A melhor história real de todos os tempos

Belíssimo projeto do Voa Flor.

O semblante

Brasilia

Há uma mensagem entalhada na cruz; há um eco no túmulo vazio.

Somos pessoas remidas, somos seres eternos. Ao crermos em Jesus, em sua mensagem e na ressurreição, recebemos por antecipação a dádiva da eternidade. Somos salvos, isentos de culpa, somos amados e livres para ser e amar. A consciência disso deveria naturalmente transformar nosso semblante e inspirar nossa maneira de viver integralmente. Deveríamos ser mais gratos, mais afetuosos, caridosos, servis, menos egoístas. Deveríamos refletir o caráter gracioso de Jesus Cristo no mundo em cada fôlego de vida. Porque Deus, o dono do Universo, o criador de todas as coisas, o Pai, nos ama, habita em nós e nos chama de filhos.

Mas a obscuridade do mundo nos desvia o olhar. Deixamo-nos dispersar e perder a rota. Somos afetados pelas circunstâncias, pelas sombras que se projetam sobre nossas almas, pela dúvida que paira no canto do ouvido, pelo pecado que nos isola. Permitimos que a soma dos fatos cotidianos nos disperse. Os erros, nossos e dos outros, as notícias do cotidiano, da política, de guerras, um funk tocando alto, um cadarço desamarrado, uma discussão em casa, um pastor corrupto em evidência, uma tempestade que surge sem avisar. E tudo isso é tão pequeno, é fugaz, mas deixamos que questões superficiais, efêmeras e passageiras nos desviem da rota e afetem nosso senso sobre a realidade.

E a realidade não é, absolutamente, o que se passa sob nosso olhar inquieto. A realidade suprema, devastadora e pungente, é a eternidade, a paz, o amor transcendente da graça divina nos tomando nos braços para sempre.

Vocês afirmam ter um Salvador. Por que não parecem salvos?

Mais de cem anos atrás, o filósofo ateu Friedrich Nietzche censurou um grupo de cristãos com as seguintes palavras: “Eca! Vocês me enojam!”. Quando o porta-voz dos cristãos perguntou por que, Nietzche respondeu: “Porque vocês, remidos, não parecem remidos. São tão cheios de temor, tão dominados pela culpa, tão ansiosos, tão confusos e tão sem direção quanto eu. Mas eu posso ser assim. Eu não creio. Não tenho nada sobre o que lançar a minha esperança. Mas vocês afirmam ter um Salvador. Por que não parecem salvos?”

– Brennan Manning, em Convite à solitude (p. 26)

A crônica da montanha

solitude

– Não esquece de ligar quando chegar.
– Tá, pode deixar.

Fazia quase dez anos que estavam casados e nunca tinham ficado mais do que duas ou três noites longe um do outro. Ainda assim, nunca mais do que quatro horas de carro ou um telefonema interurbano de distância. Agora ele viajaria a trabalho para fora do país por uma semana e tudo aquilo era um sentimento inédito.

Abraçaram-se mais do que o normal naquelas vésperas, almoçaram juntos no dia da viagem, trocaram afeto, certezas e olhares confidentes. Chegou o taxi, ele partiu, o coração apertado num misto de apreensão e saudade que durou toda a viagem de dezoito horas. Aterrissou, o peito ainda daquele jeito, se virou com um café no aeroporto, tomou um taxi, acomodou as malas no amplo quarto do Little America Hotel e finalmente ligou para ela avisando que “sim, foi tudo bem, graças a Deus”. Tirou uma foto do quarto com o celular e saiu para comer um sanduíche de peru, caminhar e conhecer os dois pontos turísticos da cidadezinha.

Na primeira noite, durante um jantar, soube que depois de quatro dias de conferência, os participantes seriam levados para um dia de esqui nas montanhas. “Acho que vamos para o leste”, disse um que já havia estado na cidade outras quatro ou cinco vezes. “Mas aqui, eu prefiro outras montanhas. Eu gosto é de ir para Solitude.”

Solitude é uma montanha.

Os dias se passaram sem qualquer grande fato que mereça essas linhas, mas com a observação não menos descartável de que, a cada manhã, enquanto caminhava em silêncio em direção ao centro de convenções e voltava à tarde, ainda calado, para o hotel ou um restaurante, ele podia observar as montanhas cercando a cidade. A neve nos picos, o céu azul, talvez dez ou doze delas se projetando imponentes sobre aquele vale. Havia realmente tanto o que se pensar na vida naqueles dias, decisões importantes a tomar, reflexões que lhe requeriam tempo. Mas ali, longe de tudo, não havia o que pudesse ser feito. Naquele momento, só restava se concentrar no trabalho, aliviar a saudade de casa em ligações pelo Skype, seguir em frente e esperar.

Pisou a neve no dia do esqui. Espatifou-se naquele tapete branco por boas horas. Comeu um hambúrguer, bebeu uma cerveja vermelha local, comprou luvas, um chocolate quente, procurou se manter aquecido. Via aquela gente toda flutuando sobre suas pranchas, por todos os lados, se deixando levar pela velocidade, vivendo na superfície. Tudo parecia uma dança elegante. Mas ele precisava ouvir o som. Olhou para o topo, no frio mais alto, queria subir a montanha, a neve lhe caia nos ombros, sentia que precisava daquilo. Solitude parecia um encontro consigo.

Mas não subiu, não dava, não naquela manhã. Tomou o ônibus de volta para a cidade, caminhou, comeu, fotografou os prédios e as pessoas, observou os pássaros, anotou coisas. Podia ver as montanhas cercando a cidade o tempo todo, todas elas, e se perguntava se o que procurava estaria lá, ao alcance da vista, talvez sob os pés.

Sentou-se na parte elevada do prado para observar o lago, as gaivotas e um pai que brincava com o filho. Lembrou do Drummond e o do “sentimento do mundo” que lhe corria nas veias então, sentiu saudades de casa, da família, onde sabia de verdade quem era, o abrigo de si mesmo onde sua identidade se revelava. O coração não tinha partido.

Balbuciou uma oração, uma precezinha de gratidão e sentiu-se confortado por Deus, bem ali. A alma do homem ansiava por solitude, mas sua maior satisfação agora era saber que, em montanhas ou vales, jamais estava sozinho.

História em tempo real

Ninarte

Ela atravessou a sala e veio caminhando em minha direção.

– Pai?
– Oi, filha.
– Sabe esse caderno que você me deu? – ela o carregava encaixado sob o braço. Eu vou brincar que esse vai ser o meu diário.
– Ah é? E o que você vai escrever aí?
– As coisas que acontecem.
– Entendi. Tá bom então. Acho que vai ser legal.
– É… E pai, quando eu crescer e eu souber ler, vou escrever nele.
– Combinado.

A mesa dela fica no meio da sala, entre a TV e o sofá. É laranja, cheia de figuras do Co-co-ri-có e destoa completamente da decoração off white cuidadosamente planejada pela Manú. Mas ninguém liga, é uma mesinha pequena, com uma cadeirinha também, sobre a qual ela deixa três canecas de plástico transbordando de lápis-de-cor, giz de cera e canetinhas, dezenas de folhas com desenhos, cadernos rabiscados, pincéis, alguns livros e um mundo inteiro de fantasias. Ela gasta horas ali sentada, concentrada, desenhando e pintando.

– Papai, quando eu crescer vou querer ser cabeleireira, costureira e artista. Eu nasci pra isso – ela disse outro dia no carro.

Das três, a última é a única que, para o bem-estar social coletivo, ela pode exercer aos cinco anos de idade. E eu prefiro mesmo que ela não pense em trabalho agora. Eu gostaria de não estar pensando.

Estou sentado na mesa de jantar, tomando essas notas num pequeno caderno de folhas amarelas. É onde quase tudo começa. Acabamos de jantar, tirei a mesa com as louças da casa e lá no quarto mãe e filha se preparam para dormir. Foi um dia cheio. Dias, aliás, eles têm sido.

Li, hoje, uma coluna do jornalista Alexandre Matias comentando a morte prematura do programador e ativista norte-americano Aaron Swartz, que cometeu suicídio na semana passada. Matias lançou mão do trecho de um poema de Allen Ginsberg que diz “vi as melhores mentes da minha geração destruídas pela loucura” que foi posteriormente parodiado e se propagou por esses ventos digitais como “vi as melhores mentes da minha geração pensando em como fazer as pessoas clicarem em anúncios”.

Eu pensava nisso antes do jantar, enquanto descia pelo elevador e caminhava até a portaria do prédio para buscar a pizza que havia pedido. Onde estão os nossos gênios agora? A que fins tem se prestado senão em servir a Máquina com seus préstimos em troca de dinheiro?

Num momento da história em que tantas oportunidades se revelam, em que o acesso à informação e o conhecimento se escancaram, temos preferido mesmo a frieza dos escritórios e carreiras em companhias “inovadoras” ao desconforto da incerteza. Falta algo aqui.

Nosso mundo carece desesperadamente de ideais. Falta nobreza às nossas causas. Falta um significado.

Eu, que não sou nada genial, uma mente ordinária e limitada, fiquei com a dúvida inconveniente. E quando terminamos o jantar e me sentei para tomar essas notas, eu ainda pensava nessa coisa toda. Lembrei dos meus cadernos e lápis, que eu carregava por onde fosse na infância. Como os da Nina, eles tinham um desenho aqui, outro ali, e um monte de histórias inventadas. Esse era meu passa-tempo, eu gostava de escrever. Eu tinha nove anos e, quando crescesse, queria ser jogador de futebol, vocalista de uma banda de rock e escritor. Hoje, no duro, eu passo o dia pensando em como fazer as pessoas clicarem em anúncios.

E não é preciso ser gênio para notar que era na infância que nos alimentávamos, além de todinho e lactobacilos vivos, com sonhos puros. Você e eu, admita. Tínhamos, com a imaturidade, também a inquietude, a fé simples e um milhão de interrogações para despejar no mundo dos adultos. Líamos histórias, inventávamos histórias, imaginamos e passamos a querer escrever a nossa própria, de um jeito diferente.

Mas… bem, você conhece essa continuação tanto quanto eu.

As luzes da casa foram se apagando nos minutos que seguiram, o volume todo se reduzia aos poucos, ficava tarde. Então o som dos passinhos veio do corredor e ela se aproximou.

– Tô com sede.
– Sua água ficou aqui.
– Hum.

Continuei no caderno.

– Pai? O que você tá escrevendo aí? Posso pintar? Que legal sua caneta. Isso aqui você usa pra marcar a página onde parou?
– É só uma história, filha, umas coisas.
– Lê pra mim?
– Hum, tá.

Comecei. Do primeiro parágrafo: “Ela atravessou a sala e veio caminhando em minha direção…”

– Haha, ah, paiê!
– O que foi?
– Por quê você…?
– Filha, agora vai dormir, já está tarde.
– Pai, lê pra mim!
– Mas eu ainda não terminei, Nina.
– Então deixa eu te ajudar a escrever sua história?

E eu só queria dizer: “você está na melhor parte dela, querida.”

Noite de domingo

Domingo à noite, clima ameno, avenida central da periferia. As ruas vazias, o lixo espalhado no meio-fio, as portas de aço fechadas, só uma pastelaria aberta, um cachorro dormindo na porta e meia-dúzia de pessoas esperando pelo ônibus no ponto.

O menino dormia em seu colo, a cabeça tombada sobre o ombro e ela tinha que se curvar um pouco para aguentar o peso todo com um braço só. Na outra mão, quatro sacolas cheias de roupas, vasilhas, os mantimentos para a semana e o fio do plástico pesado lhe cravando a pele nas dobras dos dedos.

Quando o SP-0846 recolheu aqueles últimos passageiros, ela ficou aliviada em poder encontrar um banco pra sentar. Colocou o menino de lado com a cabeça deitada sobre o colo, juntou as sacolas entre os pés e rendeu a cabeça no vidro da janela. Pelos seus olhos a cidade passava rápido, as avenidinhas movimentadas, a mistura das luzes das placas, dos semáforos, do neon, dos faróis. Do alto, sondava através das janelas dos carros, as famílias juntas, arrumadas, voltando de alguma celebração dominical.

Desceu do ônibus direto pela viela. O salto da sandália estalava e se arrastava pelo corredor. O menino crescia, estava pesado. Ameaçava chuva. O portãozinho de ferro rangeu quando ela abriu, deixou bater e seguiu até a casa dos fundos. Na TV ligada passava o Topa Tudo, no sofá, sentada, a senhorinha tirava um cochilo com uma bacia de pipoca no colo. Bateu devagar na porta.

– Dá licença.

– Ahn? Éé… Oi! Entra, menina. Tava aqui rezando um pouco.

– Desculpa incomodar.

– Magina, que nada, vem. Cheguei da igreja faz hora, tava te esperando. E já dormiu o meu rapazinho?

– Ih, esse aqui cansou bastante hoje, só correu o dia todo. No primeiro ônibus já estava entregue.

– Tanta inocência. Bota ele lá no quarto.

– Tá, vou ali, só um segundinho.

Atravessou o pequeno cômodo, a cozinha e seguiu lá para o quartinho dos fundos. Deixou cair num canto as sacolas, deitou o menino num colchão de berço que ficava no chão, tirou-lhe os tênis e foi fuçar a cômoda para pegar uma roupa limpa. Sorriu ao ver os Hot Wheels que lhe dava enfileirados no fundo da gaveta junto com os bilhetes. Vestiu nele um shorts, o cobriu com um lençol e acariciou seu cabelo até que suspirasse fundo antes de entrar num sono profundo.

Na cozinha, a senhora requentava algo no fogão.

– Vem, senta aí, toma uma sopa comigo.

– Obrigada, mas já está na hora. Tenho que chegar na casa da patroa antes de o Fantástico acabar.

– E tão te tratando direito naquela casa, menina?

– E tem outro jeito?

– Ai, Dolores, vê se te cuida. Você nem sabe como é que é essa gente. Porque não fala com a Ceição? Ela saiu de uma dessa e foi trabalhar num mercadinho. Trabalha até de domingo, mas pelo menos volta pra casa. Pelamordedeus, você sabe que eu morro de paixão pelo Jônatas, não é disso que tô falando, ele é um anjo, mas minha filha, esse menino aí precisa de você.

– Mas quem é que dá emprego pra alguém como eu? Quem é que confia?

– Você é boa, menina, não fala isso!

– Sou uma bandida – falava fitando o chão.

– Que isso… pensa no que Deus te fez, minha filha. Quanto livramento, pensa na beleza da vida.

– O que foi que ele me fez? Que alegria!? Ficar dois anos naquele inferno por causa de um infeliz? Fui parar naquela jaula porque estava cega! Eu achava bonito, achava romântico ele ficar me prometendo tudo aquilo, me dando flores, perfumes, amor, um filho, me chamando de “minha madame”. Ele falava que estava crescendo no serviço, que ganhava comissão e ia virar gerente. Eu nunca tive noção disso, de dinheiro, eu acreditava. Eu precisava acreditar. Burra! Aí, ele… aí ele morre. Me leva três tiros no peito, me deixa sozinha com o menino, me larga na casa, me chega a polícia e tem toda aquela droga lá no quartinho do fundo. Meu herói era um bandido, a senhora imagina? Eu achava que vivia um conto de fadas, mas era só um sonho. A minha realidade é esse pesadelo. Eu fiquei dois anos naquela cadeia, mas a vida inteira já acabou pra mim e eu continuo aqui. Que chance eu tenho? Deus me abandonou naquele dia e não me ensinou o caminho de volta. O que sobrou pra mim, Dona Graça?

Desandava então no silêncio. Travava os lábios, toda memória represada, nenhuma lágrima. Os dedos espremiam no antebraço a tatuagem que lhe fizeram na primeira semana encarcerada, a cicatriz que nunca a deixava esquecer da ferida que um dia se abriu e ainda doía. Ela esfregava o chão todo dia com tanta força, deixava tudo brilhante com seu empenho, tudo o que queria era se sentir limpa.

