Sobre miniaturas, altares e choros a 120 decibéis

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Tem um ser humano em miniatura vivendo entre nós. É fêmea, mede 52 centímetros e já há duas semanas dorme na nossa cama, no meio da gente.

Ela saiu da barriga da Manú no domingo retrasado. Eu estava lá e a vi chegando ao mundo. Aquela coisa que se movimentava ali dentro até então era mesmo alguém da nossa espécie. Uma menina. A chamamos de Cecília.

Ela é de verdade. Respira, emite sons, dorme algo como 20 horas por dia, chora a impressionantes 120 decibéis e se alimenta de leite que sai dos seios da minha esposa. Se a pegamos no colo quando chora, geralmente se acalma. Nessas horas, dar tapinhas leves na fralda e caminhar pela sala em passos ritmados também tem certo efeito terapêutico.

Aos poucos, ela vai formando as primeiras impressões sobre o que é o mundo e a vida. E nós, bem, nós também. Uma nova perspectiva. Vamos nos conhecendo mais, vamos percebendo um novo tipo de amor criar raízes e frutificar em nossos corações.

Cecília não anda, não fala, nem se comunica de qualquer outra forma que não seja o choro. Ela depende inteiramente de nós para sua sobrevivência. Além de alimentação, higiene e cuidados fisiológicos, no futuro breve também estarão sob nossa responsabilidade a formação intelectual e moral dessa pessoa (e, confesso, tenho sérias dúvidas quanto à minha capacidade de cumprir essa tarefa). Somos uma família de quatro integrantes agora. Ela vai crescer e viver sob nosso teto de hoje em diante, até o dia em que decidir nos deixar para construir seu próprio lar.

Todas as suas atitudes e movimentos agora, disse o médico, são involuntários. Em algumas semanas, no entanto, haverá uma evolução drástica de comportamento. O período de sono, dizem, tende a ficar mais espaçado. A verdade é que da minha parte já não me lembro com clareza o que é sono, mas acho que vai ser bom para todos aqui.

Ainda assim, com seus “movimentos involuntários”, vez ou outra, sua mãozinha de 3 ou 4 centímetros se enrosca na minha barba e eu sinto algo estranho. Certas vezes, enquanto escuta nossa voz, seu olhar nos sonda, olha nos olhos e de alguma forma parece nos reconhecer, parece até que se familiariza com os sons, como quem reconhece finalmente a imagem do rosto associado a uma voz que já conhecia. E nos encara de um jeito tão absurdamente mágico que não importa o que aconteça no mundo a nossa volta, que mesmo que caia por terra a grande Muralha da China ou que o Rogério Ceni faça o milésimo gol da sua carreira em cima do Corinthians numa final de Copa Libertadores, é impossível desviar a atenção daquele rostinho quando ela nos escrutina com seu olhar de quem enxerga o mundo pela primeira vez.

Ah, o mundo. Fico pensando o que ele fará para merecê-la. Não dá pra racionalizar, claro que não.

E aquele ser humano em miniatura se converte no nosso universo todo de repente, vira a razão de estarmos aqui, a chamamos de filha, completamos uma família como gostaríamos que fosse desde o começo e acreditamos que nisso aqui, sob esse teto, existe um núcleo tão sólido quanto uma rocha milenar.

É claro que a todo momento, enquanto olhamos para ela, lembramos da Nina nesses primeiros dias. Os traços são parecidos, os olhos redondos e espertos, a boca rosada, as bochechas… E aí dá mais saudades ainda da Nina e mais nostalgia por vê-la agora, já aos oito anos, tão grande, tão independente, sendo e agindo como uma menina de oito anos, o que às vezes me faz lamentar. E me faz também querer participar mais do que resta da sua infância e aproveitar cada dia dessa vida fugaz.

Por que há algo em sua dependência que me faz agir de forma totalmente desprovida de qualquer interesse puramente pessoal. Por elas, eu não sou o egoísta que costumo ser. Por um instante, paro que agir como se eu estivesse no centro de tudo.

