessoas com a palma das próprias mãos, sentiu o afago de seus amigos reclinado à mesa na noite da ceia.

E depois, no fim daquela jornada breve e marcante, na cruz, ele também foi homem. Sofreu mais do que poderíamos sofrer. Teve medo. Ali sentiu tudo quanto poderíamos passar. Teve sede. Teve forças para pedir ao fiel amigo que cuidasse de sua mãe, aquela que via seu filho padecer e talvez tenha se lembrado do pequeno bebê que concebera em Belém. Ele pagou um preço que jamais, jamais seremos capazes de honrar. Foi tentado, em tudo. Teve misericórdia de seus algozes. Foi condenado. Morreu Jesus, o homem e Deus, crucificado numa tarde de Páscoa em Jerusalém.

Mas venceu a morte, ressuscitou. Pagou nossa dívida, tomou-nos como propriedade sua e nos fez livres da vergonha, do erro, da dor. E agora livres, podemos servir, podemos adorar, amar e viver a vida plena, completa, eterna ao lado de nosso Deus, bom Pai, puro Mestre, Jesus.

Sobre isso, diria a verdade religiosa num cântico de nossos dias: “Morreu a nossa morte para vivermos a sua vida”. E disse também um grande homem de Deus de tempos mais antigos: “Ser cristão é olhar para Jesus e dizer: ‘Esse homem para mim é Deus!’”(Martinho Lutero).

“Porque Deus tanto amou o mundo que deu seu Filho Único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna. Pois Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para condenar o mundo, mas para que este fosse salvo por meio dele.” (João 3:16-17).