– Ele nunca te deixou, Dolores. Misericórdia, não se entrega assim, não. Confie em Deus, ele sempre esteve com você, menina. E a vida a gente reconstrói, num tombo depois do outro, tem que levantar. Tem que levantar! Você é moça ainda, pode ter de tudo. E lembra que você tem seu filho, esse tesouro que te ama mais que tudo, passa a semana falando de você em tudo que é canto. Faz diferente com ele, é sua chance.

Dolores ganhou um abraço, os ombros cederam. Então, se recompôs, ajeitou o cabelo atrás das orelhas, pendurou a bolsa no ombro e, antes de sair, encarou a senhorinha nos olhos.

– Só Deus pra lhe pagar o bem que me faz, dona Graça. Tomara eu consiga um dia ver tudo assim de um jeito bom, como a senhora.

Voltou ainda até o quarto para ver o menino uma última vez. Beijou-lhe a testa, fez uma prece e desejou no íntimo que ele se tornasse um homem como o que ela nunca teve.

– Mãe? – ele acordou.

– Oi.

– Eu dormi?

– Arrâm. Faz tempo. Mas descanse agora, fio, amanhã você tem escola.

– Tá.

– Eu te amo, meu príncipe.

– Você já tá indo?

– Já.

– Não queria.

– Eu sei, mas precisa. Sexta eu volto. Vou te trazer um presente.

– Eu não queria presente, queria não… eu queria vo..

– Jônatas, a gente já conversou. Mas fique em paz, eu vou tentar umas coisas, depois te conto.

– Vou te esperar.

– Se cuida direitinho. Obedece a Dona.

– Ta. Que Deus te acompanhe.

Ela suspirou.

– Nunca me deixou.

Lá fora, o céu desabava em água. Em certo momento, ela descalçou as sandálias para conseguir subir as ruas encharcadas até o ponto, onde um casal de namorados se abrigava sob um guarda-chuva. Chegaria atrasada, o último ônibus para a Zona Norte deveria demorar ainda um tanto. Do outro lado da rua, a tevê na padaria mostrava a abertura do Fantástico.

– Tomara que a patroa deixe a porta no trinco.

A chuva lavava o céu, as ruas, lavou-lhe a alma. Agora era esperar.

Uma imagem para um mundo em guerra

Por favor.

Do sempre genial Banksy.

Ravel

A mãe ficava rosada, cruzava os braços de um jeito duro, os punhos cerrados e falava fitando o chão enquanto enxugava as lágrimas. Era assim sempre que suas emoções vinham à tona. Tanto quando estava feliz quanto muito brava. E só dava pra saber se era de um ou do outro quando ela falava. E naquele dia, era do outro.

“Que ideia, menino, toma juízo! O que você tem na cabeça? Titica? Cocô? Onde já se viu essa história? Não vê seu pai e eu aqui fazendo de um tudo pra você estudar, ter alguma coisa na vida? E vem com essa agora… Toma tenência, toma noção do que você é, donde nasceu. Isso aqui é a Vila São Paulo, Ravel, não é a capital”. Ela ergueu os olhos e me encarou num instante. “Guarda esse papel aí e vai fazer teu curso que já está na hora”.

Eu ia levantar argumento, mas ouvi a botina do meu pai mastigando a terra do quintal na direção da porta. Sua sombra era tudo o que eu via, crescendo e tapando cada vez mais o sol que entrava no final de tarde. Ele não disse nada, entrou, passou por nós dois e foi fuçar uma caixa de papelão no canto da cozinha.

“O café tá fresco na garrafa, Cícero. Se quiser, já leva pra oficina.”

Quando ele levantou com uma ferramenta na mão e já passava a outra pela garrafa de café, ela então fez o desfecho:

“Piano, Ciço, você já ouviu essa, já soube da extravagância?” – ela adorava usar essa palavra para qualquer coisa – “Seu filho deu agora de querer largar o curso de Torneiro pra tocar piano, como se…”

Nem fiquei. Fui pro meu quarto, peguei o caderno, sentei na mesinha, liguei a fita no walkman e fingi que estudava enquanto, lá no fundo, apesar da raiva, concordava com a mãe. Que idiota eu era, que idiota! Aquilo não tinha o menor sentido. Não pra mim.

É que eu só queria era ser livre, queria ir pra longe daquela prisão de vida, daquela vila suja marrom e laranja, do barulho do martelo lá na oficina na minha orelha o dia inteiro, da poeira impregnada em tudo, da mesma comida no prato, do sapato arrebentado, do colarinho apertado. Eu amava a mãe e o pai, queria levar os dois na bagagem. Mas, eu só queria ter opção de vez em quando, sabe? O rico acha que o pobre quando sofre, sofre menos do que o rico. O branco acha isso do preto, o forte acha isso do fraco, o homem acha que tem ser humano que é menos humano no mundo. Aí, se você é pobre, preto e fraco, às vezes quase começa a acreditar nisso. Tratam a gente como bicho, descartam como objeto. Como se não doesse igual.

O negócio é que eu não queria mais. E também não queria um jeito pra esquecer, queria era ir pra longe. Eu não queria ir pro campinho, nem correr atrás de balão ou brincar de pescotapa. Eu queria ouvir a música, me enfiar no quarto, ficar de barriga pra cima escutando uma das duas fitas K7 que ganhei de prenda na quermesse e tentar adivinhar quais teclas os dedos do pianista estavam tocando naquela hora. Não era nada erudito que me invocava, mas a poesia. Até ali, eu não queria descobrir uma técnica, não queria saber como é que o homem era capaz de realizar aquele milagre, eu queria era ser levado naquela melodia, como o vento, como um passarinho. E se o encantamento com a música foi o que me alimentou até aquela hora, então parecia de repente que eu precisava transbordar, jogar tudo aquilo pra fora. Eu queria aprender a tocar. E música, além de tudo o que eu amava então, era também meu jeito de fugir daquela condição.

Queria poder dizer pra mais alguém o que eu pensava e não só pra mãe, que me ouve, mas retruca, que se altera toda. Bom… pelo menos ela conversa. Ali na pia, o avental molhado na barriga, o cheiro de perfume que ela usa é de tempero, aposto. Mas ela ainda fala. E ele, lá fora na oficina, bate e martela o ferro, é só isso que eu sei. E assobia, a mesma música, toda vez que o trabalho está difícil. Com o pai não tinha carinho, não tinha brinquedo, não tinha conversa, nem conselho. Tinha o jeito dele, tinha um pacote de figurinhas da Copa União na minha penteadeira de vez em quando e uma goiaba cortada em quatro em cima da mesa, junto do prato de comida, quando eu chegava do curso técnico à noite.

Na outra semana, cheguei pro almoço e ele estava lá no fundo, martelando. Pisei na cozinha e a mãe lá, daquele jeito de novo. Nem falava, era só o rosto rosado e molhado, os braços cruzados. Eu quis saber o que que foi e então vi que era braveza outra vez.

“Eu não sei de nada, nem quero saber de nada. Não quero nem ver! Nada! Ai, menino! Agora, olha… Ai, meu Jesus santo…”

Vai saber lá do quê? Enchi o prato, sentei calado, almocei quieto numa só garfada e levantei sem falar. Ela ali na pia, eu passei batido. Fui pro quarto, joguei a mochila num canto e vi um piano perto da janela.

Voltei pra cozinha, parei na frente dela. Nem levantou o rosto, só tapou a boca com a mão, fez que não com a cabeça e desandou no choro enquanto me apontava a porta por onde saí num salto, assustado, engasgado, aquela bola, a coisa toda estranha na barriga e na garganta e corri pra oficina onde o pai estava lá, martelando e batendo. E sei que ele estava agachado trabalhando, de costas pra tudo e nem se mexeu quando chamei, nem quando cheguei perto, nem quando o abracei e deitei a cabeça nas suas costas e chorei.

Aí ele passou a mão devagar na minha cabeça, eu saí, ele passou a mão no martelo e passou os seis meses seguintes trabalhando dobrado e assobiando sem parar.

A mãe só voltou a conversar quando prometi que ia fazer as aulas de piano lá na igreja de manhã e continuaria o técnico à noite.

E toda tardinha, depois da aula, eu mergulhava no piano. Eu treinava os exercícios e depois ficava ali, ainda sem saber direito, eu martelava e batia nas teclas e era só o que eu sabia. A mãe aumentava o som do rádio, os passarinhos armavam um ninho na goiabeira do quintal e o pai eu via lá no fundo pela janela, quase como se quisesse que ele me ouvisse.

Ia para o curso escutando os K7’s no walkman e dormia com os fones no ouvido tocando sem parar. Xopân, eu soube depois que era o nome do rapaz do piano que me ocupou tantas tardes. No começo, eu só dizia nas aulas que queria tocar como ele um dia. Mas ganhei depois no curso uma fita nova. O professor, um pastor moço da capital que vinha até a cidade só para dar as aulas como voluntário, deixou uma música para eu treinar.

A danada da fita tocava a música do pai. No fim, o assobio todo era uma peça famosa de um cara de nome difícil. Escutava a maldição da música no walkman para aprender direito, ensaiava sem parar durante as aulas lá na igreja e o tempo todo eu lembrava era do martelo castigando o aço. Mas aí eu aprendi.

E cheguei em casa um dia e vi que o pai estava lá fora, assobiando na oficina. Entrei no quarto e o vi de novo pela janela, agachado, forjando uma peça no braço. Sentei no piano e toquei a música. Na quinta nota o barulho parou, o assobio parou, o pai parou, ficou em pé, olhou pro céu um minuto, respirou fundo e, num fôlego, tomou o cabo do seu instrumento na mão, agachou e voltou a tocar o martelo. Eu sabia, ele sabia.

Toda tarde então era assim. Eu ensaiava, tocava, enquanto o pai trabalhava lá fora esculpindo suas coisas no torno, moldando as chapas de ferro, fundindo o aço que seria usado depois em novos serviços, atendendo um cliente vez ou outra, sorvendo o café da garrafa sem parar. Sem assobios do pai, sem o radinho da mãe, só o metal gritando na oficina e os sabiás cantando entre as goiabas. Essa era minha música por horas, até que vinha o cheiro do café novo, a hora do banho, o macacão azulado do Liceu e a partida para aula no novo turno.

E na mesma semana em que a escola avisou sobre a data da minha formatura no curso de Torneiro Mecânico, o pastor chegou da cidade com um folheto novo, me convidando para um recital na capital, junto com a ficha de candidatura para uma vaga num conservatório.

Cheguei berrando em casa, sem fôlego, tropeçando, contando tudo para os dois que almoçavam. A mãe ficou daquele jeitinho e o pai de jeito nenhum.

Na noite do recital, em dezembro, eu já estava formado no técnico. O diploma virou quadro na parede da sala e era ali, naquele canto, que eu queria abandonar tudo aquilo. Viajamos para a cidade numa Kombi emprestada de um amigo do pai. A mãe costurou um vestido novo, todo azul escuro, longo, meio fofo e de alças presas nos ombros. Botou um xale bege nas costas, fez um coque no cabelo e usou a maquiagem de festa que ficava guardada na gaveta da cômoda. O pai vestiu o terno da missa. E eu passei um mês torneando na oficina do Liceu para juntar uns trocos e alugar um fraque.

Toquei Báh. Toquei Xopân. E mergulhei tão fundo naquele piano novo, e martelei tão convicto aquelas peças brancas que quase acho que deixei um pouco de mim por ali. E só então, depois, vazio de tudo, reparei que estava num palco, que tinha uma luz sobre mim, que tinha um bocado de gente no teatro e tinha os dois ali. A mãe com as duas mãos tapando a boca, toda rosada da maquiagem e da emoção. E o pai, aplaudindo junto, respirando fundo com a boca aberta e os olhos marejados. E era tudo.

* * *

E foi o pai quem, de novo, duas semanas depois, deixou em cima do piano os papeis: a carta e uma ficha do conservatório me convidando para ingressar no grupo.

Já era Natal e dessa vez a mãe era toda emoção. Mas do outro jeito. Quando desandou a falar, depois de me dar uma fita K7 nova e uma partitura de presente, disse que estava morta de medo, mas que “é bonito demais, bonito demais esse piano. Vai, menino, dá mais graça pra esse mundo com essa sua extravagância, dá orgulho pra sua vila. Só não esquece da gente, promete? Seu pai e eu… promete que não me esquece, tá?”

Gostei demais do presente. Também me sentia emocionado. Perguntei se lhe daria orgulho sendo músico e não Torneiro, igual ao pai.

“De qualquer jeito dá”.

O pai estava lá fora. Assobiava.

Naquela noite, sem música, eu sonhava. Finalmente, era hora mesmo de ser livre, finalmente ver o mundo e outras cores, ser parte daquela arte que eu amava, expressar o dom de Deus, de ganhar a vida com minha música finalmente.

Eu tinha as malas prontas e uma pergunta martelando na mente que não me largava. Como é que seria a música sem o chiado do radinho e o tilintar da louça lá na pia? De que jeito ia soar sem minha terra no quintal, sem o vento atravessando as folhas da goiabeira, sem os sabiás? Como é que seria agora, meu piano ressoando sem a sinfonia do martelo?

Porque eu bem sei que queria ter quem me escutasse e então eu tinha. Queria agora ser maestro, ainda queria ser Xopân, talvez queria ser Torneiro. Eu queria transbordar mas não precisava mais fugir. Lá no fundo, acho, queria era a poesia, eu só queria os passarinhos. Agora nada mais doía. Eu tinha uma opção, sabe?

Eu quero menos

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Dia desses, eu fazia qualquer coisa no Facebook quando me dei conta, observando a linha do tempo na página, que já faz quatro anos que freqüento aquela tela azul. Eu quase alimentei um certo orgulho do meu pioneirismo não fosse uma resistência velada que tenho pela ferramenta. Não sei o que é, eu uso mas não gosto. Ou gosto de não gostar, só pra ter algo do que reclamar.

Zapeei pela página e vi que o Facebook sugeria que eu ficasse amigo de um parente distante. Ele acreditava que eu poderia adicioná-lo à minha rede, dado que temos 26 outros amigos em comum. Senti-me tentado, cliquei, adicionei, tal como se incluísse um item num carrinho de compras. Aproveitei as ofertas do dia e incluí também dois ex-colegas de trabalho e um amigo de infância a quem não via há muitos anos. Saí do Facebook de sacola cheia naquela manhã. E apesar das novas e velhas amizades virtuais, não fiz contato real com ninguém.

Sendo muito sincero, acredito que isso se deva muito menos a um interesse real de resgatar relacionamentos que eu acredite que ainda vão avançar para um novo grau de intimidade – a ponto de eu querer saber, numa conversa pessoal, que o cachorro do Beltrano acabou de sair do petshop de penteado novo e curtir a ideia de que a filha da Fulana ganhou uma festa porque completou aniversário de um ano, três meses, duas semanas e oito dias de vida – e muito mais ao fato de que, tendo por perto todas essas pessoas que frequentam apenas minhas lembranças distantes, sabendo o que elas curtem, comentam e compartilham, eu me sinta menos culpado em não manter um contato real.

Pois é, veja você, cá estou eu reclamando de redes sociais.

Mas veja, não é contra novas formas de se vincular às pessoas que eu tenho andado inconformado – nem poderia, se você está lendo isso agora, muito provavelmente foi porque publiquei em algum canto obscuro da internet – mas contra o tipo de personalidade que assumimos nesse ambiente e, pior, o tipo pessoa que nos tornamos – ou revelamos ser – desde que esses meios passaram a afetar a nossa rotina de forma tão significativa.

A superficialidade das relações nos anestesia, tem nos tornado indiferentes às dores e à vulnerabilidade dos que estão ao nosso redor. Não temos mais nada uns com os outros, senão vínculos cada vez mais frágeis.

