Já era quase hora de dormir, estávamos na cozinha tirando as louças da mesa quando Cecília apareceu vestindo seu pijama, apertando um gato de pelúcia sob o braço e com uma máscara de dormir presa na testa.
– Gente, alguém pode ficar lá no quarto comigo? Eu tô com medo.
– Eu fico, filha. Você está com medo de quê? – perguntei.
– Do escuro.
– Ué, mas você tem medo do escuro e vai dormir com uma máscara que tapa seus olhos?
– É, então. É por isso que eu uso a máscara. Assim eu não vejo o escuro.
Na passagem dos sete para os oito anos, no coraçãozinho dela brotava esse sentimento do passo seguinte. Ela agora tem a idade de que se lembra… lembra que tem um passado, com as memórias em que se agarra, a nostalgia de lembranças breves e que sumirão gradualmente e tem agora alguma consciência de futuro também, de que tem um amanhã, um depois que ela desconhece e não controla. O futuro pode ser uma sombra escura e assustadora muitas vezes.
Lembro de quando tinha medo da escuridão. Deixava a luz do corredor que levava ao banheiro acesa para conseguir dormir sem precisar encarar aquele vazio absoluto repleto de incertezas. Às vezes, naquele resto de luz que garantia que alguma coisa pudesse ser enxergada, as sombras se tornavam aterrorizantes. Um vulto de tecido que se projetava na parede, o receio de algo estranho acontecesse ou o vento soprando a cortina era o que bastava para que monstros me habitassem.
Cecilia sente-se moça. Já passeia sozinha com a Lucy, nossa cadela de dez anos. Acredita que é capaz de educar a Cora, a nova cadela de seis meses. Faz contas como passatempo, lê seus livrinhos, cria listas com planos para relaxar no fim de semana. Ela agora escova seus dentinhos separados e os cabelos ruivos em frente ao espelho antes de deitar, veste o pijama e sua máscara de dormir e, com aqueles pequenos gestos que emulam a mãe e a irmã mais velha, às vezes também insiste em passar um creme antes de ir para a cama. Cama da qual salta no meio da madrugada e corre para nosso quarto. Pijama estampado, bicho de pelúcia nos braços (às vezes mais de um), a máscara presa na testa. Cecília transita entre a pureza da infância e a realidade dos fatos. Porque tem esses ciclos que fecham e se renovam e, muitas vezes, antes de um terminar, outro novo começa e sobrepõe a ordem natural das coisas. A menina tem medo de monstros, de sonhos ruins, do escuro solitário e das sombras que se projetam à sua frente.
O tempo do faz-de-contas está acabando e ela não sabe lidar. Nesses tempos, há noites em que ela chega no quarto e eu também estou acordado. Meus olhos encarando no teto as luzes que entram pela fresta da janela entreaberta, os ouvidos capturando sons que sobem da rua e do campo ao lado de casa, a mente lutando para capturar e controlar o futuro. O tempo, esse tirano, que nos faz pequenos, que dita ciclos que não encomendamos. Há ensaios de desconhecido e tapar os olhos não elimina a realidade que se projeta.
*
Estou em um voo nesse instante. A trinta mil pés de altitude, disse o piloto. Todas as vezes, nessa hora em que o piloto fala, deito a poltrona e o mesmo pensamento me toma: trinta mil pezinhos empilhados, um a um, até formar a altura em que flutuamos sobre as nuvens. Pés de crianças, pequeninos ou pés tipo de homens adultos jogadores de basquete? Acho que não faria diferença considerando o pouco repertório de referência que possuo e minha capacidade de abstração, mas fico tentando calcular enquanto penso na imagem. Um pé tem 30,48 centímetros, diz a convenção das medidas imperiais (sim, dos mesmos caras que calculam coisas usando nomes como libras, milhas e onças, nomes bacanas de medidas que, pode crer, facilitam bem as coisas). Minha régua Compact acrílica nos tempos de escola tinha trinta centímetros. Ela tinha quase um pé. Esses 0,48 centímetros adicionais não eram relevantes para as aulas, mas tenho quase certeza que fazem diferença nas rotas de aviões quando multiplicados por 30.000. Cá estamos, imperiais, voando. Eu tenho dois pés sobre os quais me sustento e outros 6,10 pés de altura. Estando a trinta mil deles acima do solo, nenhum desses faz qualquer diferença.
