Quando você sai, já está dentro


“Eu queria ficar só um dia preso. Dois, três, até dá. Se for mais, bem, vou ter que aguentar, né? Mas é f… Tem uma galera que fica uns dois meses. Aconteceu com um amigo meu. Mas, depois, não tem erro. Quando sai, você já tá dentro”. Minutos depois, ele completou: “o cara tem que ter ambição na vida. Não dá pra ficar parado”.

*

“Desculpe, eu não queria estar em seu lugar”, foi o que eu disse para ele quando nos falamos pela primeira vez. Não em função da convidativa história que me contou, mas porque me sentei por engano na sua poltrona no avião. O sujeito chegou, mochila de cinquenta litros nas costas e disse que 7C era o assento dele. Estava certo. Recolhi celular, livro e garrafa d’água e pulei para a 7K no corredor ao lado.

Instantes depois, murmurei em voz alta que minhas pernas não cabiam na poltrona do avião e o joelho ficava apontando para fora. Olhei em volta e ele estava me fitando. Superei meu bloqueio para socializar com desconhecidos e soltei:

– E a gente ainda paga mais caro pra ter essas poltronas com espaço extra. Onde tem espaço extra?

– Pois é… Pelo menos o voo é rapidinho, né? Duas horinhas.

– Duas? Não, esse é um voo de seis horas. Do Brasil até a Colômbia tem muito chão.

– Jura? Achei que era rapidinho.

Mostrei a passagem para ele – a mesma que ele também tinha – e apontei o tempo de viagem anotado no cartão de embarque.

Que raios, pensei, quem embarca numa viagem sem ter ideia de quanto tempo o trajeto leva? Eu ligo o Waze até pra saber quanto tempo demora para chegar no açougue. Eu ligo o Waze quando pego Uber pra ver se o tempo estimado no Waze do Uber está coordenado com o meu.

Meia hora depois, senti um cutucão no braço.

– Viu isso aqui? Nem água eles dão de graça no voo. Me cobraram mais de vinte reais numa garrafa. Não vão servir nem um biscoitinho de graça.

– Palhaçada. E a poltrona com espaço extra, pelo qual a gente paga, mas que não tem espaço extra? – eu estava meio obsessivo com essa reclamação e ainda não a tinha esgotado o suficiente para poder embarcar em outra.

– Você vai ficar por lá mesmo? Na viagem? – e apontou na direção da cabine do piloto como se estivesse enxergando pelo pára-brisas de um ônibus algum ponto de chegada ali na frente.

– Pra Colômbia? Sim. Vou a trabalho para Bogotá e volto em alguns dias. Você não?

– Não, meu velho – ele comprimiu os lábios, coçou o topo da cabeça e sondou as pessoas em volta – ainda tô só no começo.

– Conexão em Bogotá é cansativo. Vai pra onde? – perguntei, enquanto pensava quem diabos ainda chama os outros de “meu velho” nesses dias.

– Lá pra cima. Estados Unidos. Mas – longas reticências por parte dele – não é bem conexão. Em Bogotá tenho outro voo para El Salvador. De lá, a gente sobe de carro até Cancún, no México. Aí tem outro voo para Tijuana, de onde seguimos a pé para cruzar a – outras reticências, por sua conta – cruzar a fronteira.

Nenhum livro que eu pretendia ler, nenhuma incompatibilidade social ou timidez que me consomem, nenhum podcast que baixei pra escutar, nenhum espaço limitado para as pernas na poltrona que supostamente deveria ter 15 centímetros adicionais pelos quais pagamos uma pequena fortuna ou qualquer filme que eu tivesse salvo em meu computador para me entreter ao longo de seis horas de viagem, nada, era mais interessante do que aquela história. Mas, claro, eu fingi normalidade:

– Ah é? Caramba… Co-como assim? Rapaz! Mas, e aí, como faz? Eu sei de uma galera que tenta cruzar a fronteira pela floresta ou ali pelo sul da Califórnia. Só que é difícil, não é?

– O esquema, eles falam, é você ir a pé e ficar lá no deserto esperando. Quem vai pela floresta, se esconde ou tenta pular qualquer cerca, é difícil, mas pode até conseguir passar. Mas depois fica por lá como ilegal e se complica para regularizar a documentação. Sem falar que se te capturam, mandam de volta e você fica marcado. Agora, nesse outro esquema, você vai preso antes, se entrega. Você só tem que ir para o deserto e eles te pegam. De boa.

– De boa. E depois?

– Aí você vai preso, né? Os caras te levam, ficham e você fica lá à espera de asilo. Depois de tudo, eles te soltam lá mesmo e você fica como imigrante. Mas já está lá dentro, nos Estados Unidos. Tem umas organizações que ajudam com documento e a ser inserido. Dependendo da situação, é rapidinho, até uns três dias. Mas se estiver muito cheio, se tiver criança junto, aí pode demorar mais. Tudo isso influencia o tempo que você vai ficar fechado.

Ele olhou em volta novamente:

– Meu velho, só aqui nesse voo tem mais de dez pessoas indo. Tudo lá da minha cidade, em Rondônia.

– Você é de Rondônia?

Eu nunca conheci ninguém de Rondônia.

– Ahãm. Cheguei hoje em São Paulo. Vim de ônibus. Olha, é puxado. Mas vai muita gente. Na minha cidade, só na minha cidade, que tem uns três mil habitantes, já tem mais de 300 pessoas que já foram embora esse ano. Gente solteira, família, casal, velho, tem de tudo. A gente precisa buscar uma situação melhor, né? Eu não tenho medo, não. Já morei em um monte de lugar, já morei até na Bolívia. Agora, esse esquema pode mudar tudo.

– Outra vida, né? Em Rondônia, você faz o quê?

