Cenas domésticas – Todos dizem eu te amo

por Luiz Henrique Matos

sunshine

Um: Tenho o hábito de beber a água e deixar o copo vazio sobre a pia, bem ao lado do filtro. Depois, saio, faço minhas coisas, brinco um pouco, vejo a TV. Mais tarde, volto até a cozinha e noto que o copo está lá, cheio outra vez, no mesmo lugar em que eu o havia deixado. Eu acho estranho, bebo e ao sair em direção a sala dou de cara com a Nina, que me observava e sorri simpática: “Pai, você já bebeu a água que eu deixei pra você?”

Dois: Costumo dormir tarde aqui em casa. Em geral, quando me deito, a Manú e a Nina já estão na cama há algum tempo. Vez por outra, quando entro no banheiro para escovar os dentes, encontro minha escova repousando sutilmente sobre a pia, já com a pasta colocada. E é assim desde que nos casamos.

Três: Às vezes, eu vejo o sol nascer. Acordo cedo, preparo a lancheira da Nina para a escola, me arrumo, ajeito algumas coisas e, nesse meio tempo, percebo os primeiros raios de sol atravessando as frestas da janela. Então eu paro para espiar. Abro a cortina devagar e contemplo o dia nascendo, o sol, um ou outro pássaro cantando, a cena da cidade acordando, a lembrança das manhãs amarelas da infância. E isso muda toda a dinâmica do dia, sempre. Fico pensando que Deus faz essas coisas de propósito, ele insiste em me mimar.

Não custa nada, mas ninguém também precisaria fazer. Eu não preciso disso, elas tão pouco, mas existem gestos, esses assim, que tornam as coisas melhores. Não é uma carta ou uma declaração explícita de amor, nada espantoso ou absurdamente caro. Mas é aquilo que se faz para o outro, simples, com afeto, só porque é para o outro.

Já é noite e preciso descansar. Escovo os dentes pensando nisso tudo. Depois, faço a ronda pela casa e sigo até a cozinha para o último copo d’água antes do sono. Acendo a luz e o copo está lá, cheio, no lugar de sempre, com toda expressão de amor que isso carrega.

(Escrito em 19/12/2010 e 15/07/2011)

Ela ainda cabe no meu colo

por Luiz Henrique Matos

No próximo fim de semana ela fará quatro anos. Eu posso jurar que nunca imaginei esse momento da vida dela chegando. Crianças de quatro anos para mim costumavam parecer grandes demais perto do frágil bebê que eu carregava nos braços por aí. Mas agora eu tenho uma menina em casa, a cada dia com mais jeitos, vestidos, vontades, brilhos e argumentos, mandando em mim desde o princípio das eras, tal qual a mãe – e antes que a coisa esquente por aqui, reconheço que obedeço satisfeito a ambas.

De um modo inexplicavelmente rápido e fora de controle, as coisas foram acontecendo. Ainda há pouco éramos um casal de namorados decidindo sobre o cinema de sexta, o curso na faculdade, a data do noivado, o bairro onde morar, o nome do bebê, a maternidade onde ela nasceria… vivíamos momentos tão diferentes em nossas vidas. Hoje, mal conseguimos lembrar o que era viver – ou que graça poderia ter uma casa – sem um filho por perto.

Toda a rotina quadrada se tornou plena em si. E o cotidiano de pai de família que poderia talvez parecer a alguém o resigno de um sujeito acomodado, se tornou para mim a maior conquista a que eu poderia ter acesso. Em geral, são nesses preciosos momentos, que esse mesmo alguém poderia chamar de comuns, que se pode observar a beleza inesquecível de certos detalhes. Aquele tipo de coisa rara que, enquanto acontece você já sabe que jamais esquecerá.

Estou vendo TV ou lendo algo no sofá quando percebo que ela vem lá do quarto pelo corredor cantarolando e pulando (se tem algo que os livros e o Google não explicam mas que é uma espécie de lei natural na formação das crianças é que, antes de aprender a andar civilizadamente, lá pelos 17 anos, elas praticamente só se locomovem pulando ou correndo). Então, ela surge na sala rodopiando e plana como uma bailarina por sobre o piso de madeira. E dançando, com caras, bocas, tropeços e poses, enche de graça toda uma semana. A mãe, aluna de balé durante a infância, se encanta e ensina o “pli-ê, es-tica” por algumas horas. Eu, aspirante a Carlinhos de Jesus, balanço a cabeça fora de ritmo e babo em minha pequena cria.

Eu a chamo de “bailanina”.

Se ela pudesse, passaria os dias vestida com aquele colan cor-de-rosa, o par de sapatilhas, o tutú rodado e o cabelinho penteado em coque.

E se tem uma coisa que mexe comigo, é que eu amo essa espontaneidade dela, o mundo maravilhoso, infantil e imaginário que constrói e me convida para participar quando estou por perto. Posso observar seu olhar curioso, a descoberta de algo novo e, nessas horas, eu gostaria que ela soubesse o quanto isso é precioso, o quanto sua dança tão pura é capaz de mover, que um mundo inteiro gira ao ritmo dessa beleza frágil, pequena e atrapalhada.

Seus passos. Aos saltos, ela atravessa a sala e os anos.

Já faz um tempo, estávamos viajando em família quando entramos no elevador de uma loja. A Nina dormia no meu colo, a Manú a cobria com um casaco e uma senhora nos observava, sorrindo com um jeito meio melancólico, até que disse: “E na próxima semana ela fará 20 anos”.

Eu sei, no duro, que um dia a fantasia vai acabar. Logo, ela terá mais papéis a cumprir, assumirá compromissos, responsabilidades… e essa essência, o que a formou de fato, será uma lembrança na rotina apressada. Logo, ela vai se dar conta que entre milhares de defeitos, seu pai também não dança como o Baryshnikov, não tem respostas para todas as questões da humanidade e é mais baixo e fraco do que ela pensou quando pequena. E então, eu já não serei mais “o cara”, o príncipe, o homem com quem ela quer se casar e que sempre a socorre quando ninguém mais consegue.

Talvez Deus também tenha esse tipo de sentimento em relação a nós. No dia em que vai embora toda aquela espontaneidade de criança, seu coração deve apertar. Vamos costurando nossas complexas teias de problemas, relacionamentos, trabalho, família, círculos sociais e, de repente, o tempo se torna nosso recurso mais escasso. Mergulhamos na rotina e depois nos debatemos para tentar entender onde foi que erramos. Então saímos a procura de algo que nos preencha, buscamos um tipo de felicidade e simplicidade que parece inatingível mas que, de alguma forma, também pareceu tão real e próxima um dia.

Acho que Deus observa tudo isso e procura formas de nos convidar para voltar. “Dance”, ele deve dizer. Nós mudamos nossa visão de mundo, mas Deus não muda sua visão sobre nós. E nós insistimos em pensar que o ser humano se lança eternamente numa busca pessoal por Deus, mas o que as escrituras nos contam é sobre a história de Deus, o Pai incansável, em busca do homem.

Ela será sempre uma menininha para mim.

E eu gostaria que ela soubesse, um dia, que independentemente das escolhas que faça e da mulher que se torne, que ela sempre poderá encher um pai de alegria com sua presença. Que não importa sua estatura ou idade, haverá um colo e dois braços onde se abrigar. Talvez eu não tenha conselhos sábios ou as respostas para todas as questões da humanidade, mas eu vou tentar acompanhá-la numa dança.

Já faz alguns dias, estávamos chegando numa festa de aniversário e ela ainda dormia em meu colo. Ficou um tempo naquele estado confuso, ainda acordando e eu, meio sem jeito, segui cumprimentando as pessoas. Um sujeito veio até mim, estendeu a mão educadamente e em seguida resolveu fazer um gracejo:

– Ei, mocinha, você não acha que já está grande demais para ficar no colo?

Sonolenta, ela só meneou a cabeça. Eu nada disse, apenas sorri, olhei para o homem e desejei no íntimo: “Espero que não… tomara que nunca esteja.”

Eu espero. Sento-me no sofá, no mesmo canto de sempre, de onde assisto TV, leio sob a luz e olho a cidade pela janela. No silêncio, eu alimento minha expectativa, eu aguardo o barulho dos passos, tento ouvir sua voz de menina ao fundo e ver surgir pelo corredor os saltos da minha bailarina.

Que tenha música, que seja com festa, que Deus a preencha e o amor a inspire em cada pequeno passo. Que a vida a contemple.


(Esse texto faz parte da série Paternidade)

Cenas domésticas – Em nome do pai

Brincando no quarto:

– Então, mocinha, como é seu nome mesmo?
– Nina.
– Hmm. Mas e o meu nome, você sabe?
– Sei, é Loizenrique!
– Hahah, isso aí. Mas são dois nomes, filha: Luiz e Henrique. Tem gente que me chama de Luiz, tem gente que chama Henrique, outros chamam de Rique…
– E tem gente que te chama de papai!

Caminhada

por Luiz Henrique Matos

Nas últimas semanas tenho vivido uma experiência que não experimentava há muito tempo: caminhar. Não falo de caminhadas como atividades físicas – que, a propósito, também não faço com a assiduidade que deveria – mas como meio de locomoção básico e fundamental entre minha casa e o escritório.

Devo dizer que não tem sido um ato voluntário. Meu carro está na oficina e meio que aproveitando a situação atípica, resolvi que faria todo trajeto que fosse possível andando.

No fim, noto que tem sido bom. Tirando um ou outro desconforto com o qual eu já não estava habituado – tipo dores nas panturrilhas, pessoas me apertando no trem e a multiplicidade de odores se misturando no ambiente – tenho gostado desses momentos. Em 20 dias a pé, já notei algum avanço físico. Venho me pesando com freqüência e, pelas contas, perdi cerca de 300 gramas. É praticamente a porção de queijo prato fatiado que compro na padaria.

Eu poderia arriscar aqui uma seqüência de metáforas entre a caminhada e a vida (é incrível como é frutífero pensar nesses clichês, posso imaginar uma série deles), mas isso seria muito lugar-comum e acho que vou te poupar disso. Acho.

O que tem sido interessante, principalmente, é a oportunidade de ficar em silêncio e poder me concentrar em uma única atividade durante um tempo. É fato que o período da caminhada não pode ser abreviado, existe uma distância a ser percorrida, eu tenho um limite de velocidade na minha passada e então não há muito que se possa fazer senão ligar a música, colocar um pé na frente do outro e seguir em frente.

Bom, parece meio idiota, mas para alguém que passa a maior parte do dia entretido com uma dezena de atividades simultâneas, isso é um bom exercício de foco. No mais, o que me resta é gastar esses minutos pensando e observando o cenário ao redor.

E acho que posso dividir as coisas dessa forma:

Um: Pensar

O que poderia ser um exercício de auto-conhecimento está sendo, na verdade, a parte menos produtiva da história toda. Eu costumava acreditar que teria oportunidade para meditar e refletir sobre a vida. Pensei que faria minhas orações e tomaria decisões importantes nesse tempo de quietude. Mas tem sido um tanto frustrante por esse ponto. Eu mal começo a considerar alguma situação específica e numa fração de tempo minha mente entra num vazio completo. Quando desperto desse estado, não faço a menor idéia do que se passou, penso em três milhões de coisas e nada que possa reter, é como se o cérebro entrasse em hibernação.

Comecei a ficar preocupado. Até que peguei um livro do escritor Haruki Murakami em que ele comenta sobre o que se passa em sua mente enquanto treina corrida: nada. Ele chama isso de vácuo. E saber que alguém também sofre do mesmo mal é algum consolo, principalmente porque ele é japonês e esses caras japoneses costumam ser bem focados. Mas, por outro lado, ele tem 60 anos, corre 10 quilômetros e nada 1500 metros todos os dias. Nem que eu fosse o Secretário Geral das Nações Unidas acho que conseguiria pensar em coisas produtivas por tanto tempo.

Dois: Observar

Se a reflexão tem sido frustrante, acho que um hábito meio vergonhoso que adquiri tem uma parte de responsabilidade nisso: é a mania de ficar olhando para as pessoas e tentar imaginar a vida que levam. Entenda, não é nenhum julgamento preconceituoso. É que nas ruas, você cruza com todo tipo de gente, fica perto de uma porção de desconhecidos e acaba sendo inevitável ceder à curiosidade de criar personagens a partir desse tipo de suposição.

Se me permite…

Tem um homem, ele trabalha como gari e varre a calçada de uma avenida por onde passa gente e carro sem parar. Eu o vejo quase todos os dias, tem a pele escura, um ou dois dentes faltando no sorriso, bigode ralo, vassoura nas mãos e o uniforme de cor laranja berrante. Ele é nordestino. Fico tentando imaginar as circunstâncias que o trouxeram para o Sudeste. O que será que ele pensa sobre o próprio ofício? Entenda, varrer o pó de uma avenida em São Paulo é algo como enxugar gelo na praia e ele faz isso por oito horas, diariamente. Penso então que quando acaba o expediente, ele toma um banho, troca de roupa e segue para sua casa onde deve ser o herói de alguns garotos. A esposa e os filhos estão esperando em casa pelo pai que chega, já à noite, cansado do dia na rua. Faz sua refeição, checa a lição de casa do mais velho, assiste a novela com a patroa e dorme em paz num quarto bem pequeno. Esse homem deve jogar um futebol com seus meninos no sábado a tarde. Pode ser que ele ligue para os parentes em sua cidade natal de vez em quando, pode ser que sonhe ganhar a vida na cidade para juntar algum dinheiro e voltar para sua terra um dia.