A paternidade é esse amor de entrega simples, de doação, porque não há troca, não há nada que se possa exigir do outro. Somos nós ali, madrugada adentro, acordando a cada 25 minutos para servir leite, para arrumar a manta, para conferir se estão mesmo respirando, para buscar água, para embalar no colo enquanto resmungam por alguma coisa que nenhum de nós sabe o que é. E até viramos compositores de novas canções de ninar com rimas simples e trocadilhos infames, assistimos aos filmes do Corujão com a TV no volume 1, cochilamos sentados no sofá da sala até o dia clarear pela janela. Com olheiras fundas, dores nas costas e os cabelos despenteados, nos surpreendemos sorrindo sozinhos tantas vezes e nos sentimos gratos, porque pudemos notar uma expressão diferente, porque ela deu um sorriso, porque nos olhou um instante nos olhos e aquilo tudo parece como o testemunhar de um milagre.

Porque é assim, queremos que sejam amados e não há um canal de comunicação, não há expectativa, não há ruídos. Esquecemos de nós para realizar uma outra pessoa que não faz ideia que recebe esse esforço. E quando notamos, realizados estamos nós.

Parece o jeito como todas as coisas deveriam ser, no fundo.

E as coisas vão acontecendo assim, numa hora que você não coloca na agenda e nem pode prever. De repente, aquela criatura começa a chorar e resmungar por alguma coisa qualquer, aí você resolve deitar um pouco e a colocar sobre seu peito. Ela dá um último resmungo, ajeita a cabeça, silencia, acalma e dorme. Dorme leve por horas. Você nem se mexe. E nem quer. Porque aquilo parece a mágica da existência humana. E quem é que explica uma coisa dessas? Por que a vida é essa coisa assim tão… tão tanto, tão aos montes dessas pequenas coisas que nos transbordam?

Esses momentos, as experiências… você sabe, os fragmentos de existência que justificam tudo. E que se nos oferecessem por um preço no mercado, não compraríamos, mas quando as vivemos já não trocamos por nada – ninguém pagaria por cinco minutos de filho dormindo no seu colo. Quanto você gastaria por aquele fim de tarde na pracinha empurrando uma criança num balanço? São nossa história, os pequenos trechos da nossa história. E é o tipo de coisa que nos preenche no fim das contas.

Pode me chamar de inocente, se quiser, mas esse é o tipo de acontecimento na nossa história que me faz acreditar em Deus. Um Deus pessoal mesmo. Não essa coisa cósmica e distante, não esse Criador abstrato do universo. Eu não consigo não acreditar que ele é alguém que contempla essa situação toda, que se comove e tudo. Porque Deus é o nosso Pai e também é o Filho.

Chego a ter vontade de erguer algum tipo de altar em momentos assim, só para, lá na frente, lá naquelas horas de mente ocupada pelas questões menos importantes do cotidiano (amanhã, quem sabe), eu possa olhar para esse memorial, relembrar o momento e voltar à essência. Meu altar são essas palavras, acho.

E minhas meninas são as chamas acesas que incandescem.

Faço então uma oração de gratidão, peço que sua luz nunca se apague, contemplo em sua pureza a face divina em sua expressão mais clara e bela, enquanto são crianças, enquanto a inocência é um reino em suas mentes e o filtro de seu olhar. E meu desejo mais íntimo é que elas possam preservar sua pureza, que sejam reflexo desse amor por toda sua vida, pregando paz por onde quer que passem, acreditando que são princesas, que podem voar, alegrando o mundo com seu riso, chorando a 120 decibéis e enxergando a vida, todos os dias, como se ela lhes fosse apresentada pela primeira vez.

Eu só quero estar lá por um tempo, só espero poder testemunhar. Quero sentar no chão em manhãs ensolaradas de verão, quero dedicar tempo, dividir experiências, tomar um lanche e estar junto enquanto elas crescem. Não para ter nada em troca. Não. Porque esse é um amor sem expectativas, é só entrega, é quando deixamos de estar no centro de tudo. É quando Deus nos deixa entender um pouco como ele é.

No fundo, parece mesmo o jeito como todas as coisas deveriam ser.

