Música para os meus ouvidos

por Luiz Henrique Matos

Ela tem dois olhos bem redondos, castanhos e quase sempre animados enquanto se concentram em alguma atividade. São esses olhinhos, muitas vezes, a primeira coisa que vejo no dia, bem de perto, quando acordo e ela já está ali na cama, quietinha, esperando. E abre um sorriso, com seus cinco dentes na boca, os olhinhos ainda inchados, as bochechas coradas e os dedos que me cutucam os olhos quando eu ouso fechá-los na tentativa de dormir mais um pouco, uns cinco minutos. Mas não dá, é irresistível. Ela está ali, com a testa colada na minha, respirando no meu rosto, me encarando, animada para começar o dia.

São os olhos espertos que me sondam pelo espelho, enquanto faço a barba no banheiro (“ué, que negócio é esse na cara dele?”, acho que ela pensa). Olhos atentos que me enxergam de longe no supermercado e eu a vejo estender a mão, me chamando para perto. São os olhos vagos semi-cerrados que pedem colo, lá pelas tantas da noite, quando ela já não resiste ao sono. Os mesmos que, cheios de lágrimas, pedem socorro depois do seu fracasso (leia-se: tombo) na tentativa de escalar algum móvel na sala. É o olhar brilhante, vivo, rodeado por aqueles cilhos compridos, o rosto gorducho e a boquinha rosada. É a sensação incrível de ver aquela pessoinha correr estabanada na minha direção ao me ver chegar em casa.

Fiquei mal acostumado. Eu diria: bem acostumado. Minha esposa iria falar que eu sou é carente mesmo. Mas o fato é que todos os dias espero por isso. Chego do escritório e, enquanto subo pelo elevador do prédio, já ajeito os papéis sob o braço e a alça da pasta sobre o ombro para abrir a porta de casa e esperar que ela venha.

Essa é das coisas mais rotineiras, eu bem sei. Sempre achei um clichê, gesto enfadonho, momentos estereotipados nos comerciais, a cena do pai ajoelhado, gravata frouxa no colarinho, sorriso estampado no rosto e braços abertos, esperando o filho que corre para se achegar em seus braços. O fato é que é exatamente assim que acontece. E eu me rendo ao rótulo que se quiser dar a isso e digo, a bem da verdade, é dos momentos que mais espero no dia.

E numa dessas “feiras” das quais se fazem os dias não ociosos da semana aconteceu, como sempre. Todo o ritual se repetiu, do elevador à porta de casa, do tilintar da chave na fechadura aos ruídos dela se movimentando na sala, do ranger da dobradiça enquanto a porta se abria (que agora lembrei ainda não cuidei de arrumar) aos primeiros sons da sola do meu sapato pisando no corredor da sala, do “quem chegô?” dito pela minha esposa ao afrouxar da gravata no colarinho. E foi ali, ao topar de frente com minha menininha correndo que ouvi:

– Papa!

Ela falou!

Saiu em disparada do sofá, as bochechinhas tremendo, os passos concentrados na minha direção. Em disparada, meu peito acelerava na sensação única de ver meu fruto me olhar nos olhos e dizer meu nome – ou a palavra mais simples que signifique essa condição paterna.

– Papapapapapapa… papa!

– Oi Nina!

Ela falou para mim. E se me pedisse o mundo naquela hora eu lhe daria (sabe como é, financiamentos bancários já não são tão difíceis de se conseguir ultimamente).

Eu olhava para aquela coisinha, que ainda precisa de mim para qualquer de suas necessidades básicas de sobrevivência e tinha consciência de que, naquele instante, ela era dona do meu coração. Seus olhinhos redondos brilhavam e o rosto sorridente me perseguia.

Duas silabas elementares no vocabulário de qualquer ser humano com mais de 6 anos, mas que a julgar de onde vinham, tornavam todas as outras coisas menos importantes por um momento. Era o melhor dos elogios que eu podia ter ouvido nesses dias.

Sim – respondendo a uma pergunta que talvez você não tenha feito –, ela já havia falado outras coisas antes. Disse “mamã” para chamar aquela que é justa merecedora da primeira fala. E disse “kissss”, para chamar a nada merecedora cachorrinha no quintal da casa da minha sogra, enquanto fingia estalar os dedos.