Teve um casal. Ambos desajeitados, brancos, extremamente altos e um pouco obesos. Andavam bem rápido. Eu os vi descendo a rua desde lá de cima, com as mãos dadas e dedos entrelaçados, conversavam animadamente e a toda hora os olhares se cruzavam e sorriam. Deviam namorar há poucas semanas. Pareciam tímidos. E pensei que possivelmente estiveram apaixonados por um tempo antes de se declararem. Deviam trabalhar no mesmo escritório, mas não tinham coragem de se convidar para um café, até que um dia ele mandou o MP3 de uma canção do Elvis Costello para ela por e-mail e foi aí que as coisas começaram. Estavam apressados para ir ao cinema ver qualquer filme em cartaz. Eles ficarão noivos daqui um tempo, farão uma viagem pela Irlanda quando casarem, demorarão para ter filhos, mas quando vierem, ela vai largar o trabalho para se dedicar à casa.

E tinha também uma mulher e sua filha. Eu as vi sentadas num vagão de trem meio vazio numa manhã de terça-feira. A menina de cabelo cacheado, comportada, bonita, banho recém tomado. Tinha aquele olhar inocente, devia ter sete ou oito anos. Carregava sua boneca num braço e a própria mochila sobre o colo, porque a mãe já levava uma carga pesada demais. As sacolas de compras, uma mala, as blusas para caso esfriasse, um guarda-chuva. Ela tinha o olhar cansado, olhava ao redor procurando uma resposta. Queria entender porquê tudo isso com ela, porquê ele foi embora depois de tantas promessas, sempre queria, mas já havia se conformado. Aquela era a vida, que a menina aprendesse e não precisasse passar pelo mesmo. Era assim que ela demonstrava seu afeto. Essa era sua luta diária, sua esperança e sua busca. Ela queria acreditar que tinha um destino naquele trajeto.

É assim que eu gasto meu tempo. Meu rico tempo que deveria ser rico e cheio de meditações, veja você. Mas por favor, entenda, não quero fazer julgamentos e nem acho que esteja em posição para isso. Por isso, me constranjo. Fico encabulado porque acho que é bem possível que alguém pense esse tipo de coisa de mim também. Tenho isso como algo certo. E, sabe, se as pessoas tiverem essa mesma mania, eu devo ser um alvo bem estranho. Eu penso um pouco nisso. Se alguém fica curioso olhando para um sujeito como eu, o que deve pensar? Aí começam as neuras todas.

Geralmente, quando minha mente chega nesse ponto, é o momento em que percebo o quão improdutivo é o tal do estado de vazio em que me afundo. Esse é o limite. E eu penso: sério mesmo, Henrique? Com tantos problemas para resolver e tanta coisa importante em que se concentrar, você está mesmo pensando nisso agora? E aí então o ciclo recomeça.

* * *

Tem sido assim em todos esses dias. Na ida e na volta do trabalho, nos deslocamentos até um comércio ou a oficina para acompanhar o conserto do carro. Vou andando. Minha rotina foi sensivelmente alterada e isso tem tido algum efeito benéfico sobre mim.

O trecho mais longo da caminhada é na volta para casa. Desço numa estação de trem das proximidades e caminho por pouco mais de 40 minutos até abrir a porta da sala. Dou de cara com as duas expressões risonhas e os beijos capazes de restaurar o cansaço da maratona. É nesse instante exato que o tal vazio da mente se preenche com a razão da existência do homem – esse homem, pelo menos. Em um minuto assim, um minuto que qualquer sujeito vive, pensei certo dia que se alguém com quem cruzei pela rua fizesse mesmo de mim algum julgamento, se quisesse encontrar um adjetivo para me definir, poderia ter uma palavra em mente: afortunado.

É uma boa palavra. É a minha riqueza. É um lugar-comum, eu sei. Mas é um bom caminho para se percorrer todos os dias.

Reunião de pais

por Luiz Henrique Matos

Na semana passada, fui à minha primeira reunião de pais como pai. É bem estranho isso. Já sou pai há um tempo, mas ainda parece que a reunião de pais e mestres é algo em que minha mãe deveria comparecer e não eu. E por motivos que não vem ao caso agora, eu costumava ter um pouco de medo desses eventos quando era garoto.

Mas agora as coisas são diferentes. No mês que vem eu faço 30 anos e preciso amadurecer. Eu lembro do meu pai quando ele tinha essa idade. Já tínhamos uma casa, um carro bacana e ele usava um bigode igual ao do Magnum. No meu aniversário, acho que vou deixar crescer o bigode.

Naquela manhã, a Manú tinha um compromisso importante e acabou que fui até a escola, me fazendo de desinteressado, mas curioso até as últimas para saber o que a Tia Mariza iria me contar sobre a Nina.

Gastei menos de uma meia-hora na sala de aula, sentado numa cadeirinha de uns 10 centímetros de altura, preenchendo formulários e vendo os trabalhos da classe. Até que a professora me chamou. Eu achei que ouviria uma porção de novidades sobre minha filha e que finalmente descobriria o que os professores tanto falam para os pais nessas reuniões bimestrais, mas não tinha nada demais. Por esse ponto, foi meio decepcionante. Nenhuma confidência, nada de conspirações ou planos arquitetados. No fim, a reunião de pais e mestres é só uma reunião entre pais e mestres.

E a única coisa que ouvi sobre minha filha é que ela é sociável, gosta de cantar e dançar, de ouvir histórias e gasta um tempão desenhando, concentrada nas cores e no papel. “É essa coisa da imaginação, da mente do artista que as crianças tem”, definiu a Tia Mariza.

Saí de lá sem novidades pra contar. Nossa Nina é na escola exatamente como é em casa.

Nem digo como isso é algo confortável de se ouvir. Entenda, o período que minha filha passa no colégio é o único tempo em que ela está fora do meu “controle”. Não que ela esteja, de fato, em algum minuto, mas você sabe o que eu quero dizer. Ali, longe do meu olhar, ela é livre para não ser como eu peço que seja quando está ao meu lado. Distante das asas que os cobrem, filhos podem ser como bem entenderem. E o que são, suas atitudes livres, define de certa forma o seu caráter.

São princípios, como costumo insistir em outras conversas. O que o filho aprende do pai, pratica na vida.

Quando a Manú estava grávida, nos matriculamos num curso de educação de filhos. É verdade que hoje não me lembro de muita coisa do que aprendemos ali, mas foi importante na ocasião. Lembro de uma aula em especial, quando o professor nos disse que “os filhos são como uma folha em branco e cabe aos pais preencher esse espaço com as verdades em que acreditam para a formação do caráter da criança”. Não bastasse isso já ser apavorante o suficiente, ele ainda completou: “o espaço que vocês não preencherem, o mundo preencherá”. E eu tenho perdido algumas horas de sono com esse negócio desde então.

Minha filha, uma folha em branco, um lápis na mão e fiquei imaginando que ela seria uma história que a Manú e eu precisaríamos escrever. Pelo menos as primeiras linhas, pelo menos algo que registre os princípios e tenha algo bom para contar, um estilo, estrutura, forma, conteúdo… Mas não, eu não consigo. Não tenho o direito de determinar o que será sua vida. Acho que posso ajudá-la a descobrir. Talvez apontar um caminho, contar algumas experiências, mas é ela, essencialmente, quem vai escolher que direção tomar.

“Você pode pegar as obras de arte da Nina e levar, está bem? Olha aquela ali que bonita”. A professora apontou para os desenhos fixados na parede. Procurei pelas pinturas que tinham o nome dela assinado, recolhi uma a uma, juntei num envelope grande e, meio sem jeito, coloquei na mochila.

Caminhei da escola até a estação de trem e, no caminho, pensava nessa história toda e mantinha a postura e os passos alinhados, com medo de que qualquer tropeço ou distração pudesse pôr em risco aquelas cartolinas desenhadas. Eu ia carregando os desenhos como um troféu, exibia as pontas das folhas coloridas que ficaram pra fora da bolsa como medalhas, uma jóia, me sentindo o Frodo levando o anel precioso.

Não os criamos para nós mesmos, isso é bem difícil de admitir. E acredito que parte da beleza da criação e da escolha de Deus em nos fazer como somos, seja justamente essa liberdade assustadora que às vezes faz a gente querer correr por aí só para sentir o vento no rosto e, em outras horas, voltar rápido para o aconchego dos braços do nosso Pai. Sabe, essas coisas. Precisamos do Pai para nos dar direções, mas acho que seu amor é tão grande que ele não se mete nas nossas decisões sem ser consultado. Ele confia que vamos fazer as escolhas certas com aquilo que aprendemos por caminhar ao seu lado.

Os filhos refletem o caráter daquele que os criou. O que vemos em casa, define em muito o que somos. Daí a importância de se ter para onde voltar. Daí a importância de se ler menos esses manuais de educação de filhos e um pouco mais as histórias que os encantam.

Eu queria ser um pouco assim para minha filha. Isso eu tento aprender. Eu queria ser um filho que faz as coisas certas para ser um pai decente para a Nina. Percorro de volta essa distância para tentar espelhar sabedoria e caráter. Eu costumo pedir a Deus que, se possível, sejam corrigidos os traços imperfeitos que tenho e que ele me deixe apresentável para minha família, para ser um bom pai, para ser divertido, para ser o seu par numa brincadeira, num baile, na entrada da igreja, na caminhada até Cristo. Até que se abra uma trilha que ela percorra sozinha, nos passos que determinar para si, mas lembrando sempre – aí eu torço – o caminho de volta sempre que for preciso. Eu estarei aqui.

Não tem muito que eu possa fazer, a tal da folha em branco. Não é tanto o que faço, mas quem eu sou que vai influenciá-la. Só espero que ela não use um bigode.

Pode ser que eu faça alguns traços, pode ser que eu registre um pequeno conto ou pinte um desenho para ela se lembrar. Pode ser que eu escreva textos assim. Mas serão sempre coisas bem pequenas, discretas mesmo. Eu quero é deixar espaço para que Deus reflita nela a sua beleza, a inspire e ela trace, a seu modo, a história que quiser contar.


Esse texto faz parte da série Paternidade.

A ilustração foi tirada do livro “O homem que amava caixas” de Stephen Michael King.

Reinos, princesas e castelos de Lego

por Luiz Henrique Matos

Outra noite, fiquei sozinho em casa com a Nina. Comemos juntos, dei banho nela, pus o pijama e brincamos um pouco sentados no chão da sala – só um pouco mesmo, até eu perceber que existem dois ossinhos nos quadris que não pareciam estar ali até pouco tempo. Na hora de dormir, como de costume, eu contaria algumas histórias. E para a Nina, esse costuma ser o ápice do dia.

Mas para marcar nosso tempo de pai e filha, confabulei uma idéia, dessas que a gente só tem quando sabe que não tem ninguém por perto para repreender: “Filha, já sei! Vamos colocar um colchão aqui na sala e montar sua barraquinha… aí depois a gente trás as cobertas, travesseiros e dormimos lá dentro. Que tal?”

É engraçado como crianças gostam dessas idéias fantasiosas. Para ela, aquilo não era só uma bagunça autorizada na sala, nós estávamos mesmo construindo um castelo. Entre lápis de cor, livros e peças de Lego espalhadas, edificamos o nosso pequeno reino, definimos as regras e vivemos uma aventura.

E o projeto até que correu bem. A exceção se deu por minha tentativa de entrar, deitar e me manter minimamente confortável numa barraca cor-de-rosa de um metro quadrado. Puxa, eu torcia para ela dormir logo e eu poder evitar os sérios danos que aquilo estava causando à minha coluna. Onde eu estava com a cabeça?

Ela gostou, mas na hora de dormir, se mexia de um lado pro outro, virava, chutava as paredes do castelo, me deu uma cotovelada, até que: “Papai, eu não quero dormir aqui! Eu quero ir pro meu quarto e dormir na minha caminha e tomar um leitinho e pôr o cobertor quentinho!”.

E assim, percebendo que minha filha herdou de alguém aqui de casa o temperamento minuciosamente sistemático, vi morrer a idéia mirabolante que eu havia planejado passo a passo e calculado em cada detalhe.

* * *

Se você ainda não é pai, deixe-me dar uma dica: uma coisa boa de se ter filhos é que a gente sempre pode saciar a vontade de brincar, desenhar com giz de cera e correr pela casa fazendo barulhos esquisitos sem que alguém nos julgue por isso. Aliás, pelo contrário, quanto mais estranho você se faz passar para que seus filhos se divirtam, mais as pessoas vão te elogiar e dizer que é um pai presente, amigão e cuidadoso. Mal sabem.

Às vezes, eu fico pensando na minha filha, observo ela concentrada desenhando alguma coisa e percebo que é dessa pureza que Jesus fala quando repreende seus discípulos e diz que “o Reino de Deus pertence aos que são semelhantes a elas”.

No fundo, a história toda não é sobre ser infantil, é sobre ser puro. A questão da vida eterna ao lado de Deus, não diz respeito sobre o quanto deixamos de errar ou o quão eficientes somos em seguir rigidamente as regras todas, mas tem a ver com o nosso coração e a busca sincera em tentar viver de acordo com o que o Pai nos aconselha.

Crianças acreditam em milagres, acreditam em promessas feitas por pais apressados, acreditam em príncipes e contos de fadas, confiam na fidelidade eterna dos amigos, elas acreditam que podem voar. Mas tem gente – os adultos e suas leis – que trata a fantasia como bobagem, colocam freios na imaginação infantil e acabam por matar a beleza da vida com sua visão pragmática dos fatos. Puxa, “visão pragmática dos fatos” já é, em si, uma expressão que mata muita coisa.

O que eu sinto, é que não preciso ensinar um conjunto de leis para minha filha. Eu preciso lhe ensinar bons princípios. E então os caminhos e a vida toda dela será de acordo com esse bom ensino. Uma a uma, suas decisões serão certas, não porque ela obedeceu cegamente ao que ordenei, mas porque soube escolher conforme suas próprias convicções e interpretação do mundo.