Simplifiquem

“(…) Vivemos mesquinhamente, como formigas, embora conte a fábula que fomos transformados em homens muito tempo atrás; como pigmeus lutamos com grous; é erro sobre erro, remendo sobre remendo; e nossa melhor virtude tem como causa uma miséria supérflua e desnecessária. Nossa vida se perde no detalhe. (…) Simplicidade, simplicidade, simplicidade! E digo: tenham dois ou três afazeres, e não cem ou mil; em vez de um milhão, contem meia dúzia, e tenham contas tão diminutas que possam ser registradas na ponta do polegar. Em meio ao oceano encapelado da vida civilizada, são tantas as nuvens, as tormentas, as areias movediças, os mil e um pontos a levar em consideração, que um homem, se não quiser naufragar e ir ao fundo sem jamais atingir seu porto, tem de navegar por cálculo e, para consegui-lo, precisa ser realmente bom de cálculo. Simplifiquem, simplifiquem.”

– Henry David Thoreau

Cenas domésticas – Todos dizem eu te amo

por Luiz Henrique Matos

sunshine

Um: Tenho o hábito de beber a água e deixar o copo vazio sobre a pia, bem ao lado do filtro. Depois, saio, faço minhas coisas, brinco um pouco, vejo a TV. Mais tarde, volto até a cozinha e noto que o copo está lá, cheio outra vez, no mesmo lugar em que eu o havia deixado. Eu acho estranho, bebo e ao sair em direção a sala dou de cara com a Nina, que me observava e sorri simpática: “Pai, você já bebeu a água que eu deixei pra você?”

Dois: Costumo dormir tarde aqui em casa. Em geral, quando me deito, a Manú e a Nina já estão na cama há algum tempo. Vez por outra, quando entro no banheiro para escovar os dentes, encontro minha escova repousando sutilmente sobre a pia, já com a pasta colocada. E é assim desde que nos casamos.

Três: Às vezes, eu vejo o sol nascer. Acordo cedo, preparo a lancheira da Nina para a escola, me arrumo, ajeito algumas coisas e, nesse meio tempo, percebo os primeiros raios de sol atravessando as frestas da janela. Então eu paro para espiar. Abro a cortina devagar e contemplo o dia nascendo, o sol, um ou outro pássaro cantando, a cena da cidade acordando, a lembrança das manhãs amarelas da infância. E isso muda toda a dinâmica do dia, sempre. Fico pensando que Deus faz essas coisas de propósito, ele insiste em me mimar.

Não custa nada, mas ninguém também precisaria fazer. Eu não preciso disso, elas tão pouco, mas existem gestos, esses assim, que tornam as coisas melhores. Não é uma carta ou uma declaração explícita de amor, nada espantoso ou absurdamente caro. Mas é aquilo que se faz para o outro, simples, com afeto, só porque é para o outro.

Já é noite e preciso descansar. Escovo os dentes pensando nisso tudo. Depois, faço a ronda pela casa e sigo até a cozinha para o último copo d’água antes do sono. Acendo a luz e o copo está lá, cheio, no lugar de sempre, com toda expressão de amor que isso carrega.

(Escrito em 19/12/2010 e 15/07/2011)

Sobre minimalismo, Roberto Carlos e a importância da higiene bucal

por Luiz Henrique Matos

Estava escovando os dentes quando um pensamento antigo voltou: se um dia eu tivesse que viver com o mínimo de coisas possível, uma boa escova de dentes certamente seria fundamental na bagagem. O creme nem tanto, até que dá pra me virar sem, acho. Então olhei para a pia do banheiro e comecei uma faxina mental. Do que realmente preciso? Como eu poderia sobreviver apenas com o estritamente necessário?

Esse tipo de coisa me perturba às vezes. A Manú diz que eu tenho TOC, aquela doença do Roberto Carlos (eu prefiro dizer que é do Jack Nicholson, por causa daquele filme com a Helen Hunt, fica melhor) e talvez eu até concorde, só de brincadeira, mas é um fato que, vez ou outra, eu me pegue organizando coisas, jogando tranqueiras no lixo e doando todo tipo de objeto que julgo desnecessário por hora. Em parte das vezes é altruísmo mesmo, mas em outros casos é pura mania.

