A invenção da gentileza

“Nisso, tomando-o pela mão direita, o levantou; imediatamente os seus pés e artelhos se firmaram e, dando um salto, pôs-se em pé. Começou a andar e entrou com eles no templo, andando, saltando e louvando a Deus. Todo o povo, ao vê-lo andar e louvar a Deus, reconhecia-o como o mesmo que estivera sentado a pedir esmola à Porta Formosa do templo; e todos ficaram cheios de pasmo e assombro pelo que lhe acontecera. Apegando-se o homem a Pedro e João, todo o povo correu atônito para junto deles, ao pórtico chamado de Salomão.”

A disciplina da inclusão envolve mais do que um lançamento contábil; envolve mais do que fazer com que o que era contado como de fora passe a ser contado como de dentro. Em cada caso, cada vez que uma pessoa se dispõe a abraçar incondicionalmente uma outra, há um verdadeiro trajeto a ser vencido: um percurso a ser primeiro encontrado e depois percorrido. Ser salvo é ser salvo das distâncias, e arrepender-se é passar a agir deliberadamente de modo a transpô-las.

Vencer em regime definitivo a distância entre eu e o outro é o sentido da cruz e da salvação. É também, ao que tudo indica, a chave do reino de Deus.

Neste caso exemplar, um homem curva-se para estender a mão, e outro homem ergue-se firmando pela primeira vez sobre os próprios pés. No momento seguinte são iguais, olhando-se formidavelmente no mesmo nível. Encontraram-se lá em cima, e o mundo ganhou mais um cavaleiro andante.

Os antigos mestres da humanidade não desconheciam o autoconhecimento e o altruísmo, e os melhores entre eles não se limitavam a recomendá-los com palavras; porém foram necessários primeiro Jesus, depois a sua ausência, para introduzir os rigores da gentileza nas corredeiras do mundo dos homens.

O amor, como inventado ou apresentado por Jesus, não é apenas severo, absolutamente inflexível em sua disposição de favorecer e de integrar; é também consistentemente gentil – embaraçosamente gentil. De fato, sua severidade fica demonstrada no caráter inabalável de seu cavalheirismo.

Há algo de inerentemente ridículo no cavalheirismo, e é sem dúvida preciso ser um homem um pouco ridículo para ensinar – de fato ensinar – abraçando crianças, defendendo donzelas em perigo e lavando os pés de seus subordinados. A inclusão irrestrita e a defesa dos mais fracos nos parecerá invariavelmente embaraçosa, e os homens se mostrarão sempre mais prontos a abraçar o sacrifício do que o ridículo. Estamos prontos a pagar pelo heroísmo, mas menos dispostos a cobrir os custos da gentileza, porque a gentileza é a ultrajante manifestação de um amor resolutamente cavalheiresco – aquela estirpe peculiar de amor a que o Novo Testamento dá o nome de graça.

Muito declaradamente, não queremos ter nada a ver com a graça, que é por definição uma espécie voluntária de beleza. A graça é para deuses e dançarinos – isto é, é para homens, e sempre que possível preferimos nos manter abaixo desse patamar.

Porém Jesus, que tinha o sonho de semear homens de modo a colher o reino de Deus, não se contentava em exigir e oferecer menos do que o amor exuberantemente cavalheiresco – isto é, arbitrário, incondicional, anárquico, todo-inclusivo.

A gentileza, será preciso repetir, não é menos severa do que o amor. Não é uma manifestação de polidez ou de civilidade mascarada como tolerância. Não tem nenhuma relação com aquilo que costumamos chamar de “boa educação”, e que se destina a permitir a convivência ao mesmo tempo em que perpetua e valida a distância entre as pessoas. Ao contrário, a verdadeira gentileza é selvagem em sua obsessão de incluir, e saberá mostrar-se pouco gentil para com os que sonegam a graça e patrocinam a exclusão. A gentileza não ignora que é uma modalidade de anarquia e de revolução; não ignora que o seu próprio regime de violações (“Eu não condeno você”, Jesus ousou dizer à mulher adúltera, nisso transgredindo pelo menos tanto quanto ela) exige uma completa revisão dos critérios dos homens. O único mundo que a gentileza é capaz de conceber, e nisso insistirá até a morte voluntária, é um mundo em que todos se conformem a ela mesma.