Tá, tá legal, eu sei que esse é o tipo de conselho que aparece em qualquer manual para pais de primeira viagem. Não que eu tenha lido algum livro desses – não li – mas é de se imaginar que conste esse tipo de afirmação. Mas o que eu quero dizer (ou tentar entender) é: quem disse que o mundo é do jeito que eu acho que é?

A Nina acha que é uma bailarina e dança em frente à TV até na trilha de abertura da novela das sete – de preferência usando um vestido florido, que roda suspenso no ar enquanto ela gira em torno do próprio corpo. Ela acha que cobrir os olhos com uma almofada a faz desaparecer. Ela ouve as histórias que contamos sobre reinos, reis e heroínas e arregala os olhinhos brilhantes imaginando tudo aquilo acontecendo de verdade, talvez ali na esquina ou no apartamento de baixo.

Crianças acreditam em coisas impossíveis. E pode até ser que o grande valor disso seja porque também acreditam, piamente, nas coisas possíveis. Em todas elas. Para elas, ainda não há mentira no mundo, não existe essa falsidade que a gente vê por aí e o mundo pode ser, de verdade, aquilo que lhes alimenta os sonhos. E isso basta.

* * *

Há alguns dias, eu dirigia pela cidade e parei meu carro num semáforo. Tinha ali um menino, com seus seis ou sete anos, que possivelmente estaria me pedindo algum trocado. Mas ele se distraiu. Estávamos num cruzamento, carros passavam por todos os lados, a cidade gritava com buzinas e motores, fumaça, pessoas cruzando pelas ruas como manadas e motoristas isolados em suas bolhas. E um garoto pobre, sozinho, sem a mãe ou o pai por perto para protegê-lo de tudo aquilo, estava agachado no canteiro gramado, sentado sobre os calcanhares, brincando com um carrinho quebrado, minúsculo, fazendo barulho de motor com os lábios e a imaginação vagando longe, no mundo que ele construía.

Jesus nos pede para acreditar em coisas impossíveis. Ele diz que devemos amar nossos inimigos, que não precisamos nos preocupar com o que vamos comer ou vestir, ele fala que os pobres, os que choram, os humildes, os pacificadores, que toda essa gente sem rumo aos olhos da nossa sociedade são, na verdade, os felizes e bem-aventurados. Jesus diz que crianças são um modelo de vida.

Elas acreditariam nele se tudo isso lhes fosse contado. E talvez até construíssem algo baseado nessa instrução. Um mundo inteiro, quem sabe. Não dá pra duvidar das crianças, porque elas tem dessas coisas, elas confiam, imaginam e, ao seu jeito, obedecem. Crianças brincam e sonham nos cenários mais improváveis. É bonito de ver. É até um aprendizado talvez.

“Digo-lhes a verdade: Quem não receber o Reino de Deus como uma criança, nunca entrará nele.” (Lucas 18:17).

Bom, veja bem, é possível que a coisa toda do aprendizado seja, no fim das contas, eu me converter à visão da minha filha. Seu coração infantil, a pureza nos gestos, a fantasia, o olhar fixo no pai procurando uma direção.

Eu sei que é contraditório. Pode ser um pouco de fantasia, como isso de acreditar que Deus nos chama a todos de filhos, ama o mundo inteiro e pensa coisas boas sobre nós. Aí sim faz mesmo algum sentido que o olhar de todas as pessoas do mundo estejam fixos numa única direção, que exista um caminho bom.

Ali, guardada sob as cobertas, de pijama, na cama em que dorme todas as noites, antes de fechar os olhos, a Nina ainda me chamou uma última vez, só pra oferecer algum consolo: “Papai, outro dia a gente faz cabaninha e eu durmo lá, tá bom?”. Essas coisas acabam comigo.

Eu queria saber com o que ela sonha.

E nessa caminhada, eu só espero não atrapalhar a espontaneidade das coisas com meu jeito sistemático, sabe? Eu fico aqui reclamando e sentindo essa melancolia toda só porque eu já não brinco mais de Playmobill, mas eu prefiro mesmo é que ela cresça com sua própria visão do mundo e de Deus, criando com ele algo tão diferente e tão belo que, em algum ponto, ela acredite que é possível edificar a verdade nessa terra, que dá mesmo para as coisas serem diferentes se ela se conservar menina e que pode, com seu canto, sua dança, sua fé, um vestido florido e boas escolhas, construir o Reino de Deus, com peças de Lego e castelos cor-de-rosa.


(Esse texto faz parte da série “Paternidade”)

Cenas domésticas: aula de finanças pessoais

– Olha ali, Nina, tem umas crianças brincando no parque.
– Depois a gente vai lá, né pai? Depois da casa da vovó.
– Vamos sim.
– Pai, mas pra ir lá brincar você tem que ficar aqui comigo sempre.
– Mas e meu trabalho?
– Não, pai, não pode ir trabalhar lá longe, tem que ficar aqui o dia todinho.
– Entendi. Mas, filha, se o papai não trabalhar, como é que a gente
faz pra comprar comida?
– Já tem comida em casa.
– Mas tem que comprar sempre. E quando acabar a comida? O papai tem que ir ganhar dinheiro.
– Pai, eu compro.
– Você?
– É, eu tenho um dinheirinho.
– Ah, tem é?
– Ahãm.
– E com seu dinheiro dá pra comprar comida e roupas?
– Dá. E balinha também.
– …
– E uns doces. Tudo, muitas coisas, pai.
– Mas, Nina…
– Hum?
– E quando acabar o dinheiro?
– Ah, pai, a gente compra mais, ué!


(post para o blog filial Frases de Crianças)

O enxugador de lágrimas

por Luiz Henrique Matos

Aconteceu uma tragédia em nosso aprazível e pacífico lar. Tudo era calmaria quando, num instante, sem que percebêssemos, a fúria dos mares, os ventos do sul, trovões ensurdecedores e todas as forças da natureza se levantaram para promover a pior e mais temível tempestade em copo d’água da história dessa família. Eu mal tive tempo de correr até o fim do corredor que liga a sala ao quarto, guiando-me pelo som do choro desesperado e então encontrar, desamparada, a Nina derramando rios de lágrimas.

– Que foi, filha? O que aconteceu?
– Doeu, pai.
– Doeu o quê, Nina?
– Meu dedo. Snif! Ó, tem uma pelinha.
– Calma. Vem cá, eu tiro pra você – e dei aquela mordida com a ponta do dente pra tirar a pele.
– Humf…
– Pronto. Viu? Não tem mais nada.
– E uma picada, pai, de pernilongo.
– Onde?
– Aqui.
– Vou fazer um carinho e já sara. Olha bem…
– Sarou, papai.
– Pois é. Tá vendo, não precisa chorar. Vem cá, deixa eu enxugar seu rosto.
– O enxugador de lágrimas?
– É isso aí.

Lembro-me de quando era criança e ganhamos o Shake, nosso primeiro vira-latas. Um dia ele saiu para dar uma volta e se machucou feio numa briga de rua (ah, rapaz, você não conheceu o Shake…). Quando voltou, além de dormir pra burro, ele passava o tempo todo lambendo suas feridas. Eu achava aquilo meio esquisito, até que meu irmão mais velho, cheio da sua sabedoria de Manual do Escoteiro Mirim, disse que a saliva tem um efeito cicatrizante nos animais, que as lambidas são como massagem para os cães e que, também por isso, as mães lambem suas crias quando pequenas. Se isso tudo é verdade, juro que não sei, mas ele é mais velho e quando se tem 10 ou 11 anos, a gente acaba respeitando esse tipo de autoridade.

É engraçado notar como os pais tem um efeito calmante sobre os filhos. A situação pode ser a mais desesperadora – algo como bater a cabeça na quina da mesa ou o fato de a roupa de passeio ser só “rosa branco” e não “rosa pink”, que nas definições da minha filha, tem pesos e gravidades idênticos – e o toque, a voz e o consolo paterno fazem com que tudo fique bem outra vez.

E a paz reina. E os brinquedos se acomodam, os amigos dividem as coisas, a comida fica saborosa, a hora do banho passa a fazer sentido, a TV pode ser desligada sem maiores traumas e garotos com crises crônicas de bronquite durante a madrugada conseguem dormir em paz porque uma mão está repousada sobre seu rosto fazendo algum tipo de carinho e dizendo que tudo vai ficar bem.

Filhos acreditam nos pais.

Para nós, adultos, é divertido observar como situações tão banais adquirem proporções gigantescas no universo (i)limitado de uma criança. E também chega a ser invejável a facilidade com que a dor logo passa, como tudo se resolve e a próxima brincadeira toma forma em instantes.

Talvez seja verdade mesmo que as preocupações nos sobrevém à medida que os anos se acumulam. Ou talvez, a medida que os anos passam, vamos ficando um tanto mais experientes nessa habilidade inata ao ser humano que é tornar complicadas as coisas mais simples. E choramos.

Antes eu dormia como uma pedra, agora eu perco o sono. E eu noto que, a cada dia, vou ficando um pouco menos paciente e menos tolerante em relação a acontecimentos que antes não me incomodavam – peles soltas nos cantos dos dedos e picadas de pernilongo certamente estão entre elas.

A gente fica só um pouco mais velho e já vai perdendo a graça. Perdemos a irreverência da infância e acumulamos a amargura dessas circunstâncias que nos afetam. Olhamos no espelho uma vez e ainda achamos que somos os mesmos meninos. Olhamos uma outra e, num minuto, os anos correm diante dos olhos, que agora precisam fazer alguma força para enxergar direito. Fica no ar o cheiro de menta do creme dental de todas as manhãs e o desejo de ter de volta um pingo daquela inocência. Eu queria bem é resmungar um pouco, abrir o berreiro, e logo vir alguém para resolver tudo com uma voz mansa e cheia de sabedoria, dizendo que tudo vai ficar bem, que eu posso dormir em paz.

E pensar que isso tudo é tão pequeno…

E eu fico refletindo que se tem uma coisa que é real, é que a vida é tão ampla, o mundo todo é tão cheio de opções, com tantos caminhos possíveis, que é estranho imaginar que na maior parte do tempo, queimamos nossos neurônios preocupados com coisas que, no fim das contas, cabem no nosso umbigo – para onde concentramos nossos olhares e esforços a maior parte do tempo.

E, bem, Deus é tão grande. Eu acredito mesmo. Ele é bom, amável, e quando penso que posso simplesmente me dirigir a ele para falar dos meus problemas e contar o que se passa, às vezes deixo de fazer por constrangimento. É estranho pensar que posso ter acesso ao criador do Universo se tão simplesmente aceitar isso como fato – ou, talvez, deixar de resistir. Posso ser dirigido pelo divino em cada um dos passos tortos que teimo dar na caminhada. Posso chamar o autor da vida de “pai” e ele vai achar isso bom.

Então, num pequeno passo, nessa escolha, meus problemas de proporções gigantescas finalmente se resumem à insignificância que têm de fato. E a tempestade dá lugar a calmaria. O oceano revolto era um copo d’água. Os olhos se abrem e, com eles, tantas novas possibilidades. Eu tenho um porto onde ancorar. Deus.

O enxugador de lágrimas.

Lembrei de João, o pescador, que ainda menino, viu passar por sua terra um homem que se dizia o Messias e, tão irresistível era o seu ensino, que ele e o irmão largaram tudo para segui-lo. E João viu morrer seu mestre. Aos pés da cruz, viu Jesus balbuciar a dor, bradar seu amor pela humanidade e dar o último suspiro. Logo depois, João viu morrer ao fio da espada seu irmão Tiago, vítima de um rei ganancioso. Passaram-se os anos e João ainda se despediu de cada um dos amigos de toda sua vida. E ao final dela, com sua missão cumprida, o velho João não esperava pelas visões que teve e registrou.

Das suas notas, de todas as cartas, um trecho em especial me toca.

Confesso que não sei como serão as coisas depois que eu morrer – eu mal sei do meu próximo passo e já me preocupo mais do que deveria – e também não faço muita idéia do fim do mundo, do último dia e tudo isso do Paraíso. Mas, se eu me apego a uma coisa quando penso em Deus, no amor, na minha família e na humanidade, acho que o futuro tem a ver com isso:

“Nunca mais terão fome, nunca mais terão sede.
Não os afligirá o sol, nem qualquer calor abrasador,
pois o Cordeiro que está no centro do trono será o seu Pastor;
ele os guiará às fontes de água viva.
E Deus enxugará dos seus olhos toda lágrima”.
(Apocalipse 7:16-17)

Filhos acreditam nos pais.

(Esse texto faz parte da série Paternidade)

O tempo, o amor e um Chevette 1982

por Luiz Henrique Matos

Ela agora me liga no meio do dia para pedir coisas. Estou no escritório, toca o telefone, percebo que é o número de casa e acho que é assunto sério. Então uma voz fina do outro lado derrete minha postura de profissional empenhado, pedindo para que eu leve algum doce no fim do dia, perguntando se pode ir brincar na casa da avó ou querendo assistir um DVD diferente.

Não reclamo, eu gosto. Apesar do constrangimento em falar com uma criança no telefone diante de uma audiência concentrada no trabalho, atender as ligações da minha filha ou esposa durante o dia é como fazer uma visita instantânea até em casa.

Outro dia, tocou o telefone e era ela outra vez.

– Alô?
– Papai…
– Oi, filha?
– Eu quero você aqui.
– O quê?
– Eu quero você aqui em casa agora.

