Cenas natalinas: Simeão

por Luiz Henrique Matos

(Inspirado na passagem de Lucas 2:21-40)

Quando acordou naquela manhã fria, Simeão sentiu-se jovem como há tempos não era. Preparou seu desjejum, lavou-se, vestiu uma túnica limpa e caminhou até o jardim nos fundos da casa onde, sozinho, gostava de meditar.

Enquanto se dedicava às flores que cultivava com tanto zelo desde a morte da esposa doze anos antes, sentiu ressurgir um pensamento que há muito adormecera em suas lembranças. Antes quieto, agora bradava; distante, agora vinha a galope. A revelação que tivera na mocidade, de repente tomava sua mente outra vez: não morreria antes de ver surgir o Messias, o Cristo, o libertador de Israel.

E aquilo era real como a enxada que empunhava, perceptível como vento frio que lhe agredia o rosto, era urgente como o instante exato, como o fôlego de ar, era hoje.

Simeão não pôde mais se concentrar noutra coisa. Durante toda a vida, agarrou-se à esperança desse dia. Foi, de fato, o que o manteve vivo e apegado ao Deus de sua vida nos momentos de dor e dúvida. A perda iminente da esposa, atacada por uma doença que a devorou em poucas semanas, a desolação do seu povo oprimido pelo Império Romano, sua Jerusalém tomada de soldados, sádicos, que tratam os judeus com escárnio. Quando jovem, seu coração clamava por redenção e justiça, mas agora ele era um velho viúvo, cansado e resignado.

Mas hoje… como era possível tudo renascer assim? Esse era o dia pelo qual o homem esperou por toda a vida mas para o qual, percebia, nunca havia se preparado. Seu sonho tão íntimo, o segredo que mantinha com Deus, Simeão prometeu a si que jamais falaria no assunto até que visse, com os próprios olhos, o libertador do povo escolhido. Agora, enfim, o consolador surgiu.

Não conseguiu cumprir sua rotina. Largou o jardim como estava, deixou caída a enxada sobre a terra, limpou as mãos na túnica e caminhou, absorto, porta adentro. Lavou o rosto, respirou por algum tempo, tentando manter a lucidez, apoiado sobre os braços enquanto contemplava a própria imagem refletida na água da pia. Cada fio em sua cabeça branca o remetia à promessa da mocidade.

Do que se passou depois disso, lembrou muito pouco. Não notou o estado em que deixou a casa, tampouco os cumprimentos dos vizinhos, o grito do comércio, o barulho da cidade enquanto seguiu obstinado pelo caminho até o templo. Subiu a escadaria como se não lhe pesassem décadas sobre as pernas, atravessou apressado o pátio, a entrada principal e, finalmente, chegou ao interior do lugar sagrado. Cerrou os olhos miúdos, movendo-os ansiosos, procurando por todo o lugar sem saber quem exatamente deveria encontrar.

Mas o templo estava vazio. Num canto, sentada, estava a profetiza Ana, já idosa, que passava seus dias naquele lugar. Um pensamento irônico lhe ocorreu vagamente e Simeão sorriu. Conteve-se, caminhou até uma área mais ampla no interior do templo, longe da porta de entrada e se acomodou. Olhou em volta mas nada lhe prendia a atenção. Tentou orar, mas não conseguia se concentrar. Fechou então os olhos e aguardou em silêncio. Não sairia dali até que as notícias chegassem das ruas ou o próprio Deus lhe mostrasse onde estava o Cristo para que ele fosse lhe prestar culto.

Por uma hora, o homem esperou. Teve dúvida. Talvez fosse tudo uma bobagem, a vontade de ter alguma novidade em sua vida monótona, um desejo íntimo de finalmente partir da vida e descansar, poder ele mesmo florescer num jardim e ter a alegria lhe regando o espírito. Mas, não, não poderia. Era verdade, só poderia ser. Como se fosse ontem, Simeão podia reconhecer aquela sensação em si tal como no dia em que recebeu a revelação que o sustentara até aquele instante.

As lembranças do passado se misturavam às daquela manhã quando o silêncio no interior do templo foi interrompido. Simeão despertou. O som cada vez mais alto de sandálias arrastando pelo chão denunciava que pessoas se aproximavam, chegando pelo corredor de entrada do templo. O velho sentiu sua espinha gelar. Num instante, o coração martelava em seu peito, as mãos suavam, a boca seca mal o deixava engolir. Ele sabia, Ele vinha.

