A César o que é de César


Na fila de imigração para entrar oficialmente em território argentino, me percebi imediatamente atrás de Chico César, o cantor, filho da Mama África, que sustentou o pequeno garoto como empacotadeira nas Casas Bahia antes dele ficar famoso.

Passava das onze da noite, a fila era curta e logo ele foi chamado pelo oficial da fronteira para apresentar seus documentos. A dois metros, eu observava a cena. Pude ver a bolsinha de documentos do Chico César de onde ele sacou uns papeis, vi o passaporte do Chico César (mas sou míope e infelizmente não consegui ler o nome da mãe pra fazer o fact checking da música), vi o chapeuzinho do Chico César, que ele sacou da cabeça para poder tirar a foto que o oficial registrou. Vi a expressão de apreensão do Chico César enquanto o oficial folheava seu documento. Vi também, depois de alguma interação em portunhol que não consegui entender, o Chico César ficar na pontinha dos pés para alcançar o microfone da cabine blindada e aproximar o rosto, bem pertinho do vidro e oferecer uma canja para o oficial, cantarolando à capela: “Quando não tinha nada, eu quis; Quando tudo era ausência, esperei; Quando tive frio, tremi; Quando tive coragem, liguei…”.

E sem qualquer outra pergunta, contato visual ou interação direta, eu vi o oficial da imigração baixar a cabeça, abrir o passaporte do Chico César, carimbar, assinar e lhe devolver desejando uma boa estadia em terras portenhas.

Fiquei em dúvida se deveria aplaudir ou não.

Vi Chico César desaparecer pelo corredor em direção a seja lá o que tenha ido fazer em Buenos Aires enquanto o som da música ecoava em minha mente e eu tentava lembrar como era, raios, a continuação da letra e só me vinha “dzaia, dzaia, soiê” e sabia que isso não era português e não era espanhol e talvez fosse aquela uma oportunidade para interpelar Chico César e esclarecer elementos existenciais da sua obra. Mas era espanhol, por supuesto era español, o “señor! Señor?!” que eu escutava e que então me dei conta, vinha do oficial de imigração que me chamava, impaciente, para apresentar os documentos em sua cabine já vazia.

“Buenas noches”, ele disse. Eu quis responder: “Quando me chamou, eu vim; Quando dei por mim, tava aqui…”, mas minha voz não estava boa para serenatas àquela altura. Mas eu sorria largo enquanto tirava a foto de registro facial, satisfeito por finalmente conseguir lembrar o resto da letra.

Passaporte carimbado, tal como o artista, “quando criei asas, voei…”. “Dzaia, dzaia! Aí iii…”.

Vi Chico César de novo, lá no saguão de desembarque abraçando amigos, um deles com um violão em mãos, que entregou para o cantor apreciar e dedilhar, como se ele fosse continuar sua performance ali mesmo.

“Sr. Chico, por favor, o que significa amarrara dzaia soiê?”, pensei em perguntar. Era a primeira das importantes perguntas que tinha em mente e tenho certeza que ele ficaria super feliz em responder, mas sou tímido. Enquanto esperava o táxi chegar, recorri ao Google.

“o correto é: ‘ô amarrara dzaia soiê; dzaia dzaia; aí iii iinga dunrã”, respondeu @chicocesarof (o próprio) num tuíte de 2020, em letras minúsculas, enigmático e cheio de meias meias palavras com “of”, imagino, sendo abreviação de “oficial”.

E por fim completou: “e não quer dizer absolutamente nada. :)”, com ponto final e um emoji.

Afe, César!


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