Do direito de atirar pedras

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“A suprema tentação é a maior traição: fazer a coisa certa pelo motivo errado.” (T. S. Eliot)

Atirar pedras nos outros é um direito garantido por lei em certos países. Pelo que apurei, ao menos dez nações – entre elas, Irã, Somália, Indonésia, Arábia Saudita e Paquistão – ainda tem o apedrejamento como punição para crimes considerados graves.

Funciona assim: a pessoa é pega em flagrante, vai presa e segue todo processo de julgamento. Se condenada, marcam a data do apedrejamento. No dia agendado, um buraco com pouco mais de um metro de profundidade é cavado no chão. Mulheres são enterradas até o pescoço e homens até o quadril. Um grupo se reúne em volta do réu e, dado o sinal, o juiz atira a primeira pedra. A partir daí os demais seguem o rito. Como a parte do corpo exposta é bem pequena, o objetivo é acertar a cabeça. As pedras devem ser grandes, de forma que sejam capazes de matar. De tempos em tempos, um agente confere se a pessoa já está morta. Se não estiver, seguem arremessando as pedras até que o óbito seja confirmado. Ah, sim, a pessoa pode salvar a própria vida se conseguir se libertar do buraco e fugir enquanto as pedras são atiradas contra ela.

É hediondo. Eu leio, releio, reflito e não consigo acreditar que sejamos realmente capazes de executar alguém por esses meios. É de um primitivismo tamanho que é difícil imaginar que isso de fato aconteça no mundo de hoje. O homem aprendeu a voar, chegamos ao espaço, aceleramos partículas, temos refrigeradores na cozinha para preservar alimentos, descobrimos e reconstruímos esqueletos de dinossauros com centenas de milhares de anos, conectamos o mundo através de uma rede de computadores e fazemos cirurgias de alto grau de complexidade usando técnicas pouco invasivas e braços mecanicamente guiados. E ainda matamos nossos vizinhos com pedradas na cabeça.

Vale lembrar que o objetivo do apedrejamento é humilhar o criminoso em uma morte vagarosa. A punição não é apenas física, fosse assim um tiro na testa resolveria o problema de forma ainda mais rápida e eficaz (esses mesmos países também praticam outras formas de execução). A ideia do apedrejamento é a exposição pública, é punir pelo exemplo, é fazer com que o condenado se arrependa e pague pelo mal que cometeu.

Fossem mais espertos, aiatolás, ditadores e governantes dessas nações poderiam adotar medidas mais aceitas pela comunidade internacional e diplomaticamente adequadas ao redor do mundo para garantir o mesmo tipo de exposição pública: bastaria que liberassem o acesso ao Facebook em seus países.

Haveria, inclusive, alguns avanços no processo de apedrejamento: em redes sociais, mais gente participa do ato, o que faz com que o condenado seja rapidamente executado. O propósito principal de humilhação e exposição pública é imbatível. Diminuem também as chances de condenado conseguir fugir da punição e o processo de julgamento é popular, movido pela massa sedenta por descontar sua raiva, o que em certa medida tira o peso da decisão das costas de um juiz. O primitivismo é o mesmo, a irracionalidade dos gestos também e a motivação, acredito, segue os mesmos instintos.

É hediondo. Eu leio, releio, reflito e não consigo acreditar que sejamos realmente capazes de expor alguém por esses meios. É de um primitivismo tamanho que é difícil imaginar que isso de fato aconteça no mundo de hoje. O homem aprendeu a voar, chegamos ao espaço e tal… E ainda agredimos nosso semelhante por pensar diferente da gente.

Há patrulheiros vigilantes. Há diversos deles, navegando pelas redes sociais, assistindo diligentemente vídeos no YouTube, rastreando cada tuíte, cada foto no Instagram, cada texto publicado à procura de um deslize, um erro, um ponto de dúvida que justifique seu dedo em riste, que condescenda com a mão inquisidora, que possa finalmente sofrer sua punição. E, juízes que somos todos, atiramos a primeira pedra. E a multidão acompanha.

O critério para se decidir se o crime é grave ou não cabe tão somente ao juiz e seus seguidores. Não há lei. Basta não concordar, basta votar diferente, torcer para outro time, gostar de outra banda. Basta compartilhar aquele post polêmico, basta assistir Big Brother, não ser da mesma religião, não ser igual, ou não ser diferente. Basta estar ali, rolando sua tela, na mira de alguém e, de repente, uma pedrada lhe atinge a cabeça.