O excesso de estímulos e o simplismo das informações, que já quase assimilamos pelos poros, nos torna também impacientes. Já não temos tempo ou não queremos despender esforços com a parte do outro que não nos agrada. No fim, só queremos o que “curtimos” e bloqueamos o resto.

Vivemos uma busca desorientada pela felicidade, como se ela fosse um fim, um destino, e estamos ansiosos, queremos ver pessoas felizes e nos mostrar como pessoas felizes acreditando nisso como um ideal projetado de realização. E cada vez menos essa busca tem como objetivo o bem-estar comum, cada vez menos as conquistas que celebramos tem a ver com a comunidade em que vivemos. Porque estamos sozinhos, à caça da aprovação alheia, vivemos a explosão do ego, a incrível era da contemplação do umbigo e o mundo já não é da nossa conta.

Nesse tempo, relacionamentos amorosos duram pouco, amizades são casuais, casamentos são contratos, efêmeros, buscas existenciais são feitas pelo Google. Não contemplamos mais o horizonte, literal ou figuradamente. Só vemos o que está um palmo à frente e amamos o que temos ao alcance das mãos, literal ou figuradamente. Só merece nossa atenção o que nos oferece, uma pílula que seja, de êxtase instantâneo.

Porque só pensamos em nós, nos bastamos e desejamos, coisas, pessoas, experiências e um deus que nos satisfaça.

* * *

Meu amigo Rui diz que se os primeiros textos bíblicos fossem escritos nos dias de hoje, Deus trocaria a palavra “pecado” por “egoísmo”. Egoísmo é a melhor tradução para o tipo de comportamento tão condenado no homem ao longo da história.

Bem, talvez você não pense em pecado como algo com o que você deva se preocupar porque, afinal, isso trás consigo um vínculo religioso e, em geral, a gente não costuma gostar de ter o nosso senso de liberdade podado por uma regra definida sabe lá onde por alguém alegando se expressar em nome de Deus.

Talvez você, assim como eu, também não pense em egoísmo como algo que lhe diga respeito. Somos, afinal, tão cheios de compaixão, tão desprendidos e beneficentes. Não matamos, não roubamos, não cometemos crimes, doamos algum dinheiro e brinquedos para instituições de caridade, somos capazes de construir relacionamentos sólidos.

No entanto, ao contrário disso tudo, nos animamos com a ideia ou conceito de altruísmo (do latim *alter*: outro + *ismus*: adepto, seguidor). Somos bons cristãos, transbordantes de generosidade. Nos levantamos entusiasmados em defesa do outro, com profundo desejo de nos doar pelo bem-estar alheio. Deixamos de lado nossos interesses para ter como prioridade o bem-estar coletivo, nos doemos pelas feridas do nosso próximo, compartilhamos os “posts” com fotos de criancinhas malogradas na África.

Hmm, bem, talvez a gente pense em egoísmo, sim.

Finalmente, se nós pensamos em Jesus como alguém que conseguimos reconhecer como nosso Deus, então é possível que nossa expressão de devoção esteja sendo feita na direção errada.

De novo, vou gastar uma dose do eruditismo que eu não tenho para recordar que *hamartia* é uma palavra grega que pode ser definida como “errar o alvo, fracassar”. É essa mesma expressão que aparece nas escrituras em parte das referências a pecado.

O egoísmo foi, possivelmente, o sentimento que Jesus mais combateu com seus ensinos. Suas atitudes mostram uma caminhada na direção oposta a isso. E seu caráter, sua história e mensagens revelam que é bem possível que a gente precise dar razão ao Rui.

E, no duro, eu acredito que Jesus é o alvo em cuja direção precisamos seguir. Ele é o padrão perfeito de humanidade, é o Deus encarnado, o ser humano apaixonante e gracioso, o Deus que senta à mesa e divide o pão. Jesus não era egoísta. Suas relações eram profundas, seu interesse no outro era verdadeiro, ele era tolerante com as falhas e defeitos dos que estavam ao seu lado, ele dividia tudo o que tinha, doava de si, do seu tempo, para ouvir e estar junto. Ele sofria verdadeiramente com a dor dos mais frágeis. Compassivo. Lembre-se: ele morreu por cada um daqueles que o insultaram, cuspiram em seu rosto e o penduraram numa cruz de madeira.

Mas, ora, o que raios isso tem a ver com o Facebook? Com Facebook, nada. Mas sinto dizer que a conversa não é sobre redes sociais. Também não estamos discutindo sobre egoísmo ou pecado. Estamos falando de amor. E de falta de amor.

O amor, que em instância primária, não existe, não se constrói e se sustenta sem que tenha no outro – algum outro – seu alvo. Amamos alguém e ao nosso objeto de amor nos entregamos, nos doamos, cedemos, sem pensar absolutamente em extrair qualquer benefício disso que não a própria realização, pura, de poder amar.

A superficialidade das relações de hoje mata o amor. A indiferença mata o amor. Nossa insensibilidade em relação ao próximo mata o amor. O nosso egoísmo mata a Jesus – o amor em essência – e exclui sua face graciosa da Terra.

* * *

Nas horas vagas, quando não estou fazendo qualquer coisa no Facebook, eu leio livros. No último Dia dos Pais, ganhei da Manú e da Nina um livro do arcebispo anglicano sul-africano Desmond Tutu – não, ele não está no Facebook, mas eu curti.

Desde que comecei a leitura, descobri que Tutu é o cara que eu gostaria de ser. Não, não quero ter a vida dele e tampouco usar aquela túnica lilás brilhante com um chapeuzinho de côco, eu só queria ter um doze avos do caráter, da sabedoria e história desse homenzinho negro que foi capaz de liderar um movimento em seu país com a finalidade de perdoar – isso, leia bem – perdoar as pessoas que massacraram seu povo durante o regime de apartheid na África do Sul, enquanto todo o povo ainda sorvia sua sede de vingança pelo sofrimento.

Tutu resgata em sua abordagem uma expressão africana que eu quase gostaria de tatuar: Ubuntu. Em xhosa, diz ele: “Umntu ngumtu ngabantu”, que mal traduzida seria algo como: “Uma pessoa é uma pessoa por intermédio de outras pessoas”. Segundo essa ideia, ninguém vem ao mundo totalmente formado, por isso, um ser humano precisa de outros seres humanos. Ele defende: “Para nós, o ser humano solitário é quase uma contradição”.

“Ubuntu é a essência do ser humano. Ele fala de como a minha humanidade é alcançada e associada à de vocês de modo insolúvel. Essa palavra diz, não como disse Descartes, ‘Penso, logo existo’, mas ‘Existo porque pertenço’. Preciso de outros seres humanos para ser humano. O ser humano completamente autossuficente é sub-humano. Posso ser eu só porque você é completamente você. Eu existo porque nós somos, pois somos feitos para a condição de estarmos juntos, para a família. Somos feitos para a complementaridade. Somos criados para uma rede delicada de relacionamentos, de interdependência como nossos companheiros seres humanos, com o restante da criação.” (…) “A ênfase do Ocidente no individualismo tem mostrado, com frequência, que as pessoas estão sozinhas em uma multidão, despedaçadas pelo próprio anonimato.” (…) “Ubuntu nos ensina que nosso valor é intrínseco a quem somos. Temos importância porque somos feitos à imagem de Deus. Ubuntu nos lembra de que pertencemos a uma única família – a família de Deus, a família humana.”

A internet ainda funcionava a lenha quando Desmond Tutu escreveu e ministrou sobre isso. E não me parece que tenhamos feito algum avanço.

Mas, e se levarmos essa idéia adiante? E se colocarmos em prática todo o conceito, se decidirmos, no mundo contemporâneo, lutar contra o egocentrismo arraigado em nossa formação e seguir o exemplo de vida de Jesus Cristo? Não parece tão simples quanto desconectar o computador e sair por aí distribuindo abraços e oferecendo ajuda a estranhos. Nossas relações mais difíceis são, em geral, as mais próximas, com os que estão ao nosso lado e são capazes de nos fazer revirar as entranhas na busca por uma solução. Quão áspero parece ser ter que esbarrar nas falhas e contradições das pessoas. É tão mais simples, tão mais cômodo e confortável construir nossas bolhas, protegidos pelo escudo de uma tela de computador, atacando e defendendo com nossos cliques, alheios ao mau cheiro do efeito de nossos defeitos sendo expostos e sem precisar engolir o cálice amargo desses encontros.

Eu quero menos, confesso. Gostaria de poder tornar as coisas mais simples. Se tudo anda tão superficial, tão cheio de espuma, às vezes, precisamos mesmo cortar coisas para ganhar, ‘ter’ menos para ‘ser’ mais. Estar ao lado de quem amamos. E a vida toda só parece ser possível através de transparência e troca, de relacionamentos sólidos que se constroem com conversas, com sentimentos revelados, curtindo juntos, compartilhando, estando no Face… no face a face.

Ciclos

Ela já não tem medo de monstros. De dois meses para cá, como num passe de mágica, as coisas mudaram um pouco aqui em casa. Às nove, dado o alerta da hora de ir para a cama, ela escova os dentes, veste o pijama e, beijos dados, segue para seu quarto.

Não era sem tempo, a gente sabe. Mas até outro dia, esse parecia um cenário muito distante na rotina de casa. Escrevi por aqui sobre toda a tensão dos momentos que antecediam o momento do sono, a insegurança, a incerteza sobre o que estávamos fazendo de errado, como poderíamos ajudar a Nina a superar a dependência que nutria da gente para dormir. E de uma hora pra outra, tudo se foi, numa noite ela chorou e dormiu, noutra reclamou e dormiu, aí finalmente dormiu. E agora é assim, ela sai da sala sozinha, deita e dorme. Sem dengos, sem as histórias, sem aquela carência toda. E de repente, me peguei sentindo uma falta danada daquelas noites.

Ela dorme. Estou sentado no pé da sua cama e a observo. Minha menina está crescendo, o rosto afinando, os cabelos mais lisos presos num rabo-de-cavalo. O pijama, cheio de desenhos de gatos coloridos, já serve só até o meio das canelas. Três mechas vão caindo sobre o rosto, as duas mãos juntas embaixo das bochechas… a cena que eu jamais gostaria de esquecer, um momento, entre tantos, que eu sei de que terei saudade no futuro.

É mais um ciclo que se cumpre. Para ela e para nós. Desde o começo, a espera, a gestação, o corte do cordão umbilical numa madrugada chuvosa de março, as primeiras palavras, o primeiro ano, nove mil e duzentas fotos, os primeiros passos, a caminhada inteira de então em diante.

Ciclos. A gente quase não percebe quando começam, mas terminam quase sempre numa sessão de nostalgia. E para cada um, um novo marco, um altar edificado de celebração, lembrança e saudade.

Ela cresce uma era inteira a cada minuto e vive plenamente a infância, se desenvolve, sorri, cai, levanta, aprende e absorve como uma esponja – dos episódios quase infinitos da novela Carrossel às conversas secretas dos adultos – tudo o que se passa ao seu redor.

Sentado no quarto escuro, olho para a porta entreaberta, sondo a luz que vem da sala pelo corredor e admito uma ponta de medo ao notar a sombra do futuro que se projeta adiante. Bendita incerteza, quando parece que as coisas vão se acomodar e tomar um rumo finalmente, percebo que preciso reaprender a ser pai, ser marido, profissional, a encarar desafios diferentes outra vez.

Mudanças. Às vezes, precisamos mesmo que elas aconteçam para que nos desapeguemos. Alguém deve tirar nosso apoio, de supetão, de repente, para que a gente possa acordar, para que um novo passo seja dado.

É tarde, preciso dormir. Amanhã será um novo dia, mais um começo, outro ciclo.

Chegadas e partidas

Minha avó está doente. Ela tem 93 anos e até alguns meses atrás, parecia seguir com tanta firmeza e lucidez rumo ao seu centenário quanto eu caminho em direção aos quarenta. Mas uma sequência recente de breves enfermidades a deixou combalida. O negócio é que ela não está exatamente doente, não sofre de nenhum sintoma específico, ela só está cansada. Dorme muito, come pouco, já não reconhece filhos e netos com a clareza de antes. Para quem até pouco tempo estava habituada a frequentar regularmente as reuniões dominicais da igreja e visitar os filhos, não é nada entusiasmante ver-se limitada a uma rotina tão pacata.

Tenho me preocupado com seu estado. E além dos pensamentos habituais sobre sua condição de saúde, por esses dias tem me ocorrido também que minha avó, de alguma forma, é o elo vivo mais antigo que eu tenho com o passado. Nem tanto pelas questões genéticas, que também existem, mas pela relação histórica. Ela carrega vivas as lembranças, as raízes do que somos, os frutos lá da roça que ela semeou um dia.

– Ah, pai, deixa eu aproveitar pra te perguntar uma coisa: como tá a vó?. Tenho pensado nela esses dias – aproveitei um telefonema casual com meu pai para ter notícias.

– Ah, filho… ela tá daquele jeitinho que você viu, não mudou muito. A gente chega lá e ela se levanta um pouco, conversa, fica mais animada. Mas quando a gente sai, ela fica murxinha, só quer dormir. Agora tem uma senhora lá ajudando a cuidar dela. Vamos ver.

– Tsc. Tadinha.

– Bom – longos segundos se passam – ela está se despedindo da gente.

Quando muito, eu a vi duas ou três vezes no último ano. Admito que não sou um neto muito presente, é uma falha que agora eu lamento. A última vez em que a vi, faz coisa de um mês.

– É o Nelinho?

– Não, mãe, esse é o Rique.

– Oi, Rique – e sorriu largo.

Passei calado quase toda a hora em que estivemos ali. Observei meu pai na condição em que quase nunca o percebi: a de filho. Temeroso, abraçado à mãe, honrando tudo o que ela significa com seu silêncio habitual. E tudo o que ela tem é um quarto apertado, arranjado na casa da minha tia, com uma cama, um armário pequeno, uma mala de roupas e um mundo inteiro de apreensão dos filhos e seus corações rendidos naquele espaço.

Quem é que ensina a gente a perder?

Com o que será que ela sonhava quando era criança? Quando ela chegou, jovem, era essa a vida que ela imaginou que teria? Na volta para casa, no carro ao lado do meu pai, enquanto as ruas passavam pela janela, eu pensava em minha avó ali sentada na beira da cama quando me despedi dela. O pijama velho de flanela, um gorro de lã branco cobrindo os ralos fios brancos que ela já não corta desde que se converteu a uma denominação religiosa conservadora e o mingau que ela sorvia de uma xícara. Mas, o tempo todo fina, preocupada com a boa postura. Suas posses se resumem em tão pouco… mas é tudo de que ela precisa. Tem sua família, seu Deus, tem um prato de comida, roupas, tem amor e um teto sob o qual dormir.

Pensei nas palavras de Jesus: “não se preocupem com o que vão comer ou o que vão vestir, não se preocupem com o dia de amanhã, não sejam ansiosos. Busquem o Reino de Deus e todo o resto lhe será dado”.

Mas será que ela pensa nisso? Será que entende que o Criador cuida dela através das mãos das minhas tias, que lhe dão banho, trocam sua roupa, trazem o mingau quente? Deus, com as mãos estendidas, lhe acaricia o rosto marcado, alivia a dor e divide o jugo de quase um século que lhe colocaram sobre os ombros.

Será que entendemos?

Do que o homem precisa na vida, afinal? Perseguimos tanto, trabalhamos duro… e será mesmo que o começo e o fim se resumem, essencialmente, em amar e se relacionar, em estar e cuidarmos uns dos outros?

Parece que faz sentido. Mas não parece que queremos que tudo seja tão simples.

Por que desviamos tanto o olhar e a rota ao longo da vida, que é tão fugaz? Eu não sei. Erramos o alvo. Peregrinos que somos, buscamos preencher o vazio na alma com os milhares de meios que transformamos em fim, até descobrir, já exaustos, a única razão capaz de nos suprir. Uma palavra, o Verbo, o amor.