Crianças…

Ela não quer saber se vivemos em uma mansão ou numa quitinete, se dirijo o carro do ano ou um Chevette 1982. Para ela pouco importa o cargo que ocupo, a marca da roupa estampada em sua camiseta suja de chocolate, a quantidade de prêmios que ganhei – e não ganhei nenhum, se quer saber – ou qualquer dessas coisas que nos parecem fundamentais em grande parte do tempo.

Ela não se importa com o valor dos presentes que ganha. Aliás, ela nem se importa com presentes. Ela é feliz quando os recebe e também é quando nada acontece. Basta a brincadeira, uma nova história e pessoas ao seu lado.

A cada mês, minha menina deixa de ser aquele serzinho dependente e começa a revelar um pouco de sua personalidade. Ela tem olhos bons. Quando sorri, eles ficam apertados entre as bochechas e as sobrancelhas. De uns tempos pra cá, os cachos já encostam nos ombros, seu rostinho já não está tão fofo e o português vai se ajustando num vocabulário correto e claro nas idéias que quer expressar. Se em algum momento eu achei que tinha qualquer controle sobre as coisas, já não me iludo.

E aos poucos, limitado como sou, vou percebendo que longe de objetos e artifícios de que lanço mão para mostrar o bom pai que pretendo ser, ela prefere que eu lhe dê algo mais simples: tempo.

E ela não está interessada em recompensas, não espera que eu retribua o seu carinho, ela só me quer por perto. Ela quer alguém para viajar junto em sua imaginação, quer jogar qualquer coisa, brincar do que der na telha, quer um leite fresquinho quando acorda e um braço pra se apoiar enquanto a Dora, a Aventureira, resgata algum animal perdido na floresta.

Nada do que ela me pede, nada, me custa mais do que um mísero centavo. A verdade é que as crianças tem um tipo de amor que eu não entendo e não expresso. Um amor desinteressado, gratuito, livre de coisas, que não exige condições, que aceita um pedido de desculpas quando a gente deixa de brincar e que espera o dia inteiro, às vezes bem longo, só para ganhar um colo e ouvir uma nova história antes de dormir.

– Nina, as princesas dormem sozinhas em suas próprias camas, sabia?
– Mas, pai, a princesa quer ficar aqui, perto do príncipe.

Ela me acha bonito.

Às vezes eu me pego pensando no dia em que ela vai descobrir que eu não sou “o” cara. De príncipe, herói e marido exemplar, um dia minha menina vai me achar careta, fraco e pedir para que eu estacione a 300 metros da escola para que os amigos não a vejam entrar no carro comigo. Mas até que isso aconteça, deixo as preocupações para a hora apropriada. Enquanto ela ainda se sente suprida simplesmente por eu sentar ao seu lado no sofá, eu desfruto.

Eu me regozijo em sua inocência, no pensamento puro, nos contos de fadas, nas palavras mal faladas e no cheiro de xampu de neném que ainda perfuma uma parte da casa.

– Pai…
– Oi, Nina.

Ela me mostra a mão espalmada.

– Você fica… você fica só mais assim, ó. Fica só mais cinco minutos comigo?
– Claro, querida. Como não?

Sorri.

– Tá. Então senta, pai.

Ela não me cobra se estou acima do peso, não quer saber serei um sujeito careca daqui um tempo e também não liga se não me visto segundo o catálogo da Armani. Ela só quer que eu esteja ali.

Pais são assim. Às vezes, depois que passamos da infância e, num instante crescemos, pode acontecer de o assunto acabar. Pode ser que o encanto se quebre. Pode até ser que filhos e pais, em função do tempo e das circunstâncias, deixem de ter a afinidade natural, aquela amizade que parecia instransponível lá atrás. Mas inexplicavelmente, a gente sabe o quanto precisa deles. Bem, às vezes nem sabemos, mas notamos que em determinados momentos, precisamos daquele colo, daquele cheiro, sentimos falta de estar perto, gastando um tempo que parece à toa, mas que preenche um vazio que só esse tipo amor pode completar.

O primeiro amor, aquele desinteressado, que tudo sofria e suportava, que acreditava e esperava, de repente parece cheio de condições, cercado de regras, empoeirado, espremido entre tantas lembranças naquele baú esquecido no sótão. E a gente sente saudades mas não sabe como voltar.

Nesses momentos, numa fagulha, filhos se distanciam, amigos se perdem, casais se separam e o homem, ao longo da história, se afasta do seu Criador.

O filho perde de vista o Pai, que nunca deixou de esperar pela volta de sua criança, ansioso, aguardando por mais uns minutinhos. E Deus tenta dizer que ele não quer súditos ou empregados que o sirvam com sacrifício, ele quer seus filhos invadindo a cozinha, cansados de correr no quintal, pedindo por uma história, contando sobre o novo amigo e precisando de um copo de água para saciar sua sede.

E como em qualquer relacionamento, um e outro não esperavam mais do que presença, nada além daquele amor simples, o respeito, carinho… nada que se represente em coisas, nenhuma grande fortuna. Talvez uma aventura frustrada a bordo de um Chevette, uma história para contar juntos, talvez uma conversa franca de vez em quando.

No amor, não se dá nada que custe mais do que um mísero centavo.

(Esse texto faz parte da série Paternidade)

As coisas não precisam mudar

por Luiz Henrique Matos

Toda vez que estou lendo um bom livro e percebo que está chegando ao fim, fico meio apreensivo. Em geral, paro quando faltam 15 ou 20 páginas e penso se aquela realmente é a melhor hora para concluir a história. Gosto de terminar minha leitura no momento apropriado, é preciso ter o clima ideal para honrar o fim daquele relacionamento que construí durante um tempo. Eu sei, isso é bem esquisito.

Estou lendo um livro muito bom e faltam pouco menos de 20 páginas para acabar. Nesse momento, achei que não era a tal hora ideal. Marquei a página e o coloquei sobre meu criado mudo para poder dormir. Mas antes de apagar a luz do abajur, fiquei observando por algum tempo uma foto que enfeita meu lado da cama (é, casais tem dessas coisas). Estamos lá, Manú e eu, sorridentes, comemorando nosso segundo aniversário de casamento. Lembrei do restaurante em que estávamos, dos amigos com quem festejamos, da viagem que acabáramos de fazer e também que tínhamos comprado há pouquíssimo tempo nosso primeiro apartamento.

Fiquei pensando na vida que levávamos naquele ano. Eu sei que não faz muito tempo – estamos juntos há 11 anos e casados há sete – mas ainda assim, tanta coisa mudou de lá pra cá. É engraçado pensar que algumas histórias que vivemos nesses cinco anos nem passavam pelas nossas mentes naquele dia.

Tivemos uma filha, mudamos de casa, viajamos juntos, o Brasil perdeu duas vezes em Copas do Mundo, guardamos dinheiro, fizemos novos amigos, amadurecemos, mudamos de igreja, mesclamos nosso gosto musical, gastamos dinheiro, vimos o quanto ainda somos imaturos e descobrimos que rugas e cabelos brancos também aparecem em adolescentes como nós.

E aí, olhando para trás, a gente redescobre o óbvio: que as lembranças são boas para recordarmos as histórias que vivemos, o que fizemos de certo e errado. Notamos que um porta-retrato pode nos levar outra vez a um grande dia que vivemos, revela a mulher admirável que nesse instante suspira deitada ao meu lado. E ela é forte, meiga, madura, e ainda aquela menina que numa tarde de março, vestida de branco e brilhando como o sol, entrou ao som de música por aquele jardim, ouviu meus votos de amor eterno, me disse sim, me deixou colocar um anel de ouro em seu dedo e me deu um beijo.

As promessas, os planos, as inquietações. Gastamos tanto tempo tentando entender o mundo e a vida, brigando para mudar o rumo das coisas e procurando nossa realização pessoal em questões tão superficiais, que deixamos de notar muitas vezes que a grande alegria da vida está em guardar e desfrutar do tesouro mais precioso que Deus nos deu.

A minha alegria tem dois nomes curtos e mora aqui em casa. Alegria é voltar ao lar no fim da tarde e dar o segundo beijo do dia, repartir um copo de suco, falar do que se passou e ver um filme na TV. Alegria é ver minha filha gargalhando com as cócegas que eu faço, é sentar ao seu lado e assistir Toy Story pela 78ª vez, é construir todo um reino com peças de Lego, é observá-la por horas a fio, enquanto dorme inocente, tentando imaginar os sonhos que alimenta.

Tenho um amigo que sempre diz que eu me preocupo demais. Ele fala que fico aqui escrevendo essas coisas, mas preciso desligar um pouco e deixar que tudo aconteça naturalmente. Sei não. A verdade é que eu não fico encanado com o que desfruto, mas o contrário. Preocupo-me com o que possa estar tomando o tempo das coisas realmente importantes, entende? E para mim, isso não é lá muito natural.

Sei que ainda sou novo e que possivelmente vivi bem menos da metade do que ainda tenho pela frente. Mas sei também que a vida é fugaz e que ao menor vacilo, os brinquedos espalhados pela casa vão dando lugar a cadernos e roupas de gosto duvidoso, os livros vão ficando cada vez mais grossos e com menos figuras e nossas crianças, de repente, entram pela porta sala com suas crianças a tiracolo.

Eu lembro da minha infância numa vila lá na Barra Funda. Era um bairro industrial e eu gostava especialmente das manhãs quentes, depois de abrir a janela do quarto e ouvir o som das fábricas no quarteirão misturados ao de uma família de bem-te-vis que vivia numa árvore atrás do nosso quintal e cantava o tempo todo. E lembro dos brinquedos que deixava pela sala, dos cadernos, das minhas roupas de gosto duvidoso e dos livros todos, com muitas e poucas figuras. E lembro dos meus pais, do meu irmão e da minha irmã, que também já não tem mais aquela idade, no quanto os amo e em como quase não digo isso a eles.

Eu acho um grande paradoxo pensar que, segundo nossas crenças, viveremos para sempre, mas que só temos alguns anos – uma partícula de tempo na história toda – para determinar essa eternidade. Morreremos daqui a pouco e acabamos gastando nossos dias em futilidades, enquanto vemos nossos relacionamentos mais importantes se converterem em diálogos superficiais.

A verdade é que eu quero saber que fiz coisas relevantes. Que mais do que me preocupar em saber das últimas notícias, da escalação do time do São Paulo em 1982 ou ter assistido aos grandes clássicos do cinema, eu sentei à mesa e fiz a refeição de todas as noites com as pessoas que amo. Que eu tive tantos filhos quanto sonhei, que escrevi um poeminha para a Manú e recitei pessoalmente, que fui, por mais um dia, o herói da Nina na brincadeira do rei e da princesa.

Talvez a gente gaste tempo demais querendo encontrar motivos, querendo encontrar culpados, querendo encontrar uma resposta que nos salve da insanidade que estamos vivendo. Mais tempo, mais dinheiro, mais prazer, mais respostas instantâneas, mais planos complicados. Queremos que Deus seja um escritor de auto-ajuda, com um livro de poucas páginas, muitas figuras e cinco passos básicos para que tudo se resolva. Mas tudo é muita coisa.

Queremos que as coisas mudem, mas as coisas não precisam mudar. Quem precisa mudar somos nós.

Mas, jamais conseguiremos isso sozinhos. Precisamos de um refúgio, de um porto seguro onde ancorar e organizar as idéias, rever os conceitos. Às vezes, eu tenho para mim a idéia estúpida de que, tal como algum ancestral que vivia nas cavernas, eu saio de manhã todos os dias para fazer minha caçada, batalhar e trabalhar nos campos pela colheita – bem, convenhamos, é um jeito emocionante e otimista de se encarar dez horas sentado em frente a um computador. Então eu volto, pouco depois de o sol se pôr, para minha paz, minha casa, minha esposa, minha filha, uma caneca de Nescau e as melhores horas do dia.

E Deus.

Eu penso na Bíblia e nas coisas em que acredito e fico feliz em saber que Jesus é o Deus desse mundo. Isso já basta. Eu creio e é mais do que suficiente para que ele seja meu Deus também. E é verdadeiramente libertador e aconchegante ter esse Deus simples, sem me preocupar com os milagres, com as interferências na história, com discussões bobas sobre crenças e com minhas crises existenciais. É esse Deus a quem chamo de pai, é para ele que me sinto livre de abrir tudo o que se passa, que me rendo, agradeço, peço desculpas e peço conselhos.

E acredito ainda que quando ele nos dá uma família e bons amigos, está nos mostrando um pouco dessa verdade, nos oferecendo refúgios de paz para onde podemos retornar quando o sol se esconde no horizonte. Está nos dando o sinal mais explícito do que realmente importa e faz sentido na vida e que, no fim das contas, deveria ocupar mais do nosso tempo.

Olho outra vez para a foto no porta-retrato que eterniza a boa lembrança. A Manú dorme aqui do lado, ouvindo a trilha-sonora das teclas preenchendo a tela do computador. Então eu levanto, faço a última ronda pela casa para checar se está tudo bem (sempre está, mas preciso fazer isso mesmo assim). Volto, deito, dou um último gole no copo d’água e estico o braço para alcançar o interruptor que apaga a luz do abajur. Já é tarde e eu preciso dormir.

Meu livro repousa fechado no canto. O desfecho ficará mesmo para os próximos dias. No momento ideal para eu ler (e viver) as próximas páginas da história.

Onde nascem os sonhos

por Luiz Henrique Matos

– Nina, já contei uma história e nós já oramos. Agora vamos dormir.
– Mas pai…
– O quê?
– E depois que dorme?
– Ah, aí você sonha, filha.
– Sonha com o quê?
– Com um monte de coisa legal. Com brincadeira, com os amigos, com Deus, com o que você quiser. Só coisa boa.
– E depois que sonha?
– Aí a gente acorda e vai brincar.