Ainda escovava os dentes quando a coisa degringolou e acabei estendendo a pergunta para as outras coisas da vida. Pensando na casa toda, se eu precisasse abandonar nosso agradável apartamento numa emergência, levaria comigo o computador, meus livros (não todos, mas o cuidado com a estante de livros é uma compulsão que merece capítulo à parte), o carregador do celular e uma muda de roupas. A escova, pensando bem, eu não levaria, deixaria para comprar uma melhor no caminho.

Faço isso, vez ou outra. Fico tentando aplicar essa regra para tudo e imaginando como ia ser se desse mesmo para as coisas funcionarem assim. Se não fosse casado e morasse sozinho: colchão, TV, computador, microondas e geladeira. Vestuário: camiseta, calça jeans e tênis, sem meias. Pra sair de casa: carteira, celular e chave do carro (atualmente, ando relutando também com o relógio, que abandonei há um tempo, e com um pen drive que insiste em ser necessário em certas horas). O shopping center ideal: livraria, loja de esportes, loja de eletrônicos e um café. Meu escritório: mesa, cadeira, uma caneta, computador e telefone. E assim vai, eu aspiro uma vida minimalista. Minimalista e impecavelmente organizada por ordem alfabética, cores e/ou gênero (ou as todas as anteriores).

– Amor, o que você tá fazendo?
– Separando umas roupas pra dar.
– Ah é? Preciso fazer isso também, mas depois eu vejo.
– É uma boa, né?
– É… Mas, nossa, tudo isso? O que tem nessas sacolas?
– Só umas coisas que a gente não usa mais.
– A gente?
– …
– Henrique, o que é aquela blusinha… Henrique… você vai dar as MINHAS roupas também!?

Eu aspiro uma vida minimalista e impecavelmente organizada por ordem alfabética, cores e/ou gênero para os outros também.

Talvez eu precise de ajuda.

* * *

O pior de tudo pra mim é que, por mais que eu tente, a mente nunca funciona assim. Eu bem que me esforço mas não consigo reduzir os papéis, compromissos e a lista de pendências que carrego no bolso. A cada ano que passa, as coisas vão acumulando e complicando gradativamente.

Do que eu preciso, de fato, minimamente, para viver? Faço a pergunta e acho que isso traduz um pouco o que, no fim das contas, realmente importa. A resposta que procuro é outra, nada material, e eu já tenho isso, sei que tenho. Deveria investir meu tempo dando atenção ao que vale de verdade, desfrutando do essencial, ao invés de ficar olhando para o que é descartável, criando listas e decidindo se devo arrumar meu dinheiro na carteira com a cara da Princesa Isabel virada para frente ou para trás.

Família, amigos, Deus. Não dá para ser minimalista com pessoas. E nessa hora, devo dizer que a mania toda não se aplica aqui, não tento cortar vínculos para simplificar as coisas e tão pouco classifico meus amigos em categorias, listas e perfis. Acumular bons relacionamentos é um caos agradável e reconfortante.

A mente funciona a mil, as coisas ficam cada vez mais aceleradas, o tempo parece escoar pelo ralo – e pensar que tenho as mesmíssimas 24 horas que meu avô usava para viver, apesar de os dias parecerem ter medidas tão diferentes. E quando a gente pára pra tentar entender que coisas, duas ou três, são totalmente necessárias para a vida toda funcionar, faz sentido procurar por algo, ou alguém, ou Alguém, que nos supra. Não existe o “cada um por si”, existe o Ele por nós, com um par de braços estendidos para nos apascentar.

Quando os olhos finalmente enxergam – e se fixam – naquela imagem nítida, quando o passo toma rumo no caminho certo e algumas peças se encaixam (ou não, agora pouco importa), então, o equilíbrio todo, a questão da dúvida existencial e da angústia, se transformam em quietude, num sorriso franco e uma paz confortável.