“Pois, que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?” (Jesus, em Marcos 8:36).

Quais eram os sonhos daquela moça? Eu me perguntava, tentando construir na memória a sua história até onde a conheço. Casou cedo, trabalhou no sítio, deu à luz 12 filhos, conseguiu criar os sete que sobreviveram às dificuldades da vida no campo na década de 1930. Perdeu o marido ainda jovem, deixou a terra, os amigos, a família e a vida em Minas Gerais quando se mudou para São Paulo. Fez os filhos crescerem, viu quando casaram e se foram, se multiplicaram, ficaram velhos com ela. Viu o mundo ficando cinza, urbano, digital, viu a história das últimas décadas passando na televisão, em preto-e-branco e colorida, que nem existia quando ela nasceu, que ela trancava no armário, de “castigo”, quando as notícias ficavam tristes demais. Viu guerras, presidentes, novelas, crises e bonanças.

E que diferença isso fez? Que diferença faz toda a história do país e do mundo, a humanidade, o dinheiro, as conquistas e os grandes projetos quando, no fundo, a coisa toda é sobre a vida simples, a rotina comum do homem, da avó de família, de cada um?

Ela está fraca, fala pouco, mas seu olhar vai longe, entra fundo e, nele, ela expressa todo seu legado. Nele, ela pergunta o que é que estou fazendo com a semente que ela plantou. Ela me deu sangue, deu seu filho para ser meu pai, deu carinho, café aguado, limonada e doce de leite feito na panela. Ela me ensinou a ler as primeiras palavras, quando passava uns dias em casa lá na Barra Funda e repassava comigo as letras de algum parágrafo do livro que trazia.

– Rique, que letras são essas?

– S, I, L, E, N, C, I e O.

– Isso, muito bem, “silêncio”.

Ela só não me ensinou as palavras para descrever o que estou sentindo agora.

Enquanto minha avó se despede (e desejo que ela só o faça depois de uma demorada e animada festa de 100 anos, em 2019), me consolo em saber que ela já descansa, amparada pelas mãos do Deus de sua vida. E penso que talvez não faça mesmo diferença, não valha realmente sofrer pelo dia de amanhã. Precisamos hoje – HOJE, eu penso como um grito – buscar pelo Reino dos Céus. Esse reino que, segundo as Escrituras, é “paz, justiça e alegria no Espírito Santo”. E o Espírito Santo é Deus e Deus é amor e o amor se declara, se escancara, se revela explicitamente no Verbo, na palavra, num desabafo, no toque, no convívio, na presença e a vida toda ao lado de quem amamos. Hoje.

A vida é uma centelha. No riso e na dor, nas chegadas e partidas, o contorno de um belo e admirável ciclo. A vida é eterna.

Assombrações

“Não tenham medo!” (Mateus 14:27)

Hora de dormir. Noite após noite, o ritual se repete: ela veste o pijama, faz xixi, escova os dentes, enrola a gente, pede uma história, conta um milhão de coisas da escola, faz uma oração e dorme. No meio da madrugada, invariavelmente, a vozinha rouca chama lá do quarto e – sim, nos condenem os pais super eficientes – ela encerra as últimas horas da noite dormindo na nossa cama.

Temos tentado, juro, mas parece em vão. Se as experiências de amiguinhas e personagens de desenhos animados servem de lição e inspiração para convencê-la sobre quase tudo, o mesmo não acontece com a ideia fixa de que é difícil dormir sozinha. Ela continua choramingando e nós, às quatro e tantas da manhã, não temos a menor condição física e mental de discutir a relação com nossa filha de cinco anos.

Noite dessas, enquanto ela vestia o pijama, fui até a cozinha buscar o copo de água que sempre deixo sobre o criado-mudo. Cheguei no quarto e vi que ela estava atravessada em cima do colchão, debruçada, procurando algo atrás da cama.

“O que foi, filha?”. Achei que ela procurava algum brinquedo perdido.

“Pai?”. Ela perguntou, ignorando minha dúvida.

“Oi.”

“Tem uma cobra ali atrás?”

Ela tem medo de monstros. E naquele momento, muita coisa sobre essa dificuldade toda fez sentido. Cobras, morcegos, a escuridão, bandidos, dragões, ela acha que algum perigo pode surgir no meio da noite para atacá-la. E não há argumento, parábola ou estudo de caso que a faça abandonar o temor e aceitar uma verdade simples que afirmo todos os dias: “isso é bobagem, você não precisa ter medo”.

Curiosamente, tudo passa, tudo pode ser vencido, se eu simplesmente ficar ali ao seu lado. Ela não dorme sozinha porque tem medo, mas descansa como um anjo – ou princesa, como ela prefere – se me sento ao pé da cama e vigio seu sono. Se estou por perto, as cobras se transformam em minhocas, bandidos voltam para casa janela afora, monstros se apequenam e escondem-se resignados, a escuridão perde a frieza. Então, ela pode repousar e sonhar com suas fantasias coloridas.

Até que se sinta sozinha no meio da noite, acorde, resmungue e cambaleie descabelada para nossa cama. Até que se sinta desamparada e clame pela proteção que o abrigo paterno parece oferecer.

E ainda que isso soe como uma tremenda massagem na auto-estima de um pai que gosta de sentir-se o amparo de sua prole – gosto de falar “prole”, mesmo que minha prole seja de uma pessoinha só – sei que não é bom que seja assim, não é saudável para ela. A Nina precisa saber que já tomei as providências para que nenhum perigo se aproxime e que ela pode fechar os olhos sem esse tipo de preocupação. Eu não estou lá ao pé da cama, mas estou o tempo todo com ela, cuidando, com meus limitados poderes, para que tudo vá bem e ela se acolha guardada em meus braços.

Mas, às dez da noite, às voltas com esses pensamentos enquanto a observo, fico tentando descobrir como fazer para minha filha de cinco anos – com a imaginação fervilhando de fantasias – acreditar que esses temores são tolice, devaneios da imaturidade e que ela pode ter paz, descansar, porque seu pai está de vigia?

“Em paz me deito e logo adormeço, pois só tu, Senhor, me fazes viver em segurança.” (Salmos 4:8)

Ela dorme.

E enquanto ela sonha em ser “uma heroína com asas, coroa dourada, maquiagem e muito brilho” – um dos pedidos que ela dirigiu a Deus na oração que fez -, eu luto com os monstros. Os meus. O estresse da vida cotidiana, a sensação de não estar dando conta do recado, dos recados, da lista enorme de pendências que se acumula. Sem que eu percebesse, a vida adulta foi tomando conta de tudo, lembro à distância, ainda com certo romantismo, da espontaneidade juvenil que regia as coisas e percebo que vou me tornando o tipo de sujeito saudosista que costumo criticar. Alguns fios de cabelo começam a cair, os que não caem vão se tingindo de branco, uma sombra parece se projetar sobre a alma. Está difícil dormir, preciso acender uma luz.

Tenho medo. As minhas assombrações adquirem as formas do cotidiano. Sei que jamais serei totalmente suficiente, que me apavoro com tolices, mas minha imaturidade não me deixa enxergar que não há nada que eu possa fazer, não há nada que eu deva ou precise fazer, que a graça deveria bastar. Cego, não percebo os braços que me acolhem. Eu também sei que monstros não existem, que bandidos não escalam prédios para invadir apartamentos no décimo primeiro andar e que, a menos que se viva na selva, cobras não costumam montar seus ninhos embaixo de camas.

Sei que não preciso ter medo da escuridão porque o Pai zela por mim o tempo todo. Ouço suas histórias, suas promessas e acredito, acredito mesmo, em suas palavras. Mas ainda assim, mesmo sabendo de tudo isso, percebo muitas vezes a inquietação e a dúvida ganhando espaço em minha mente e titubeio, eu paro, retrocedo.

O medo manipula. Dá aparência de dor ao que é só ameaça, dá sensação de trevas ao que são tão somente sombras. Então parece mais fácil fugir, fazer de conta que o problema não está lá e buscar amparo numa muleta qualquer do que encarar a verdade assombrosa de que os monstros, em grande parte, se escondem dentro de nós.

Mas ao tentar ensinar a Nina, tenho aprendido que fugir do problema não resolve o problema, fingir que ele não existe não faz com que ele desapareça. E às vezes, é preciso aceitar que o conflito é necessário e que devemos encarar a realidade, vencer o obstáculo e finalmente seguir em frente. E jamais estamos sozinhos.

É nessas horas em que preciso tomar a decisão que já conheço mas da qual quase sempre me esquivo: eu preciso confiar e seguir em frente. Crer e saber, de forma pura, que o mal já foi vencido e que o Pai, ao meu lado, me protege e preenche.

E eu posso apagar a luz, fechar os olhos e viver em paz.

Abaixo da superfície

Quando você vê a dor nos olhos de outra pessoa, no dia em que presencia o sofrimento explícito na expressão e nas lágrimas de alguém, é impossível ficar indiferente. Qualquer barreira, qualquer resistência se dissipa. Gostaríamos de poder dizer algo, estender a mão, um lenço. Por um instante que seja, você perdoa, deseja sinceras condolências e as diferenças se vão.

De repente, você entende o que se passa de verdade no coração do homem.

Eu gostaria de falar sobre compaixão.

* * *

Há alguns meses, pude testemunhar o sofrimento de um pai que perdeu o filho em uma tragédia. Eu vi a sua dor, vi a sombra negra sobre sua face engessada e, no olhar taciturno, o vazio desesperador. O que seria a vida então?

Na mesma semana, senti o abraço aflito da filha que perdeu seu pai, já idoso, vítima do tempo, do Alzheimer e da morte da esposa que o deixara um ano antes. Amparei seu choro, chacoalhei com os soluços que a faziam descarregar em lágrimas o peso que lhe caía sobre a alma.

De novo, a dor. Mas não somente então, não só na morte – só!? – mas também naqueles que alimentam o sofrimento oculto por detrás dos breves risos, da espuma de sociabilidade, das curtidas no Facebook, do senso comum que nos carrega. As coisas tem que estar mais ou menos bem, porque no dia seguinte tem aula, tem trabalho, tem trânsito, tem hora marcada no dentista, tem uma dúzia de pessoas esperando que você não surte e a rotina deve seguir seu fluxo.

Um dia… ele sempre surge, vem à tona quem somos. Nas medidas desesperadas, nos atos mais grotescos, pessoas revelam o que se passa abaixo da superfície, aquilo que se acumulava nos porões sobe a escada até a sala, abre-se a porta do quarto escuro e ele não tem um bom aspecto.

O garoto tímido que se esconde num computador, atrás de suas dúvidas sobre o mundo e suas escolhas. O velho casal que ainda se ama mas já não se respeita. A menina e sua boneca, olhando pela janela, para o muro, para cada adulto que passa apressado pelo orfanato, pensando se é hoje que ela poderá ter alguém que lhe faça uma trança e que possa chamar de mãe. O vizinho mal humorado que tosse a noite toda, que sobe o elevador com um envelope sob os braços. O filho que ainda espera um telefonema. A jovem mulher, seu bebê ressonando no berço e um travesseiro em silêncio ao seu lado na cama.

O estranho ao seu lado no trem, o conhecido ao seu lado na festa, o amigo ao seu lado na sala, a esposa ao seu lado o tempo todo. Eles podem estar sofrendo. Se esperarmos por evidências talvez seja tarde demais e talvez devêssemos observar mais e tentar entender, estar sensíveis ao outro, nos envolver, tocar sem luvas, viver sem máscaras, ser cúmplices do que se passa sem tecer comentários, sem julgamentos. Carecemos da capacidade de olhar nos olhos e entender o que se passa antes que a tragédia aconteça. Precisamos nos antecipar, porque a dor, estranhamente, é algo que a gente acumula, mas é urgente.

Eu acho que estou falando sobre compaixão.

* * *

A compaixão é uma das coisas que me fazem acreditar em Deus. Bem, eu falo sobre minha fé vez ou outra, mas é raro que alguém me pergunte por que eu creio em Deus, por que desse jeito, em Jesus Cristo e a coisa toda da cruz e da Bíblia. Mesmo entre meus amigos agnósticos, nunca precisei responder a essa pergunta. Mas confesso que eu, entretanto, me questiono o tempo todo a respeito.

Tenho diversos motivos que me trazem à mente a razão da minha fé, mas a que cabe nesse parágrafo e me afeta sensivelmente é porque Jesus é compassivo. Se você ler os evangelhos, verá um sujeito totalmente sensível às pessoas. Pela primeira vez, acompanhamos a história de um deus que jamais desejou devotos ignorantes prostrados diante de seu egocentrismo. Ao contrário, ele se revelou ao homem na condição de homem, homem simples, que foi até o fim. A história conta que ele olhou para as pessoas que o seguiam famintas e foi movido de “íntima compaixão”. Eram para ele “como ovelhas sem pastor”. Perdidas e desamparadas.

“Eu sou o bom pastor”, ele disse em outra ocasião, “e o bom pastor dá a vida pelas suas ovelhas”. Ele olhava nos olhos e compreendia. E porque compreendia, se aproximava. Estando perto, tocava, oferecia consolo. E sentindo a dor do outro, curava. Porque ele amou. Escolheu não ignorar o que se passava, procurou olhar além do que um rosto revela. Jesus enxergava abaixo da superfície, das cascas e máscaras que o tempo todo escondem quem realmente somos.

E se deu. Ofereceu-se ao cego, à adultera, aos religiosos extremistas, aos doentes, aos pobres, às crianças, a cada um dos excluídos. Ele se revelou Deus sendo o filho o carpinteiro. Era seu mestre e seu cúmplice. Ele não quis sacrifícios, ele foi sacrifício. E porque sofreu, tornou o sofrimento humano santo. E porque triunfou sobre a dor, tornou a vitória possível.

* * *

Ter algo ou alguém como seu deus, imagino, é ter nisso a imagem total do que afirmamos com a perfeição e diante do que aceitamos nos curvar em devoção resoluta. Eu me dobro em louvor ao Nazareno, diante de sua índole, seu amor desinteressado e puro. Sou devoto do Deus que se fez homem, do homem a quem chamo Deus e firmo esperança em suas palavras que prometem que esse seu caráter – espírito – acompanharia aqueles que o seguissem, que então como um espelho, poderiam refletir sua imagem ao mundo, que então como filhos poderiam se dirigir a Deus como Pai.

Porque precisamos olhar para as pessoas – nossos semelhantes – sem que seus sentimentos nos sejam invisíveis. O porteiro do prédio, a faxineira no escritório, o chefe rabugento, o trombadinha no semáforo, o familiar esquecido. O que se passa realmente? Lá no fundo, dentro da embalagem, quem é, como está? Não podemos permanecer indiferentes, devemos compreender o coração do homem e nos aproximar, estender a mão e tocar, oferecer um ombro, oferecer consolo, um milagre, talvez perdão. E sentindo a dor do outro, finalmente podemos ser sua cura. Porque Deus em nós é amor.

Compaixão.

À procura de um significado

por Luiz Henrique Matos

Na maior parte do tempo, com a maior parte das pessoas, as coisas funcionam mais ou menos assim: a não ser que alguém apareça e atrapalhe a forma como encaramos o mundo e as nossas vidas, em geral tudo caminha bem. Enfrentamos algumas dificuldades, conquistamos meia dúzia de feitos, reclamamos um bocado de tudo mas no fundo não trocaríamos o que temos por outra coisa.

Detestamos admitir que fazemos parte da média porque queremos estar no grupo das pessoas diferenciadas, mas acredite, tem muita gente igual e com os mesmos padrões de comportamento que você e eu. Ao longo da vida, nos adequamos aos modelos de conduta e meio-ambiente à nossa volta. Convenhamos, não é preciso lá muito esforço para encontrar uma receita de vida em que as coisas funcionem.