Se havia algo em que Simeão jamais havia parado para refletir era na aparência do Cristo. A medida que os passos se achegavam, tentou construir para si a imagem. Em vão. Não era possível pensar qualquer coisa num momento iminente. Ele se pôs em pé, concentrou o olhar na entrada, começou a caminhar na direção da porta, titubeou, parou, coçou a barba, respirou fundo, ajeitou-se e, tal como se acostumou a fazer durante toda a vida, Simeão esperou.

O interior do templo era escuro e, olhando contra a claridade que vinha da porta, o velho não conseguia distinguir as pessoas que se aproximavam por detrás da luz. Quando finalmente seus olhos pequenos conseguiram se abrir, identificou um casal que chegava com um bebê nos braços, envolto num monte de panos.

Um misto de decepção e dúvida o arrebatou. Não, por Deus!, ainda não era o Messias que vinha bradando a libertação de Israel, cercado por uma multidão de anjos, trazendo a consolação para seu povo, redimindo os judeus dos pecados, do passado, da condenação eterna e trazendo, finalmente, a glória divina para a humanidade.

Eram apenas camponeses. Aproximaram-se com dúvidas, nem sabiam ao certo como deveriam proceder, vinham da Galileia e queriam apresentar seu filho homem, o primogênito, tal como mandava a tradição.

“Vocês precisam procurar o…”. Simeão sabia mas, seus olhos, o pensamento, a dúvida, como era possível? Era o dia, afinal? E a promessa? Ele sabia que o Espírito havia lhe revelado uma verdade, mas e agora? Onde ele estava? Como seria? A essa hora, tudo isso, essa família aqui…

“Bom, acho que posso ajudar. Deixe-me ver a criança”.

A mãe desenrolou os muitos panos que protegiam o menino e o pai o tomou no colo para mostrar ao velho homem.

Quando viu a criança, Simeão pensou por um instante que suas pernas não aguentariam o próprio peso. De repente, sentiu amolecer cada músculo rígido de seu pequeno corpo, seus lábios se moviam como num espasmo, sentiu inundar seu interior com um calor que, naquele momento, dissipava toda sombra de dúvida, a garganta presa, a promessa se cumprindo finalmente, a tempestade de sentimentos que brotava de suas entranhas e se convertiam em riso, em assombro, em paixão, em temor, em louvor, em lágrimas.

Simeão estendeu os braços e segurou a criança. Chegou a pensar que não seria capaz, mas num fôlego o ergueu acima de si e desabou a confissão que represara em seu coração por toda a vida:

“Ó Soberano, como prometeste, agora podes despedir em paz o teu servo. Pois os meus olhos já viram a tua salvação, que preparaste à vista de todos os povos: luz para revelação aos gentios e para a glória de Israel, teu povo”.

Os pais assistiam a cena admirados. E o homem envolveu nos braços aquele a quem gostaria de se entregar, agarrou junto ao peito o pequeno bebê a quem pensou prestar culto. A sua vida enfim estava completa, a promessa se cumpriu. Seus lábios exclamavam adoração ao Pai, seus braços embalavam o Filho de Deus. Era só um menino. Inocente, frágil, silencioso, o Rei de Israel chegou, o Deus vivo rasgou a eternidade e agora estava entre os homens. E seu nome… seu nome é Salvador, redentor, Deus Poderoso, Maravilhoso Conselheiro, Pai Eterno, Príncipe da Paz.

“O nome dele é Jesus”, disse o pai.

Um copo de leite, três biscoitos e um legado para a humanidade

por Luiz Henrique Matos

Um copo de leite gelado e três biscoitos de coco, todas as noites, antes de dormir.

O hábito já me domina há bons meses, mas só me dei conta mesmo alguns dias atrás. Eu observava a cena montada sobre a mesa da cozinha, desviando o olhar que deveria estar sobre o livro aberto ao lado e quando ameacei dar o primeiro gole no leite, me peguei falando sozinho: “É, amigão, a idade chega pra todo mundo.”