Alguns segundos de silêncio…

– Papai?
– Oi, Nina.
– Onde é que sonha?
– O quê?
– Onde é que a gente sonha?
– Onde? Hmmm… a gente sonha no coração.
– Eu não quero…
– Tudo bem, filha, não precisa sonhar.
– E você, pai?
– …eu?

Imagem e semelhança 1 – Livros, moldes e projeções

por Luiz Henrique Matos

A Nina gosta de livros. E você pode imaginar o orgulho que toma conta do pai coruja quando a filha, num shopping center, prefere a “loja de livros” à de brinquedos. E ela se delicia naquele ambiente. E eu me delicio naquela criatura de um metro de altura e fico pensando na nova Cecília Meireles, na Elizabeth Barret Browning, na Jane Austen que vai se formando sob meu teto.

E eu fico pensando o quanto sou estúpido em querer tudo isso.

Como gente egoísta que somos, caímos no erro de projetar em nossos filhos as nossas frustrações. Escritores, advogados, jogadores de futebol… queremos que nossas crias tenham o sucesso que julgamos não ter tido. Ao invés de lutar pelos nossos sonhos, penduramos as chuteiras e passamos a desejar que os pequenos cresçam e se moldem às expectativas que alimentamos sobre eles.

Aí está a diferença do homem em relação a Deus – ou talvez, o contrário seria mais adequado. O Pai não projeta em nós o desejo de que sejamos como ele. Ao contrário, sua glória pessoal é que sejamos totalmente nós, plenos da identidade que ele sonhou para cada um, individualmente.

Daí o erro da religião em querer moldar o homem num padrão de comportamento, caráter e atitude. Daí o erro de todos nós em desejar que nossas crianças se pareçam conosco ou com o ideal de homem que criamos.

Pobres dos filhos, criados para serem livres, mas aprisionadas em gaiolas e estereótipos. Não foi esse, jamais, o sonho do Pai.

Cada pessoa em sua plena humanidade é o reflexo da glória de Deus. Cada pequenino, transbordante de si mesmo, a imagem e semelhança do Criador.

Essa crônica faz parte da série “Paternidade“. Clique aqui ou na página dedicada do menu para ler os textos anteriores.

Contando histórias


Pai e filho (foto de Jim Skea)

por Luiz Henrique Matos

– Papai?
– Oi, filha.
– Senta aqui comigo.
– Claro, querida. Que que você quer?
– Histórinha, papai! Conta uma histórinha?

E lá vou eu. Em minha saga diária de inventar histórias. As preferidas envolvem uvas (isso aí, uvas. Vai entender…) e um passarinho que vive na árvore da casa da vovó. O resto do enredo é por minha conta e risco. E bota risco! As tramas precisam ser originais, senão:

– Não, papai, essa não. Outra.

Às vezes, eu crio histórias aleatórias, por puro entretenimento. Mas em outros momentos, acabo achando que essa é uma chance de incutir bons princípios e ensinamentos na mente da minha filha. E é nessas horas que uvas deixam de chupar chupetas, fazem orações de agradecimento e passarinhos dividem brinquedos com seus amigos de escola.

Fico tentando pensar num jeito de fazê-la entender verdades importantes, de ser educada de um jeito divertido e aprender um pouco sobre o Deus que eu amo, sobre as coisas certas, sobre ser obediente, sobre torcer pro São Paulo.

E acho que as histórias são um bom jeito para isso. Funcionaram comigo, afinal. Quer dizer, funcionam. Seja quando criança, freqüentando a biblioteca pública ao lado da minha escola no Bom Retiro ou lendo as dicas da revista Alegria. Seja agora, já adulto, extraindo valores dos bons romances que carrego pra todo lado embaixo do braço ou entendendo que através das Escrituras, Deus me mostra suas ilustrações e princípios – porque, em certos casos, não importa tanto a literalidade dos fatos, mas seu significado e efeito.

– Papai, conta uma história de você?
– Conto. Qual você quer?
– De você pequeno. Na bicicleta.

Agora ela deu de querer saber da minha infância.

A verdade é que pais são seres insondáveis, grandiosos, infalíveis, perfeitos – e eu tardo a me dar conta de que eu sou, para minha menininha, um herói. Seu mundo, sua história, tudo parece despertar a curiosidade dos filhos. E de alguma forma, é nesse olhar, nessa expectativa toda, que as crianças firmam sua referência.

Eu me lembro do meu pai enquanto eu ainda era criança. Ele era o homem mais forte, o melhor jogador de futebol, o motorista implacável, o churrasqueiro talentoso e, além do Magnum, o único cara bonito de bigode que poderia existir no mundo. E ele me contava as histórias sobre sua vida no sítio, sobre o pai que perdeu na infância, a vinda para a cidade grande… e me ensinou a andar de bicicleta!

E quem imaginaria que tirar as rodinhas da minha Caloi azul-marinho seria, décadas mais tarde, um grande exemplo de bravura e traria novamente à tona todo o sentimento de conquista e liberdade daquele dia? Quem diria que uma dolorosa cicatriz no joelho seria tão útil para ensinar a Nina sobre certos cuidados que devemos ter ao brincar com os amiguinhos – especialmente se for um pega-pega ultra-mega-super-rápido em volta de uma Kombi num chão cheio de areia?

Todo filho deseja conhecer seu pai. E nessa relação de descoberta, das pequenas coisas e das grandes conquistas, o relacionamento amadurece. No conhecimento transmitido, no aprendizado ensinado e nas histórias inventadas. Na troca de palavras e no toque, nisso se solidifica o amor e se edifica uma vida de cumplicidade. Nisso, um filho admira seu pai, o homem se apaixona por Deus, um pai se aproxima do filho, Deus se revela ao homem, um garoto escolhe seu time de futebol e a paternidade ganha um sentido assustador.

Às oito e meia ela dorme. Depois de ouvir uma ou duas histórias, eu cubro minha menina, oro por ela uma outra vez, desejo que tenha sonhos encantadores e deixo o quarto com a luz indireta acesa, sem deixar de estar atento a cada um de seus movimentos.

Então eu me acomodo num canto da sala, recosto a cabeça em algo macio e, com a Bíblia aberta nas mãos, balbucio meu pedido:

– Pai, senta aqui comigo? Me conta uma história de você?

Essa crônica faz parte da série “Paternidade”:

1. A explosão da vida
2. Versos infantis dessa minha felicidade
3. As grandes conquistas do homem
4. As cegonhas não existem
5. O amor, um calção e gestos primitivos (cinco minutos antes de minha vida mudar)
6. Colos, cólicas, chavões e uma crônica de continuação
7. Na falta do que dizer
8. Pequenas lições
9. Doentes curando doentes
10. Primeiros passos
11. Sobre a velhice, rotinas e prioridades
12. Música para os meus ouvidos
13. E o futuro, a quem pertence?
14. Versos infantis 2 – alegria, tristeza e distração
15. De mãos dadas
16. Sobre ser pai no Dia dos Pais
17. A doce presença
18. Transportando tesouros e atropelando cachorros – os heróis da vida pequena

Cenas domésticas: conversa séria

por Luiz Henrique Matos

Lá em casa, toda vez que a Nina passa do ponto nas birras ou apronta alguma coisa realmente muito grave, nós a chamamos para “uma conversa muito séria” lá no quarto (calma, antes que a polícia bata na porta de casa, quero deixar claro que “uma conversa muito séria” não passa de três minutos de bronca, a sós, olhando bem na bolinha nos olhos).

Pois bem, num sábado pela manhã estávamos no quarto assistindo TV, enrolando para levantar e a mãe fez o favorzão de trazer café na cama para nós. Bolo, pão com requeijão, iogurte, Nescau no copo, bolachas… só coisa boa. A certa altura, já quase satisfeitos, a Nina foi tentar virar de lado na cama e acabou dando um chute no meu copo de Nescau. Sim senhoras e senhores, lá foram 400ml de líquido marrom bem escuro sendo absorvidos por lençóis, edredon e pelo colchão.

Ela ficou preocupada.

– Pai, disculpa…
– Nina, não se preocupe, filha. Não tem problema, tá? Não foi culpa sua, foi sem querer.

Limpamos a cama, levamos a tralha para o tanque e eu fui para a sala terminar de dar o café da manhã para a Nina. Só havia sobrado o iogurte. Abri, lambi a “tampinha” de alumínio, me ajeitei no sofá e enquanto tentava pegar a primeira colheirada para servir minha filha, fiz alguma grande besteira e espirrei iogurte para todo lado. Sofá, almofadas, roupas e o piso, tudo devidamente afetado.

Eu fiquei preocupado.

Corri para providenciar minha segunda faxina em menos de uma hora e a Nina observava sentadinha no sofá. Quando voltei, meio ofegante, retomei o assunto.

– Ixi, Nina, você viu o que o papai fez?
– Derrubou tudo, né?
– É… aiaiai. Mas agora já está tudo pronto. Vamos tomar o seu danone?
– Mas… pai?
– Oi, Nina.
– E quem é que vai “conversar muito sério” com você?

(para o Frases de Crianças)

Cenas domésticas: nunca é cedo para ensinar

por Luiz Henrique Matos

Era cedo. Estávamos na cozinha e como todos os dias, eu preparava um copo de Nescau para a Nina. “Leitinho, papai, leitinho” é a fala matinal que me desperta, junto com a música do Louis Armstrong que toca no relógio.

Hoje ela foi atrás de mim. Enquanto eu ajeitava o lanchinho da escola, ela virava o copo de leite numa golada só. Depois, não satisfeita, pediu:

– Pai, eu quero também aquele outro. O amarelo.

– Que amarelo, filha?

– Aquele, pai. Abre o armário.

Bom, eram seis da manhã, eu estava com sono e você precisa me desculpar pela falta de paciência com minha pequena.

– Ah, filha, isso não é hora de olhar o armário. Não é hora de doce. E você já comeu.

– Nããão, pai. Eu quero aquele amarelo. Eu esqueci o como chama…

– Nina, eu não sei o que você está querendo. Você já tomou seu leite, agora é hora de se arrumar e ir pra escola.

– Ah, pai… por favoooor! (ela agora está com essa mania de dizer “por favoooor” pra qualquer coisa que queira mesmo, como se fosse um apelo em última instância. Funciona).

– Tá. Eu vou abrir o armário.

Abri a porta e só via pacotes de biscoito, o açucareiro, Nescafé, sal, Ovomaltine, uma lata amarela de leite Ninho… Opa, amarelo!? Leite Ninho?

– Nina, é isso aqui que você quer? Um grudinho*?

Ela sorriu. Ficou um tempo sem dizer nada. Eu, com a cara amassada de sono ainda esperava retomar a rotina. E ela arremata:

– Viu como você aprende?

Realmente.

(*Grudinho é um troço que minha sogra inventou e a Nina adora. A receita é simples: duas colheronas de leite em pó e uns 10 ou 20 mililitros de água. Vira uma pasta grudenta e, segundo dizem, deliciosa – há paladar para tudo)

– Crônica para o blog Frases de Crianças

Um pedaço de nós

por Luiz Henrique Matos

Em geral, temos um certo orgulho e valorizamos mais as coisas que nos mesmos fizemos.

Brinquedos para as crianças, pipas, lavar o carro, pendurar um quadro, construir uma casa – mesmo que seja de bonecas -, constituir família. Filhos.

Precisamos nos envolver, dedicar tempo. Precisamos nos doar para que tenhamos um pouco de nós mesmos semeados naquilo que chamamos “nosso”. Sejam coisas ou pessoas.

Devemos ser parte de algo para entender o seu valor e, finalmente, dar a vida por isso.

Como maridos, pais, artesãos, profissionais, carpinteiros, filhos…

Deus entende dessas coisas.

“Porque Deus tanto amou o mundo que deu o seu Filho Único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna.” (João 3:16).

Presente de aniversário

Ontem foi meu aniversário e ao chegar em casa, além de um excelente presente dado por minha esposa e filha, recebi também um carta, assinada pelas duas, com o criminoso conteúdo abaixo:

02/12/09

Filha, hoje é aniversário do papai. Fala o que você deseja para ele e eu escrevo aqui nessa cartinha.

– Bolo… vela… hmmm sorvete… não, sorvete não, sorvete é ruim… não, sorvete sim, põe aí mãe… e presente.

Isso é o que ela deseja para você!

Mas eu também perguntei:

– Filha, você gosta do papai?
– Ahâm
– Ele é divertido?
– Ele não é divertido, ele é papai… feliz aniversário pra ele. Vou fazer um desenho.

Esperamos que goste.

Bjs,
Mamãe e Nina

Amamos você!

Entre os rabiscos que ela própria fez, havia o desenho (com a devida legenda, evidentemente) de um bolo e uma vela.

Não se deveria deixar pais emotivos receberem esse tipo de coisa. Mas a vida tem dessas peças. Foi a melhor coisa do dia.

Transportando tesouros e atropelando cachorros – os heróis da vida pequena

por Luiz Henrique Matos

Atropelei um cachorro na estrada. Foi tudo tão rápido, estava escuro, ele correu para o meio da pista e parou diante do carro, uns cinco metros à frente. Eu nem consegui pisar no freio. Lembro do olhar estático do pobre animal paralisado pela luz alta do farol e em seguida o impacto seco no pára-choque. Vi, depois, a sombra escura e morta no asfalto pelo retrovisor, cada vez mais distante, pequena, até sumir. Sem nada que pudesse fazer, chorei e segui viagem.

Voltávamos do interior do estado, onde visitamos alguns familiares e eu dirigia por uma estrada paralela enquanto as duas dormiam no banco de trás.