– Era corretor. Vendia casa, sítio. Mas tava ruim demais. Preciso ir, né? Tentar melhorar. O cara tem que ter ambição na vida. Não dá pra ficar parado.

Enquanto me contava sua história com a normalidade de quem resume um empate em 0 x 0 da segunda divisão do campeonato rondoniense, ele tentava sem sucesso conectar o carregador do celular na tomada da aeronave. Me mostrou o cabo. Tinha trazido o adaptador errado.

– Cara, e agora? Imagina se eu ficar sem bateria nessa viagem? Aí já era tudo.

Peguei o meu adaptador na mochila e ofereci. Ele agradeceu, espetou o cabo no celular, ligou um filme e dormiu em seguida.

Enquanto ele cochila, amigos, vamos recapitular essa rota:
– Viagem de ônibus de Rondônia a São Paulo (58 horas).
– Voo de São Paulo a Bogotá na Colômbia (6 horas).
– Voo de Bogotá a San Salvador em El Salvador (3 horas).
– Viagem de carro de San Salvador até Cancún, no México (20 horas).
– Voo de Cancún até Tijuana (5 horas).
– Viagem a pé pelo deserto de Tijuana até… até ser preso depois de cruzar a fronteira do México com os – Estados Unidos (8 a 72 horas, em média).
– Depois da prisão (sabe-se lá quantos dias), uma viagem de ônibus até Ohio para assumir um trabalho braçal (6 horas).

Ambição na vida.

Eu procurei pela palavra “coiote” na minha mente por algumas horas durante e depois dessa conversa, tentando lembrar das longas reportagens do Globo Repórter que narravam o trabalho das pessoas que cobravam pequenas fortunas para facilitar a saga dos imigrantes ilegais cruzando a fronteira do México com os Estados Unidos ou de cidadãos cubanos que tentavam chegar nas praias da Flórida navegando em balsas. Só agora, no entanto, ela me veio à mente finalmente.

Durante aquele voo, a palavra que mais me ocorria era “mula”, nome dado a quem se dispõe a transportar drogas e outros contrabandos em sua bagagem ou junto ao corpo em viagens em troca de dinheiro. Porque é claro que parecia inverossímil, tudo isso. A história toda, o roteiro, as pessoas, o deserto, a prisão, Rondônia (no duro, você conhece 300 pessoas de Rondônia?). O mais provável era que ele fosse só um traficante (só um traficante, repito) com uma história inóspita para me cooptar e convencer a levar alguma mercadoria que estava naquela pochete gorda que tinha acoplada ao corpo para dentro da Colômbia, para além da linha de imigração, para as mãos de algum sujeito obscuro que nos aguardava no desembarque. Ou, quem sabe, o que seria ainda mais nocivo para meu patrimônio, um cleptomaníaco interessado em embolsar meu carregador de celular e entediado com as seis horas de viagem pela frente.

Quando ele acordou, derrubando minha última tese, quis devolver o adaptador. Recusei:

– Pode ficar, eu tenho dois. Acho que você vai precisar mais. Espero que te ajude.

Dar a outra face, disse Jesus.

– Mas, me conta uma coisa: nesse grupo que você vai, também vai alguém que organiza? Tem tipo um agência, uma pessoa, uma empresa que cuida do processo todo?

– Uma “empresa”, né? Tem um chefão lá e cinco ajudantes. Eles vão monitorando à distância e dando as orientações. A gente chega nos lugares e já tem tudo esquematizado esperando: carro, transporte, passagens. E aqui – deu três tapas na pochete – tem o dinheiro. Tudo em dólar e separadinho, pra gente ir pagando as propinas no caminho. Sobra uns 50 dólares pra tomar um café, o resto é pra suborno.

Tem família, o rapaz. Pai e mãe que ficaram cuidando do sítio. O irmão, com esposa e filhos, trabalha numa loja de móveis e pretende viajar em breve, no mesmo esquema. Ele parte com desejo de voltar. Quer um mundo novo para si e quer seu mundo de volta. No momento em que escrevo, me dou conta de que se o plano teve sucesso, ele está encarcerado em algum presídio norte-americano neste instante.

– Quero ter um documento. Ai posso voltar e ver meus pais. Juntar uma grana. Se bobear até arrumo uma americana por lá e me caso. Não quero ficar trabalhando muito, não. Eu gosto de roça, gosto de terra. Queria mesmo é ter uma terrinha, um gadinho. Eu sou do mato. Isso já tava bom.

Perambulando num deserto.

– O esquema é esse. Vou lá, ficar parado no deserto até um carro me prender. Vai dar certo.

Esfregou as mãos, esticou o pescoço e olhou para frente de novo esperando enxergar um destino.

– Se não der, não tem problema. Aí a gente volta e tenta outra coisa, não é mesmo?

Quando pousamos, desejei boa sorte e nos apresentamos. Na saída do avião, a fila foi se aglomerando e o perdi de vista. Alonguei o corpo, aliviado em poder finalmente esticar as pernas, que agora doíam pra caramba em função da poltrona que deveria ter… e pela qual… bem, a outra face a gente até dá, mas os joelhos são outra história, eu acho.

Do lado de fora, num canto depois do desembarque, eu o avistei novamente. Estava com um grupo de cinco ou seis pessoas, aguardando outros passageiros descerem. Não conversavam. Todos tinham mochilas enormes, mantinham as mãos nos bolsos e o semblante intranquilo. Trocamos olhares, ele acenou com a cabeça, eu sorri de volta e enquanto caminhava rumo ao meu destino, fiquei pensando se, por acaso, a cela do presídio teria tomada para ele espetar o carregador.

“Quando você sai, aí já está dentro”.

Eu não queria estar naquele lugar.

(Publicado originalmente no Estadão)

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