A idade. Uma entidade clássica, a fase crucial da vida. Sabe-se lá quando ela vem, nessas horas não importa muito se você está fazendo 64 ou 19 anos, quando seus hábitos ficam velhos, é sinal de que “a idade” chegou. No meu caso, a terceira década foi determinante. Eu nem bem fiz 30 anos num dia de 2010 e, no outro, expressões tais como “no meu tempo”, “não tenho idade pra isso” e “ai, meu ciático!” surgiram como mágica em meu vocabulário cotidiano.

Acabou a minha juventude, lá se foram os vinte e poucos, definitivamente. Agora eu tenho casa própria, sou pai de família, dirijo um sedan prateado, encontrei uns fios de cabelo branco na barba – bem no queixo! – e ouço minhas bandas favoritas tocarem no programa “Clássicos do Rrrrrock” na rádio. Eu penso no futuro, me preocupo com as consequências dos próximos passos, estou deixando a mocidade lá atrás e uma certa melancolia me ocorre vez ou outra.

Hoje é dia de vez ou outra.

* * *

Como serão, afinal, as coisas daqui 30 anos? Desde que deixei três décadas para trás, às vezes me pego lucubrando sobre as próximas.

Terei o dobro da idade de hoje. A Manú e eu estaremos embarcando nos 60, aposentados, gozando das ricas benesses da previdência social na década de 2040. Nossa casa, um bolinho novo sobre a mesa, uns biscoitos, o café fresco na xícara e aquele leite lá do primeiro parágrafo em seu devido copo. A sala toda cheia de fotos, os rostos cheios de rugas, o quintal cheio de netos e as lembranças cheias de pó. E eu ali, gordinho e grisalho, na minha cadeira, fazendo um balanço das escolhas e caminhos que trilhamos.

Legados.

Na etapa final da vida, me conheço bem, estarei encucado com o fato de a altura da grama no quintal estar muito grande para tal época do ano – qualquer época do ano – e pensando que tipo de marca eu terei deixado nas vidas dos meus filhos, na humanidade e em todas essas indagações tão fundamentalmente pequenas e típicas dos seres humanos.

No fundo, essa é a questão. Os anos vão passando e o sujeito começa a refletir sobre essas coisas. Vale para o leitor de auto-ajuda e para o de filosofia clássica também. A gente pensa, quer saber: que tipo de lembrança deixaremos no mundo? Queremos que nossas vidas, de algum jeito, tenham um significado, queremos saber se fizemos as coisas certas.

É nessas crises, com o cérebro embalado por mais uma dose fresca do mais puro leite semi-desnatado que eu considero que, já que não consigo enxergar como é que serão as coisas daqui 20 ou 30 anos, deveria ao menos começar alguma coisa que cresça e dure até lá. Sei lá, talvez plantar uma árvore, escrever um livro de memórias, abrir uma caderneta de poupança. Talvez semear alguns valores na vida da minha filha.

* * *

“Na verdade, quem sabe o que é bom para o homem, nos poucos dias de sua vida vazia, em que ele passa como uma sombra? Quem poderá contar-lhe o que acontecerá debaixo do sol depois que ele partir?” (Eclesiastes 6:12)

* * *

Quem é que sabe? Pode ser até que isso, os legados e tudo, sejam uma grandessíssima bobagem. Nessa semana, enquanto pensava justamente nessa história, esbarrei no verso do rei Salomão que me fez repensar o rumo desse texto algumas vezes. Afinal, vale alguma coisa a gente gastar, neurônios ou tostões que sejam, tentando edificar algo para a posteridade? Faz algum sentido eu querer projetar alguma imagem que gostaria que o mundo – as 11 ou 12 pessoas que me cercam – tivesse de mim quando envelhecer?

Eu penso na minha carreira, penso nas fotografias da família, penso nas convicções que defendo e em cada lição de moral que aplico na Nina. Mas eu sei bem que o que vai marcar a vida da minha filha não são exatamente as coisas que conquistei ou as mensagens registradas, mas o tipo de ser humano que fui. Coisas, isso de fato nós deixamos como herança, mas o caráter é o nosso legado.