E pensando no momento que acabava de viver, me preocupei com algo mais que pudesse nos acontecer. Viajamos por essas estradas tantas vezes e, é bem verdade, não tenho noção real dos riscos que corremos. Olhei de relance para as duas, mãe e filha, que dormiam desconfortáveis e temi pela responsabilidade de levá-las para casa em segurança.

Eu carregava um tesouro precioso. Confiadas à minha direção, estavam as coisas mais importantes que tenho nessa terra e, bem, eu peno em admitir, mas não sou dos melhores motoristas que conheço – e isso já é um auto-elogio – o que torna o desafio um tanto maior.

Exagerando outra vez nas analogias, eu me sinto como um daqueles guerreiros de histórias épicas que saem em cruzadas pela terra com a missão de transportar algum tesouro precioso para o rei. Levam consigo uma carta de recomendação, viajam em nome da coroa e estão dispostos a abrir mão da própria vida em favor de algo que não lhes pertence mas pelo qual, não se sabe a razão, são apaixonados.

Mas, peno em dizer, eu não sou um guerreiro habilidoso. Não manejo bem uma espada, não sei montar cavalos e meu reflexo não é apurado. O fato é que às vezes eu falho nessa missão. Piso feio na bola. Deixo cair, desprotejo, penso mais em mim mesmo do que nelas. Mas, apesar de minhas limitações, a carta do rei sempre me faz lembrar a que vim. Seu olhar não me deixa esquecer que são suas filhas que estão sob minha responsabilidade.

Não, não pense que isso é um desabafo arrependido. Pelo justo contrário, eis aqui meu voto de fidelidade, minha alegria, o reconhecimento, afinal, do que entendo por realização.

Descobri que longe de ser um fardo, essa missão consiste em minha grande alegria. E não é que a minha visão seja limitada ou que me falte ambição, eu só notei que tenho em casa o tesouro mais nobre que jamais poderia sonhar conquistar. E empenhar a própria vida em favor desse prêmio, talvez seja o mais heróico dos gestos que poderei ostentar.

O herói da vida pequena. A refeição em casa. As férias em família. O tempo juntos sentados no sofá da sala vendo o mesmo desenho pela trigésima vez. As brincadeiras simples na rua. O cineminha com pipoca de sexta à noite com a eterna namorada. Deus, a família, os amigos. As melhores coisas da vida não nos custam sequer um centavo.

Que feito pode ser mais nobre do que dar vida a um ser humano, guiar seus primeiros passos e conduzi-lo em sua existência para que um dia seja alguém melhor do que eu jamais sonhei ser? O que pode ser melhor do que amar uma linda mulher e empenhar a vida em protegê-la, sustentá-la e lhe ser fiel? Que massagem no ego pode ser melhor do que descobrir que duas lindas garotas te acham o cara mais bonito, forte e bacana do planeta, apesar da barriga proeminente, da barba por fazer e da toalha molhada largada sobre a cama (tá bom, eu admito que exagerei no bonito, forte e bacana)? Que honra maior em ver multiplicar o fruto desse amor (leia-se netos) e acompanhá-los crescendo saudáveis, santos, unidos e correndo pelo quintal da nossa casa?

Bom, parece simples, mas não é simplório. Parece pouco nobre, talvez porque seja tão comum a todos. Parece não dar nenhuma fama e reconhecimento público, e realmente não dá mesmo. Mas eu acredito sinceramente que nada pode fazer um homem mais feliz.

Penso nisso tudo agora, seguindo de volta pra casa, para que um dia eu não precise ver as coisas importantes que deixei para trás. Para que a vida que eu sempre quis não seja atropelada pelas escolhas erradas que fiz, como uma sombra na escuridão, pequena e distante no retrovisor.

Eu sigo viagem. Eu, meu cavalo, a carta do Rei me incumbindo da nobre tarefa de ser pai e um tesouro incalculável em meus braços. Sim, essa é a grande missão do guerreiro. Habilidoso ou não, sigo satisfeito em saber que já carrego comigo o grande prêmio da vida.

Essa crônica faz parte da série “Paternidade”:

1. A explosão da vida
2. Versos infantis dessa minha felicidade
3. As grandes conquistas do homem
4. As cegonhas não existem
5. O amor, um calção e gestos primitivos (cinco minutos antes de minha vida mudar)
6. Colos, cólicas, chavões e uma crônica de continuação
7. Na falta do que dizer
8. Pequenas lições
9. Doentes curando doentes
10. Primeiros passos
11. Sobre a velhice, rotinas e prioridades
12. Música para os meus ouvidos
13. E o futuro, a quem pertence?
14. Versos infantis 2 – alegria, tristeza e distração
15. De mãos dadas
16. Sobre ser pai no Dia dos Pais
17. A doce presença

Cenas domésticas: Na sala do presidente

por Luiz Henrique Matos

– Filha, você quer ir trabalhar com o papai hoje?

Tive que levar a Nina pro escritório. Além da grandiosa, epopéica, dificílima e quase impossível tarefa de pegá-la na escola, levar pra casa, dar o almoço e trocar de roupa, ainda me restava o desafio de carregar minha filha para o trabalho num dia em que minha esposa estaria presa em reuniões e não poderia estar em casa mais cedo.

Confesso que eu tinha medo de como ela reagiria ao ambiente, mas, eu não imaginava, o primeiro martírio foi meu e não dela. É constrangedor notar como você passa a ser o foco número um de olhares estranhos te seguindo os passos ao entrar de mãos dadas com um serzinho cor-de-rosa e menos de um metro de altura no seu ambiente de trabalho.

Vencida a barreira dos olhares e comentários, chegamos à minha mesa, tirei os badulaques, brinquedos e.

Passada a via-crúcis paterna, tudo ótimo. Minha filha me enchia de orgulho desenhando com seu super-lápis-de-cor no verso de alguns relatórios confidenciais que eu tinha que analisar. Ganhou mimos, saiu com uma colega para ganhar presentes na redação de revistas infantis, voltou feliz da vida com seu “kit das princesas” e perdeu um pouco a inibição do início de já conversava abertamente com as pessoas.

Até que…

Até que, o presidente da empresa entrou em nossa sala. Peraí, você leu direito isso aí? Eu disse: até que o PRESIDENTE da empresa entrou na sala! E minha filha ficou olhando aquela figura engravatada caminhar na nossa direção.

– Opa! Quem é essa aí? – ele disse sorrindo (bom, o fato de seu super-chefe sorrir não alivia em nada a tensão do momento).

– É a chefe nova – eu disse e, em seguida, já me arrependi (bom, o fato de você fazer uma brincadeira sem graça enquanto está diante do seu super-chefe demonstra que você nunca pode confiar em si mesmo diante de situações constrangedoras).

– Oi mocinha! Como você chama?

– Nina – ufa, ela respondeu!

– Que bonitinha…

Então ela olhou para as mãos dele, fitou nos olhos e soltou:

– Que isso aí na sua mão?

Eu já nem respirava mais.

– O quê? Ahh, você gosta de gibis? Esse aqui é o Pernalonga, conhece? – bem, antes que você pense que presidentes de grandes empresas andam com revistas em quadrinhos pelos corredores ao invés de relatórios e planilhas complexas, acho importante dizer que eu trabalho numa editora.

– Deixa eu ver?

– Olha aqui ó – ele ainda sorria (e um filme com a retrospectiva da minha carreira passava em minha mente em alta velocidade).

Então ele perguntou:

– Nina, você gosta de balas?

Ela, como filha educada que é, olhou para mim e ficou esperando a resposta. Ele, em sei lá qual condição, também me olhou e esperava uma resposta. E então, pela primeira e última vez na minha vida eu me vi dando alguma autorização para o presidente.

– Sim, pode dar – eu disse num misto de pavor e um pingo de satisfação.

– Vem comigo, Nina. Dá a mão pro tio.

Ela saiu pelo corredor de mãos dadas com ele. O tempo passava e eu não conseguia pensar em nada enquanto olhava fixamente pela porta por onde ela saiu.

Cinco, dez, 20 ou 190 minutos depois ela voltou. Da sala do presidente, ela chegou com as mãos cheias de balas 7Belo:

– Papai, papai! Olha!

– Eu falei pra ela pegar a balinha e ela me perguntou se “pode pegar duas”. Aí eu mandei ela encher a mão – ele me disse, ainda sorrindo (e isso já começava a me aliviar) – vai lá, Nina. Vai lá com seu pai.

– Puxa, obrigado Sr. Fulano… e, filha, agradeça o tio.

– Bligada!

– Ô, que nada. Tchau.

Eu me recuperava de um quase infarto e ela já enchia boca com duas balas ao mesmo tempo. Eu sei que ela nem tem dimensão da experiência que teve e é isso que mais me apaixona nas crianças. A ousadia livre de não ter sua opinião abalada pela posição das pessoas e apenas aceitá-las sem barreiras se elas lhe parecem sinceras e amigáveis (é claro que um pacotinho de 7Belo influencia muito nessa reciprocidade).

Minutos depois, um conference call acontecia na mesa ao lado e ela, já totalmente amiga de todo mundo, falava pelos cotovelos.

– Nina, shhhhiu… silêncio, filha!

Ela olhou para os lados, sondou as pessoas e perguntou sussurrando:

– Quem ali tá durmindo?

Meu telefone tocou. Era minha chefe. Eu, numa ligação mega-ultra-hiper-urgente tentava assimilar as decisões que ela me pedia para tomar enquanto prestava atenção na minha filha fugindo pelo escritório em direção à saída.

Um homem vinha pelo corredor e a pegou no colo. Primeira sensação: alívio (ela estava a salvo e eu poderia me concentrar no telefonema). Segunda sensação: dúvida (quem era o cara, afinal?). Terceira sensação: desespero (era o diretor de RH!).

O foco necessário na conversa telefônica me impede de analisar o que a Nina e ele conversaram naqueles minutos, mas eu confesso que ainda prefiro não saber o que se passou.

Antes de encerrar a ligação, o diretor já havia saído do local, a Nina estava sentada outra vez, de volta aos desenhos e às Princesas.

Terminei o que precisava fazer, enviei alguns últimos emails e desliguei o computador. Recolhi as coisinhas multicoloridas que enfeitavam minha mesa e enquanto a Nina se aprontava (e chupava a oitava balinha 7Belo), fiquei pensando nas duas novas amizades da minha filha, na visita a sós na sala do presidente, no cafuné recebido pelo diretor de RH e o agrado geral causado com a equipe.

– É, filha, em três horas por aqui você conquistou o que seu pai nunca conseguiu em sete anos de empresa.

(crônica para o Frases de Crianças)

Cenas domésticas: trapalhadas paternas

por Luiz Henrique Matos

Hoje minha esposa precisou sair mais cedo de casa e eu fiquei com a incumbência de acordar, vestir, dar o Nescau e levar a Nina para a escola – bem, é evidente que ela deixou cada peça de roupa devidamente separada e o lanchinho pronto sobre a pia, para eu não esquecer.

– Henrique… Henrique? Henrique!?
– Ahn? Oi…
– Amor, estou saindo pro trabalho mais cedo. Acorde e preste bem atenção.
– Tá.

E até agora uma sucessão de palavras fora de ordem e tarefas desconexas ainda tentam encontrar algum sentido na minha mente.

Acordei atrasado, me aprontei, ajeitei as coisas, me atrapalhei, acordei a Nina, segui o passo-a-passo matinal e fiquei tentando convencer minha filha de dois anos de que ir à escola é mais legal do que parquinho, desenho na TV, casa da vovó e brincadeira com o priminho.

Finalmente, convencida e com a mochila nas costas, saímos do apartamento e esperávamos pelo elevador quando ela se deu conta de que alguma coisa estava diferente na rotina dela:

– Cadê a mamãe?
– A mamãe já foi para o trabalho, filha. Hoje ela tinha que ir mais cedo.

Ela pensou, olhou para o elevador, para a porta e, espantada, exclamou:

– Nóis tá sozinho!?

Pois é, querida, seu pai conseguiu…

(post para o Frases de crianças)

Cenas domésticas: sensibilidade paterna

por Luiz Henrique Matos

Deitei com a Nina para ver um desenho na tv. Ela ali, encolhida, com a cabecinha recostada no meu peito. Momento de plena satisfação paterna e eu acreditando que, afinal, é das pequenas coisas que se fazem a vida e tal e tal.

– Filha? – falei sem tirar os olhos da tv.

Ela só me olhou com o canto dos olhos, sorrindo.

– Papai ama muito você, viu?

– Tá bom!

Não satisfeito, tocado pelo momento, emendei.

– O papai gosta muito de ficar aqui brincando com você, sabia?

Ela me olhou de novo, sorriu, voltou os olhos pra tv e comentou:

– Tá, papai. Mas não chola, tá?

(postado originalmente no Frases de Crianças)

A doce presença

por Luiz Henrique Matos

Ela tem a capacidade sobre-humana de fazer desaparecer todo problema.

Do alto de seus 80 centímetros ela torna pequenos todos os meus grandes assombros. Sua voz fina e miúda e o olhar vivo são capazes de curar algumas dores.

Estou deitado no sofá-cama do quarto de hóspedes aqui de casa. Quer dizer, era pra ser um quarto de hóspedes, mas as caixas amontoadas, livros e revistas pelos cantos dão conta da bagunça. Mudamos recentemente e, como em toda mudança, algumas coisas ainda precisam de ajustes. O que deveria ser um quarto, por razões evidentes, ainda não é.

Eu também. Deveria ser uma coisa, seguindo um plano bem arquitetado, mas a bagunça e ausência – ou excesso – de certos valores me descaracterizam. Deitei-me e calei. Quieto. Não é um dia bom.

