Aquela noite outra vez


Acho que a coisa toda começou a complicar no momento em que ela disse: “pai, acho que já está na hora”.

Passeávamos com as cachorras em um fim de tarde e ela soltou essa convocação sem olhar na minha direção e com certa formalidade.

– O que foi, Nina? Hora de quê?

– Está na hora de você me ensinar a dirigir. Falta pouco para eu completar blábláblá anos.

Tem um tipo de bloqueio auditivo que me assalta quando esse assunto vem à tona, esse inevitável acontecimento que se projetava num futuro tão próximo, próximo demais, e eu não conseguia assimilar a ideia de que, muito antes do que eu imaginei, minha Nina enfim completaria blábláblá anos.

Eu resisto. A fala dela tinha uma seriedade não disfarçada, um tom de quem ensaiou antes para dizer. Ela resiste também. “Claro, claro. Eu vou, filha… Nós vamos, pode deixar”, comentei.

É claro que é difícil pensar naquela criança saindo por aí dirigindo um carro, adulta e independente nos seus rumos. Claro que estou com medo, em luto ou seja qual for esse sentimento de constatação do desapego do outro. Não é uma questão de apego ao carro, veja bem, mas uma questão de apego à filha, que ainda levo para cima e para baixo na carona enquanto dirijo e que levaria no colo até, se ela deixasse.

O “falta pouco” daquele dia chegou. Em poucas horas ela faz aniversário.

Adulta? Eu escrevi isso?

*

Ela tinha dois anos e fazíamos nossa primeira viagem longa em família. Nina ainda dormia quando o avião pousou e seguiu dormindo no meu colo enquanto esperávamos na fila para sair da aeronave. O rosto encaixado no meu pescoço, o cabelo ondulado caído sobre as bochechas, a respiração completamente entregue. À minha frente, uma senhora a fitou por alguns instantes, sorriu e me disse: “e daqui uma semana ela fará vinte anos”.

Nenhum avião voa tão rápido como o tempo.

Cheguei a escrever a respeito alguns meses depois. Uma crônica chamada “Ela ainda cabe no meu colo” com divagações angustiadas a respeito dos sentimentos que ela nutriria – ou deixaria de nutrir – a meu respeito quando se tornasse adulta. O comecinho diz: “No próximo fim de semana, ela fará quatro anos. Eu posso jurar que nunca imaginei esse momento chegando…” e por aí segue em altas doses de neurose e melancolia. Se eu não me comportar direito aqui hoje, talvez acabe inserindo um trecho no final.

Sorte que não sou mais assim. Sorte também que ainda falta uma eternidade para ela chegar aos vinte anos.

*

Escrevo com a lapiseira que ganhei da Manu dezoito anos atrás. Quer dizer, neste momento eu digito em um teclado, mas venho escrevendo e sublinhando algumas leituras com aquela velha lapiseira que, passado algum tempo, resolvi voltar a usar.

Foi em julho de 2006 que eu a ganhei de presente. Não é uma lapiseira com qualquer atributo que a torne especial ou rara senão a circunstância em que me foi dada. E por isso, claro, lembro do dia exato em que compramos um conjunto de caneta e lapiseira como presente para meu sogro, que adorava canetas e lapiseiras, e Manu pediu ao vendedor que colocasse numa caixinha preta cartonada bonita, que vinha com um laço também preto.

Ela saiu pelo shopping com aquele presente em mãos e com ele ficou em mãos o tempo todo, até quando foi ao banheiro, até quando sentamos para comer e até depois, no carro, quando estávamos indo para casa e ela sugeriu que parassemos para visitar meus pais. E se eu estranhei que ela sugerisse visitarmos meus pais, já não estranhei que o presente do meu sogro estivesse com ela o tempo todo e nem que ela o tenha levado consigo para dentro da casa e ficado com o embrulho em mãos quando sentamos todos no sofá da sala para conversar e só ali, depois de alguns minutos, ela repentinamente disse “ah, você gostou tanto, fique para você. Depois eu compro outro presente para o meu pai”.