Meus dois pés medem 29,5 centímetros cada. Não que seja relevante por hora, mas tenho certeza que você estava se perguntando.
Viagens a trabalho me dão medo. Não tenho medo de altura, seja em metros ou pés (e convenhamos, uma neurose a menos chega a ser um alento). Pelo contrário, gosto de estar em lugares altos, de contemplar a paisagem lá embaixo, da sensação de assistir o mundo em movimento em outra rotação e ritmo, como se eu estivesse momentaneamente à parte daquela realidade, observando a vida dos outros de fora. As partículas se ajustando, vidas em construção e histórias sendo compostas. Pequenas ovelhas num pasto. Me satisfaço assistindo e lembrando de como as coisas se tornam pequenas quando vistas de outra perspectiva.
Nessas viagens, meu medo é de outra espécie. Tenho essa sensação de que estou deixando algo para trás ao partir, mesmo que por alguns dias. Uma perda, como se criasse um buraco de ausência por não estar onde geralmente me encaixo. Não gosto do desapego da rotina, do afastamento da zona segurança oferecida pelo ritmo do nosso cotidiano. Não estar onde não posso ter nos braços as minhas meninas, nossa mesa, a dança da existência que compomos diariamente às 5:45 quando toca o alarme que invariavelmente adio e o dia já começa atrasado. Sinto falta das coisas extraordinárias que vivemos e que se fazem reais a partir da soma das pequenas coisas ordinárias que vivemos repetidamente.
“O universo é feito de histórias, não de átomos”, escreveu Mariel Rukeyser. Não sou poeta e nem cientista. Me apego a esses fragmentos de existência que me dão todo tipo de evidência de que preciso para crer na eternidade. E tem nostalgia pra caramba aí também, claro. Mas a nostalgia, em si, também é um medo de desapegar.
Eu tenho medo de estar viajando num avião, sentir dor de barriga e ter que usar o banheiro. Me apavora a certeza de que a descarga a vácuo vai ser acionada, aquele barulho estridente vai dominar a cabine e eu serei sugado pelo vaso e ejetado para fora do avião direto no espaço. A trinta mil pés.
É, eu sei, todo mundo tem esse tipo de medo.
Tem um sujeito dormindo ao meu lado no voo. Ele está sem os sapatos. Em um pé, usa meia, no outro está descalço. Acho que pode ser uma forma de tentar regular a temperatura. Tentei emparelhar meu pé ao lado do dele, mas não tenho certeza se o dele chega a ter 30,48 centímetros. Ele usa uma máscara de dormir para tapar os olhos. Não sei se ele, tal como a Cici, também tem medo do escuro. Somos passageiros.
Cecília chorou outro dia. Não lembro o motivo; um machucado, um susto, algo que demandava abraço e colo. Às vezes, ela resiste em receber esse cuidado. Depois que acalmou um pouco, conversávamos e notei que uma lágrima insistia em repousar em sua bochecha. Ela tem bochechas fofas e a lagriminha ficou por ali como uma micro poça de água salgada afogando suas sardas. Estendi a mão para enxugar e ela desviou o rosto.
– Pára, pai – disse, séria.
– Eu só vou enxugar uma lágrima que ainda está no seu rosto.
– Eu sei. Mas eu não quero. Deixe ela aí.
Há quem prefira não esquecer por um tempo. Lembrar a dor para não esquecer não é necessariamente cultivar o sofrimento. Pode ser um recurso para ganhar força e encarar o novo, o próximo, o que vem, aquele, aquilo que está logo ali atrás da porta e a gente ainda não conhece.