Eu cuspo a espuma do creme dental que promete deixar meus dentes brancos agora (isso, agora!, está escrito na embalagem), volto para o quarto, a janela está aberta para refrescar um pouco e minhas meninas dormem tranqüilas. Resolvo abrir o computador para escrever sobre a importância da higiene bucal e decido que hoje, só hoje, vou largar a toalha molhada ali em cima da cômoda e descansar em paz.

Tenho o que preciso.

Simplicidade e sabedoria (Rubem Alves)

Texto de Rubem Alves com o qual me deparei ontem, buscando uma outra coisa pelo Google. Pois é, ainda bem que minha busca deu errado.

Sobre simplicidade e sabedoria

Pediram-me que escrevesse sobre simplicidade e sabedoria. Aceitei alegremente o convite sabendo que, para que tal pedido me tivesse sido feito, era necessário que eu fosse velho.

Os jovens e os adultos pouco sabem sobre o sentido da simplicidade. Os jovens são aves que voam pela manhã: seus vôos são flechas em todas as direções. Seus olhos estão fascinados por 10.000 coisas. Querem todas, mas nenhuma lhes dá descanso. Estão sempre prontos a de novo voar. Seu mundo é o mundo da multiplicidade. Eles a amam porque, nas suas cabeças, a multiplicidade é um espaço de liberdade. Com os adultos acontece o contrário. Para eles a multiplicidade é um feitiço que os aprisionou, uma arapuca na qual caíram. Eles a odeiam, mas não sabem como se libertar. Se, para os jovens, a multiplicidade tem o nome de liberdade, para os adultos a multiplicidade tem o nome de dever. Os adultos são pássaros presos nas gaiolas do dever. A cada manhã 10.000 coisas os aguardam com as suas ordens (para isso existem as agendas, lugar onde as 10.000 coisas escrevem as suas ordens!). Se não forem obedecidas haverá punições.

No crepúsculo, quando a noite se aproxima, o vôo dos pássaros fica diferente. Em nada se parece com o seu vôo pela manhã. Já observaram o vôo das pombas ao fim do dia? Elas voam numa única direção. Voltam para casa, ninho. As aves, ao crepúsculo, são simples. Simplicidade é isso: quando o coração busca uma coisa só.

Jesus contava parábolas sobre a simplicidade. Falou sobre um homem que possuía muitas jóias, sem que nenhuma delas o fizesse feliz. Um dia, entretanto, descobriu uma jóia, única, maravilhosa, pela qual se apaixonou. Fez então a troca que lhe trouxe alegria: vendeu as muitas e comprou a única.

Na multiplicidade nos perdemos: ignoramos o nosso desejo. Movemo-nos fascinados pela sedução das 10.000 coisas. Acontece que, como diz o segundo poema do Tao-Te-Ching, “as 10.000 coisas aparecem e desaparecem sem cessar.“ O caminho da multiplicidade é um caminho sem descanso. Cada ponto de chegada é um ponto de partida. Cada reencontro é uma despedida. É um caminho onde não existe casa ou ninho. A última das tentações com que o Diabo tentou o Filho de Deus foi a tentação da multiplicidade: “Levou-o ainda o Diabo a um monte muito alto, mostrou-lhe todos os reinos do mundo e a sua glória e lhe disse: ‘Tudo isso te darei se prostrado me adorares.’“ Mas o que a multiplicidade faz é estilhaçar o coração. O coração que persegue o “muitos“ é um coração fragmentado, sem descanso. Palavras de Jesus: “De que vale ganhar o mundo inteiro e arruinar a vida?“ (Mateus 16.26).

O caminho da ciência e dos saberes é o caminho da multiplicidade. Adverte o escritor sagrado: “Não há limite para fazer livros, e o muito estudar é enfado da carne“ (Eclesiastes 12.12). Não há fim para as coisas que podem ser conhecidas e sabidas. O mundo dos saberes é um mundo de somas sem fim. É um caminho sem descanso para a alma. Não há saber diante do qual o coração possa dizer: “Cheguei, finalmente, ao lar“. Saberes não são lar. São, na melhor das hipóteses, tijolos para se construir uma casa. Mas os tijolos, eles mesmos, nada sabem sobre a casa. Os tijolos pertencem à multiplicidade. A casa pertence à simplicidade: uma única coisa.