De repente ela aparece na porta. Pára, olha, sorri e entra correndo (ela corre o tempo todo, saltita, mesmo quando quer ser sorrateira). Observo. E esqueço de tudo por um instante e desfruto o momento de cumplicidade, sem que nada precise ser dito. Nessa hora, ela, assim como eu, não exigimos nada um do outro. Simplesmente nos acomodamos em paz. E o estar é suficiente.

Algo nela me faz perceber quão pequeno eu sou tantas vezes.

E como era antes? Como era a vida sem ela? Já nem sei mais. Sei que toda a existência ganhou um sentido especial, único e enobrecedor com um bebê habitando nossa casa. Mas, peraí, mas não era ela quem deveria depender de mim?

Às vezes eu me pergunto o porquê dessa relação. Qual a razão desse amor? Entenda, esse não é o tipo de amor que se escolhe, ele é instintivo. Filhos não são o tipo de gente que você vá conseguir moldar para incluir no seu padrão de preferências. Eles simplesmente chegam, se impõem em nossas vida e tomam um espaço maior do que poderíamos imaginar que eles deveriam ocupar. E nós os amamos incondicionalmente, sem achar que nos devem alguma coisa por isso (mesmo pensando no valor absurdo da parcela da escola e naqueles brinquedinhos do Mcdonalds que são descartados na mesma tarde).

Tenho repetido de maneira até cansativa que ser pai tem me ajudado a ser um filho melhor para Deus. Bem, eu não diria melhor, mas talvez um pouco mais consciente do sentimento dele e de suas decisões ao longo da história – dentro, é claro, das minhas limitações.

Mas, observar esse relacionamento, me faz pensar nas razões que motivaram o Deus Altíssimo, o Todo Poderoso, o Senhor do Universo – e todas esses substantivos e atributos que escrevemos em letras maiúsculas em sinal de respeito e reverência – a criar o homem, esse ser tão fraco, confuso, falível e imperfeito.

Eu sei o quanto erro na maioria das minhas escolhas, reflito sobre minhas dúvidas e também sobre o quanto ele tem todas as respostas e fico pensando: porquê eu? Porque ele decidiu me amar? Porque ele se faz pequeno e restrito para que possamos compreendê-lo e não se irrita pelo fato de usarmos essa condição para questioná-lo e restringi-lo à nossa pequenez? Porque criamos religiões e costumes formais quando ele só queria que estivéssemos por perto, ao alcance de seu cuidado?

Bem, minhas questões existencialistas não passam pelo meu relacionamento com a Nina e eu sei bem que esse texto já tomou um rumo pouco agradável. Mas no fim, o que estou tentando compreender e expor é que Deus, podendo criar qualquer coisa que desejasse, concebeu o homem e, em nós, escolheu imprimir sua imagem e semelhança. Nos deu um espírito, nos fez conscientes de nossos atos, pôs um coração pulsante de vida e sentimento em nosso peito.

Eu sei que jamais entenderei suas razões, mas sou grato em pensar que ele nos fez para acabar com a solidão e o vazio do mundo. Fico feliz e um tanto intrigado ao pensar que é possível que Deus não quisesse estar só ou não sentisse que simplesmente ser Deus fosse suficiente para si e desejou criar-nos para extravasar esse amor, para que pudéssemos entender a essência do que ele é quando sentíssemos uma parcela do que ele sente.

Talvez as coisas sejam mais simples do que pensamos. Geralmente são.

Deus é amor. E quando amamos, nós o entendemos. Quando amamos plenamente, nele estamos. E é esse amor absurdo, que não se explica, não se escolhe, que chega e se impõe, que ocupa um lugar no peito sem que possamos determinar sua parcela. É como a minha própria criação invadindo meu quarto bagunçado, acabando com o silêncio e a solidão. É como o fruto do meu amor, me olhando nos olhos, trazendo alegria para esse dia cinzento, tendo em si a capacidade sobrenatural de acabar com tristeza…

É um filho desinteressado entregando-se nos braços do pai.

Leia também:
De mãos dadas

Versos infantis 2 – Alegria, tristeza e distração

Sobre ser pai no dia dos pais

por Luiz Henrique Matos

O melhor do dia dos pais não é estrear no clube dos adultos – bem, ao menos na minha visão conservadora, ainda acho que os pais deveriam ser adultos – mas, descubro meio sem querer, é a chance de ser criança sem que ninguém te cobre diferente.

Dia dos pais é dia de ser brega, de ganhar presente e de usar pantufa, de grudar na geladeira uma folha de papel com algum desenho rabiscado em guache, de ser paparicado no almoço, de ficar à toa em casa com a prole, de brincar com a filha e a esposa. É o domingo ideal. Dia dos pais é o dia de sentir-se o “patriarca”,  ainda que esse sentimento se dê pelo fato simples de jogar bola com sua filha de dois anos, de determinar o time que a pequena vai torcer e poder escolher a sobremesa do almoço.

Grande dia!

De mãos dadas

por Luiz Henrique Matos

De mãos dadas

De mãos dadas

Se tem algo que eu gosto é segurar a sua mão. Não importa a ocasião, ao atravessar a rua, sentados nos sofá, ajudando a fazer força enquanto ela usa o banheiro ou simplesmente para dirigi-la em alguma situação. Aquela mãozinha envolvida na minha me ajuda a ter a dimensão da sua dependência – e o meu desejo de sempre garantir que ela saiba disso. Os dedos finos, a pele delicada, a palma da mão morna e úmida de suor, a minha certeza de ter o que é meu por herança.

Por uma mão ela arrasta uma boneca, um copo de leite, um lápis de cor com a ponta gasta. Por outra ela se arrasta, segue cegamente os passos daquele em quem confia e lhe dirigirá os passos.

Não preciso dizer que ela tem crescido mais rápido do que eu gostaria. Daqui a pouco ela será maior do que eu, mais inteligente, independente e, apesar de mais magra – isso não é nada difícil dado o meu último indicador na balança da farmácia – eu já não conseguirei carregá-la no colo.Mas não importa o quanto ela cresça, acho que sempre terei a sensação de que sua mão cabe dentro da minha e que, desse jeito, continuarei sendo o “papá” a quem ela recorre quando precisa de algo, quando deseja brincar, quando quer descansar.

Gosto de não precisar ouvi-la dizer nada e apenas erguer os braços com a mão espalmada tendo a certeza de que eu retribuirei. Gosto de sentir os dedinhos se entrelaçando aos meus, me dando a sensação tátil do mesmo sangue que somos. Não gosto de vê-la com medo, chorando, mas corro e me precipito em segurá-la, mãos erguidas em minha direção, para que saiba que sempre, sempre estarei ali para ampará-la. Faço tudo para estar.

Imaginar minha cria sozinha, abandonada à sorte, provas e desafios que esse mundo descarrega sobre nós não é dos sentimentos mais agradáveis. Chego a pensar que gostaria de tê-la nos braços o tempo todo. Mas sei que não é possível e, por hora, imagino também que não é o mais apropriado. Ela precisa viver, vai precisar aprender, vai ter que se virar sozinha. O coração debate com a razão e preciso aprender, eu, que o melhor a ser feito é o que é melhor pra ela. Dura realidade.

Ela já toma algumas decisões sozinha. Já fala por si. Ela já sabe andar em alguns lugares que antes lhe pareciam difíceis. Agora ela pedala o velotrol e já não depende de mim para empurrá-la. Eu estufo peito, coruja, ela tem aprendido coisas comigo – e eu ainda não me toquei que “velotrol” é uma palavra que morreu na minha infância e muito provavelmente ela nunca usará na vida!

Mas ainda tenho coisas a ensinar e minha alegria é estar com ela para isso. Caminhando de mãos dadas, fico feliz em poder andar devagar, no seu ritmo e limitações, para lhe mostrar o caminho que eu vejo à frente. Falo da forma mais simples possível para garantir que ela me entenda. Conto histórias e imagino coisas para que o conhecimento lhe seja algo claro.

Quero percorrer ao seu lado as trilhas que já conheço. Quero que sua infância seja recheada das brincadeiras, da ingenuidade e da inocência que eu acho que teve a minha. Quero que saiba que ao contrario do que argumenta um dos seus tios, torcer para o São Paulo é definitivamente uma boa escolha. Quero que ela conheça o Deus amoroso que eu conheço e o ame mais do que eu. Quero aprender tabuada, logaritmos, pi, raiz quadrada e alguma coisa de física – que nunca me entraram na mente – para poder ajudá-la a estudar nas provas do colégio. Quero, a contragosto e sem a mínima pressa (fique isso bem claro e documentado), poder conduzi-la até o altar ao encontro do homem de sua vida e que se realizem, que descubram juntos o amor e a razão do que os dois nasceram para ser: um. Quero repartir minhas experiências e aprendizados para poupar-lhe esforço e sofrimento, mesmo sabendo que, assim como eu fiz um dia, ela vai me achar um tolo antiquado e ignorar a maioria desses conselhos – e eu não me sentirei vingado quando, depois de se dar conta, ela falar que eu tinha razão. Quero mesmo que ela tenha mais razão do que eu, porque isso também mostrará que foi mais longe do que o pai.

E só quero ainda, assim de forma egoísta mesmo, que ela saiba de tudo isso e quando afinal descobrir que não sou tão grande, forte, inteligente quanto pensou a vida toda e então souber que o herói de sua infância é um pobre homem falível e cheio de pecados, que ainda assim se sinta orgulhosa em me chamar de pai. E que eu estarei sempre ali.

É irônico, talvez, saber que um filho não conhece a fraqueza de seu pai até que os anos passem e finalmente os corações se encarem e tudo venha a tona.

É irônico, certamente, depois de alguns anos de convivência mais íntima, saber que o meu Pai, o Deus da minha vida, perfeito e soberano, tem justamente no amor a sua fraqueza. E sensibilizado pelos corações quebrantados, pelas atitudes rebeldes, pelo choro desesperado, pela rendição cega e confiante dos filhos, ele se move, ele se rende, se entrega, encarna, perdoa, carrega, refaz. Ele estende a mão.

O Deus amor é Pai.

E, bem, talvez ele não seja são-paulino, talvez nunca me explique pra que raios servem os logaritmos, talvez tenha me deixado só por um tempo para eu aprender a andar sozinho. Mas, quando estendo minha mão espalmada, morna e úmida de suor para o alto e diante dele estou… arrependido, dependente, grato, resignado, com medo ou simplesmente estou, posso sentir a sua mão, forte e também delicada, e os dedos entrelaçados aos meus me dando a segurança de sua presença e a afirmação eterna de que sou filho, fruto do seu sangue.

Cenas domesticas: Co-piloto

por Luiz Henrique Matos

Já era tarde. Quase dez. Hora de criança estar na cama, já diriam várias pessoas. Mas nós ainda estávamos na rua, no carro, a família toda voltando do shopping. Adultos na frente, em silêncio, acreditando no sobrenatural poder sonífero que os automóveis exercem sobre as crianças e desejando que a nossa já estivesse dormindo para ainda tentar ver um filme qualquer no DVD (é incrível como nosso critério de filme bom muda depois da paternidade – até o Van Damme vira um clássico, raridade mesmo).

Finalmente, já na garagem do prédio, duas ou três curvas feitas suavemente e estacionamos o carro. Música desligada, freio de mão puxado, cintos soltos correndo de volta para o buraco-negro dos cintos de segurança e lá de trás uma voz desponta no silêncio:

– Ahh, cheguei!

Cenas domésticas – Herbalife

por Luiz Henrique Matos

Centro de São Paulo, rua lotada, multidões de pessoas se empilhando por todo lado e ambulantes vociferando suas ofertas de produtos piratas.

Nesse embaraço, o pai a carrega no colo já há quase uma hora. O braço cansado, a coluna pendente, as pernas fracas, o suor em bicas. Ela já tem dois anos. Ela já tem quase 15 quilos. Ela sorri. Está tudo bem.

Ela para de olhar a rua por um segundo, sonda o rosto do pai, o fixa nos olhos, passa os dedos pela barba e com os dedinhos juntos aperta-lhe as bochechas enquanto exclama sorridente:

– Gordinho!

Era só o que me faltava.

Cenas domésticas – Aniversário

Da série “Coisas lá de casa”…

Mãe: Nina, fala pra mamãe: quantos aninhos a Nina vai fazer?!?
Nina: Deeeeeezzzz!
Mãe: Não, filha, são dois… assim ó, com dois dedinhos. Conta junto com a mamãe. Depois do número 1 vem o…
Nina: Dooooooiissss
Mãe (empolgada): Isso, bebê!!! Que linda! Agora fale… quantos aninhos a Nina vai fazer?!?
Nina: Deeeeeezzzzz!!

Música para os meus ouvidos

por Luiz Henrique Matos

Ela tem dois olhos bem redondos, castanhos e quase sempre animados enquanto se concentram em alguma atividade. São esses olhinhos, muitas vezes, a primeira coisa que vejo no dia, bem de perto, quando acordo e ela já está ali na cama, quietinha, esperando. E abre um sorriso, com seus cinco dentes na boca, os olhinhos ainda inchados, as bochechas coradas e os dedos que me cutucam os olhos quando eu ouso fechá-los na tentativa de dormir mais um pouco, uns cinco minutos. Mas não dá, é irresistível. Ela está ali, com a testa colada na minha, respirando no meu rosto, me encarando, animada para começar o dia.