* * *

No Novo Testamento há uma passagem clássica que conta sobre o dia em que um grupo leva até Jesus uma mulher flagrada em adultério. Pela lei, ela deveria ser apedrejada até a morte. Querendo comprometer Jesus em seu julgamento, eles a colocam diante dele e questionam se a lei deveria ser cumprida. Eles tinham pedras nas mãos. Queriam, com isso, condenar a mulher, mas também encontrar caminho para incriminar Jesus, que vinha pregando o amor e desconstruindo conceitos arraigados da lei. A resposta de Jesus, tão conhecida, virou um ditado que ainda repetimos com frequência: “Quem nunca pecou, que atire a primeira pedra”.

Ninguém ousou dar o primeiro golpe. Deixaram a pobre mulher ali com Jesus e partiram.

No entanto, note, os inquisidores da mulher adúltera (alguns intérpretes do texto bíblico afirmam que se tratava de Maria Madalena) não a apedrejaram porque a lei os impediu. Pela regra, esse era um direito que tinham poderiam tê-lo exercido, aprovando Jesus ou não. Mas, abandonaram sua condição de acusadores porque foram constrangidos por Jesus com uma pergunta. Um espelho. Diante deles, a mulher em pecado era um reflexo de sua própria condição moral. Não de adúlteros, mas de pecadores. Os seres falhos que também eram, era a imagem da mulher jogada no chão de terra à sua frente.

Porque é no espelho que nos vemos, enxergamos nosso reflexo, nossa fragilidade, as rugas e a pequenez de nosso estado. No espelho, não vemos o outro, só a nós mesmos, diante dos defeitos que talvez só nós conheçamos. Ali, o dedo acusatório aponta para nós mesmos, as ofensas rebatem e voltam, a pedra arremessada estilhaça nossa própria imagem.

Espelhos.

Talvez seja isso. Diante da tela do computador ou do celular desligada, naquele instante de reflexão, seria melhor se no lugar de pedras, tivéssemos nas mãos o reflexo de nossa condição.

* * *

O problema são os outros, dizemos o tempo todo. O problema é da internet, o problema são as redes sociais, alguém diz. Então vamos acabar com as pedras. Mas, acabar com as pedras não resolve. O problema está no braço que as arremessa, outro poderia dizer. Mas amarrar as pessoas também não resolve.

O problema está no que nos motiva, eu diria. Está em olhar para o outro e não nos enxergarmos nele. O problema está em não amar o próximo, em não parar para pensar em suas motivações e perceber que também erramos.

Nos sentimos em meio a um fogo cruzado e nunca na posição de acusadores. Mas somos parte ativa do conflito. Porque atirar pedras, tecer comentários ácidos e levantar contendas são apenas gatilhos, atitudes que resultam de uma perda profunda que tem acontecido dentro de nós: a insensibilidade ao sentimento do outro.

E se fôssemos julgados com o mesmo critério que julgamos? E se fôssemos amados com a mesma medida que amamos?

Há muito, isso deixou a esfera política e virtual. Há tempos deixou de ser contra inimigos históricos e estranhos anônimos. Atiramos pedras com quem convivemos cotidianamente, desfazemos amizades, ignoramos a presença dos nossos semelhantes que estão segregados em nossa sociedade, vivendo à margem da dignidade, ofendemos gratuitamente o outro com nossa arrogância, diminuímos aqueles com quem dividimos um teto ao não reconhecer seu valor. Deixamos nossa atenção plena ser usurpada pelo entretenimento superficial que nos anestesia e emburrece. Nas pequenas e nas grandes coisas, temos fechado os olhos para o próximo. O próximo que dorme ao lado, o que vive ao lado, o que caminha ao seu lado na rua.

Ignoramos diferentes perspectivas, rechaçamos opiniões e atiramos pedras porque o outro… – e sua opinião e sua dor e sua história e seus anseios e suas dúvidas e sua vontade – o outro basicamente não nos interessa.

Onde abunda o egoísmo sempre falta compaixão.

Jesus chamou isso de amor. E ele disse que amar era o resumo de toda e qualquer lei ou mandamento.

Quando viveu entre nós como homem, na história que lemos e relemos nos evangelhos, Deus não queria salvar a humanidade do diabo, ele queria nos salvar de nós mesmos. Os exemplos, as mensagens, as atitudes, o sacrifício e a história de Jesus não revelam propriamente uma batalha entre Deus e um inimigo, nada entre duas forças espirituais opostas. A Bíblia mostra que Jesus veio salvar o homem do egoísmo, da tendência de procurarmos apenas nossos próprios interesses, ele veio nos curar de cegueira, da insensibilidade na alma, nos tirar da lama espessa em que afundávamos e nos purificar para que pudéssemos ser livres.

Ao viver entre nós, ele se ofereceu como imagem que pudesse nos servir de inspiração. Ao se tornar o ser humano perfeito, nos mostrou o caminho livre e perfeito que desenhou para a humanidade. Ao se revelar homem, Deus expôs diante de nós sua face bondosa para que pudéssemos contemplar o Criador e, finalmente, nos enxergar em nosso Pai.

Um espelho.