(Eu estava em terceiro lugar nessa fila, mas quem se importa com o detalhe de que antes de me chamar ela tenha aprendido a correr atrás de uma poodle que não lhe dá a menor atenção e que ela só vê uma vez por mês? Quem liga? Hein? E estalar os dedos! Hein?!?)

E aquela voz admirada se dirigindo a mim soava como expressão de louvor. Era ela, minha cria, aprendendo uma coisa nova e se expressando para mim. Orgulho, corujice, satisfação, amor, coração mole, euforia, puro exagero. Sim, a mãe dela tem razão, sou meio carente.

Aquela voz, o resmungo, o chorinho pelo qual eu largo tudo e lhe volto minha atenção. Deixo trabalho, abandono um livro aberto sobre a mesa, largo as tarefas por fazer, deixo o feijão esfriar no prato, desligo o futebolzinho na TV. Abandono a mais importante das prioridades, porque meu pequeno fruto precisa de mim. Eu nunca imaginei que seria assim, mas o coração de pai renuncia de si em favor do seu sangue que corre naquelas frágeis veias.

E ainda agora, alguns meses depois, aquela vozinha mínima me chamando ainda é capaz de me mover. E fico pensando que vai ser assim a vida toda. Se ela chama, eu vou. Se estou deitado, me levanto. Se ela diz algo, respondo. Se ela chora, eu acordo. Se ela pede, invariavelmente, eu dou.

Ela é filha, eu sou pai. E quando ouvimos a voz da nossa própria carne nos chamando, que pai não pára e se curva para ouvir, responder, atender ao pedido de um filho?

Quem resiste?

Nenhum pai. Nem o Pai.

Sobre a velhice, rotinas e prioridades

por Luiz Henrique Matos

Eu nem posso dizer que não haviam me avisado. As frases-feitas me passam pela mente como verdades nas quais eu não quis acreditar. “O tempo voa”, “vixe, passa rápido”, “aproveite agora”, “você vai ver como cresce rapidinho”… eles tinham razão.

No mês passado ela fez um ano. Já fez um ano! Corre para todo lado, balbucia as primeiras palavras, arrasta os brinquedos pela sala, faz as manhas de todo neném quando quer algo e engorda e cresce em ritmo de gado novo. O que eu posso fazer? Nada, nem sei por que pergunto. Os cabelinhos encaracolados, a pele branca, bochechas gordas, a boquinha rosa… Nina, meu neném, até há pouco tempo totalmente dependente, agora é uma pessoinha cheia de vontades, uma menina, criança, que daqui a pouco cresce e cresce mais. E assim vai. Quando se vê, já foi.

Passa rápido demais. E percebo que tem coisas dos últimos anos que se misturaram na memória. Vi-me mais uma vítima de outra verdade, a de que depois dos dezoito os anos já quase não se contam. E ficam esparsos, cada vez mais, os momentos memoráveis do dia-a-dia. A praga da rotina.

Não, não reclamo da vida. Ela é boa demais da conta. Tenho esposa, uma filha, trabalho. Tenho Deus, meu Senhor e Pai. Minha família e meus amigos. O que paro pra pensar é na rotina – sempre ela – e nos dias que insistem a passar, na parte da vida que se contam nas horas, que observo já vivida, lá atrás, através do retrovisor do carro que dirijo em primeira marcha no trânsito caótico dessas nossas avenidas.

Também não vou me iludir, o auto-engano é frustrante demais. Sei que as coisas continuarão como são e assim sempre serão. Mas eu não. Quero fazer diferente.

E isso passa pelos momentos memoráveis, daqueles mais simples, de um dia de boas risadas, boa comida, de descompromisso.

É o que eu quero. Estar com minha família e aproveitar. Lembrar que os recursos mais valiosos são aqueles para os quais dedico mais tempo. Jesus disse: “onde estiver o seu coração, ali estará o seu tesouro”. Falta agora um pouco dessa ordem em mim.

Deus, família, trabalho, igreja… tudo tem sua ordem, seu tempo, valor. Mas mais do que uma fração de minutos ou dias, importa a qualidade e não a quantidade que se emprega.