Diz o Tao-Te-Ching: “Na busca do conhecimento a cada dia se soma uma coisa. Na busca da sabedoria a cada dia se diminui uma coisa.“

Diz T. S. Eliot: “Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento?“

Diz Manoel de Barros: “Quem acumula muita informação perde o condão de adivinhar. Sábio é o que adivinha.“

Sabedoria é a arte de degustar. Sobre a sabedoria Nietzsche diz o seguinte: “A palavra grega que designa o sábio se prende, etimologicamente, a sapio, eu saboreio, sapiens, o degustador, sisyphus, o homem do gosto mais apurado. “A sabedoria é, assim, a arte de degustar, distinguir, discernir. O homem do saberes, diante da multiplicidade, “precipita-se sobre tudo o que é possível saber, na cega avidez de querer conhecer a qualquer preço.“ Mas o sábio está à procura das “coisas dignas de serem conhecidas“. Imagine um bufê: sobre a mesa enorme da multiplicidade, uma infinidade de pratos. O homem dos saberes, fascinado pelos pratos, se atira sobre eles: quer comer tudo. O sábio, ao contrário, para e pergunta ao seu corpo: “De toda essa multiplicidade, qual é o prato que vai lhe dar prazer e alegria?“ E assim, depois de meditar, escolhe um…

A sabedoria é a arte de reconhecer e degustar a alegria. Nascemos para a alegria. Não só nós. Diz Bachelard que o universo inteiro tem um destino de felicidade.

O Vinícius escreveu um lindo poema com o título de “Resta…“ Já velho, tendo andado pelo mundo da multiplicidade, ele olha para trás e vê o que restou: o que valeu a pena. “Resta esse coração queimando como um círio numa catedral em ruínas…“ “Resta essa capacidade de ternura…“ “Resta esse antigo respeito pela noite…“ “Resta essa vontade de chorar diante da beleza…“. Vinícius vai, assim, contando as vivências que lhe deram alegria. Foram elas que restaram.

As coisas que restam sobrevivem num lugar da alma que se chama saudade. A saudade é o bolso onde a alma guarda aquilo que ela provou e aprovou. Aprovadas foram as experiências que deram alegria. O que valeu a pena está destinado à eternidade. A saudade é o rosto da eternidade refletido no rio do tempo. É para isso que necessitamos dos deuses, para que o rio do tempo seja circular: “Lança o teu pão sobre as águas porque depois de muitos dias o encontrarás…“ Oramos para que aquilo que se perdeu no passado nos seja devolvido no futuro. Acho que Deus não se incomodaria se nós o chamássemos de Eterno Retorno: pois é só isso que pedimos dele, que as coisas da saudade retornem.

Ando pelas cavernas da minha memória. Há muitas coisas maravilhosas: cenários, lugares, alguns paradisíacos, outros estranhos e curiosos, viagens, eventos que marcaram o tempo da minha vida, encontros com pessoas notáveis. Mas essas memórias, a despeito do seu tamanho, não me fazem nada. Não sinto vontade de chorar. Não sinto vontade de voltar.

Aí eu consulto o meu bolso da saudade. Lá se encontram pedaços do meu corpo, alegrias. Observo atentamente, e nada encontro que tenha brilho no mundo da multiplicidade. São coisas pequenas, que nem foram notadas por outras pessoas: cenas, quadros: um filho menino empinando uma pipa na praia; noite de insônia e medo num quarto escuro, e do meio da escuridão a voz de um filho que diz: “Papai, eu gosto muito de você!“; filha brincando com uma cachorrinha que já morreu (chorei muito por causa dela, a Flora); menino andando à cavalo, antes do nascer do sol, em meio ao campo perfumado de capim gordura; um velho, fumando cachimbo, contemplando a chuva que cai sobre as plantas e dizendo: “Veja como estão agradecidas!“ Amigos. Memórias de poemas, de estórias, de músicas.