Pedro e João, num único gesto, trazem para junto de si um homem que todos tomavam por definitivamente excluído dos canais aceitáveis da sociedade. E, trazendo-o para junto de si, trazem-no imediatamente para dentro – aqui está ele nos átrios do templo, saltando como um bailarino imbuído de uma nova graça, uma beleza inconcebível que transtorna todos que são submetidos a ela. O que estivera sentado à porta pedindo esmolas está agora dançando aqui dentro; o excluído a que todos negavam a graça agora a derrama com mais gosto do que todos que assistem.

Essa transgressão da gentileza é terrível demais para ser contemplada sem horror. Um universo que pode assim facilmente ser transtornado pelo amor e pela inclusão, um mundo assombrado dessa forma pela graça, é um mundo em que os homens terão de abrir mão de todas as suas seguranças. Diante dessa possibilidade, todos são tomados de terror e de perplexidade.

É aqui, diante desta glória, que devemos decidir não discutir o cessacionismo, a doutrina que postula que os milagres da era apostólica deixaram (ou não, discute-se) de acontecer nos nossos dias. Porque aqui está absolutamente declarado, escancarado além de qualquer dúvida, que a inclusão não foi resultado do milagre; a inclusão foi em si mesma o milagre – “e reconheceram-no como o mesmo que estivera sentado à porta do templo”.

Todos os milagres de Jesus e dos apóstolos devem ser entendidos retroativamente a partir dessa chave de compreensão. Jesus, que recusou-se diante da tentação a produzir sinais que tornassem evidentes o seu poder e a glória da sua vocação, não recusou-se a cuspir na terra para fazer lama e a tocar a pele crestada de um leproso a fim de fazer brotar a inclusão. Em termos estritos, os milagres de Jesus não são manifestações de poder: são instâncias de inclusão. Conhecendo a glória da nossa vocação, Jesus foi capaz de dizer sem exagero que seus discípulos fariam “sinais maiores do que esses” – porque nosso chamado é o de implantar um mundo inclusivo que Jesus em seus milagres apenas sugeriu.

Deve ficar portanto entendido que milagres só acontecem quando o amor é colocado em prática, e que milagres são o amor colocado em prática. A gentileza é por excelência a manifestação do poder de Deus, e é também o único verdadeiro sinal que Jesus dignou-se a apresentar.

Basta ao discípulo ser como o mestre: o sinal divino e o divino selo são a inclusão do outro, pelo que os milagres só cessam de acontecer quando deixamos de incluir. O cessacionismo depende, para ser válido, da nossa omissão. Arrepender-se é mudar o mundo, e pecar é omitir-se.

Mas neste ponto o homem agraciado para de repente de cantar e de saltar e corre para se abrigar entre seus amigos. Ele entendeu que não está mais sozinho e que nisso consiste a dádiva que recebeu, e compreende ao mesmo tempo que nada há de mais sério do que ganhar um presente.

Texto do Paulo Brabo, em seu blog A Bacia das Almas

A evolução dos livros?

Quatro possibilidades para o futuro dos livros propostas pela IDEO, empresa de design e inovação que tenta imaginar como poderão ser os padrões de leitura e publicação no futuro.

Fonte: Update or Die

Uma música para o fim de semana

A eterna busca

“Criaste-nos para Vós e o nosso coração vive inquieto, enquanto não repousa em Vós.”
Santo Agostinho, em “Confissões” (Liv. I, cap. 1)

Com sua licença para republicar a frase já postada antes, há pouco mais de dois anos.

Do que realmente importa

Portanto, vá, coma com prazer a sua comida e beba o seu vinho de coração alegre, pois Deus já se agradou do que você faz. Esteja sempre vestido com roupas de festa, e unja sempre a sua cabeça com óleo. Desfrute a vida com a mulher a quem você ama, todos os dias desta vida sem sentido que Deus dá a você debaixo do sol; todos os seus dias sem sentido! Pois essa é a sua recompensa na vida pelo seu árduo trabalho debaixo do sol. O que as suas mãos tiverem que fazer, que o façam com toda a sua força, pois na sepultura, para onde você vai, não há atividade nem planejamento, não há conhecimento nem sabedoria.

[…]

Agora que já se ouviu tudo, aqui está a conclusão: Tema a Deus e obedeça aos seus mandamentos, porque isso é o essencial para o homem.