Existe uma alegria pura e inconteste que reside no fato de encarar a vida de forma mais simples, desfrutando plenamente do que recebemos de graça e deixando de lado as preocupações vazias com o dia de amanhã – a ansiedade, por definição. Jesus falou sobre isso certa vez. Mas o problema que enfrento em desfrutar de forma livre o dia de hoje é que o amanhã demora muito pra chegar – minha ansiedade, por definição.

Por si só, a vida é uma dádiva. E filhos são um bom legado. O presente, a felicidade irreprimível de ver uma vida crescer sob seu teto, do começo à eternidade. Os primeiros passos, as palavras, o ensino todo sobre alguns impasses da humanidade, sobre a fé em Deus e sobre a importância de guardar seus brinquedos na caixa após o uso.

Ter filhos é experimentar e entender, em alguma proporção, o amor de Deus pelo homem. Eu sei que isso é um clichê bem redundante, mas fatos são mesmo coisas que se repetem incansavelmente até que notemos.

Ter Deus é perceber, a certa altura, que ele não se preocupa com legados ou marcas. Ele simplesmente é, ele está, eternamente, aqui e em todo lugar.

Nós crescemos, adquirimos novos hábitos, somos moldados pelo ambiente e tudo o que nos cerca ao longo do tempo. Mesmo à revelia, jamais abandonamos a condição de filhos, de criação do Pai eterno. Carregamos seus sonhos incrustados em nossos propósitos de vida, refletimos sua imagem, herdamos seus traços. Temos em nós o sentimento de pertencimento ao Criador, ainda que questionemos sua existência ou critiquemos seus atos por tantas e tantas vezes. Ele não liga, ele ama, se oferece e é nele que encontramos o refúgio para onde podemos voltar. O Pai sempre estará lá. Aqui.

Vai chegar o dia em que nossos filhos terão filhos. Vai chegar o dia em que a Nina vai morar longe e virá nos visitar num final de semana com sua família. Ela vai entrar em casa, largar a bolsa sobre o sofá, abrir a geladeira e perguntar da nossa vida, dos parentes que não vê, do que ando lendo. Ela vai descalçar as sandálias, ajudar a mãe na cozinha, vai querer comer um pouco do que quer que seja que estiver em meu prato, vai me cobrar, reclamar que não cuido da saúde direito, que fico tomando café o tempo todo e que isso acaba com o estômago. Ela vai agradecer pela ajuda com as crianças ontem à tarde, vai criticar minha roupa, minha barriga, minha mentalidade retrógrada sobre a política e o mundo e vai ficar brava por ter que repetir cada frase duas ou três vezes porque eu já não escuto direito. E ela vai sair para o quintal, batendo o pé porta afora, cheia das suas razões, mas deixando no rastro cada pequeno gesto que contemplo hoje. Eu, minha xícara na mão, observando aquela mulher, minha filha, a pequena Nina, e a vontade absurda de poder pegá-la no colo, rodar contra o vento e jogar pro alto outra vez. A esperança de que tudo aquilo seja só um truque da imaginação, que ela ainda seja criança e que volte logo, escalando minhas pernas e me cochiche no ouvido o pedido para que eu conte mais uma história.

Meu legado.

Uma imagem para resumir as coisas

Solitude

por Luiz Henrique Matos

O silêncio.
Profundo e providencial silêncio.
Solitude.
Eu e minha alma.
O Espírito,
e onde posso ouvi-lo.

Falta muito?

por Luiz Henrique Matos (5/10/11)

– Pai?
– Oi, Nina?
– Vai demorar pra chegar?

Essa é clássica. Estamos na estrada viajando para o interior, no avião atravessando o oceano ou no carro indo até a padaria do bairro, não importa, para a Nina sempre estamos “demorando muiiito”. É a fase, eu sei. Aos quatro anos, minha filha ainda não consegue distinguir com precisão as medidas de tempo e distância. Qualquer coisa pode ser rápida ou devagar, pequena ou grande, dependendo do grau de ansiedade dela no momento.

Às vezes, estou concentrado numa tarefa ou conversando com alguém e ela surge:

– Pai? Papai! Paaaiii!?
– Calma, filha. Espera só um minuto, tá?
– Mas, pai, por favor! – ela puxa a ponta do meu queixo tentando virar meu rosto na sua direção.
– Filha! – olho sério, repreendo, viro de volta.
– É que…
– Nina, o que a gente conversou sobre você saber esperar a sua vez?
– Tá bom – e aí ela fica ali, paradinha, esperando a vez para falar, dá até dó.
– Pronto, filha, agora sim. O que é?
– É… é… pai, é que, sabe… – e começa o assunto.