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Leia antes de gastar

Alguns motivos para pensar antes de passar o cartão de crédito na próxima loja:

  • Quase 1 bilhão de pessoas no mundo vivem com menos de um dólar americano por dia. Outros 2,5 bilhões de pessoas vivem com menos de 2 dólares americanos ao dia. Isso quer dizer que mais da metade do mundo vive com menos de 60 dólares por mês.
  • 1 bilhão de pessoas no mundo todo não tem acesso a água tratada.
  • Falta saneamento básico para 40% das pessoas no mundo inteiro.
  • 1,6 bilhão de pessoas não tem eletrecidade no mundo.
  • A maioria absoluta das pessoas no mundo não tem carro.
  • Quase um bilhão de pessoas não conseguem ler ou assinar o próprio nome.
  • Nega-se educação básica a quase 100 milhões de crianças.
  • Uma em cada sete crianças no mundo todo precisa trabalhar todos os dias só para sobreviver.
  • A cada 7 segundos, em algum lugar do mundo, uma criança com menos de 5 anos de idade morre de fome.

(Dados extraídos do livro “Jesus quer salvar os cristãos”, de Rob Bell)

O próximo

Quem é meu próximo? Meu próximo é todo aquele que eu penso que é e ainda cada um dos que eu gostaria que não fossem.

Da minha lista de pendências 2

“O jejum que desejo não é este: soltar as correntes da injustiça, desatar as cordas do jugo, pôr em liberdade os oprimidos e romper todo jugo? Não é partilhar sua comida com o faminto, abrigar o pobre desamparado, vestir o nu que você encontrou, e não recusar ajuda ao próximo? Aí sim, a sua luz irromperá como a alvorada, e prontamente surgirá a sua cura; a sua retidão irá adiante de você, e a glória do Senhor estará na sua retaguarda. Aí sim, você clamará ao Senhor, e ele responderá; você gritará por socorro, e ele dirá: Aqui estou. “Se você eliminar do seu meio o jugo opressor, o dedo acusador e a falsidade do falar; se com renúncia própria você beneficiar os famintos e satisfizer o anseio dos aflitos, então a sua luz despontará nas trevas, e a sua noite será como o meio- ia. O Senhor o guiará constantemente; satisfará os seus desejos numa terra ressequida pelo sol e fortalecerá os seus ossos. Você será como um jardim bem regado, como uma fonte cujas águas nunca faltam.”

-Isaías 58:6-11

Vira-latas

por Luiz Henrique Matos

No último fim de semana, depois do almoço, levei minha família a uma sorveteria. Estávamos em Itapeva, cidade natal da Manú e, sabe como é, domingo, casa de parentes, churrasco, excessos… e a gente ainda acha espaço para a sobremesa.

A sorveteria fica num calçadão em pleno centro da cidade. É o único estabelecimento em todo o comércio – fora a farmácia e o boteco – que abre aos domingos.

Parei o carro numa rua acima e enquanto caminhávamos, cruzamos com um vira-latas fuçando o lixo acumulado na rua. Cena típica. Sacos pretos revirados, restos de comida consumidos com voracidade e o forte odor da sujeira cruzando o ar. O pobre animal estava doente. Tremia enquanto procurava algo que lhe saciasse a fome.

Não seria nada diferente do que vemos em qualquer caminhada por qualquer cidade, não fosse o momento em que o coitado percebeu nossa aproximação e parou. Cambaleou um instante e, numa fração de segundos, encarou a Manú com aquele olhar de dor e desamparo.

– Esses bichos ficam o dia todo consumindo porcaria, sem comer direito. Aí chegam num momento que engolem o que tem pela frente pra tentar matar a fome.

Do alto da minha sensibilidade, passei reto e tentei desviar o foco da atenção da minha esposa, sabendo o que poderia vir em seguida caso ela…

Pois é, minha estratégia não deu certo. Entrei na sorveteria, mas ela não se contentou com minha resposta tão compassiva. Ficou ali parada no meio do calçadão, a sobrancelha franzida, a expressão intrigada, olhando pro monte de lixo revirado. Aí – como já era de se esperar – me mandou levar alguma coisa boa pra ele comer.

Claro, ela tinha razão.

Numa sorveteria, o máximo que se consegue de qualidade nutricional mastigável é um pedaço de bolo. Comprei uma fatia e subi a rua com o pratinho em mãos. Cheguei perto, meio constrangido com a cena e acho até que estalei os dedos para chamar.

– Ei, amigão, vem cá… toma. Você deve estar com fome.

Cena fofa. Me senti o próprio explorador do Discovery Channel se aproximando das feras de forma heróica e lhe entregando o alimento.