Diz Guimarães Rosa que “felicidade só em raros momentos de distração…“ Certo. Ela vem quando não se espera, em lugares que não se imagina. Dito por Jesus: “É como o vento: sopra onde quer, não sabes donde vem nem para onde vai…“ Sabedoria é a arte de provar e degustar a alegria, quando ela vem. Mas só dominam essa arte aqueles que têm a graça da simplicidade. Porque a alegria só mora nas coisas simples.

(Concerto para corpo e alma, p. 09)

O original está aqui.

Pra quê?

por Luiz Henrique Matos

Sabe, acho que a competição toda já passou do ponto para mim.

É que chega um hora em que as pessoas ao redor começam a te observar e cobrar um “próximo passo”. Nessa altura do jogo, já não basta sua capacidade, talento e empenho para que o mérito lhe seja outorgado, agora é preciso vencer, é hora de arregaçar as mangas e partir para a luta. Como se a vida fosse um campo de batalha e nós, combatentes ambiciosos.

Desculpe, mas eu não quero. Peço perdão também pela imaturidade dessas palavras, mas às vezes a infantilidade ergue a voz petulante. Pensando bem, eu nem diria que é infantil, isso tudo é coisa de adolescente, que acredita ter a razão no bolso do shorts e o direito de se expressar e reivindicar sua… sua… bem, adolescentes só querem ter o direito de alguma coisa, não importa exatamente o que seja.

E eu tenho muito disso, admito. Eu quero ter o direito de não precisar provar minhas habilidades a todo instante – até porque, é fato, não sou hábil em muitas coisas, muito menos a cada instante.

Quero viver. Quero amar, estar, crer, ser. Simplesmente ser.

Quero desfrutar a boa vida ao lado da mulher que amo, dos meus filhos, da família, dos amigos, em Deus.

E quero ter o direito de estar errado sem que isso me pese como condenação.

Quero parar de competir, porque acho que não vale a pena e, no fim das contas, isso não é vitória coisa nenhuma.

Eu quero acreditar – e tenho esse direito – que ao invés de me estapear com alguém para ocupar o lugar mais alto, posso lhe estender a mão, chamá-lo de irmão e finalmente estarmos, todos, na posição mais nobre.

Jesus disse: “do que adiantará ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?”.

Quando crescer, eu quero é ganhar a vida.

Os riscos da prosperidade

por Luiz Henrique Matos

O dono do mundo - Chaplin

Há algumas semanas escrevi e postei um texto chamado “Em defesa da crise”. Era uma análise superficial e pessoal sobre o que está acontecendo com nosso mundo.

Curioso foi que, há alguns dias, revisava minha pasta de rascunhos e achei um de 2007 com algumas observações pessoais sobre a pujança e prosperidade pela qual passava nosso mundo. O título do texto era “Os riscos da prosperidade”. Detalhe: quase um ano antes de a crise financeira estourar.

Vão aqui os trechos do texto que nunca terminei. Na época em que bolha, para mim, ainda era definição de coisinhas de água com sabão que solto no ar para a Nina brincar. Na época em que subprime, para mim, já tinha o mesmo signifcado que hoje ainda tem: não faço a menor idéia!

Peraí, deixe-me explicar: isso não é uma apologia à pobreza, isso é um convite à simplicidade.

Quando por muito tempo deixamos de passar por alguma provação, nossa tendência natural é concluir que somos auto-suficientes naquela questão. Quando nossos recursos são suficientes para o que precisamos, passamos a acreditar que já não dependemos de Deus e sim de um talento ou esforço naturais. Na verdade, tudo é providência divina. E à medida que enriquecemos, nossa tendência maior é o tédio, achar que se tornou obrigatório aquilo que antes nos seria um luxo.

Assim também, uma sociedade próspera deixa de dar valor a questões elementares e passa a vagar sem um norte que a dirija.

Dizemos que nos sentimos vazios. Mas nossas almas não estão vazias, elas estão infladas.

A simplicidade da vida com o Pai é a segurança da direção de vida que precisamos.

Humildade. A prosperidade sem consciência mata esse valor.