– Eclesiastes 9:7-10 e 12:13

Sobre o ato de escrever (Pablo Neruda)

Escrever é fácil: você começa com uma letra maiúscula e termina com um ponto final. No meio você coloca as idéias.

Pablo Neruda

Uma música para o sábado a noite

O pianista brasileiro Nelson Freire toca “Jesus, alegria dos homens” de Johann Sebastian Bach. Trilha sonora ideal – e inspiradora – para escrever no frio.

Agora, por favor, me dá licença porque eu vou beber um chocolate quente.

Escrevendo o mundo (Donald Miller)

Naquela época, quando me deitava na cama ou atravessava um corredor na faculdade, a consciência de que eu estava vivo me espantava, como se ela chegasse por trás de mim e me batesse com um livro de cada lado. […]

A experiência é tão lenta que você poderia facialmente chegar a acreditar que a vida não é tão importante assim, que ela não é incrível. O que estou dizendo é que acho a vida incrível, e nós simplesmente nos acomodamos com ela. Todos somos como crianças mimadas que não nos impressionamos mais com os presentes que recebemos – é só mais um pôr do sol, só mais uma pancada de chuva sobre os montes, só mais uma criança nascendo, só mais um enterro.

[…] Se tenho uma esperança é a de que Deus ficou sentado no vazio escuro e escreveu-nos, você e eu, especificamente na história, e colocou-nos com o pôr do sol e a pancada de chuva como se estivesse dizendo: “Aproveite seu lugar em minha história. A beleza dela significa que você é importante e pode ser criador dentro dela, assim como eu o criei.”

Donald Miller, em “Um milhão de quilômetros em mil anos” (p. 74 e 75)

Uma canção para quarta-feira

Amor que nos faz um, do Palavrantiga.

Vale dizer, a versão gravada no cd do Amor é um movimento está impecável.

Sofrimento e esperança (Donald Miller)

Eu estava assistindo ao noticiário em uma dessas noites, e ele ainda estava cobrindo aquela história em Mumbai sobre os terroristas que iniciaram uma matança indiscriminada. O homem do noticiário disse que, antes de matarem os judeus no centro judaico, os terroristas os torturaram. Tive de desligar a a televisão porque consegui imaginar a tortura em minha cabeça de acordo com a descrição do noticiário. Fiquei imaginando aquelas pessoas vivendo sua vida cotidiana e, então, tendo-a interrompida por causa de uma tragédia injusta. Quando assistimos ao noticiário, todos sofremos com isso, mas quando vamos ao cinema, queremos mais sofrimento. De algum modo, percebemos que grandes histórias são contadas com conflito, mas não estamos dispostos a aceitar a possível grandeza da história da qual realmente participamos. Pensamos que Deus é injusto, e não um mestre contador de histórias.

[…] Uma das coisas que me dão esperança é que, mesmo com toda a tragédia que acontece no mundo, a Bíblia diz que, quando chegarmos no céu, haverá um casamento, haverá bebida e haverá dança.

Donald Miller, no livro “Um milhão de quilômetros em mil anos”, lançado este mês pela Garimpo Editorial.

Cinzas

Cinzas vulcânicas
é o que todos somos.
Vezes que explodimos,
outras regelamos.
Entre o céu e a terra
pendemos.
Talvez ainda haja esperança,
quando o pó
voltar ao pó.

(Jorge Oliveira)

Publicado no blog Canto do Jó, do meu amigo Jorge Oliveira, português, que a essa hora ainda deve estar sofrendo com os transtornos causados pelas cinzas do vulcão islandês de nome impronunciável.

Da minha lista de pendências

“Erga a voz em favor dos que não podem defender-se, seja o defensor de todos os desamparados.” (Provérbios 31:8)

Duas canções para a sexta-feira

Mais duas do belíssimo projeto PlayingForChange.

“Peace All Over The World”:

e “Don’t worry”:

Para saber mais sobre o projeto, clique aqui.

Telefonema para J. D. Salinger

“Bom mesmo é um livro que, quando a gente acaba de ler, fica querendo ser amigo do autor pra poder telefonar para ele toda vez que desse vontade.”