Seguimos confortáveis, numa certa inércia, nos acomodamos em nossa condição até que, certo dia, aparece alguém, uma voz inquieta em nossa orelha, que tem a ousadia de perguntar:

“Por quê?”

Se esse alguém tem um metro e dezenove centímetros de altura, cabelos cacheados e bochechas grandes, a tendência, em grande parte, é que a pergunta tenha uma natureza imprevisível e provoque algum tipo de desconforto, no mínimo uma reflexão. E se você já se deparou com a artilharia de interrogações de uma criança descobrindo o mundo, sabe que na maioria das vezes, nós não temos uma resposta.

Ela diz: “Pai…?” e pelo jeito com que fala, eu sei que devo me preparar para o golpe.

“Pai…?”

Titubeio.

“Oi?”.

“Éé… assim… pai, por que as pessoas morrem? Por que elas vão para o céu? Por que é que japonês tem o olho assim ó, meio fechado? E o chinês!? Por que aquela moça está chorando? Por que é que tem gente que não tem casa, que mora na rua? Por que, pai?”

As questões vão das mais obvias às absolutamente desconcertantes. Algumas dúvidas, eu descubro que também sempre tive mas nunca soube. E o ambiente da nossa casa, que sempre navegou sobre as águas calmas do senso comum, se transformou, sem que eu me desse conta, numa enxurrada de interrogações.

“Por que eu tenho que tomar banho todo dia? Por que a sua barba arranha? Por que o arco-íris não aparece toda vez que chove? Por que a Fulana fala daquele jeito, com aquele sotaque estranho? Ela fala ‘porrrrque’. Pai, por que as pessoas ficam velhas?”

“Pai, por que você tem que trabalhar? Por que não pode ficar brincando aqui comigo só mais um pouquinho?”

“Porque o papai precisa ganhar dinheiro, filha.”

“Por quê?”

Talvez, se também perguntássemos porquê fazemos as coisas que fazemos, é bem possível que deixássemos de fazer a maior parte delas. Porque há algum tempo nós mesmos paramos de fazer perguntas assim. Nos ajustamos, deixamos de questionar o significado das coisas e passamos a vida repetindo um único tipo de pergunta: como?

Nisso reside a mais precisa teologia, o ponto congruente de nossas reflexões existenciais. Talvez Kierkegaard pudesse ter dialogado com a Nina – e, se não é essa uma definição ampla e cientificamente aceita, deveria. Ela não quer conhecer procedimentos, não quer caminhos, ela quer motivos e significados. Disse Paulo a seu discípulo Tito: “para os puros, todas as coisas são puras”, para quem entende que a satisfação da vida está no “ser” e não em ter ou fazer, a felicidade se revela simples e as dúvidas, ao invés de fardos, adquirem a dimensão de grandiosas explorações e descobertas.

“Pai, por que você casou com a mamãe? Por que eu não posso comer a sobremesa antes da comida? Pai, por que Deus fez as cobras? Por que eu tenho que ir para a escola? Por que a gente sente dor? Por que a gente precisa orar? Por que eu orei para Deus sarar meu machucado e ele não sarou?”

Deus não se ofende com perguntas.

Temos medo, vergonha e preguiça de expor nossas questões, mas a dúvida não é algo ruim ou imaturo, não é, em absoluto, a ausência de fé. A dúvida é justamente o reflexo da nossa busca por fundamentos que sustentem nossas crenças. Por isso, as repostas não são, jamais, receitas concretas, certezas definitivas ou instruções simples, mas caminhos, o vislumbre de um significado, um propósito a seguir.

E essa é uma questão que faz sentido quando se pensa na verdadeira religião e na vida. Essa é a pergunta que as Escrituras fazem e procuram responder o tempo todo.

Acho que Deus gosta desse tipo de pergunta, os “porquês”. Acho que ele gostaria que o questionássemos mais, que procurássemos entender suas razões. Porque na maior parte do tempo, suas respostas insinuariam o grande amor que ele sente e nos tornaria mais próximos. Acredito que se buscássemos entender os motivos, para o quê fomos criados, pode ser que a vida adquirisse um outro sentido. Repito: pode ser que nossas escolhas – das mais complexas à simples rotina – fossem diferentes.

Afinal, por que você reclama tanto da sua vida? Por que murmura sobre o clima, sobre seu emprego, a falta de dinheiro, seu casamento, os outros? Por que você acredita em Deus? Por que não acredita? Por que ainda não começou a cuidar da sua saúde? Por que guarda dinheiro? Por que você não conversa mais com aquela pessoa da família? Por que não esquece logo e perdoa? Por que você alimenta esses sonhos? Por que não foi atrás deles? Por que você faz o que faz e é o que é? Quem você é? Por quê?

A verdade é que passamos a vida empenhados na busca por procedimentos, esperamos que nos passem uma lista de regras de conduta e um código moral para obedecer. Reclamamos das leis mas elas são tudo o que mais queremos – nem que seja para fazer o oposto do que nos mandam. Mas Deus, ao contrário do que pregam tantos, não nos impõe regras. Porque ele ama, quer que sejamos livres para escolher nossos caminhos. Como Pai, escuta atento as nossas questões e, se pararmos para ouvir, notaremos que ele nos dá conselhos, compartilha, explica seus motivos e nos revela quem somos.

“Pai, por que eu não posso usar vestido todo dia? Por que o pai e a mãe da minha amiguinha Fulana não moram na mesma casa? Por que quando a gente foi no médico tirar aquela foto (raio-x) eu não vi Jesus dentro de mim? Por que eu tenho que ir dormir agora?”

Daqui alguns dias ela fará cinco anos. E o tempo todo, podemos sentir que ela está absorvendo tudo à sua volta, construindo sua própria visão dos fatos e definindo, ainda sem saber, seu papel no mundo. Em cada pergunta, há algo novo que ela assimila, um fato que molda a sua personalidade e amplia seu repertório. Em cada “porque” a busca por um bom motivo que sacie a sua sede ou uma fagulha que acende outra chama. Eu espero que ela jamais se contente e se acomode num padrão que alguém lhe imponha – mesmo que esse alguém seja eu, com as melhores intenções.

E porque eu a amo, farei o que puder para que essa curiosidade jamais se sacie. Quero que ela seja livre para fazer suas perguntas e entenda a vida a partir de seu olhar. Espero mais é que ela duvide das convenções. Quero que sua mente inquieta me questione, se descubra, me constranja, se revele. Me ensine.

Redenção

por Luiz Henrique Matos

onde está?
onde se perdeu?
encontre mais uma vez
Deus
o meu coração
tome para si
sua morada

traspasse
escrutine
rasgue
o tempo
os muros
a sombra
revele a tua luz

resplandeça, Pai
brilhe teu fogo
em meus olhos
arda a tua graça redentora
em meu espírito
reine
Espírito

Fantasias

por Luiz Henrique Matos

Numa noite dessas, depois da alucinação toda de outro dia cheio no trabalho e a paralisia toda de outro dia entupido no trânsito de São Paulo, cheguei em casa mais tarde, mais estressado e cansado que o habitual. Mas, depois de passar pelo meu Portal Mágico da Paz – ou, porta da sala adentro – segui a rotina ritualista e purificadora: beijei minhas meninas, conversamos um pouco, comi algo, tomei banho, conversamos outro pouco e vimos TV até que deu a hora de a Nina ir pra cama. Banheiro, escovação, um protesto, pijama, um copo d’água, um beijo na mãe, uma enrolada no pai, uma oração, várias interrupções e, sem falta, a historinha do dia.

E como fazemos diariamente, escolhemos juntos uma história para eu contar. Nessa hora, pode ser que nos aventuremos pela septuagésima vez através de um dos livros da estante dela, por uma narrativa resgatada na lembrança (leia-se: historinha clássica sem livro) ou “alguma coisa de quando você era pequeno”, como ela costuma pedir. A verdade, é que as historinhas são o grand finale do nosso dia como pai e filha, é quando encostamos juntos por alguns minutos na cabeceira da cama, longe da correria, de celulares, televisores, computadores ou outros estímulos digitais e unimos nossa imaginação em algum ponto, uma pequena saga que habita fora – ou muito dentro – de nossas mentes. Todos os dias, um capítulo novo, misturando as nossas experiências cotidianas com a ficção e virando uma página, uma etapa e uma metáfora da vida.

Mas naquela noite, quando entramos no quarto, notei que a cama dela estava inteira ocupada por peças de Lego.

– Tava brincando de Lego, Nina?

– Sim. Essa é uma casa que eu tô construindo – era uma sequência de peças grudadas umas nas outras, enfileiradas, formando ainda a planta baixa da construção toda.

– Que linda.

– Pai, você quer montar comigo?

– Quero. Mas hoje não, tá? Agora é hora de dormir. Vamos arrumar essa bagunça.

– Tá.

Esqueci o assunto em cinco minutos, a cabeça estava cheia. Mas no dia seguinte, à noite, quando ia para meu quarto e olhei pelo corredor, notei que a pequena construção colorida estava ali no chão, ao lado da caixa com as peças e havia avançado um pouco mais, com mais detalhes e as paredes começando a ser erguidas.

Senti-me péssimo. Poucas coisas me frustram tanto quanto perceber que deixei de honrar um compromisso com a Nina. E não é porque ela se lembra da promessa não cumprida e me recorda disso também, mas porque eu, de fato, gosto de sentar ao lado dela, mergulhar um pouco no seu universo e viver aquilo ao seu lado. Fantasiar, deixar as coisas serem, por alguns minutos, como gostaríamos que fossem, simplesmente porque temos o controle da situação.

Ela cria, constrói, compõe mundos inteiros, apenas com um punhado de lápis coloridos e me guia pelas mãos em suas aventuras. Naqueles instantes, a gente esquece a correria toda e tem a sensação de que pode viver nisso, jogar de lado o peso do cotidiano, retroceder no tempo uns 27 anos e lembrar de como era tudo e ficar ali, de short, camiseta e chinelo, sentado na rua da vila, olhando uma formiga atravessar a calçada com uma folha verde nas costas e fazendo de conta que eu era o terrível gigante de quem ela se escondia.

Mas, talvez o mais curioso dessa relação das crianças com a fantasia, seja notar que elas não vivem aquilo como uma experiência momentânea, um faz-de-conta premeditado. Ao contrário, elas mergulham de forma tão natural e intensa como se pudessem assumir aquela verdade para si. Para elas, cada brincadeira é real tanto quanto o que se pode tocar. Para nós, funciona como uma espécie de fuga da realidade nos momentos em que ela quase nos sufoca.

Às vezes, julgamos tudo isso como uma bobagem, aprisionamos nossa infância nas fotografias e avaliamos as nossas crianças como seres imaturos, inferiores e despreparados. E tentamos conduzi-los, adestra-los e determinar suas escolhas em conformidade com algum raio de visão do mundo que elaboramos ou lemos em alguma revista no salão do cabeleireiro.

Tudo isso é mentira. Eles não tem nada de menores. É bem possível que seja dessa “grandeza” infantil que tanto carecemos. Essa maturidade de não se deixar influenciar por pequenos problemas, a nobreza de não julgar, a confiança integral de que o pai é capaz de suprir e providenciar o que for necessário.

Olhamos a vida do alto, mas somos tão, tão pequenos. Tentamos enquadrar a vida numa caixa, tentamos controlar a situação, tentamos e tentamos em vão e, diria o sábio rei, só “corremos atrás do vento”.

Jesus falou disso também, da pureza das crianças e tudo, advertiu sobre o quanto é fundamental que sejamos como elas para entender – e habitar – em seu Reino. E vivia cercado delas, deixava que cantassem. Pode imaginar? Deus vivendo entre os homens, andando na Terra, com todo monte de atribuições, decisões e estresse que esse “cargo” representa? E ensinava sobre a importância de alimentarmos um coração ingênuo, desinteressado e sincero.

Um reino de crianças. Um céu colorido, divertido, sem o peso de ontem ou a preocupação de amanhã.

– Papai, como é que a gente vai parar lá no céu?

Eu respirei fundo. Acessei, nos porões da mente, o pouco de teologia que me atrevi a estudar e o vasto (arrãm) repertório de releituras bíblicas e psicologia familiar que adquiri. E engasguei. Fiquei quieto por um minuto, dois e então tentei mudar de assunto. Tive algum sucesso, a conversa enveredou por alguma superficialidade qualquer, mas foi ela, instantes depois, que concluiu:

– Pai, vai ser assim: vai ter uma festa no céu e Deus vai chamar a gente. E vou com um brinco, um anel e um vestido de princesa.

Da minha lista de pendências (4)

“Aprendam a fazer o bem! Busquem a justiça, acabem com a opressão. Lutem pelos direitos do órfão, defendam a causa da viúva.”

(Isaías 1:17)

O próximo

Quem é meu próximo? Meu próximo é todo aquele que eu penso que é e ainda cada um dos que eu gostaria que não fossem.

Cenas natalinas: Simeão

por Luiz Henrique Matos

(Inspirado na passagem de Lucas 2:21-40)

Quando acordou naquela manhã fria, Simeão sentiu-se jovem como há tempos não era. Preparou seu desjejum, lavou-se, vestiu uma túnica limpa e caminhou até o jardim nos fundos da casa onde, sozinho, gostava de meditar.

Enquanto se dedicava às flores que cultivava com tanto zelo desde a morte da esposa doze anos antes, sentiu ressurgir um pensamento que há muito adormecera em suas lembranças. Antes quieto, agora bradava; distante, agora vinha a galope. A revelação que tivera na mocidade, de repente tomava sua mente outra vez: não morreria antes de ver surgir o Messias, o Cristo, o libertador de Israel.

E aquilo era real como a enxada que empunhava, perceptível como vento frio que lhe agredia o rosto, era urgente como o instante exato, como o fôlego de ar, era hoje.

Simeão não pôde mais se concentrar noutra coisa. Durante toda a vida, agarrou-se à esperança desse dia. Foi, de fato, o que o manteve vivo e apegado ao Deus de sua vida nos momentos de dor e dúvida. A perda iminente da esposa, atacada por uma doença que a devorou em poucas semanas, a desolação do seu povo oprimido pelo Império Romano, sua Jerusalém tomada de soldados, sádicos, que tratam os judeus com escárnio. Quando jovem, seu coração clamava por redenção e justiça, mas agora ele era um velho viúvo, cansado e resignado.

Mas hoje… como era possível tudo renascer assim? Esse era o dia pelo qual o homem esperou por toda a vida mas para o qual, percebia, nunca havia se preparado. Seu sonho tão íntimo, o segredo que mantinha com Deus, Simeão prometeu a si que jamais falaria no assunto até que visse, com os próprios olhos, o libertador do povo escolhido. Agora, enfim, o consolador surgiu.

Não conseguiu cumprir sua rotina. Largou o jardim como estava, deixou caída a enxada sobre a terra, limpou as mãos na túnica e caminhou, absorto, porta adentro. Lavou o rosto, respirou por algum tempo, tentando manter a lucidez, apoiado sobre os braços enquanto contemplava a própria imagem refletida na água da pia. Cada fio em sua cabeça branca o remetia à promessa da mocidade.

Do que se passou depois disso, lembrou muito pouco. Não notou o estado em que deixou a casa, tampouco os cumprimentos dos vizinhos, o grito do comércio, o barulho da cidade enquanto seguiu obstinado pelo caminho até o templo. Subiu a escadaria como se não lhe pesassem décadas sobre as pernas, atravessou apressado o pátio, a entrada principal e, finalmente, chegou ao interior do lugar sagrado. Cerrou os olhos miúdos, movendo-os ansiosos, procurando por todo o lugar sem saber quem exatamente deveria encontrar.

