O que ele disse?


– Olha isso aqui. Você viu isso, amor?

Entrei na cozinha pela manhã, ela estava preparando uma tapioca no fogão enquanto segurava o celular em uma das mãos. Virou o aparelho para mim e mostrou a tela. Limpei os olhos ainda embaçados pela noite de sono e vi que havia uma foto dele e uma citação.

– Não é possível. Você leu isso onde? É uma fonte de confiança? Hoje em dia tem gente fazendo de tudo para…

– Olha aqui! – ela me interrompeu – é do jornal que você assina. Você acha que eu tô lendo notícia falsa?

– Não é isso… É que é tão absurdo. É sério mesmo? Deixa eu ver?

– Toma – ela me deu o aparelho e se virou para fechar a tapioca na frigideira.

– Hum. É. Putz.

– Eu te falei… Agora, me diz, como assim?! Como pode? Como ele fala uma coisa dessas, como alguém diz um absurdo desses e ninguém fala nada, ninguém denuncia? Isso é uma manipulação descarada sobre o povo.

– E está esquentando, né?

– Esquentando nada. Continua tudo na mesma morosidade de sempre. Ninguém toma uma atitude.

– Tá esquentando a frigideira. Vai queimar o lado de baixo da tapioca.

– Ah, sim.

– Mas ainda tem muita gente que acredita no que ele fala. O que se pode fazer? Ele fala essas coisas e a base fiel continua lá, aplaudindo. É triste, mas isso tem muito eco no coração das pessoas.

– Aí é que está o problema. Ninguém faz nada, nunca. E as coisas continuam assim. O absurdo vai se normalizando. Ele fala um monte de barbaridades e, como nada acontece, vai esticando a corda.

– E o que a gente pode fazer?

– Passa a faca!

– Faca? Como assim?

– A faca, querido. Me passa a faca para tirar um pouco da manteiga aqui.

– Ah, sim. Tá aqui.

– E a gente achando que o que tinha antes era pior…

– Não gostou dessa marca de manteiga? Comprei achando que era a sua favorita.

– Não, estou falando dele.

– Ah. Que sonho era aquele? Eu dizia que antes a gente não tinha nada a “temer”. Saudades.

(Risos. Risos).

– Tinha que acabar com tudo “de uma” vez?

– Mas não foi de uma vez. Você lembra. Foi um processo. Foram fritando tudo aos poucos.

– Tô falando da manteiga. Você tinha que terminar tudo de uma vez? Não sobrou pra mim…

– Ai, desculpa.

– O problema é: o que dá pra fazer agora?

– Tem requeijão, se você quiser.

– Tô falando dessas declarações.

– Ah. Eu também fico perguntando se não é preciso uma atitude mais drástica.

– Passa a faca?

– Calma, não é pra tanto… Ah, sim, toma, tá aqui.

– Obrigado. Estava fora do meu alcance. Assim como isso tudo parece tão difícil de lidar. O que a gente consegue fazer senão ler essas coisas, se indignar e resistir da forma como sabemos fazer?

– E fazer a nossa parte para isso não contaminar as meninas, para que não sofram no futuro.

– Isso bem que podia acabar logo.

– Confesso que tô com medo é de não acabar tão cedo. A gente não sabe. Só acho é que não vai acabar bem. Como você falou: a corda está esticando.

– Sim. Você viu o que ele disse semana passada? Aquela fala sobre o outro assunto, o que pretendem fazer com a educaçãomeioambientedireitoshumanosagronegóciojustiçacidadaniatrabalhoimpostoseconomiatrânsito?

– Vi. É uma delinquência. Tem tanta coisa importante para fazer, o mundo empilhando tragédias, a sociedade sofrendo… Deveria haver um mínimo de coerência. Pelo menos agora, as coisas poderiam ficar um pouco mais…

– Doce.

– Não. Aí já é querer muito, né?

– Doce. O café ficou muito doce. Você já tinha colocado açúcar?

– Já.

– Putz, eu coloquei de novo.

– Esqueci de avisar, desculpe.

– E o que a gente pode fazer?

– Quer colocar um pouco de água quente? Vai ficar aguado, mas…

– Não. Sobre isso tudo, meu amor. O que a gente, aqui, pode fazer a respeito? Eles falam essas bobagens todos os dias, ficam postando e martelando isso na cabeça das pessoas. Parece aquele negócio do duplipensar. É tão evidente… e a gente não vai gritar que está errado, mostrar que é irracional?

– Mesmo ao usar a palavra duplipensamento é necessário praticar o duplipensamento. Porque ao utilizar a palavra admitimos que estamos manipulando a realidade; com um novo ato de duplipensamento, apagamos esse conhecimento; e assim por diante indefinidamente, com a mentira sempre um passo adiante da verdade.

– Oi?

– Você citou 1984. É isso o que o Orwell fala no livro sobre duplipensamento. Anotei no celular outro dia enquanto pensava nessa situação toda.

– E imaginar que o livro trata de uma distopia.

– Quem dera isso fosse só ficção… Lembra que te falei daquele livro do Amós Oz, “Como curar um fanático”? Ele fala isso. Diz que o fanático, no fim das contas, é um idealista, um ser cheio de boas intenções. Ele acha que tudo o que faz é para te salvar de algo que você não enxerga e só ele, alma caridosa e defensora do bem, é capaz de compreender.

– Então querem me salvar falando que vivo na cegueira?

– Utopia.

– Tem o quê na pia?

– Não é na pia. Eu disse utopia.

– Ah, o que tem?

– Acho que é pode ser disso que a gente precisa agora: construir nossa própria utopia. Começar a desenhar um mundo com o qual sonhamos e semear esse mundo aqui em casa, com as pessoas ao nosso redor. Porque se não dá para mudar o país todo, pelo menos a gente constrói um recomeço nesse núcleo, cuidando do microcosmo familiar, do nosso jardim. E aqui a gente pode ser e fazer o que quiser. Daqui, a gente estende generosidade, amor, compaixão e apoia a quem a gente puder e estiver ao nosso alcance.

(Silêncio).

– O que você acha?

– O Oscar Wilde disse que “o progresso é a realização de utopias”. Acho que você pode ter razão. É o que está ao nosso alcance agora.

– Me alcança o café?

– Sim.

(Suspiros esperançosos).

– Quer outra tapioca com manteiga?

– Quero, obrigado. Com manteiga e utopia.

(Silêncio).

– E se não der certo, o que a gente faz?

– Passa a faca?


(Publicado originalmente no Estadão)

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Um comentário sobre “O que ele disse?

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