Holden Caulfield, em “O apanhador no campo de centeio” de J. D. Salinger

Uma canção para a terça-feira

Sobre escrever

Escrever é uma aventura. Para começar, é um um brinquedo e uma diversão. Então se torna um amante, e depois vira um dono, depois um tirano. A última fase é que quando você está pronto para se reconciliar com sua servidão, você mata o monstro e o atira ao público.
– Winston Churchill

Fonte: blog do Dagomir Marquezi

Aniversário

Não que interesse a alguém, mas só para constar, eu registro: há sete anos, numa tarde lá em casa, esse blog entrou no ar.

E tanta coisa mudou.

O sacrifício do Messias – Walter Wangerin Jr.

Depois de alguns meses – bom, toda leitura para mim, em geral, dura alguns meses – finalmente terminei a leitura de O Livro de Jesus, de Walter Wangerin Jr. Não é uma leitura fácil. Tal como em O Livro de Paulo, Wangerin mergulha nos detalhes da história bíblica para construir seu romance. Sua ficção não muda os fatos, ela os enriquece.

As roupas, os costumes, o clima, a geografia e os alimentos. Cada página contém nuances que ajudam na compreensão da história e enriquecem a narrativa.

Não posso dizer, entretanto, que concordo com todos os seus pontos de vista. Mas me rendo à riqueza do texto, à qualidade de sua imaginação e a capacidade de emocionar contando uma história que já lemos tantas vezes.

Parece-me difícil escrever um romance a respeito de circunstâncias nas quais cremos como reais e cujo personagem principal é tão essencialmente verdadeiro a ponto de tê-lo como seu Deus.

Reescrevo abaixo um trecho:

Durante todo o tempo que convivi com Jesus nunca o ouvi reagir a dor física. Que ele sentia eu via em seu rosto. Seus lábios se comprimiam e branqueavam. Sua testa franzia. Seus olhos arrojavam-se num tique para a esquerda, pálpebras tremulando. Porém, a linha de seu cabelo densamente cacheado nunca se alterava, nem tampouco sua resistência ao desgaste, o que fazia com que ele, mesmo nos ferimentos mais graves, parecesse alinhado, não-perturbado. Ele nunca proferiu nenhum som de resmungo.

Hoje ele grunhe e gargareja de dor.

Não há nenhum pilar natural ou poste na parte alta da praça. Por isso os romanos rebocaram uma imensa carroça de transporte, prenderam as rodas com pedras e amarraram o Senhor, inteiramente despido com exceção de sua roupa de baixo, às tábuas de sua porção posterior.

Certa ocasião, ele se pusera de pé, como uma vela, na popa de um barco açoitado por uma tempestade, seu manto drapejando como uma bandeira, e erguera os braços; e o mar se acalmara por completo.

Com freqüência ele erguera os braços e toda a população ficava em silêncio e era ensinada, e milhares haviam sido alimentados com peixe e com pão.

No alto dos montes, ao crepúsculo, ele erguera os braços como mastros e bandeira, e orara.

Agora seus braços foram erguidos para ele. Estão amarrados às extremidades das traves mais altas da carroça; seu rosto apertado contra a madeira áspera.

O legionário que está em pé e de lado, atrás do meu Senhor, empunha o cabo de um açoite na mão direita. Ele estala o pulso. Faz com que suas tiras e garras de metal agitem-se no ar, um som de serpente. Então, correndo de repente, o legionário gira o braço inteiro acima da cabeça e salta. Precipitando-se até Jesus, dobra-se sobre ele com tamanha violência que as garras de metal vergastam como um ancinho as costas do prisioneiro, fatiando a carne do ombro à cintura; Jesus se contorce; a pele se alarga; suas feridas são sorrisos abertos, o osso branco aparecendo como dentes do lado de dentro, seco como pedra calcária – mas em seguida o sangue corre pelas longas feridas e começa a espalhar-se.

(p. 382)

E segue. Se puder, leia.

É uma pena que não tenhamos tantos livros de Walter Wangerin traduzidos para o português (além dos dois citados, a Mundo Cristão também publicou O Livro de Deus, que completa a trilogia). É uma pena que não tenhamos bons livros de autores cristãos sendo publicados por aqui.

– LHM

A África dos meus sonhos

Altamente recomendável a leitura do texto “A África dos meus sonhos”, escrito por Marcelo e postado no site do Caio Fábio.

Trouxe a África comigo. Trouxe as ocultas personagens desse intercâmbio. Trouxe os rostinhos dos que ficaram no meio do caminho enquanto prosseguíamos. Sinceramente não sirvo para salvar ninguém por estatística. Ou dou um jeito logo em tudo, ou é melhor nem ter começado!