Afastei-me e observei. Ele comeu o bolo. Virei as costas e voltei para o balcão refrigerado do estabelecimento. Missão cumprida. Três bolas, por favor. A Manú orgulhosa. Chocolate, côco e morango, caprichado. Peraí, a Manú ainda estava lá fora, com a mesma expressão no rosto.

– Que foi, amor? – perguntei, sem querer ouvir a resposta.

– Acho que ele não tá bem…

Quando ela teima com algo, vai até o fim. E eu agradeço a Deus por isso.

E lá fui eu. Sorvete derretendo na mão, me aproximei dos sacos de lixo e vi o pobre coitado botando todo o bolo pra fora. Meu coração apertou. Estranhamente, pela primeira vez na vida, eu assistia a uma cena dessas sem passar mal junto. Eu sentia aquele cheiro azedo do vômito vindo em minha direção e não me movia. Eu queria pegar aquele animal no colo e correr para um hospital ou sei lá o quê.

Joguei o sorvete de lado. Pedi a alguém que trouxesse um pouco de água.

Ele tremia, suava, esfregava os olhos, ele chorava. Ele só tem 12 anos. “João Paulo”, foi o nome que falou quando conseguiu pronunciar a segunda frase. A primeira foi a que me derrubou de vez:

– Dói… dói tudo.

Poucas vezes ele me encarou. Quando o fez, seu olhar era de dor e desespero. Ele queria socorro mas não sabia pedir. Ele não estava drogado – conforme pressupus quando o notei pela primeira vez – ele estava cansado, tinha fome e talvez dengue ou uma intoxicação.

Então, liguei para a ambulância, mas o serviço de atendimento não estava funcionando. Aí liguei pra polícia, que me mandou ligar pro bombeiro, que me mandou ligar num 0800 que não funcionava e então eu liguei de volta e eles me mandaram ligar pra polícia de novo, que me mandou ligar pro bombeiro, mas eu avisei que eles não podiam atender e então ele me mandou esperar na linha e depois mandou eu ligar na guarda municipal, que finalmente resolveu mandar uma viatura pra buscar o menino.

O João Paulo mora com os pais na periferia da cidade. Saiu de casa às 7:30 para catar latinhas e vender. Estava sem comer desde que acordou e já vinha passando mal desde cedo, andando pelas ruas daquele jeito. Eram três horas tarde, um domingo de sol, as famílias reunidas para o farto almoço do fim de semana e o menino virando sacos de lixo para ajudar a sustentar sua casa.

A viatura chegou. Uma mulher dirigia o carro.

– Venha, filho. Entre no carro. Vamos no hospital pra você tomar um sorinho.

Ele se arrastou para dentro do carro. Arrastou também o saco preto com meia dúzia de latas que conseguiu no dia. E foi.

Paguei a conta na sorveteria, reuni a família e voltamos para casa. No caminho, vi o dono do sobrado onde o menino ficou sentado em frente jogando água na calçada e me encarando bravo.

Eu dirigia o carro sem nem perceber o tempo passar. E a gente passa pelo mundo e nem vê que tem alguém sentindo dor na calçada. A gente olha para um menino fuçando no lixo e logo confunde o menino com o lixo. Mais um vira-latas. Nem paramos pra pensar que a criança tem nome, tem pai, tem mãe e precisa de água, de arroz-feijão, de lápis e papel e de uma bola pra brincar. A gente vê que é um menino e nem pensa: “podia ser meu filho”. Podia.

Tem tanta gente viciada no mundo. Cocaína, cigarro, dinheiro, álcool, sexo, televisão, vídeo-game, comida… tem gente viciada em tudo. Mas quando penso nessa insensibilidade toda que nos faz ignorar a necessidade do nosso semelhante, eu acho que o pior vício do homem é o próprio homem. A maioria das pessoas que eu conheço – entre as quais me incluo – nem mesmo resiste à tentação de só se preocupar consigo mesmo.

O centro do mundo é o meu umbigo.

De volta em casa, bebi um copo de água, deitei na cama e me acomodei em minha zona de conforto pra poder cochilar um pouco. Mas aí pensei no João Paulo, lembrei dessa coisa toda dos vícios da nossa sociedade, fiquei cruzando as coisas na minha mente e orei a Deus pedindo para que não me deixasse esquecer que ele me mandou amar as pessoas.

Não quero ser insensível aos problemas dos outros. Por favor, não. Eu quero, na verdade, o contrário. Quero olhar e não conseguir dar um passo sem fazer algo. Eu quero que Deus me ajude a mergulhar num vício novo. Eu quero é ser viciado em gente.

Jesus olhou para o João Paulo… “Jesus olhou para as multidões e foi movido de íntima compaixão.” (João 14:14).

“Erga a voz em favor dos que não podem defender-se, seja o defensor de todos os desamparados. Erga a voz e julgue com justiça; defenda os direitos dos pobres e dos necessitados” (Provérbios 31:8-9).