O curioso de tudo é que eu já sei, em detalhes, tudo o que ela vai me dizer, mas eu paro e escuto. Eu gosto de ouvi-la, tenho uma certa satisfação em observar minha menina expondo seus argumentos e falando de si. É nessas horas que a gente vai descobrindo que eles crescem de verdade. Mais tarde, na hora de dormir, aproveito o momento para contar uma historinha que transmita alguma moral que, subjetivamente, trate sobre a importância da paciência. Não sei se ela entende, ela dorme, eu viro as costas, vou para meu quarto, deito a cabeça no travesseiro e faço as minhas preces antes de cair no sono.

– Pai!?

E começo o mesmo relato diário, repetitivo e insistente as últimas décadas. Pedidos, necessidades urgentes, casos de vida ou morte, mesmo. Eu insisto. Se pudesse alcançar o queixo dele – ou o último fiozinho da barba longa e branca – tentaria puxar na minha direção. E o curioso de tudo é que, apesar de conhecer cada mísera letra de tudo o que vou despejar nos próximos minutos, ele pára e escuta. Talvez ele se satisfaça me ouvindo ali parado, bradando imaturidades, como eu com a Nina. Talvez.

“Antes mesmo que a palavra me chegue à língua, tu já a conheces inteiramente, Senhor.” (Salmo 139:4)

E não importa quantos sermões e histórias eu escute que evoquem o valor da paciência e sua importância para a alma, o estômago e a queda de fios de cabelo, minha tendência é pensar que não é bem de espera que eu preciso. Eu avalio que é bem provável que eu não tenha sido muito específico e ele não tenha entendido do que eu preciso e-x-a-t-a-m-e-n-t-e. É melhor pensar num jeito adequado para falar na próxima vez, talvez uma outra ordem para as palavras, um jeito mais didático.

Mas, porquê, afinal de contas, tudo demora tanto?

Somos imediatistas. A Nina e eu. Talvez você também. Acho que vivemos num período da história em que isso se torna ainda mais evidente e critico. É o que falam. Essa nossa cultura do agora, em que tudo está online, fácil e abundante faz a gente ignorar o valor da espera ou a necessidade de tempo que certas coisas demandam. O excesso de informação, a overdose de estímulos, acabamos desaprendendo – ou, pode ser que nunca tenhamos assimilado isso de verdade – o valor de disciplinas como quietude e contemplação. Não sabemos esperar, não nos prestamos a reconhecer que certas coisas levam mesmo anos ou meses para acontecer.

Não nos prestamos a reconhecer que certas coisas levam mesmo cinco minutos para acontecer.

Há algum tempo, eu estava chegando no escritório pela manhã e, sei lá o motivo, me espantei com um fato cotidiano. Tudo ia acontecendo mais ou menos como na coisa toda da rotina diária. Entro na garagem, estaciono o carro, tranco o carro, esqueço que tranquei o carro, volto para checar, desço até o hall, pego um café na lanchonete, chego na catraca, caramba-cadê-meu-crachá?, procuro num bolso, procuro em outro bolso, procuro na mochila, procuro no casaco, pronto, passo pela catraca, cumprimento o segurança e caminho até a fila do elevador, que demora um bocado pra chegar. O sujeito à minha frente já fez o favor de apertar o botão para subir. Então, passam-se trinta segundos e nada do elevador. Um minuto e nada. Um minuto e meio e ainda nada do elevador. Nem chegamos a dois minutos de espera e o indivíduo apertou outra vez o botão. Não satisfeito com o fato de a máquina não obedecê-lo imediatamente, começou a apertar, insistentemente, o botãozinho, seguidas vezes, na esperança de que ela fosse sensível à sua necessidade e resolvesse acelerar o passo e vir mais rápido porque, afinal, havia um homem com pressa esperando lá no térreo. Absurdo.