Nos meus sonhos, voltei a um vilarejo miserável em Oron, miserável cidade de Akwa Ibom State.

Devolvemos a essa vila um jovenzinho-bruxo todo quebrado pelo “vodu cristão”! Ele foi levado ao campo pelo irmão mais velho e quando ia ser imolado com um facão, foi arrancado da morte pelos homens do Chief Mr. Medekon, um dos maiores e mais respeitados anciãos da cidade. Conduzido ao orfanato, coube-nos investigar a causa de sua bruxificação e conversar com seus pais a respeito.

(Continua…)

Clique aqui para ler a íntegra do texto.

Glenn Gould plays Bach

Confesso minha ignorância: até hoje eu não conhecia Glen Gould. Mas visitando o blog da Livraria Cultura, li o post com esses dois vídeos originais do pianista (considerado por muitos o melhor intérprete de Bach) e não resisti.

Estilo, diversão, envolvimento e técnica absurda. Como bem define o Wagner Brenner (autor do post): “dê um minuto para ser fisgado”.

Simplicidade e sabedoria (Rubem Alves)

Texto de Rubem Alves com o qual me deparei ontem, buscando uma outra coisa pelo Google. Pois é, ainda bem que minha busca deu errado.

Sobre simplicidade e sabedoria

Pediram-me que escrevesse sobre simplicidade e sabedoria. Aceitei alegremente o convite sabendo que, para que tal pedido me tivesse sido feito, era necessário que eu fosse velho.

Os jovens e os adultos pouco sabem sobre o sentido da simplicidade. Os jovens são aves que voam pela manhã: seus vôos são flechas em todas as direções. Seus olhos estão fascinados por 10.000 coisas. Querem todas, mas nenhuma lhes dá descanso. Estão sempre prontos a de novo voar. Seu mundo é o mundo da multiplicidade. Eles a amam porque, nas suas cabeças, a multiplicidade é um espaço de liberdade. Com os adultos acontece o contrário. Para eles a multiplicidade é um feitiço que os aprisionou, uma arapuca na qual caíram. Eles a odeiam, mas não sabem como se libertar. Se, para os jovens, a multiplicidade tem o nome de liberdade, para os adultos a multiplicidade tem o nome de dever. Os adultos são pássaros presos nas gaiolas do dever. A cada manhã 10.000 coisas os aguardam com as suas ordens (para isso existem as agendas, lugar onde as 10.000 coisas escrevem as suas ordens!). Se não forem obedecidas haverá punições.

No crepúsculo, quando a noite se aproxima, o vôo dos pássaros fica diferente. Em nada se parece com o seu vôo pela manhã. Já observaram o vôo das pombas ao fim do dia? Elas voam numa única direção. Voltam para casa, ninho. As aves, ao crepúsculo, são simples. Simplicidade é isso: quando o coração busca uma coisa só.

Jesus contava parábolas sobre a simplicidade. Falou sobre um homem que possuía muitas jóias, sem que nenhuma delas o fizesse feliz. Um dia, entretanto, descobriu uma jóia, única, maravilhosa, pela qual se apaixonou. Fez então a troca que lhe trouxe alegria: vendeu as muitas e comprou a única.

Na multiplicidade nos perdemos: ignoramos o nosso desejo. Movemo-nos fascinados pela sedução das 10.000 coisas. Acontece que, como diz o segundo poema do Tao-Te-Ching, “as 10.000 coisas aparecem e desaparecem sem cessar.“ O caminho da multiplicidade é um caminho sem descanso. Cada ponto de chegada é um ponto de partida. Cada reencontro é uma despedida. É um caminho onde não existe casa ou ninho. A última das tentações com que o Diabo tentou o Filho de Deus foi a tentação da multiplicidade: “Levou-o ainda o Diabo a um monte muito alto, mostrou-lhe todos os reinos do mundo e a sua glória e lhe disse: ‘Tudo isso te darei se prostrado me adorares.’“ Mas o que a multiplicidade faz é estilhaçar o coração. O coração que persegue o “muitos“ é um coração fragmentado, sem descanso. Palavras de Jesus: “De que vale ganhar o mundo inteiro e arruinar a vida?“ (Mateus 16.26).