Mas o templo estava vazio. Num canto, sentada, estava a profetiza Ana, já idosa, que passava seus dias naquele lugar. Um pensamento irônico lhe ocorreu vagamente e Simeão sorriu. Conteve-se, caminhou até uma área mais ampla no interior do templo, longe da porta de entrada e se acomodou. Olhou em volta mas nada lhe prendia a atenção. Tentou orar, mas não conseguia se concentrar. Fechou então os olhos e aguardou em silêncio. Não sairia dali até que as notícias chegassem das ruas ou o próprio Deus lhe mostrasse onde estava o Cristo para que ele fosse lhe prestar culto.

Por uma hora, o homem esperou. Teve dúvida. Talvez fosse tudo uma bobagem, a vontade de ter alguma novidade em sua vida monótona, um desejo íntimo de finalmente partir da vida e descansar, poder ele mesmo florescer num jardim e ter a alegria lhe regando o espírito. Mas, não, não poderia. Era verdade, só poderia ser. Como se fosse ontem, Simeão podia reconhecer aquela sensação em si tal como no dia em que recebeu a revelação que o sustentara até aquele instante.

As lembranças do passado se misturavam às daquela manhã quando o silêncio no interior do templo foi interrompido. Simeão despertou. O som cada vez mais alto de sandálias arrastando pelo chão denunciava que pessoas se aproximavam, chegando pelo corredor de entrada do templo. O velho sentiu sua espinha gelar. Num instante, o coração martelava em seu peito, as mãos suavam, a boca seca mal o deixava engolir. Ele sabia, Ele vinha.

Se havia algo em que Simeão jamais havia parado para refletir era na aparência do Cristo. A medida que os passos se achegavam, tentou construir para si a imagem. Em vão. Não era possível pensar qualquer coisa num momento iminente. Ele se pôs em pé, concentrou o olhar na entrada, começou a caminhar na direção da porta, titubeou, parou, coçou a barba, respirou fundo, ajeitou-se e, tal como se acostumou a fazer durante toda a vida, Simeão esperou.

O interior do templo era escuro e, olhando contra a claridade que vinha da porta, o velho não conseguia distinguir as pessoas que se aproximavam por detrás da luz. Quando finalmente seus olhos pequenos conseguiram se abrir, identificou um casal que chegava com um bebê nos braços, envolto num monte de panos.

Um misto de decepção e dúvida o arrebatou. Não, por Deus!, ainda não era o Messias que vinha bradando a libertação de Israel, cercado por uma multidão de anjos, trazendo a consolação para seu povo, redimindo os judeus dos pecados, do passado, da condenação eterna e trazendo, finalmente, a glória divina para a humanidade.

Eram apenas camponeses. Aproximaram-se com dúvidas, nem sabiam ao certo como deveriam proceder, vinham da Galileia e queriam apresentar seu filho homem, o primogênito, tal como mandava a tradição.

“Vocês precisam procurar o…”. Simeão sabia mas, seus olhos, o pensamento, a dúvida, como era possível? Era o dia, afinal? E a promessa? Ele sabia que o Espírito havia lhe revelado uma verdade, mas e agora? Onde ele estava? Como seria? A essa hora, tudo isso, essa família aqui…

“Bom, acho que posso ajudar. Deixe-me ver a criança”.

A mãe desenrolou os muitos panos que protegiam o menino e o pai o tomou no colo para mostrar ao velho homem.

Quando viu a criança, Simeão pensou por um instante que suas pernas não aguentariam o próprio peso. De repente, sentiu amolecer cada músculo rígido de seu pequeno corpo, seus lábios se moviam como num espasmo, sentiu inundar seu interior com um calor que, naquele momento, dissipava toda sombra de dúvida, a garganta presa, a promessa se cumprindo finalmente, a tempestade de sentimentos que brotava de suas entranhas e se convertiam em riso, em assombro, em paixão, em temor, em louvor, em lágrimas.

Simeão estendeu os braços e segurou a criança. Chegou a pensar que não seria capaz, mas num fôlego o ergueu acima de si e desabou a confissão que represara em seu coração por toda a vida:

“Ó Soberano, como prometeste, agora podes despedir em paz o teu servo. Pois os meus olhos já viram a tua salvação, que preparaste à vista de todos os povos: luz para revelação aos gentios e para a glória de Israel, teu povo”.

Os pais assistiam a cena admirados. E o homem envolveu nos braços aquele a quem gostaria de se entregar, agarrou junto ao peito o pequeno bebê a quem pensou prestar culto. A sua vida enfim estava completa, a promessa se cumpriu. Seus lábios exclamavam adoração ao Pai, seus braços embalavam o Filho de Deus. Era só um menino. Inocente, frágil, silencioso, o Rei de Israel chegou, o Deus vivo rasgou a eternidade e agora estava entre os homens. E seu nome… seu nome é Salvador, redentor, Deus Poderoso, Maravilhoso Conselheiro, Pai Eterno, Príncipe da Paz.

“O nome dele é Jesus”, disse o pai.

Um copo de leite, três biscoitos e um legado para a humanidade

por Luiz Henrique Matos

Um copo de leite gelado e três biscoitos de coco, todas as noites, antes de dormir.

O hábito já me domina há bons meses, mas só me dei conta mesmo alguns dias atrás. Eu observava a cena montada sobre a mesa da cozinha, desviando o olhar que deveria estar sobre o livro aberto ao lado e quando ameacei dar o primeiro gole no leite, me peguei falando sozinho: “É, amigão, a idade chega pra todo mundo.”

A idade. Uma entidade clássica, a fase crucial da vida. Sabe-se lá quando ela vem, nessas horas não importa muito se você está fazendo 64 ou 19 anos, quando seus hábitos ficam velhos, é sinal de que “a idade” chegou. No meu caso, a terceira década foi determinante. Eu nem bem fiz 30 anos num dia de 2010 e, no outro, expressões tais como “no meu tempo”, “não tenho idade pra isso” e “ai, meu ciático!” surgiram como mágica em meu vocabulário cotidiano.

Acabou a minha juventude, lá se foram os vinte e poucos, definitivamente. Agora eu tenho casa própria, sou pai de família, dirijo um sedan prateado, encontrei uns fios de cabelo branco na barba – bem no queixo! – e ouço minhas bandas favoritas tocarem no programa “Clássicos do Rrrrrock” na rádio. Eu penso no futuro, me preocupo com as consequências dos próximos passos, estou deixando a mocidade lá atrás e uma certa melancolia me ocorre vez ou outra.

Hoje é dia de vez ou outra.

* * *

Como serão, afinal, as coisas daqui 30 anos? Desde que deixei três décadas para trás, às vezes me pego lucubrando sobre as próximas.

Terei o dobro da idade de hoje. A Manú e eu estaremos embarcando nos 60, aposentados, gozando das ricas benesses da previdência social na década de 2040. Nossa casa, um bolinho novo sobre a mesa, uns biscoitos, o café fresco na xícara e aquele leite lá do primeiro parágrafo em seu devido copo. A sala toda cheia de fotos, os rostos cheios de rugas, o quintal cheio de netos e as lembranças cheias de pó. E eu ali, gordinho e grisalho, na minha cadeira, fazendo um balanço das escolhas e caminhos que trilhamos.

Legados.

Na etapa final da vida, me conheço bem, estarei encucado com o fato de a altura da grama no quintal estar muito grande para tal época do ano – qualquer época do ano – e pensando que tipo de marca eu terei deixado nas vidas dos meus filhos, na humanidade e em todas essas indagações tão fundamentalmente pequenas e típicas dos seres humanos.

No fundo, essa é a questão. Os anos vão passando e o sujeito começa a refletir sobre essas coisas. Vale para o leitor de auto-ajuda e para o de filosofia clássica também. A gente pensa, quer saber: que tipo de lembrança deixaremos no mundo? Queremos que nossas vidas, de algum jeito, tenham um significado, queremos saber se fizemos as coisas certas.

É nessas crises, com o cérebro embalado por mais uma dose fresca do mais puro leite semi-desnatado que eu considero que, já que não consigo enxergar como é que serão as coisas daqui 20 ou 30 anos, deveria ao menos começar alguma coisa que cresça e dure até lá. Sei lá, talvez plantar uma árvore, escrever um livro de memórias, abrir uma caderneta de poupança. Talvez semear alguns valores na vida da minha filha.

* * *

“Na verdade, quem sabe o que é bom para o homem, nos poucos dias de sua vida vazia, em que ele passa como uma sombra? Quem poderá contar-lhe o que acontecerá debaixo do sol depois que ele partir?” (Eclesiastes 6:12)

* * *

Quem é que sabe? Pode ser até que isso, os legados e tudo, sejam uma grandessíssima bobagem. Nessa semana, enquanto pensava justamente nessa história, esbarrei no verso do rei Salomão que me fez repensar o rumo desse texto algumas vezes. Afinal, vale alguma coisa a gente gastar, neurônios ou tostões que sejam, tentando edificar algo para a posteridade? Faz algum sentido eu querer projetar alguma imagem que gostaria que o mundo – as 11 ou 12 pessoas que me cercam – tivesse de mim quando envelhecer?

Eu penso na minha carreira, penso nas fotografias da família, penso nas convicções que defendo e em cada lição de moral que aplico na Nina. Mas eu sei bem que o que vai marcar a vida da minha filha não são exatamente as coisas que conquistei ou as mensagens registradas, mas o tipo de ser humano que fui. Coisas, isso de fato nós deixamos como herança, mas o caráter é o nosso legado.

Existe uma alegria pura e inconteste que reside no fato de encarar a vida de forma mais simples, desfrutando plenamente do que recebemos de graça e deixando de lado as preocupações vazias com o dia de amanhã – a ansiedade, por definição. Jesus falou sobre isso certa vez. Mas o problema que enfrento em desfrutar de forma livre o dia de hoje é que o amanhã demora muito pra chegar – minha ansiedade, por definição.

Por si só, a vida é uma dádiva. E filhos são um bom legado. O presente, a felicidade irreprimível de ver uma vida crescer sob seu teto, do começo à eternidade. Os primeiros passos, as palavras, o ensino todo sobre alguns impasses da humanidade, sobre a fé em Deus e sobre a importância de guardar seus brinquedos na caixa após o uso.

Ter filhos é experimentar e entender, em alguma proporção, o amor de Deus pelo homem. Eu sei que isso é um clichê bem redundante, mas fatos são mesmo coisas que se repetem incansavelmente até que notemos.

Ter Deus é perceber, a certa altura, que ele não se preocupa com legados ou marcas. Ele simplesmente é, ele está, eternamente, aqui e em todo lugar.

Nós crescemos, adquirimos novos hábitos, somos moldados pelo ambiente e tudo o que nos cerca ao longo do tempo. Mesmo à revelia, jamais abandonamos a condição de filhos, de criação do Pai eterno. Carregamos seus sonhos incrustados em nossos propósitos de vida, refletimos sua imagem, herdamos seus traços. Temos em nós o sentimento de pertencimento ao Criador, ainda que questionemos sua existência ou critiquemos seus atos por tantas e tantas vezes. Ele não liga, ele ama, se oferece e é nele que encontramos o refúgio para onde podemos voltar. O Pai sempre estará lá. Aqui.

Vai chegar o dia em que nossos filhos terão filhos. Vai chegar o dia em que a Nina vai morar longe e virá nos visitar num final de semana com sua família. Ela vai entrar em casa, largar a bolsa sobre o sofá, abrir a geladeira e perguntar da nossa vida, dos parentes que não vê, do que ando lendo. Ela vai descalçar as sandálias, ajudar a mãe na cozinha, vai querer comer um pouco do que quer que seja que estiver em meu prato, vai me cobrar, reclamar que não cuido da saúde direito, que fico tomando café o tempo todo e que isso acaba com o estômago. Ela vai agradecer pela ajuda com as crianças ontem à tarde, vai criticar minha roupa, minha barriga, minha mentalidade retrógrada sobre a política e o mundo e vai ficar brava por ter que repetir cada frase duas ou três vezes porque eu já não escuto direito. E ela vai sair para o quintal, batendo o pé porta afora, cheia das suas razões, mas deixando no rastro cada pequeno gesto que contemplo hoje. Eu, minha xícara na mão, observando aquela mulher, minha filha, a pequena Nina, e a vontade absurda de poder pegá-la no colo, rodar contra o vento e jogar pro alto outra vez. A esperança de que tudo aquilo seja só um truque da imaginação, que ela ainda seja criança e que volte logo, escalando minhas pernas e me cochiche no ouvido o pedido para que eu conte mais uma história.

Meu legado.

Falta muito?

por Luiz Henrique Matos (5/10/11)

– Pai?
– Oi, Nina?
– Vai demorar pra chegar?

Essa é clássica. Estamos na estrada viajando para o interior, no avião atravessando o oceano ou no carro indo até a padaria do bairro, não importa, para a Nina sempre estamos “demorando muiiito”. É a fase, eu sei. Aos quatro anos, minha filha ainda não consegue distinguir com precisão as medidas de tempo e distância. Qualquer coisa pode ser rápida ou devagar, pequena ou grande, dependendo do grau de ansiedade dela no momento.

Às vezes, estou concentrado numa tarefa ou conversando com alguém e ela surge:

– Pai? Papai! Paaaiii!?
– Calma, filha. Espera só um minuto, tá?
– Mas, pai, por favor! – ela puxa a ponta do meu queixo tentando virar meu rosto na sua direção.
– Filha! – olho sério, repreendo, viro de volta.
– É que…
– Nina, o que a gente conversou sobre você saber esperar a sua vez?
– Tá bom – e aí ela fica ali, paradinha, esperando a vez para falar, dá até dó.
– Pronto, filha, agora sim. O que é?
– É… é… pai, é que, sabe… – e começa o assunto.

O curioso de tudo é que eu já sei, em detalhes, tudo o que ela vai me dizer, mas eu paro e escuto. Eu gosto de ouvi-la, tenho uma certa satisfação em observar minha menina expondo seus argumentos e falando de si. É nessas horas que a gente vai descobrindo que eles crescem de verdade. Mais tarde, na hora de dormir, aproveito o momento para contar uma historinha que transmita alguma moral que, subjetivamente, trate sobre a importância da paciência. Não sei se ela entende, ela dorme, eu viro as costas, vou para meu quarto, deito a cabeça no travesseiro e faço as minhas preces antes de cair no sono.

– Pai!?

E começo o mesmo relato diário, repetitivo e insistente as últimas décadas. Pedidos, necessidades urgentes, casos de vida ou morte, mesmo. Eu insisto. Se pudesse alcançar o queixo dele – ou o último fiozinho da barba longa e branca – tentaria puxar na minha direção. E o curioso de tudo é que, apesar de conhecer cada mísera letra de tudo o que vou despejar nos próximos minutos, ele pára e escuta. Talvez ele se satisfaça me ouvindo ali parado, bradando imaturidades, como eu com a Nina. Talvez.

“Antes mesmo que a palavra me chegue à língua, tu já a conheces inteiramente, Senhor.” (Salmo 139:4)

E não importa quantos sermões e histórias eu escute que evoquem o valor da paciência e sua importância para a alma, o estômago e a queda de fios de cabelo, minha tendência é pensar que não é bem de espera que eu preciso. Eu avalio que é bem provável que eu não tenha sido muito específico e ele não tenha entendido do que eu preciso e-x-a-t-a-m-e-n-t-e. É melhor pensar num jeito adequado para falar na próxima vez, talvez uma outra ordem para as palavras, um jeito mais didático.

Mas, porquê, afinal de contas, tudo demora tanto?

Somos imediatistas. A Nina e eu. Talvez você também. Acho que vivemos num período da história em que isso se torna ainda mais evidente e critico. É o que falam. Essa nossa cultura do agora, em que tudo está online, fácil e abundante faz a gente ignorar o valor da espera ou a necessidade de tempo que certas coisas demandam. O excesso de informação, a overdose de estímulos, acabamos desaprendendo – ou, pode ser que nunca tenhamos assimilado isso de verdade – o valor de disciplinas como quietude e contemplação. Não sabemos esperar, não nos prestamos a reconhecer que certas coisas levam mesmo anos ou meses para acontecer.

