Doce doce lar


Na poltrona 4D eu sentei, na ida e na volta, de um voo para Buenos Aires.

Na poltrona 3C, diagonal à minha frente, sentou-se o mesmo sujeito, na ida e também na volta, dois dias depois.

Pediu água, dispensou os snacks, não quis café, trocou gentilezas com os comissários. Da minha parte, água, snacks e cafés foram bem vindos. A timidez – e não a falta de educação – é que me impede de avançar na troca de amenidades.

Eu – preciso informar, antes que você se preocupe – não fico bisbilhotando vizinhos de viagem, só guardei detalhes sobre esse passageiro especificamente porque o homem falava alto. Simpático, sorridente e muito alto no tom grave em que se manifestava, a ponto de vencer a barreira do bloqueio sonoro dos meus fones de ouvido.

Me atraiu em especial, no entanto, o fato de que nas três horas de viagem da ida e nas outras três horas da volta, empunhando um tablet de treze polegadas, ele se dedicou a superar fases e recordes jogando Candy Crush Saga. A tela reluzia no corredor da aeronave, que deslizava sobre nuvens e o sul do continente, enquanto o dedo indicador do meu vizinho se transformava num eficiente e motivado instrumento destruidor de gelatinas, balas e frutas coloridas.

“Delicious!” brilhava o texto na tela e me distraía, na penumbra do voo noturno, da leitura do último Paul Auster que, por melhor que seja, não conseguia competir com o instinto de torcer por aquele guerreiro em sua saga para deixar o mundo mais doce.

Na hora do jantar, ele não dispensou a sobremesa.

(Publicado originalmente no Estadão)


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