O caminho da ciência e dos saberes é o caminho da multiplicidade. Adverte o escritor sagrado: “Não há limite para fazer livros, e o muito estudar é enfado da carne“ (Eclesiastes 12.12). Não há fim para as coisas que podem ser conhecidas e sabidas. O mundo dos saberes é um mundo de somas sem fim. É um caminho sem descanso para a alma. Não há saber diante do qual o coração possa dizer: “Cheguei, finalmente, ao lar“. Saberes não são lar. São, na melhor das hipóteses, tijolos para se construir uma casa. Mas os tijolos, eles mesmos, nada sabem sobre a casa. Os tijolos pertencem à multiplicidade. A casa pertence à simplicidade: uma única coisa.

Diz o Tao-Te-Ching: “Na busca do conhecimento a cada dia se soma uma coisa. Na busca da sabedoria a cada dia se diminui uma coisa.“

Diz T. S. Eliot: “Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento?“

Diz Manoel de Barros: “Quem acumula muita informação perde o condão de adivinhar. Sábio é o que adivinha.“

Sabedoria é a arte de degustar. Sobre a sabedoria Nietzsche diz o seguinte: “A palavra grega que designa o sábio se prende, etimologicamente, a sapio, eu saboreio, sapiens, o degustador, sisyphus, o homem do gosto mais apurado. “A sabedoria é, assim, a arte de degustar, distinguir, discernir. O homem do saberes, diante da multiplicidade, “precipita-se sobre tudo o que é possível saber, na cega avidez de querer conhecer a qualquer preço.“ Mas o sábio está à procura das “coisas dignas de serem conhecidas“. Imagine um bufê: sobre a mesa enorme da multiplicidade, uma infinidade de pratos. O homem dos saberes, fascinado pelos pratos, se atira sobre eles: quer comer tudo. O sábio, ao contrário, para e pergunta ao seu corpo: “De toda essa multiplicidade, qual é o prato que vai lhe dar prazer e alegria?“ E assim, depois de meditar, escolhe um…

A sabedoria é a arte de reconhecer e degustar a alegria. Nascemos para a alegria. Não só nós. Diz Bachelard que o universo inteiro tem um destino de felicidade.

O Vinícius escreveu um lindo poema com o título de “Resta…“ Já velho, tendo andado pelo mundo da multiplicidade, ele olha para trás e vê o que restou: o que valeu a pena. “Resta esse coração queimando como um círio numa catedral em ruínas…“ “Resta essa capacidade de ternura…“ “Resta esse antigo respeito pela noite…“ “Resta essa vontade de chorar diante da beleza…“. Vinícius vai, assim, contando as vivências que lhe deram alegria. Foram elas que restaram.

As coisas que restam sobrevivem num lugar da alma que se chama saudade. A saudade é o bolso onde a alma guarda aquilo que ela provou e aprovou. Aprovadas foram as experiências que deram alegria. O que valeu a pena está destinado à eternidade. A saudade é o rosto da eternidade refletido no rio do tempo. É para isso que necessitamos dos deuses, para que o rio do tempo seja circular: “Lança o teu pão sobre as águas porque depois de muitos dias o encontrarás…“ Oramos para que aquilo que se perdeu no passado nos seja devolvido no futuro. Acho que Deus não se incomodaria se nós o chamássemos de Eterno Retorno: pois é só isso que pedimos dele, que as coisas da saudade retornem.

Ando pelas cavernas da minha memória. Há muitas coisas maravilhosas: cenários, lugares, alguns paradisíacos, outros estranhos e curiosos, viagens, eventos que marcaram o tempo da minha vida, encontros com pessoas notáveis. Mas essas memórias, a despeito do seu tamanho, não me fazem nada. Não sinto vontade de chorar. Não sinto vontade de voltar.

Aí eu consulto o meu bolso da saudade. Lá se encontram pedaços do meu corpo, alegrias. Observo atentamente, e nada encontro que tenha brilho no mundo da multiplicidade. São coisas pequenas, que nem foram notadas por outras pessoas: cenas, quadros: um filho menino empinando uma pipa na praia; noite de insônia e medo num quarto escuro, e do meio da escuridão a voz de um filho que diz: “Papai, eu gosto muito de você!“; filha brincando com uma cachorrinha que já morreu (chorei muito por causa dela, a Flora); menino andando à cavalo, antes do nascer do sol, em meio ao campo perfumado de capim gordura; um velho, fumando cachimbo, contemplando a chuva que cai sobre as plantas e dizendo: “Veja como estão agradecidas!“ Amigos. Memórias de poemas, de estórias, de músicas.