Para entender esse valor, recordo das boas marcas e lembranças. São essas coisas que quero viver mais. Em casa, à mesa, na rua, no chão, na estrada, à mesa, de mãos dadas. Sei que sou mais do que o acaso. Sei, em Deus, que existe um propósito para a vida. E eu gostaria de envelhecer e saber que cumpri com integridade minha jornada, o bom caminho. Mas não só. Se for assim não tem graça. Bom será saber que o fiz ao lado daqueles a quem amo.

Todos lá sentados num gramado de verde quase escuro, numa tarde de sol brando e céu azul, ao lado do pomar, em frente à casa de madeira clara, o cão correndo pelo jardim, as crianças brincando na terra, os adultos brincando na terra, uma boa rede estendida, a mesa posta com toalha branca embaixo da árvore cujo galho serve de sustento para o balanço de pneu de caminhão, o suco fresco servido gelado, a moça grávida sonhando com os dias da nova vida que carrega no ventre ao lado do marido que lhe acaricia os cabelos, o cheiro de café coado e recém fervido no bule invadindo o ar… e a certeza de que isso não nos custa mais do que um bom sonho.

Salomão sabia das coisas. Já idoso, no fim da vida, tratou de registrar o que observou para que pudéssemos aprender alguma coisa.

“Portanto, vá, como com prazer a sua comida e beba o seu vinho de coração alegre, pois Deus já se agradou do que você faz. Esteja sempre vestido com roupas de festa, e unja sempre a sua cabeça com óleo. Desfrute a vida com a mulher a quem você ama, todos os dias desta vida sem sentido que Deus dá a você debaixo do sol; todos os seus dias sem sentido! Pois essa é a sua recompensa na vida pelo seu árduo trabalho debaixo do sol. O que as suas mãos tiverem que fazer, que o façam com toda a sua força, pois na sepultura, para onde você vai, não há atividade nem planejamento, não há conhecimento nem sabedoria.” (Eclesiastes 9:7-10).

E penso, decido agora, que não vou eu esperar o fim da vida para chegar às mesmas conclusões que o sábio rei. Posso e vou fazer agora, aquilo que de fato tem valor. Quero ser o homem rico, cheio do tesouro que realmente interessa e vale a pena acumular.

Meu coração está no meu tesouro.

E confesso que às vezes eu queria mesmo é que o tempo não passasse assim de forma tão brusca. Que minha menina pudesse caber em meus braços para sempre. Que eu conseguisse me manter o humor do garoto que conquistou o coração da moça mais bonita, que um dia me disse o “sim” definitivo num altar. Tanta coisa. É bobagem minha, tempo gasto à toa. Importante é o que posso fazer desde agora.

Deus não faz um só dia igual ao anterior. Não tem amanhã que possa ser previsto e também não existe ontem que possa ser vivido outra vez. E acho mesmo que para o amor, hoje é nosso melhor momento. O que faço agora é o semear do fruto que colherei daqui a pouco e também lá na frente. E minhas prioridades revelam meus valores, me revelam.

O resto, Salomão me ensinou, é correr atrás do vento.

“Agora que já se ouviu tudo, aqui está a conclusão: tema a Deus e obedeça aos seus mandamentos, porque isso é o essencial par ao homem.” (Eclesiastes 12:13).

Primeiros passos

por Luiz Henrique Matos 

 

Soltei minha pasta no chão, larguei o paletó sobre a mesa, afrouxei o nó da gravata e arregacei as mangas da camisa. Eu acabara de ouvir a novidade e não podia acreditar que estava acontecendo. Bem, quer dizer, podia sim, já havia imaginado centenas de vezes como seria esse momento. Mas nada se parecia com aquilo.

Ajoelhei, abri os braços e fiz o convite:

– Vem, filha. Vem aqui com o papai.

Ela riu. Sempre ri. Soltou seu apoio no encosto da cadeira e deu o primeiro passo, cambaleou, tentou se equilibrar, ôôô, caiu sentada. Sem problemas, a fralda amortece a queda. Pronto, vamos recomeçar. Em pé. Um passinho, dois, outro, mais um, vários, vários passos. Ela vinha atravessando a sala em minha direção, com aquela insegurança típica da inauguração dos momentos importantes da vida, com um sorriso de conquista naquela boquinha banguela, seus olhos alternando entre o chão logo à frente e o meu olhar concentrado, orgulhoso, paterno, protetor, satisfeito, radiante, coruja.