Eu não era tão apegado a canetas e lapiseiras, mas fiquei feliz com o gesto. E se não era surpresa que eu soubesse o que tínhamos escolhido para estar dentro daquela sacola, foi surpresa o gesto, foi surpresa o contexto e foi surpresa, definitivamente, abrir o embrulho e notar, no lugar da lapiseira e da caneta, um teste de gravidez com dois pequenos traços indicando que, positivo? Caramba, positivo! Teríamos um bebê.

Em março de 2007, Nina nasceu. Ela é um pouco mais nova do que uma lapiseira Faber-Castell preta com a qual tenho mantido um perigoso vínculo nesses dias. Mais velha do que eu jamais imaginei que uma criança poderia ser. Mas filhos sempre são crianças, afinal. Ainda à beira de tantas coisas que se prenunciam em sua história que virá com suas próprias surpresas, traços e formas. Mas, cujo breve passado de vez em quando eu rabisco com grafites 0.7 2B.

*

Meu bloco de notas tem uma dúzia de listas de pendências para as mais diferentes categorias de assuntos e atividades nas quais me envolvo. O principal liberador de dopamina no meu cérebro vem da recompensa de poder clicar nas bolinhas de tarefas completadas. Nesses dias, tenho uma lista com a Nina como título.

[ ] Fazer matrícula na auto-escola
[ ] Ensinar a Nina a dirigir
[ ] Preencher autorização para excursão
[ ] Organizar festa com amigos e familiares
[ ] Deixar a Nina fazer tatuagem (???)
[ ] Agendar exames médicos (@Manu)
[ ] Comprar presente de aniversário da Nina (@Manu)

Antes eram fraldas, brinquedos, idas ao pediatra e atividades escolares. Os afazeres mudam, mas não o centro em torno dos quais gravitam. Desde que chegaram, nossas filhas são o objeto para o qual nossos olhares são atraídos primariamente, para quem nosso afeto se destina e uma força que intensifica nosso laço. Porque éramos um casal e viramos família. E vê-las florescer sob este teto é um privilégio singular.

*

Tem cheiro de chuva entrando pela janela agora. Uma garoa fina cai, exatamente como naquela noite. Aquela noite outra vez. A noite em que Nina nasceu. Era madrugada quando saímos com as malas nos ombros a caminho da maternidade. Manu se contorcia no carro com as dores das contrações, eu cruzei as ruas alagadas da cidade, os semáforos apagados e chegamos ao hospital, que estava sem energia elétrica. Era como se fosse preciso certa escuridão para alguém poder dar a luz.

Três dias depois, cruzaria novamente a cidade, dirigindo a vinte quilômetros por hora (ou menos), coberto de medo enquanto levava pra casa aquele bebê, acomodada na cadeirinha super estofada e protegida do banco de trás.

E agora, coberta de razão, ela quer pular para o banco do motorista.

Porque existem os ciclos que se cumprem, os ciclos que se refazem, existem as histórias sobrepostas, um emaranhado de eventos que assistimos e existe essa linha, esse fio cuja ponta puxamos, seguimos e que nos conta a história de alguém.

Hoje, é a história da Nina que testemunhamos gratos. Do primeiro abrir de olhos, do primeiro choro, os primeiros passos, saltos, tombos, suas danças, o desbravar a vida e suas tantas experiências pela primeira vez. Inserida, mas também alheia aos fatos que a cercam, enquanto a guerra acontece, enquanto o mundo despenca, enquanto o bolo assa no forno, enquanto a terra segue girando, Nina cresce. O nascimento de cada criança é esse fio de esperança que se tece. E sua existência, o deslumbre magnífico da eternidade. Deus em festa regendo a vida, enquanto seguimos seu ritmo, rendidos a essas pequenezas, a vida miúda que edificamos e que nos maravilha e assombra.

Ela vai dirigir um carro, claro que vai. Vai seguir rumos e estradas que serão novas também para nós. Seguirá, a seu modo, traçando os caminhos que trilha com uma velha lapiseira 0.7 e colorindo com as cores de sua aquarela as paisagens que a encantam e o futuro que apenas seus olhos enxergam. Nina vê um mundo novo que se abre. Nós a vemos. Mais um ano diante dela. Que tenha música, que seja com festa, que Deus a preencha e o amor a inspire em cada pequeno passo. Que a vida a contemple.

(Publicado originalmente no Estadão)


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