Diz Guimarães Rosa que “felicidade só em raros momentos de distração…“ Certo. Ela vem quando não se espera, em lugares que não se imagina. Dito por Jesus: “É como o vento: sopra onde quer, não sabes donde vem nem para onde vai…“ Sabedoria é a arte de provar e degustar a alegria, quando ela vem. Mas só dominam essa arte aqueles que têm a graça da simplicidade. Porque a alegria só mora nas coisas simples.

(Concerto para corpo e alma, p. 09)

O original está aqui.

A Bíblia é muito fácil de entender

A questão é simples. A Bíblia é muito fácil de entender. Mas nós, cristãos, somos um bando de vigaristas trapaceiros. Fingimos que não somos capazes de entendê-la porque sabemos muito bem que no minuto em que compreendermos estaremos obrigados a agir em conformidade. Tome qualquer palavra do Novo Testamento e esqueça tudo a não ser o seu comprometimento de agir em conformidade com ela. “Meu Deus”, dirá você, “se eu fizer isso minha vida estará arruinada. Como vou progredir na vida?”.

Aqui jaz o verdadeiro lugar da erudição cristã. A erudição cristã é a prodigiosa invenção da igreja para defender-se da Bíblia; para assegurar que continuemos sendo bons cristãos sem que a Bíblia chegue perto demais. Ah, erudição sem preço! O que seria de nós se você? Terrível coisa é cair nas mãos do Deus vivo. De fato, já é coisa terrível estar sozinho com o Novo Testamento.

Soren Kierkegaard, citado por Paulo Brabo no livro A Bacia das Almas.

Dostoievski e a pena de morte

O diálogo entre o Príncipe Míchkin e o criado do general Iepátchin, em “O idiota”.

Sabe de uma coisa? – secundou o príncipe com ardor. – Essa mesma observação que o senhor fez todo mundo faz, e a máquina, a guilhotina, não foi inventada com esse fim. Mas naquela ocasião me ocorreu uma idéia: e se isso for ainda pior? O senhor acha isso engraçado, isso lhe parece um horror, e no entanto sob um certo tipo de imaginação até um pensamento como esse pode vir à cabeça. Reflita, por exemplo, se há tortura; neste caso há sofrimento e ferimentos, suplício físico e, portanto, tudo isso desvia do sofrimento moral, de tal forma que você só se atormenta com os ferimentos, até a hora da morte. E todavia a dor principal, a mais forte, pode não estar nos ferimentos e sim, veja, em você saber, com certeza, que dentro de uma hora, depois dentro de dez minutos, depois dentro de meio minutos, depois agora, neste instante – a alma irá voar do corpo, que você não vai mais ser uma pessoa, e que isso já é certeza; e o principal é essa certeza. Eis que você põe a cabeça debaixo da própria lâmina e a ouve deslizar sobre sua cabeça, pois essa quarto de segundo é o mais terrível de tudo. O senhor sabe que isso não é fantasia minha, que muitas pessoas disseram isso? Eu acredito tanto nisso que lhe digo francamente qual é minha opinião. Matar por matar é um castigo desproporcionalmente maior que o próprio crime. A morte por sentença é desproporcionalmente mais terrível que a morte cometida por bandidos. Aquele que os bandidos matam, que é esfaqueado à noite, em um bosque, ou de um jeito qualquer, ainda espera sem falta que se salvará, até o último instante. Há exemplos de que uma pessoa está com a garganta cortada, mas ainda tem esperança, ou foge, ou pede ajuda. Mas, no caso de que estou falando, essa última esperança, com a qual é dez vezes mais fácil morrer, é abolida com certeza; aqui existe a sentença, e no fato de que, com certeza, não se vai fugir com ela, reside todo o terrível suplício, e mais forte do que esse suplício não existe nada no mundo. Traga um soldado, coloque-o diante de um canhão em uma batalha e atire nele, ele ainda vai continuar tendo esperança, mas leia par esse mesmo soldado uma sentença como certeza, e ele vai enlouquecer ou começar a chorar. Quem disse que a natureza humana é capaz de suportar isso sem enlouquecer? Para quê esse ultraje hediondo, desnecessário, inútil. Pode ser que exista um homem a quem leram uma sentença, deixaram que sofresse, de depois disseram: “Vai embora, foste perdoado”. Pois bem, esse homem talvez conseguisse contar. Até Cristo falou desse tormento e desse pavor. Não, não se pode fazer isso com o homem.