– Que belezinha! Minha princesinha já está andando! Parabéns, filha. Que linda! Agora ninguém te segura… Amor, vai tirando tudo o que é de vidro aí de cima do móvel. Amor, você viu isso?! Preciso filmar! Amor, cadê a câmera?

Ela andou. E agora sai descontrolada pela sala, quartos, banheiros, cozinha, corredor, shopping center e ruas. Ela vai a toda, cambaleando, tropeçando, caindo e confiante. Independente.

Será que ainda vai precisar de mim para alguma coisa?

Até ontem só andava mesmo de mãos dadas, com aquela mãozinha suada apertando o meu dedo indicador e um pedaço de pão preso na boca. De mãos dadas com o pai, seus passos são mais largos, ela se sente mais segura. Eu era seu ponto de equilíbrio. E ainda pedia colo para qualquer coisa.

O tempo vai passando. Não me cabe julgar a velocidade das coisas, é o tempo, e pronto. Mas com o passar dos dias consigo enxergar um pouco do meu papel como pai se cumprindo, uma porção do trabalho finalmente frutificando.

Às vezes (cada vez menos) é possível perceber sua insegurança. Ela olha os cinco metros à sua frente – que a visão em miniatura deve transformar em cinco quilômetros – e fica com medo, ameaça sentar, pede colo. Vencendo os instintos super-protetores (são muitos, acredite), eu mantenho distância, estendo os braços e a incentivo a seguir sozinha.

Lembro que Deus já fez isso comigo. Não faz muito tempo, eu nem sabia andar. Levantou-me, estendeu o dedão para que eu me apoiasse e soltou minha mão no momento certo. Na outra ponta, de olhos esbugalhados e braços abertos, estava lá, coruja, orgulhoso de ver sua cria caminhando pela primeira vez com as próprias pernas. Cambaleante, mas vitorioso. Era eu.

Deus me fez para aprender a andar sozinho.

Apesar de já andar sozinha pela casa, a Nina ainda me pede colo. Quando está cansada, quando cai e começa a chorar, quando precisa de alguma coisa ou, nos mais deliciosos instantes, quando corre para um abraço.

Eu nem ligo, eu gosto, é minha filha.

Às vezes eu peço colo.

(Crônica escrita para o Comunidade Carisma.net)

Doentes curando doentes

por Luiz Henrique Matos

Ela estava gripada, dava dó. O olho inchado, a ponta do nariz vermelha, a respiração de boca aberta, ofegante, tadinha. De madrugada, lá do outro quarto, dava para ouvir os espirros, meio abafados pelo travesseiro. Dava para ouvir o ruído do nariz entupido, que escorria durante todo o dia. Dava para ficar preocupado. Ela nem tinha 70 centímetros de comprimento.

Minhas orações se intercalavam e contradiziam ao mesmo ritmo em que eu a balançava no colo. Pai, eu te peço que cure minha filha dessa doença. E eu ouvia um gemido, um chorinho, a voz rouquinha. Ai, Deus… passe essa dor para mim, mas não deixe que ela sofra. Os remédios, a dosagem, a inalação, o médico. Ué, cadê o telefone do doutor? A gente precisa ligar pra saber o que fazer. Tentava imaginar o que mais poderia ser feito para melhorar aquela situação. Senhor, cuide da minha menina…

E entre preocupações e tentativas, me surpreendia em atitudes curiosas. Naquela noite, ela estava deitada na cama, estirada, corpo dolorido e cansada. Eu dosava pelo conta-gotas um pouco de soro fisiológico em cada uma daquelas narinas minúsculas. Passei a massagear levemente a parte superior do nariz para que a entrada do soro fosse facilitada, apoiei sua cabecinha sobre um travesseiro mais alto, tirei as mantas e bichinhos de pelúcia que pudessem fazê-la espirrar ou acumular poeira. Isso fez com que ela respirasse com mais facilidade. Passou a descansar melhor. Dormiu.