Saí para correr hoje cedo. Eram seis da manhã e me vi sozinho em uma pequena trilha que de um lado tinha um grande campo de vegetação baixa e do outro uma baía. Eu podia ver o sol surgindo, laranja e intenso atrás de um dos morros. Estava sozinho, o único som que podia escutar era dos meus passos esmagando os torrões de terra na trilha, alguns patos na água e pássaros levantando voo e cantando no fundo. A gente se percebe pequeno nessas horas. Olhei para o horizonte diante de mim, me senti grato, abri os braços e quis fazer uma oração, mas não consegui. Agradeci ofegante, mas ouvi minha própria voz trêmula e me distraí. Não tem muita coisa que vem à mente de forma estruturada quando sua frequência cardíaca bate 170 bpm e se você é o tipo de pessoa desastrada o bastante para cair sozinho mesmo se estiver parado.
Sou pequeno demais, vivendo na transição entre esses ciclos que se alternam e se sobrepõem, e hora me prendem os pés no chão como ímã, hora me impulsionam a correr mais rápido.
“Luizão, tudo bem? Onde você está agora?”, perguntou meu amigo Léo via mensagem. Conectado na rede wifi do avião (senhoras e senhores, o futuro chegou. E ele é terrível), olhei pela janela e respondi: “Estou no céu”. Mas só para depois completar: “Não com Jesus, ainda. Mas sobrevoando o Texas, acho”.
Deus não vê o mundo do alto, não observa a existência alheio e distante, não é essa coisa de ações e consequências, como se fossemos bonecos de um grande Ferrorama e ele nos pilotasse em seus trilhos. Ele não está a 30 mil ou 90 mil ou 88.925 mil pés. Está aqui, o bom pastor, nos abrindo os olhos para perceber seu gentil habitar em cada um de nós.
“O amor lança fora o medo”, escreveu João. Que medo? Todos eles? Medo de escuro, medo de morte, de futuro e de privadas espaciais? A ausência de medo é o quê? Coragem? A coragem, diz sempre um amigo, é seguir em frente apesar do medo. A fé, penso aqui enquanto me dobro diante do desconhecido, é caminhar sem saber para onde, mas esperar pelo melhor.
Deposito minha fé no desejo de poder chegar seguro em casa amanhã cedo, cruzar os pés pela porta da sala e me abrigar nos braços de quem pertenço.
*
Os pequenos pés que até pouco tempo saltitavam descalços pela casa agora usam saltos. Um salto no tempo e a Nina virou moça. Rápido assim. Dezesseis anos. Eu tapo os meus olhos e ainda vejo no piso as marcas das pegadas de sua infância. Escondo a realidade com essas imagens para não encarar o medo. Uso máscaras para disfarçar.
Eu queria viajar no tempo. Trocaria trinta mil pés por aqueles dois pezinhos bailando casa adentro outra vez.
Um peso especialmente difícil de carregar é olhar para a porta do corredor que divide a sala dos quartos e ver surgir a menina desabrochando como mulher. Seu sorriso fácil, o jeito mudado, o cabelo sendo jogado, o rosto pintado para sair. Mas o mesmo olhar está ali. O brilho nos olhos está ali. E ri, chora, se anima com o que seus olhos agora contemplam, experimentam e ansiosamente esperam. A moça está ali, mas ainda é toda a menina.
Ela troca de máscaras também. Porque ciclos são assim, afinal. O começo de um novo tempo não espera o final do outro para começar. O novo que ela celebra pode ser o que me assusta. E vivemos essa mistura, tateando no escuro ao passo que vivemos sonhos, calculando partículas enquanto criamos histórias, pisoteando o chão no dia em que sobrevoamos sobre as nuvens, descobrindo o Eterno habitando nas pequenas gavetas da nossa intimidade. Correr nas nuvens e voar na terra. O universo é feito de histórias.
Não é preciso temer a escuridão. Luzes entram pelas frestas de janelas entreabertas. Olhos e ouvidos captam e contemplam o desconhecido. Eu giro a maçaneta da porta da sala que está destrancada e piso descalço sobre o piso de madeira. Caminho em pastos verdejantes. Estou em casa, finalmente. O futuro não é escuridão. Porque todo amanhã pode ser um novo amanhã. De nada tenho falta. Avanço pela casa e já no corredor, sinto o perfume vindo do quarto. “Oi, amor”, a Manú se vira para me abraçar, “fez uma boa viagem?”.
(Publicado originalmente no Estadão)
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Tocante, emocionante e cheio de verdade. Lindeza de crônica!👏🏻👏🏻🥹🥹
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