São os olhos espertos que me sondam pelo espelho, enquanto faço a barba no banheiro (“ué, que negócio é esse na cara dele?”, acho que ela pensa). Olhos atentos que me enxergam de longe no supermercado e eu a vejo estender a mão, me chamando para perto. São os olhos vagos semi-cerrados que pedem colo, lá pelas tantas da noite, quando ela já não resiste ao sono. Os mesmos que, cheios de lágrimas, pedem socorro depois do seu fracasso (leia-se: tombo) na tentativa de escalar algum móvel na sala. É o olhar brilhante, vivo, rodeado por aqueles cilhos compridos, o rosto gorducho e a boquinha rosada. É a sensação incrível de ver aquela pessoinha correr estabanada na minha direção ao me ver chegar em casa.

Fiquei mal acostumado. Eu diria: bem acostumado. Minha esposa iria falar que eu sou é carente mesmo. Mas o fato é que todos os dias espero por isso. Chego do escritório e, enquanto subo pelo elevador do prédio, já ajeito os papéis sob o braço e a alça da pasta sobre o ombro para abrir a porta de casa e esperar que ela venha.

Essa é das coisas mais rotineiras, eu bem sei. Sempre achei um clichê, gesto enfadonho, momentos estereotipados nos comerciais, a cena do pai ajoelhado, gravata frouxa no colarinho, sorriso estampado no rosto e braços abertos, esperando o filho que corre para se achegar em seus braços. O fato é que é exatamente assim que acontece. E eu me rendo ao rótulo que se quiser dar a isso e digo, a bem da verdade, é dos momentos que mais espero no dia.

E numa dessas “feiras” das quais se fazem os dias não ociosos da semana aconteceu, como sempre. Todo o ritual se repetiu, do elevador à porta de casa, do tilintar da chave na fechadura aos ruídos dela se movimentando na sala, do ranger da dobradiça enquanto a porta se abria (que agora lembrei ainda não cuidei de arrumar) aos primeiros sons da sola do meu sapato pisando no corredor da sala, do “quem chegô?” dito pela minha esposa ao afrouxar da gravata no colarinho. E foi ali, ao topar de frente com minha menininha correndo que ouvi:

– Papa!

Ela falou!

Saiu em disparada do sofá, as bochechinhas tremendo, os passos concentrados na minha direção. Em disparada, meu peito acelerava na sensação única de ver meu fruto me olhar nos olhos e dizer meu nome – ou a palavra mais simples que signifique essa condição paterna.

– Papapapapapapa… papa!

– Oi Nina!

Ela falou para mim. E se me pedisse o mundo naquela hora eu lhe daria (sabe como é, financiamentos bancários já não são tão difíceis de se conseguir ultimamente).

Eu olhava para aquela coisinha, que ainda precisa de mim para qualquer de suas necessidades básicas de sobrevivência e tinha consciência de que, naquele instante, ela era dona do meu coração. Seus olhinhos redondos brilhavam e o rosto sorridente me perseguia.

Duas silabas elementares no vocabulário de qualquer ser humano com mais de 6 anos, mas que a julgar de onde vinham, tornavam todas as outras coisas menos importantes por um momento. Era o melhor dos elogios que eu podia ter ouvido nesses dias.

Sim – respondendo a uma pergunta que talvez você não tenha feito –, ela já havia falado outras coisas antes. Disse “mamã” para chamar aquela que é justa merecedora da primeira fala. E disse “kissss”, para chamar a nada merecedora cachorrinha no quintal da casa da minha sogra, enquanto fingia estalar os dedos.

(Eu estava em terceiro lugar nessa fila, mas quem se importa com o detalhe de que antes de me chamar ela tenha aprendido a correr atrás de uma poodle que não lhe dá a menor atenção e que ela só vê uma vez por mês? Quem liga? Hein? E estalar os dedos! Hein?!?)

E aquela voz admirada se dirigindo a mim soava como expressão de louvor. Era ela, minha cria, aprendendo uma coisa nova e se expressando para mim. Orgulho, corujice, satisfação, amor, coração mole, euforia, puro exagero. Sim, a mãe dela tem razão, sou meio carente.

Aquela voz, o resmungo, o chorinho pelo qual eu largo tudo e lhe volto minha atenção. Deixo trabalho, abandono um livro aberto sobre a mesa, largo as tarefas por fazer, deixo o feijão esfriar no prato, desligo o futebolzinho na TV. Abandono a mais importante das prioridades, porque meu pequeno fruto precisa de mim. Eu nunca imaginei que seria assim, mas o coração de pai renuncia de si em favor do seu sangue que corre naquelas frágeis veias.

E ainda agora, alguns meses depois, aquela vozinha mínima me chamando ainda é capaz de me mover. E fico pensando que vai ser assim a vida toda. Se ela chama, eu vou. Se estou deitado, me levanto. Se ela diz algo, respondo. Se ela chora, eu acordo. Se ela pede, invariavelmente, eu dou.

Ela é filha, eu sou pai. E quando ouvimos a voz da nossa própria carne nos chamando, que pai não pára e se curva para ouvir, responder, atender ao pedido de um filho?

Quem resiste?

Nenhum pai. Nem o Pai.

Sobre a velhice, rotinas e prioridades

por Luiz Henrique Matos

Eu nem posso dizer que não haviam me avisado. As frases-feitas me passam pela mente como verdades nas quais eu não quis acreditar. “O tempo voa”, “vixe, passa rápido”, “aproveite agora”, “você vai ver como cresce rapidinho”… eles tinham razão.

No mês passado ela fez um ano. Já fez um ano! Corre para todo lado, balbucia as primeiras palavras, arrasta os brinquedos pela sala, faz as manhas de todo neném quando quer algo e engorda e cresce em ritmo de gado novo. O que eu posso fazer? Nada, nem sei por que pergunto. Os cabelinhos encaracolados, a pele branca, bochechas gordas, a boquinha rosa… Nina, meu neném, até há pouco tempo totalmente dependente, agora é uma pessoinha cheia de vontades, uma menina, criança, que daqui a pouco cresce e cresce mais. E assim vai. Quando se vê, já foi.

Passa rápido demais. E percebo que tem coisas dos últimos anos que se misturaram na memória. Vi-me mais uma vítima de outra verdade, a de que depois dos dezoito os anos já quase não se contam. E ficam esparsos, cada vez mais, os momentos memoráveis do dia-a-dia. A praga da rotina.

Não, não reclamo da vida. Ela é boa demais da conta. Tenho esposa, uma filha, trabalho. Tenho Deus, meu Senhor e Pai. Minha família e meus amigos. O que paro pra pensar é na rotina – sempre ela – e nos dias que insistem a passar, na parte da vida que se contam nas horas, que observo já vivida, lá atrás, através do retrovisor do carro que dirijo em primeira marcha no trânsito caótico dessas nossas avenidas.

Também não vou me iludir, o auto-engano é frustrante demais. Sei que as coisas continuarão como são e assim sempre serão. Mas eu não. Quero fazer diferente.

E isso passa pelos momentos memoráveis, daqueles mais simples, de um dia de boas risadas, boa comida, de descompromisso.

É o que eu quero. Estar com minha família e aproveitar. Lembrar que os recursos mais valiosos são aqueles para os quais dedico mais tempo. Jesus disse: “onde estiver o seu coração, ali estará o seu tesouro”. Falta agora um pouco dessa ordem em mim.

Deus, família, trabalho, igreja… tudo tem sua ordem, seu tempo, valor. Mas mais do que uma fração de minutos ou dias, importa a qualidade e não a quantidade que se emprega.

Para entender esse valor, recordo das boas marcas e lembranças. São essas coisas que quero viver mais. Em casa, à mesa, na rua, no chão, na estrada, à mesa, de mãos dadas. Sei que sou mais do que o acaso. Sei, em Deus, que existe um propósito para a vida. E eu gostaria de envelhecer e saber que cumpri com integridade minha jornada, o bom caminho. Mas não só. Se for assim não tem graça. Bom será saber que o fiz ao lado daqueles a quem amo.

Todos lá sentados num gramado de verde quase escuro, numa tarde de sol brando e céu azul, ao lado do pomar, em frente à casa de madeira clara, o cão correndo pelo jardim, as crianças brincando na terra, os adultos brincando na terra, uma boa rede estendida, a mesa posta com toalha branca embaixo da árvore cujo galho serve de sustento para o balanço de pneu de caminhão, o suco fresco servido gelado, a moça grávida sonhando com os dias da nova vida que carrega no ventre ao lado do marido que lhe acaricia os cabelos, o cheiro de café coado e recém fervido no bule invadindo o ar… e a certeza de que isso não nos custa mais do que um bom sonho.

Salomão sabia das coisas. Já idoso, no fim da vida, tratou de registrar o que observou para que pudéssemos aprender alguma coisa.

“Portanto, vá, como com prazer a sua comida e beba o seu vinho de coração alegre, pois Deus já se agradou do que você faz. Esteja sempre vestido com roupas de festa, e unja sempre a sua cabeça com óleo. Desfrute a vida com a mulher a quem você ama, todos os dias desta vida sem sentido que Deus dá a você debaixo do sol; todos os seus dias sem sentido! Pois essa é a sua recompensa na vida pelo seu árduo trabalho debaixo do sol. O que as suas mãos tiverem que fazer, que o façam com toda a sua força, pois na sepultura, para onde você vai, não há atividade nem planejamento, não há conhecimento nem sabedoria.” (Eclesiastes 9:7-10).

E penso, decido agora, que não vou eu esperar o fim da vida para chegar às mesmas conclusões que o sábio rei. Posso e vou fazer agora, aquilo que de fato tem valor. Quero ser o homem rico, cheio do tesouro que realmente interessa e vale a pena acumular.

Meu coração está no meu tesouro.

E confesso que às vezes eu queria mesmo é que o tempo não passasse assim de forma tão brusca. Que minha menina pudesse caber em meus braços para sempre. Que eu conseguisse me manter o humor do garoto que conquistou o coração da moça mais bonita, que um dia me disse o “sim” definitivo num altar. Tanta coisa. É bobagem minha, tempo gasto à toa. Importante é o que posso fazer desde agora.

Deus não faz um só dia igual ao anterior. Não tem amanhã que possa ser previsto e também não existe ontem que possa ser vivido outra vez. E acho mesmo que para o amor, hoje é nosso melhor momento. O que faço agora é o semear do fruto que colherei daqui a pouco e também lá na frente. E minhas prioridades revelam meus valores, me revelam.

O resto, Salomão me ensinou, é correr atrás do vento.

“Agora que já se ouviu tudo, aqui está a conclusão: tema a Deus e obedeça aos seus mandamentos, porque isso é o essencial par ao homem.” (Eclesiastes 12:13).

Primeiros passos

por Luiz Henrique Matos 

 

Soltei minha pasta no chão, larguei o paletó sobre a mesa, afrouxei o nó da gravata e arregacei as mangas da camisa. Eu acabara de ouvir a novidade e não podia acreditar que estava acontecendo. Bem, quer dizer, podia sim, já havia imaginado centenas de vezes como seria esse momento. Mas nada se parecia com aquilo.

Ajoelhei, abri os braços e fiz o convite:

– Vem, filha. Vem aqui com o papai.

Ela riu. Sempre ri. Soltou seu apoio no encosto da cadeira e deu o primeiro passo, cambaleou, tentou se equilibrar, ôôô, caiu sentada. Sem problemas, a fralda amortece a queda. Pronto, vamos recomeçar. Em pé. Um passinho, dois, outro, mais um, vários, vários passos. Ela vinha atravessando a sala em minha direção, com aquela insegurança típica da inauguração dos momentos importantes da vida, com um sorriso de conquista naquela boquinha banguela, seus olhos alternando entre o chão logo à frente e o meu olhar concentrado, orgulhoso, paterno, protetor, satisfeito, radiante, coruja.

– Que belezinha! Minha princesinha já está andando! Parabéns, filha. Que linda! Agora ninguém te segura… Amor, vai tirando tudo o que é de vidro aí de cima do móvel. Amor, você viu isso?! Preciso filmar! Amor, cadê a câmera?

Ela andou. E agora sai descontrolada pela sala, quartos, banheiros, cozinha, corredor, shopping center e ruas. Ela vai a toda, cambaleando, tropeçando, caindo e confiante. Independente.

Será que ainda vai precisar de mim para alguma coisa?

Até ontem só andava mesmo de mãos dadas, com aquela mãozinha suada apertando o meu dedo indicador e um pedaço de pão preso na boca. De mãos dadas com o pai, seus passos são mais largos, ela se sente mais segura. Eu era seu ponto de equilíbrio. E ainda pedia colo para qualquer coisa.

O tempo vai passando. Não me cabe julgar a velocidade das coisas, é o tempo, e pronto. Mas com o passar dos dias consigo enxergar um pouco do meu papel como pai se cumprindo, uma porção do trabalho finalmente frutificando.

Às vezes (cada vez menos) é possível perceber sua insegurança. Ela olha os cinco metros à sua frente – que a visão em miniatura deve transformar em cinco quilômetros – e fica com medo, ameaça sentar, pede colo. Vencendo os instintos super-protetores (são muitos, acredite), eu mantenho distância, estendo os braços e a incentivo a seguir sozinha.

Lembro que Deus já fez isso comigo. Não faz muito tempo, eu nem sabia andar. Levantou-me, estendeu o dedão para que eu me apoiasse e soltou minha mão no momento certo. Na outra ponta, de olhos esbugalhados e braços abertos, estava lá, coruja, orgulhoso de ver sua cria caminhando pela primeira vez com as próprias pernas. Cambaleante, mas vitorioso. Era eu.

Deus me fez para aprender a andar sozinho.

Apesar de já andar sozinha pela casa, a Nina ainda me pede colo. Quando está cansada, quando cai e começa a chorar, quando precisa de alguma coisa ou, nos mais deliciosos instantes, quando corre para um abraço.

Eu nem ligo, eu gosto, é minha filha.

Às vezes eu peço colo.

(Crônica escrita para o Comunidade Carisma.net)