Aí tentei lembrar de onde eu tirei tais instintos. Será que vinham no pacote da paternidade? Hum, não, acho que não. Recordei minha infância, a chateação de uma rinite alérgica que me prejudica o olfato até hoje (acredite, às vezes posso confundir cheiro de perfume com tempero de comida). E me vieram à mente as noites da nariz travado, as madrugadas em que a mãe trazia o travesseiro mais alto para eu dormir, da vez em que os carpetes de casa foram tirados e da revolucionária substituição dos cobertores de lã Parahyba por moderníssimos edredons. Lembrei que, um dia, eu mesmo precisei passar pelo que, agora, fazia pela minha filha.

Doentes curam doentes.

Confesso que aquilo estava longe do meu ideal de paternidade e muito, mas muito distante do tipo de conhecimento que imaginei transmitir para minha prole. Mas aprendi que as dores, sofrimentos momentâneos e tempestades pelas quais passo, devem servir – e servirão – para que eu ajude outras pessoas que porventura estejam lutando o combate que em algum momento já venci. Depois de passar a enxergar, devo guiar o cego na escuridão. Deus espera isso de mim. De nós.

Naquela noite ali no quarto, eu a segurava no colo, pedindo ao Pai que a curasse e aliviasse sua dor. E percebi em meu coração que ele observava, desejando embalar em seus braços a menina que criou para chamar de filha. Ela é dele. Dele, o Deus que se entrega, e cuida daqueles que ama.

E aí aprendo outra vez, na dor e na alegria, que a paternidade me aperfeiçoa como filho.

“Porque todos aqueles que pedem recebem; aqueles que procuram acham; e a porta será aberta para quem bate. Por acaso algum de vocês, que é pai, será capaz de dar uma pedra seu filho, quando ele pede pão? Ou lhe dará uma cobra, quando ele pede um peixe? Vocês, mesmo sendo maus, sabem dar coisas boas aos seus filhos. Quanto mais o Pai de vocês, que está no céu, dará coisas boas aos que lhe pedirem!” (Mateus 7: 8-11).

(Crônica escrita para o ComunidadeCarisma.Net)

Pequenas lições

por Luiz Henrique Matos

Até outro dia ela cabia no meu antebraço, seu tamanho exato. Hoje, eu mal consigo segura-la nos braços. Poucos meses se passaram mas muita coisa mudou. Na essência, é um ser humano em evolução tão intensa e mais rápida do que eu posso assimilar.

Hoje mesmo, durante o café da manhã eu a observava brincando no chão da sala, deitada de costas sobre o edredom, assistindo pela qüinquagésima vez aos clipes do “Cocoricó” (cuja trilha, confesso, canto entusiasmado entre o barbear e um nó torto na gravata).

– Como cresce rápido, não é mesmo dona?

– Poizé. Num instante eles cresce. Igual a vida. Quando a gente vê, rapidim, tudo já passô (sic).

Sotaque mineiro, analfabeta, cheia de razão, recolhia a louça de ontem espalhada sobre a mesa. Falou, é verdade, aquilo que todo mundo já sabe. Mas com o peso de setenta anos nas costas, filhos adultos, netos, um bebê adotado, viúva… imagino que suas histórias e lutas sejam interessantes. As dos antigos sempre são. Imagino que suas afirmações tenham sempre um peso maior de verdade e sabedoria do que essas conclusões da minha imaturidade.

Fugaz. O tempo voa, a vida passa e o que, de verdade, é importante fazer? Seria o desafio melancólico da auto-ajuda que questiona onde estão empenhados nosso tempo, dinheiro e esforços? Ou o melhor mesmo é viver despreocupado e deixar que as coisas aconteçam por si só?

Não sei dizer. Ou, prefiro não decidir isso agora. Em ambos os casos, não dá para seguir sozinho.

Ela passa por trás da mesa, percebo que calça o par Havaianas antigas da minha esposa. E volta então para a cozinha, onde lava, passa, prepara a comida que fará no almoço.

E percebo, entre uma mordida no pão sovado e um gole na xícara de leite frio com chocolate, que a sabedoria não é privilégio da “gente letrada”, mas dos que observam, e vivem, e seguem com dignidade a vida que nos absorve.