Não nos prestamos a reconhecer que certas coisas levam mesmo cinco minutos para acontecer.

Há algum tempo, eu estava chegando no escritório pela manhã e, sei lá o motivo, me espantei com um fato cotidiano. Tudo ia acontecendo mais ou menos como na coisa toda da rotina diária. Entro na garagem, estaciono o carro, tranco o carro, esqueço que tranquei o carro, volto para checar, desço até o hall, pego um café na lanchonete, chego na catraca, caramba-cadê-meu-crachá?, procuro num bolso, procuro em outro bolso, procuro na mochila, procuro no casaco, pronto, passo pela catraca, cumprimento o segurança e caminho até a fila do elevador, que demora um bocado pra chegar. O sujeito à minha frente já fez o favor de apertar o botão para subir. Então, passam-se trinta segundos e nada do elevador. Um minuto e nada. Um minuto e meio e ainda nada do elevador. Nem chegamos a dois minutos de espera e o indivíduo apertou outra vez o botão. Não satisfeito com o fato de a máquina não obedecê-lo imediatamente, começou a apertar, insistentemente, o botãozinho, seguidas vezes, na esperança de que ela fosse sensível à sua necessidade e resolvesse acelerar o passo e vir mais rápido porque, afinal, havia um homem com pressa esperando lá no térreo. Absurdo.

Depois de mais alguns minutos esperando, finalmente entramos todos em nosso meio de transporte. Eu olhava de canto e meio assustado para o sujeito, que apertou o sexto andar. Apertei o oitavo, me acomodei próximo à porta, esperei todos entrarem e, tal como faço diariamente, apertei o botão para a porta fechar logo, duas vezes. Aff… quem é que agüenta aqueles segundos intermináveis até que ela resolva fechar sozinha?

Somos egoístas. A Nina, eu e o sujeito do sexto andar. Talvez você também. Julgamos o mundo a partir das nossas perspectivas. Queremos determinar o tempo, queremos do nosso jeito. Queremos. E acreditamos que alguém tem a obrigação de atender esses desejos. E achamos que Deus é um funcionário com boas qualificações para o cargo.

Não pensamos em Deus, só pensamos em nós mesmos, nossos umbigos e o mundo todo girando em torno dele. Queremos que tudo aconteça de acordo com a nossa vontade e julgamos que esse ponto de vista é suficientemente aceitável para todos. Se as coisas acontecessem, afinal, exatamente como planejamos, o mundo seria um lugar melhor. E aí entra a contradição existencial do negócio: como as coisas podem acontecer exatamente como cada um de nós planejou sem que isso afete, diretamente, os planos uns dos outros? Não é necessário então que algo, alguém ou o acaso determinem os fatos?

O ponto é: o homem não está no centro do universo, Deus é quem está no centro do universo – bem, isso se você, como eu, descartou a opção “acaso” no parágrafo anterior. O homem está no centro do coração de Deus. E é nele que nos descobrimos.

Só em Deus entendemos quem somos e a razão de sermos. O Pai revela nossa identidade e em seus braços a vida toda adquire uma nova perspectiva, não mais centrada em mim, mas no outro. Não mais imediatista, mas contemplativa. Não mais materialista, mas cheia de significado. Não mais, mas menos. Porque Deus é simples.

Mas, quanto tempo as coisas levam para acontecer? Quanto ainda mais até que minhas dúvidas sejam sanadas, que meus desejos sejam atendidos, até que certas coisas façam sentido e eu finalmente compreenda?

Somos dependentes. A Nina, eu, o sujeito do sexto andar e a humanidade toda. Talvez você também.

Me ajuda com o banho? Me ajuda com o cadarço? Me faz um copo de leite? Escova meus dentes? Pode pegar a massinha no armário pra gente brincar? Empresta seu celular pra eu jogar? Pode me contar uma história? Pode sarar o machucado na minha perna? Pode ir mais rápido? Pode dormir aqui comigo hoje a noite? Pode ser agora?

Para a Nina, eu sou um repositório de conhecimento, força bruta e um pai com capacidade multitarefa. Ela me julga capaz de resolver seus problemas. Ela julga e espera que eu faça tudo isso. Bem, ela julga e espera que eu faça tudo isso, agora!, ao mesmo tempo. E eu acho que ela vai aprender o valor de certas coisas se conseguir esperar um pouco. Ela precisa conhecer alguns chavões – que para ela ainda não são chavões – como o de que a caminhada vale mais do que o destino final e que a verdadeira felicidade não está no fim, mas no durante. São essas coisas, quase pílulas de auto-ajuda e tal, mas que no fundo, são mesmo o que importa numa boa história.

O tempo, no fim das contas, é muito preciso, o segundo após o outro, o ponteiro nunca falha, nunca muda sua forma. Mas a medida de tempo em cada circunstância é relativa.

Ela acha que eu demoro muito.

Eu não a culpo.

Somos crianças. Sim, todos nós.

Reconstrução

por Luiz Henrique Matos

“As coisas velhas já passaram; eis que tudo se fez novo!” (2 Coríntios 5:17b).

Tenho pensado no Japão e no Haiti de uns tempos pra cá. Mais especificamente, desde que os dois países foram atingidos por terremotos, volta e meia me pego curioso sobre as tragédias que aquelas pessoas viveram. Num antagonismo singular, de um lado uma das cinco economias mais prósperas do planeta e, do outro, uma das misérias mais evidentes. Duas ilhas, o mesmo mal e a testificação dolorosa de que tempestades atingem a todos.

Ao contrário do que parece, não tenho sido tocado por sentimentos altruístas. Quisera fosse, mas preciso ser honesto aqui. O que me vem à mente agora, meses depois, é que passada a devastação imediata da tragédia, aqueles povos precisam reerguer suas cidades. Eles estão começando de novo, catando as sobras e as lembranças, procurando sob escombros um pouco de força.

Mas o que mais me intriga é pensar que ainda antes de reconstruir, aquela gente vai precisar tirar o lixo da frente. Bem, lixo… o que eram suas casas, suas famílias, seus bens e apegos, agora são escombros que precisam ser movidos, limpos, organizados, para só então uma nova cidade ser edificada.

Tira-se pedra sobre pedra, ergue-se um tijolo após outro. E nos alicerces, em cada novo palmo da vida, um pouco do passado, uma memória recente, agora assentada com massa e reboco.

Pessoas estendem suas mãos e clamores a Deus, outras pessoas estendem suas mãos e ajudam, doam e participam. Mas em geral, passada a comoção imediata, a reconstrução é um processo bem solitário.

Ontem à noite fomos a um casamento. Preciso dizer que, ao contrário de muitos amigos, gosto de casamentos. Além da beleza da festa e do fato de ser a única ocasião em que uso gravata – e passo 45 minutos tentando acertar o nó daquela tirinha de pano que penduro no pescoço – me encanta o significado todo do ritual e os procedimentos, tudo ainda meio primitivo, um homem e uma mulher no exato momento em que decidem se tornar uma só carne. Coisa bonita, a cena toda, muito melhor do que qualquer novela. Eu sou um romântico.

Mas essa, a de ontem, talvez tenha sido uma das cerimônias mais tocantes em que já estive. Toda a cena, beleza e expectativa estavam lá, mas o que tornava o momento ainda mais peculiar é que aquele se tratava do segundo casamento dos dois, que vinham de divórcios depois de viverem anos tentando sustentar suas famílias. Cada um com sua história, trazendo consigo o passado, as experiências, filhos, sonhos e talvez um terremoto que tenha destruído e deixado em escombros boa parte do que construíram em suas vidas.

Foi uma cerimônia simples, elegante e muito agradável. Mas aquele momento trazia todo o significado que essa analogia descreve. Era incrível vê-los ali, confirmando um para o outro os seus votos, empurrando no dedo o anel dourado que cobrirá a marca antiga, na alegria e na tristeza. Uma nova aliança, uma nova chance, sonhos refeitos e Deus renovando o amor, puro amor, para que um homem e sua garota, apaixonados como jamais pensaram ser possível outra vez, construam juntos uma família.

É bonito ver como Deus age. Após a tragédia, sob a aparente destruição, ele faz brotar vida. Nas marcas do passado, seu toque é capaz de cicatrizar e sarar feridas. Ele oferece redenção, consolo, cuidado, ele refaz sonhos e nos veste com uma roupa limpa e nova para que participemos da festa. Deus transforma o mal em bem, sempre e outra vez mais, porque ele é amor e não cabe em si.

Havia poucas pessoas no casamento. Familiares, amigos, testemunhas, talvez alguns dos que se dispuseram a ajudar na limpeza e reconstrução. Mas diferente de outras tragédias e seus processos, esse agora não é um caminho solitário. Aquele casal descobriu um ao outro, eles agora se pertencem, e carregam uma aliança, a esperança e o desejo de fazer dar certo, de se amar e edificar um novo lar.

Bons samaritanos

“Os bons samaritanos sempre serão necessários para socorrer os que foram assaltados e roubados; entretanto, seria melhor acabar com os bandoleiros na estrada de Jerusalém a Jericó”, escreveu Stott em seu livro A Cruz de Cristo. “Por isso, a filantropia cristã em termos de alívio e ajuda é necessária, mas muito melhor seria um aprimoramento a longo prazo, e nós não podemos fugir da nossa responsabilidade política e da necessidade de participar da transformação das estruturas que inibem este aprimoramento. Os cristãos não podem olhar com tranquilidade as injustiças que arruínam o mundo de Deus e degradam suas criaturas”.

John Stott, citado no artigo “Evangélicos sem espetáculo” de Nicholas D. Kristof para o The New York Times (publicado no blog de Ed René Kivitz)

Quando coisas ruins acontecem a crianças boas

por Luiz Henrique Matos

“A dor é inevitável, sofrer é opcional.” (Haruki Murakami)

Já faz alguns meses que estou tentando escrever esse texto e nunca consigo terminar. Fico me enganando, dizendo a mim mesmo que é um lance meio autoral, de preciosismo literário (ahãm, como se eu sofresse mesmo disso), mas o fato é que tenho certo medo de escrever sobre esse tema. Virginia Woolf disse certa vez que todo texto carrega em si um pedaço de quem o escreve. No meu caso, um fato concomitante a esse é que muitas vezes algum assunto só fica claro para mim depois que eu o coloco no papel. No fundo, a escrita acaba sendo um exercício de reflexão. E confesso que em alguns momentos não quero refletir sobre certos temas.

Tenho medo de sofrer. E também tenho medo de pensar sobre o sofrimento. Não é por superstição, nada, mas é porque na maior parte do tempo eu sou aquele tipo de pessoa naturalmente otimista, que vê as coisas pelo seu lado bom e, em geral, isso é bem positivo, uma certa vantagem no traço de personalidade. No entanto, isso carrega um fato inegável: nunca estou preparado para as coisas darem errado.

E se tem uma verdade indelével que rege o universo da paternidade das aves estrigiformes, das famílias dos titonídeos e estrigídeos (vulgo, corujas) é que só existe uma coisa pior do que pensar que algo ruim possa acontecer com a gente e essa coisa é pensar que algo ruim possa acontecer com nossos filhos.

* * *

Nenhum pai quer ver seu filho sofrer. Bom, deixe-me corrigir: nenhum pai suporta ver seu filho sofrer. E nunca estamos prontos para isso.

Eu voltei a esse assunto, outra vez, há alguns dias, quando enfrentei duas madrugadas correndo com a Nina entre clínicas e hospitais, tentando encontrar alívio para a dor que ela sentia. Sentado na sala de espera de um pronto-socorro, eu pensava que, se pudesse, tirava aquilo dela ali na hora, com as próprias mãos. Se fosse possível, sofreria toda a dor no lugar dela, só para que pudesse dormir em paz outra vez. Observar aquela criaturinha chorando sem poder fazer algo que solucionasse seu problema imediatamente me doía em dobro. Queria eu ter poder para curá-la. Queria eu ser Deus para tocar em sua testa e mandar embora o que quer a fizesse sofrer.

Mas eu não sou Deus, sou só mais um filho assustado, pedindo socorro também, e ainda queria que Deus me atendesse no pedido quase desesperado para que ele parasse um pouco de resolver os problemas tão complexos de toda a humanidade e viesse cuidar da minha criança por alguns minutos.

Outro dia, a Nina chegou da escola com uma marca vermelha nas costas da mão esquerda. Era uma mordida, obra de um coleguinha com instintos canibais que frequentou a classe dela por um tempo. Na agenda, um recado da professora dava satisfações sobre o ocorrido e explicava que, no fim, tudo ficou bem entre os dois, com o pedido de desculpas e o perdão devidamente concedido.

Eu podia jurar que um filhote de crocodilo invadiu a pré-escola e atacou minha princesa.

– Você chorou, filha? – perguntou a mãe, já chorando.
– Ahãm.
– E doeu muito?
– Muito, muito.

Em mim, crescia a certeza de que era preciso tomar alguma providência para que aquele elemento, o pequeno meliante, jamais ousasse mostrar suas presas-de-leite para minha Nina outra vez. Eu tinha sede de justiça. Mas no fundo, eu também sabia que as coisas não podiam caminhar por aí. Eu precisava ter calma, ser adulto, racional. Falei com a Manú:

– Tadinha, né?
– É, aperta o coração da gente.
– Mas e aí, o que a gente faz?
– Acho melhor matricularmos ela no jiu-jitsu.

Coisas ruins acontecem a crianças boas.

E por mais que eu realmente me esforce para ignorar a realidade e prefira concentrar meus neurônios mentalizando coisas positivas e tentando acreditar que a fé cobrirá minha família contra todo e qualquer mal… bem, por mais que eu afirme que gostaria que as coisas fossem mesmo assim, eu sei que nem sempre poderei ajudar. Reluto em aceitar, mas o fato é que minhas asas não possuem a extensão que eu gostaria que tivessem e eu devo reconhecer, penosamente, que minha filha vai sofrer.

Nem sempre poderei livrá-la da dor ou impedir que o sofrimento venha. Um tombo no parquinho, uma medida disciplinar mais rígida, um resfriado pesado, um fora do primeiro namoradinho (daqui uns 30 ou 35 anos, quem sabe), uma topada na porta com o dedinho do pé.

– Aaaaaaaaaaaaahhhh!!! – era madrugada e a Nina gritou desesperada enquanto dormia. Estava tendo um pesadelo. Assustei, pulei da cama, corri até onde ela estava.
– Nina!? Calma, querida, calma. Está tudo bem, o papai está aqui.
– Ahn!? – ela acordou confusa.
– Tá tudo bem… pronto, calma. Viu? Não foi nada… O que aconteceu, filha?
– Uma cobra… tinha uma cobra querendo me pegar.
– Não tinha nada, filha. Você estava sonhando. Olha só, está tudo bem.
– Tinha sim… ela estava aqui. Mas o papai apareceu e mandou ela embora.

Ela acha que eu tenho poderes para solucionar todas as coisas. Pensa que sou capaz de pega-la no colo e carrega-la por quilômetros sobre meus ombros e que posso abrir as tampas de todo e qualquer tipo de pote. Ela acredita que tenho como fazer a viagem de carro de quase quatro horas durar menos, que posso protegê-la de monstros que assombram seus sonhos.

Não bastasse, soma-se nessa conta o fato de que uma das grandes satisfações em ser pai está em notar, nos pequenos gestos, que minha filha me admira, acha bonito e tem em mim uma referência boa. E soma-se ainda nessa mesma conta o doloroso fato de que uma das grandes paranoias de ser pai seja notar, em algum momento, que minha filha passará por alguma situação difícil em que eu não estarei lá para ajudar.

Ou, estarei mas não poderei impedir o sofrimento. E ela não vai sofrer porque eu deixei de agir e sim porque havia uma pedra para que ela tropeçasse no caminho que escolheu seguir. Circunstâncias, uma palavra necessária aqui. E aí, a questão já nem é o fato de eu poder ou não livra-la da dor, mas de que se eu intervir, aquilo já não será resultado das decisões que ela tomou.