– Fiódor Dostoievski, no livro “O idiota” (p. 43).

Post para o blog Livros só mudam pessoas.

A conciliação entre cristianismo e evolução

Darwin se incomodava ao ver o que identificava como sinais de crueldade na natureza: gatos que torturavam ratos antes de comê-los, ou vespas cujas larvas eram programadas para se alimentar dos órgãos internos de seu hospedeiro na ordem exata para fazê-lo viver o máximo possível enquanto era devorado. Ele também identificava algumas coisas fora do lugar: na América do Sul, Darwin viu emas e se perguntava qual era o ponto de uma ave que não voava. Se Deus fez tudo isso exatamente desse jeito, além de cruel, Ele seria um mau designer. Agora, se gatos torturadores, vespas e emas eram produto da seleção natural e não da vontade direta divina, Deus podia permanecer como o autor das leis naturais, que de vez em quando resultam em algo sublime, e de vez em quando levam a “falhas de design”.

Trecho do artigo “A conciliação possível entre cristianismo e evolução”, escrito por Márcio Campos no blog Tubo de Ensaio. Para ler a íntegra do texto, clique aqui.

In Principio ert Verbum

In Principio ert Verbum. Pense no Gênesis. Pense em como era antes de o mundo ser criado. Não havia nada. Diz a Bíblia: “Era a terra sem forma e vazia; trevas cobriam a face do abismo”. E era escuro, e não havia nada. Não havia montanhas, nenhuma árvore, nenhum rio. Não havia nada. Mas havia trevas por tudo ao redor, e nas trevas algo aconteceu. Algo aconteceu! Houve um único som. Nada o produziu, mas lá estava ele. E não havia ninguém para ouvi-lo, mas lá estava ele. Surgiu nas trevas, pequeno e baixo, em si mesmo algo diminuto – como um único sopro, como vento surgindo. Sim, como o sussurro do vento surgindo lentamente e se apagando no começo da manhã. Mas não havia vento algum. Havia apenas um som, mínimo e suave. Em si mesmo era algo diminuto, apenas a menor semente de som – mas tomou conta das trevas, e houve luz. Tomou conta da quietude, e houve movimento para sempre. Tomou conta do silêncio, e houve som. Era em si mesmo algo diminuto, um único som, uma palavra – uma palavra que se desprendera do centro mais escuro da noite e fora solta no terrível vazio, para sempre, para todo o sempre. E era em si mesma algo diminuto. Mal aconteceu, mas aconteceu, e tudo começou.

– J. B. B. Tosamah

Trecho de sermão citado por Diane Glancy em “Perspectivas da narrativa escrita”, capítulo do livro “Muito mais que palavras” de Philip Yancey e James Calvin Schaap.

Um cartoon

Cartoon - Leitura

Momentos (Will Hoffman)

A importância do cristianismo (C. S. Lewis)

O cristianismo, se é falso, não tem nenhuma importância, e, se é verdade, tem infinita importância. O que ele não pode ser é de moderada importância.

C. S. Lewis, citado por Jorge Oliveira em seu Canto do Jó

A Terra repleta de céu

A Terra repleta de céu,
E cada arbusto comum incendiado com Deus,
Mas só aquele que vê tira os sapatos;
Os outros se sentam ao redor e colhem amoras.

(Elizabeth Barret Browning, citada por William P. Young em “A Cabana”)

Sou um mercenário egoísta (C. S. Lewis)

Tudo não passa de retórica vistosa sobre amar você.
Eu nunca tive um pensamento altruísta desde que nasci.
Sou um mercenário egoísta o tempo todo;
Quero Deus, você, todos os amigos apenas servindo a mim.

Paz, garantia, prazer, são as minhas metas.
Eu não consigo me arrastar um centímetro fora de minha pele;
Eu falo de amor – o papagaio de um professor pode falar grego –
Mas, preso dentro de mim, sempre acabo onde comecei.

Poema de C. S. Lewis, citado por Donald Miller em “Como os pinguins me ajudaram a entender Deus”.