“Portanto, vá, coma com prazer a sua comida e beba o seu vinho de coração alegre, pois Deus já se agradou do que você faz. Esteja sempre vestido com roupas de festa, e unja sempre a sua cabeça com óleo. Desfrute a vida com a mulher a quem você ama, todos os dias desta vida sem sentido que Deus dá a você debaixo do sol; todos os seus dias sem sentido! Pois essa é a sua recompensa na vida pelo seu árduo trabalho debaixo do sol. O que as suas mãos tiverem que fazer, que o façam com toda a sua força, pois na sepultura, para onde você vai, não há atividade nem planejamento, não há conhecimento nem sabedoria.” (Salomão, homem que observou, já velho, em Eclesiastes 9:7-10).

Na falta do que dizer…

por Luiz Henrique Matos

Faz umas quatro horas que estou tentando escrever algo aqui nessa tela. Já comecei quatro textos diferentes, esse é o quinto. Acho que agora vai. Acho.

O último eu parei duas vezes. Na primeira, para dar a mamadeira para a Nina, que chorou lá do berço pedindo seu leitinho. Altíssima prioridade. Na segunda, também pela Nina, que resmungava os primeiros gemidos dando sinal de acordaria em breve.

Pensei em deixa-la ali no berço, afinal já passam das onze e é hora de bebê estar dormindo. Mas não resisti. Olhei aquele rostinho, aquele olhar de quem acorda e ainda dorme me sondando, o sorriso banguela se construindo no rosto e a mãozinha vindo na direção das minhas bochechas. Ela me aperta. Mão macia. Mas precisa cortar as unhas. Ela pede colo. Peguei-a e vim para a sala brincar. Isso sim, mais importante do que qualquer palavra mal escrita numa tela de computador.

Me veio à mente então uma pérola: mais importante do que as coisas passageiras que depois podem ser feitas, é dar valor ao que passa rápido e quando vê já não se pode mais fazer (éca, ficou péssimo isso).

Ela só tem cinco meses, mas sinto que a cada hora longe de casa, perco um novo sinal de seu crescimento. Ela já tem cinco meses.

Enquanto escrevo, ela me sonda por cima da tela. Sentada na cadeirinha de balanço (que preferiu, preterindo meu colo), olha insistentemente para mim enquanto narro em voz alta as palavras que despejo nesse teclado. Ela gosta. Ela ri timidamente. Ela não está com sono, definitivamente.

Que valor tem o tempo, afinal? Que prioridade tem as coisas tão urgentes, perto do que é mais importante? Quero saber, um dia lá na frente, que fiz a coisa certa. Que as escolhas, as mais simples, foram as que causaram impacto e tornaram nobre e valioso o viver. Que o olhar apaixonante e curioso de um bebê é, no fim das contas, maior do que o prazo das tarefas no escritório, maior do que o sono, melhor do que o melhor clássico de futebol na tv.

Falando em clássico, a música de Ravel toca ao fundo, completada pela trilha sonora do ritmo da chupeta colorida que estala naquela boquinha vermelha.

Ela me olha fundo nos olhos. Como faz a mãe dela, quando quer me dizer algo sem precisar abrir a boca. E vejo nesse olhar sua inocência, vejo minha filha, me vejo, sangue do meu sangue, vejo um bebê, vejo a mulher que um dia virá a ser (e aí já não quero mais ver nada porque isso vai longe demais pro meu gosto).

Agora ela observa a própria mão, abrindo e fechando. Ela raspa as pontas dos dedos no estofado para saber a textura que tem. Aprende algo novo. Ela tenta alcançar algo que está pendurado no arco da cadeira e arrancar dali a todo custo. Ela se revira toda para saber como ficar, cair, não… ixi, peraí, preciso arrumar… ufa, foi por um triz! Ela tenta engolir um brinquedo maior do que sua cabeça. Ela baba pra caramba.

Pensando bem no primeiro parágrafo dessa história, acho que o texto não dará em nada, senão nesse despejar de palavras e sentimentos que, a bem da verdade, não dizem muita coisa para o cristianismo de alguém. Talvez até digam ou sirvam para tratar de prioridades, para pregar uma vida mais simples e despretensiosa, para dizer que as coisas realmente valiosas e divertidas também não estão em nossa conta bancária (ah, mas não mesmo, dirão os endividados mas você entende do que estou falando).Acho que ela é destra. Puxou o pai?