O amor pressupõe liberdade. E quem ama, ama a liberdade do outro.

E na intensidade desse sentimento apaixonado, muitas vezes o pai abre mão do seu poder para dar ao filho a opção de escolha, por saber que o aprendizado é necessário e que nem tudo o que é bom, é necessariamente bom para todo mundo. Deus prefere não ser chamado de Deus do que ser esse deus sádico que alguns pensam que ele é, entende?

Ele é o Pai.

Um pai não deseja o sofrimento do filho, não o permite e tampouco provoca. O sofrimento de um filho, em tudo, rasga o coração do pai, dilacera sua alma. É errado culpa-lo pela dor. Mas o homem todo, em seu crescimento, aprende pela experiência. Sabemos o caminho certo a ser trilhado pelos conselhos que ouvimos e pela vida que trilhamos. Conhecemos a estrada à medida em que a percorremos. E os buracos estarão lá, nem todos provocando acidentes. E as belas paisagens estarão lá, nem todas provocando suspiros.

O sofrimento nos forja.

Ninguém jamais disse que não vamos sofrer, os textos sagrados não afirmam isso, avôs não contam histórias assim para seus netos. Mas as palavras que nos dão esperança, lembram a todo instante que em qualquer circunstância, em cada passo dessa aventura, o Pai está ao nosso lado.

Bem, eu não estou querendo explicar o sofrimento ou sistematizar a dor. Não pretendo. Isso não se explica, não tem teoria válida que sirva de alento. Alento é o ombro amigo, é o lenço cedido, é o choro solidário. O que eu gostaria, de alguma forma, como pai apaixonado, é que minha menina soubesse que se não existem superpoderes em minhas mãos, existe consolo. Que se não existe uma palavra mágica que cure a dor ou a incerteza, existe sempre uma companhia silenciosa, um copo de água com açúcar e um colo à disposição.

Eu sei não poderei explicar na maior parte das vezes – eu nem entendo na maior parte das vezes. E ainda que eu possa, é bem provável que não faça a menor diferença para ela naquela hora. Mas eu estarei lá.

O Pai sempre está por perto.

Filhos, distâncias e talvez um documentário do Discovery Channel

por Luiz Henrique Matos

Às vezes, a Nina passa alguns dias longe de nós. Acontece duas ou três vezes no ano, quando por ocasião das férias escolares, ela fica um tempo na casa da avó materna, que mora no interior.

Ao contrário do que pensam muitos amigos, a opção não é nossa. Ela é quem pede, a avó é quem insiste, os parentes fazem coro e eu acabo cedendo, contrariado na maior parte das vezes.

É que eu detesto ficar longe dela. Fico repetindo para mim mesmo aquela conversinha de que ela já vai passar tanto tempo – a maior parte da vida – longe de casa que eu gostaria de tê-la sob minhas asas tanto quanto fosse possível.

Acho até que já escrevi isso em alguma nota antes, mas o fato é que eu realmente lembro muito pouco da minha vida de casado sem minha a Nina com a gente. A Manú e eu esperamos quatro anos para ter filhos e quando penso nessa época, a ausência dela nas lembranças me parece mais um equívoco do que a história de fato.

Quando ela sai assim e depois volta, a sensação que dá é de como se a gente participasse de um desses documentários do Discovery Channel em que eles acompanham filhotes de cervos que se perdem na savana africana. O bichinho desgarrado, perdido, ao relento… e a mãe desamparada, incansável, segue desesperada na busca por sua cria. Depois de dias, perigos e muitas aventuras (!) eles se reencontram – em geral, quando chega nessa parte do programa, eu já estou dormindo no sofá há algumas dezenas de minutos, mas quando consigo assistir até o fim, não posso negar que a coisa toda é emocionante. A câmera mostra o filhote atrás de uma moita qualquer, aqueles olhinhos e tudo. Depois, fecha a imagem na mãe, que sente o cheiro familiar nas redondezas. Então ela procura, inquieta, os olhos semi-serrados sondam todo o ambiente e, finalmente, ela vê seu filhote à distância. Ela dispara, corre o quanto pode até que esbarra no pequeno animal, finalmente, que se entrega e eles rolam naquela vegetação e ela fica lambendo sua cria sem parar.

A sensação que dá é de como se a gente participasse de um desses livros das Escrituras… filhos perdidos, um pai preocupado, a busca incansável, Deus rasgando a eternidade em busca de suas crias para salvá-los, para mostrar que ele está por perto, que vai ficar tudo bem, existe uma sombra tranqüila, uma água fresca, um caminho seguro.

Filhos precisam voltar para os pais.

Hoje a Nina voltou de viagem. Sete dias na casa da avó, setenta vezes sete dias incontáveis de vazio aqui em casa. Então ela chega, as malas cheias, um pacote de biscoito de polvilho nas mãos, aquele sorrisinho puro que mal sabe o quanto nos domina. Eu a trago para perto, eu cuido, eu rolo com ela, eu lambo minha cria. Família. E a casa está cheia outra vez.

– Papai…

Já é tarde. Ela está na cama deitada e pede que eu conte uma história. Quer saber sobre a minha infância, ouvir alguma aventura, quer saber como era quando eu era filho.

Me faço de macho, me faço de sábio, faço de conta. Faço um esforço danado pensando em como explicar que pai, um dia a gente vira, mas filho… ah, filho a gente nunca deixa de ser. Precisando de colo, precisando aprender o caminho de volta, precisando ouvir que tudo ficará bem, precisando do amor paterno. Eu só dispenso as lambidas.

Da minha lista de pendências 3

“O amor deve ser sincero. Odeiem o que é mau; apeguem-se ao que é bom. Dediquem-se uns aos outros com amor fraternal. Prefiram dar honra aos outros mais do que a si próprios. Nunca lhes falte o zelo, sejam fervorosos no espírito, sirvam ao Senhor. Alegrem-se na esperança, sejam pacientes na tribulação, perseverem na oração. Compartilhem o que vocês têm com os santos em suas necessidades. Pratiquem a hospitalidade. Abençoem aqueles que os perseguem; abençoem, e não os amaldiçoem. Alegrem-se com os que se alegram; chorem com os que choram. Tenham uma mesma atitude uns para com os outros. Não sejam orgulhosos, mas estejam dispostos a associar-se a pessoas de posição inferior. Não sejam sábios aos seus próprios olhos.”

“Não retribuam a ninguém mal por mal. Procurem fazer o que é correto aos olhos de todos. Façam todo o possível para viver em paz com todos. Amados, nunca procurem vingar-se, mas deixem com Deus a ira, pois está escrito: Minha é a vingança; eu retribuirei, diz o Senhor. Ao contrário: Se o seu inimigo tiver fome, dê-lhe de comer; se tiver sede, dê-lhe de beber. Fazendo isso, você amontoará brasas vivas sobre a cabeça dele.”

“Não se deixem vencer pelo mal, mas vençam o mal com o bem.”

(Paulo, na carta aos Romanos, capítulo 12, versos 9 a 21)

Cenas domésticas – Todos dizem eu te amo

por Luiz Henrique Matos

sunshine

Um: Tenho o hábito de beber a água e deixar o copo vazio sobre a pia, bem ao lado do filtro. Depois, saio, faço minhas coisas, brinco um pouco, vejo a TV. Mais tarde, volto até a cozinha e noto que o copo está lá, cheio outra vez, no mesmo lugar em que eu o havia deixado. Eu acho estranho, bebo e ao sair em direção a sala dou de cara com a Nina, que me observava e sorri simpática: “Pai, você já bebeu a água que eu deixei pra você?”

Dois: Costumo dormir tarde aqui em casa. Em geral, quando me deito, a Manú e a Nina já estão na cama há algum tempo. Vez por outra, quando entro no banheiro para escovar os dentes, encontro minha escova repousando sutilmente sobre a pia, já com a pasta colocada. E é assim desde que nos casamos.

Três: Às vezes, eu vejo o sol nascer. Acordo cedo, preparo a lancheira da Nina para a escola, me arrumo, ajeito algumas coisas e, nesse meio tempo, percebo os primeiros raios de sol atravessando as frestas da janela. Então eu paro para espiar. Abro a cortina devagar e contemplo o dia nascendo, o sol, um ou outro pássaro cantando, a cena da cidade acordando, a lembrança das manhãs amarelas da infância. E isso muda toda a dinâmica do dia, sempre. Fico pensando que Deus faz essas coisas de propósito, ele insiste em me mimar.

Não custa nada, mas ninguém também precisaria fazer. Eu não preciso disso, elas tão pouco, mas existem gestos, esses assim, que tornam as coisas melhores. Não é uma carta ou uma declaração explícita de amor, nada espantoso ou absurdamente caro. Mas é aquilo que se faz para o outro, simples, com afeto, só porque é para o outro.

Já é noite e preciso descansar. Escovo os dentes pensando nisso tudo. Depois, faço a ronda pela casa e sigo até a cozinha para o último copo d’água antes do sono. Acendo a luz e o copo está lá, cheio, no lugar de sempre, com toda expressão de amor que isso carrega.

(Escrito em 19/12/2010 e 15/07/2011)

Oito e oitenta

Você era a menina do Seguro
Você virou a Emmanuelle
Você virou minha amiga
Você virou a Manú
Você virou a minha cabeça
Você virou a Mânu
Você virou o meu caso
Você virou minha namorada
Você virou o meu mundo
Você virou minha noiva
Você virou minha esposa
Você virou minha
Você virou a mãe dos meus filhos
Você é minha vida
E eu sempre serei seu.


Oito anos eManurado.

Um vídeo para a sexta-feira

Ela ainda cabe no meu colo

por Luiz Henrique Matos

No próximo fim de semana ela fará quatro anos. Eu posso jurar que nunca imaginei esse momento da vida dela chegando. Crianças de quatro anos para mim costumavam parecer grandes demais perto do frágil bebê que eu carregava nos braços por aí. Mas agora eu tenho uma menina em casa, a cada dia com mais jeitos, vestidos, vontades, brilhos e argumentos, mandando em mim desde o princípio das eras, tal qual a mãe – e antes que a coisa esquente por aqui, reconheço que obedeço satisfeito a ambas.

De um modo inexplicavelmente rápido e fora de controle, as coisas foram acontecendo. Ainda há pouco éramos um casal de namorados decidindo sobre o cinema de sexta, o curso na faculdade, a data do noivado, o bairro onde morar, o nome do bebê, a maternidade onde ela nasceria… vivíamos momentos tão diferentes em nossas vidas. Hoje, mal conseguimos lembrar o que era viver – ou que graça poderia ter uma casa – sem um filho por perto.

Toda a rotina quadrada se tornou plena em si. E o cotidiano de pai de família que poderia talvez parecer a alguém o resigno de um sujeito acomodado, se tornou para mim a maior conquista a que eu poderia ter acesso. Em geral, são nesses preciosos momentos, que esse mesmo alguém poderia chamar de comuns, que se pode observar a beleza inesquecível de certos detalhes. Aquele tipo de coisa rara que, enquanto acontece você já sabe que jamais esquecerá.

Estou vendo TV ou lendo algo no sofá quando percebo que ela vem lá do quarto pelo corredor cantarolando e pulando (se tem algo que os livros e o Google não explicam mas que é uma espécie de lei natural na formação das crianças é que, antes de aprender a andar civilizadamente, lá pelos 17 anos, elas praticamente só se locomovem pulando ou correndo). Então, ela surge na sala rodopiando e plana como uma bailarina por sobre o piso de madeira. E dançando, com caras, bocas, tropeços e poses, enche de graça toda uma semana. A mãe, aluna de balé durante a infância, se encanta e ensina o “pli-ê, es-tica” por algumas horas. Eu, aspirante a Carlinhos de Jesus, balanço a cabeça fora de ritmo e babo em minha pequena cria.

Eu a chamo de “bailanina”.

Se ela pudesse, passaria os dias vestida com aquele colan cor-de-rosa, o par de sapatilhas, o tutú rodado e o cabelinho penteado em coque.

E se tem uma coisa que mexe comigo, é que eu amo essa espontaneidade dela, o mundo maravilhoso, infantil e imaginário que constrói e me convida para participar quando estou por perto. Posso observar seu olhar curioso, a descoberta de algo novo e, nessas horas, eu gostaria que ela soubesse o quanto isso é precioso, o quanto sua dança tão pura é capaz de mover, que um mundo inteiro gira ao ritmo dessa beleza frágil, pequena e atrapalhada.

Seus passos. Aos saltos, ela atravessa a sala e os anos.

Já faz um tempo, estávamos viajando em família quando entramos no elevador de uma loja. A Nina dormia no meu colo, a Manú a cobria com um casaco e uma senhora nos observava, sorrindo com um jeito meio melancólico, até que disse: “E na próxima semana ela fará 20 anos”.

Eu sei, no duro, que um dia a fantasia vai acabar. Logo, ela terá mais papéis a cumprir, assumirá compromissos, responsabilidades… e essa essência, o que a formou de fato, será uma lembrança na rotina apressada. Logo, ela vai se dar conta que entre milhares de defeitos, seu pai também não dança como o Baryshnikov, não tem respostas para todas as questões da humanidade e é mais baixo e fraco do que ela pensou quando pequena. E então, eu já não serei mais “o cara”, o príncipe, o homem com quem ela quer se casar e que sempre a socorre quando ninguém mais consegue.

Talvez Deus também tenha esse tipo de sentimento em relação a nós. No dia em que vai embora toda aquela espontaneidade de criança, seu coração deve apertar. Vamos costurando nossas complexas teias de problemas, relacionamentos, trabalho, família, círculos sociais e, de repente, o tempo se torna nosso recurso mais escasso. Mergulhamos na rotina e depois nos debatemos para tentar entender onde foi que erramos. Então saímos a procura de algo que nos preencha, buscamos um tipo de felicidade e simplicidade que parece inatingível mas que, de alguma forma, também pareceu tão real e próxima um dia.

Acho que Deus observa tudo isso e procura formas de nos convidar para voltar. “Dance”, ele deve dizer. Nós mudamos nossa visão de mundo, mas Deus não muda sua visão sobre nós. E nós insistimos em pensar que o ser humano se lança eternamente numa busca pessoal por Deus, mas o que as escrituras nos contam é sobre a história de Deus, o Pai incansável, em busca do homem.

Ela será sempre uma menininha para mim.

E eu gostaria que ela soubesse, um dia, que independentemente das escolhas que faça e da mulher que se torne, que ela sempre poderá encher um pai de alegria com sua presença. Que não importa sua estatura ou idade, haverá um colo e dois braços onde se abrigar. Talvez eu não tenha conselhos sábios ou as respostas para todas as questões da humanidade, mas eu vou tentar acompanhá-la numa dança.

Já faz alguns dias, estávamos chegando numa festa de aniversário e ela ainda dormia em meu colo. Ficou um tempo naquele estado confuso, ainda acordando e eu, meio sem jeito, segui cumprimentando as pessoas. Um sujeito veio até mim, estendeu a mão educadamente e em seguida resolveu fazer um gracejo:

– Ei, mocinha, você não acha que já está grande demais para ficar no colo?

Sonolenta, ela só meneou a cabeça. Eu nada disse, apenas sorri, olhei para o homem e desejei no íntimo: “Espero que não… tomara que nunca esteja.”

Eu espero. Sento-me no sofá, no mesmo canto de sempre, de onde assisto TV, leio sob a luz e olho a cidade pela janela. No silêncio, eu alimento minha expectativa, eu aguardo o barulho dos passos, tento ouvir sua voz de menina ao fundo e ver surgir pelo corredor os saltos da minha bailarina.

Que tenha música, que seja com festa, que Deus a preencha e o amor a inspire em cada pequeno passo. Que a vida a contemple.


(Esse texto faz parte da série Paternidade)