Pensando bem, acho que o melhor a fazer é abandonar esse computador e voltar a brincar com minha princesinha. É, filhos nos dão essa vantagem, podemos voltar a ver desenho animado e brincar de ser criança sem que os outros adultos nos julguem idiotas. Pelo contrario, até acham bonito, nobre, pedagógico, estimula o sei-lá-o-quê da criança. Eu só sei de uma coisa: é bem legal.

Ela tem cosquinhas. Ela gosta do meu colo… (ou talvez não tenha muita opção). Ela gosta de cheirar um paninho, igual aquele personagem do Snoopy. Puxou a mãe? Opa, ela pediu colo. Agora está aqui deitada nos meus braços e com a cabeça recostada sobre meu peito. Nada paga essa sensação. Volto a um raciocínio antigo, mas que me visita toda semana: Deus nos dá a chance de ter filhos para que possamos, numa minúscula fração, entender o que ele sente como pai.

Ela não fala nada às vezes acho que ela acha que fala , só sorri, chora e resmunga de vez em quando. Mas nem precisa, você sabe bem disso. É que… ahn, aqueles olhinhos, aquelas mãozinhas, aquele sorrisinho… bem, isso não tem nada de diminutivo. Na falta do que dizer, o momento diz tudo.Talvez, voltando ao raciocínio do parágrafo aí de cima, talvez isso também seja a grande lição da paternidade divina. Ele contempla, ele prioriza, se enche de orgulho, sofre, ele sabe… sim, sempre sabe e ama sob qualquer condição.

Pensando… bem, agüenta firme aí que eu vou curtir minha cria.

Coração peregrino

por Luiz Henrique Matos

Movido uma vez mais por suas emoções, o Coração saiu em busca dos Sentimentos que há muito lhe eram ausentes. Estava perdido e queria voltar para casa. Sentia falta das coisas que o faziam pleno, cheio de si, dono de tantas das decisões de seu dono. Fraco e sem rumo, o Coração partiu.

Longe de seu eixo, andou por muitas terras antes de se perder. Embrenhou-se pela Razão, enveredou em caminhos de Tristeza, Vazio, Sombras, Altivez e Sequidão. Sem sua força vital, tornou-se o Coração companheiro do Egoísta, da Solidão e aliou-se à Incredulidade. O Coração pródigo era seco sem os Sentimentos vitais.

Mas cansou-se da vida errante e naquele dia saiu em busca do que lhe preenchesse. Peregrino, resistente a sol e chuva, a alegria e dor, em vales e montes, em jornadas distantes. Alheio ao tempo circunstancial e às dificuldades, trilhou confiante seu destino, à procura do Norte, em busca do alvo que errara tantas vezes.

Andou pelo Vale da Dúvida, caminhou só durante as noites. Sentiu fome, sede, frio. Tropeçou em indecisões diante das estradas que se lhe exibiam, abriu trilha na mata já fechada de um caminho quase sem volta. Encarou de frente a morte durante a Escuridão, viu a luz que esforçava-se por raiar entre as nuvens e chegando afinal o sol, seguiu em confiantes passos.

E meses a seguir, venceu enfim o Coração. Chegou numa manhã de outono à sua morada, o Lar da Graça, encontrou o abrigo merecido dos que perseveram, colheu no quintal o bom fruto dos que se arrependeram e semearam justiça. Sorriu uma vez mais e para sempre. Encheu-se novamente dos Sentimentos que buscara, da Salvação que carecia e era agora pleno na presença de Honra, Respeito, Misericórdia, Fé, Bondade e tantos desses irmãos de quem há tanto tempo desgarrara.

Renovado, entrou finalmente o Coração em seus aposentos mais íntimos e encontrou à sua espera a Fidelidade, com quem desfrutou a vida e a quem prometeu e dedicou seu tesouro, o Amor. Estava novamente seguro o Coração, estava em Deus, de uma vez por todas abrigado nas Terras de Paz Eterna.

“Como são felizes os que habitam em tua casa; louvam-te sem cessar. Como são felizes os que em ti encontram a sua força, e os que são peregrinos de coração. Ao passarem pelo vale de lágrimas, fazem dele um lugar de fontes; as chuvas de outono também o enchem de bênçãos, prosseguem o caminho de força em força, até que cada um se apresente a Deus em Sião.” (Salmo 84:4-7).