Depois de mais alguns minutos esperando, finalmente entramos todos em nosso meio de transporte. Eu olhava de canto e meio assustado para o sujeito, que apertou o sexto andar. Apertei o oitavo, me acomodei próximo à porta, esperei todos entrarem e, tal como faço diariamente, apertei o botão para a porta fechar logo, duas vezes. Aff… quem é que agüenta aqueles segundos intermináveis até que ela resolva fechar sozinha?

Somos egoístas. A Nina, eu e o sujeito do sexto andar. Talvez você também. Julgamos o mundo a partir das nossas perspectivas. Queremos determinar o tempo, queremos do nosso jeito. Queremos. E acreditamos que alguém tem a obrigação de atender esses desejos. E achamos que Deus é um funcionário com boas qualificações para o cargo.

Não pensamos em Deus, só pensamos em nós mesmos, nossos umbigos e o mundo todo girando em torno dele. Queremos que tudo aconteça de acordo com a nossa vontade e julgamos que esse ponto de vista é suficientemente aceitável para todos. Se as coisas acontecessem, afinal, exatamente como planejamos, o mundo seria um lugar melhor. E aí entra a contradição existencial do negócio: como as coisas podem acontecer exatamente como cada um de nós planejou sem que isso afete, diretamente, os planos uns dos outros? Não é necessário então que algo, alguém ou o acaso determinem os fatos?

O ponto é: o homem não está no centro do universo, Deus é quem está no centro do universo – bem, isso se você, como eu, descartou a opção “acaso” no parágrafo anterior. O homem está no centro do coração de Deus. E é nele que nos descobrimos.

Só em Deus entendemos quem somos e a razão de sermos. O Pai revela nossa identidade e em seus braços a vida toda adquire uma nova perspectiva, não mais centrada em mim, mas no outro. Não mais imediatista, mas contemplativa. Não mais materialista, mas cheia de significado. Não mais, mas menos. Porque Deus é simples.

Mas, quanto tempo as coisas levam para acontecer? Quanto ainda mais até que minhas dúvidas sejam sanadas, que meus desejos sejam atendidos, até que certas coisas façam sentido e eu finalmente compreenda?

Somos dependentes. A Nina, eu, o sujeito do sexto andar e a humanidade toda. Talvez você também.

Me ajuda com o banho? Me ajuda com o cadarço? Me faz um copo de leite? Escova meus dentes? Pode pegar a massinha no armário pra gente brincar? Empresta seu celular pra eu jogar? Pode me contar uma história? Pode sarar o machucado na minha perna? Pode ir mais rápido? Pode dormir aqui comigo hoje a noite? Pode ser agora?

Para a Nina, eu sou um repositório de conhecimento, força bruta e um pai com capacidade multitarefa. Ela me julga capaz de resolver seus problemas. Ela julga e espera que eu faça tudo isso. Bem, ela julga e espera que eu faça tudo isso, agora!, ao mesmo tempo. E eu acho que ela vai aprender o valor de certas coisas se conseguir esperar um pouco. Ela precisa conhecer alguns chavões – que para ela ainda não são chavões – como o de que a caminhada vale mais do que o destino final e que a verdadeira felicidade não está no fim, mas no durante. São essas coisas, quase pílulas de auto-ajuda e tal, mas que no fundo, são mesmo o que importa numa boa história.

O tempo, no fim das contas, é muito preciso, o segundo após o outro, o ponteiro nunca falha, nunca muda sua forma. Mas a medida de tempo em cada circunstância é relativa.

Ela acha que eu demoro muito.

Eu não a culpo.

Somos crianças. Sim, todos nós.

Reconstrução

por Luiz Henrique Matos

“As coisas velhas já passaram; eis que tudo se fez novo!” (2 Coríntios 5:17b).

Tenho pensado no Japão e no Haiti de uns tempos pra cá. Mais especificamente, desde que os dois países foram atingidos por terremotos, volta e meia me pego curioso sobre as tragédias que aquelas pessoas viveram. Num antagonismo singular, de um lado uma das cinco economias mais prósperas do planeta e, do outro, uma das misérias mais evidentes. Duas ilhas, o mesmo mal e a testificação dolorosa de que tempestades atingem a todos.

Ao contrário do que parece, não tenho sido tocado por sentimentos altruístas. Quisera fosse, mas preciso ser honesto aqui. O que me vem à mente agora, meses depois, é que passada a devastação imediata da tragédia, aqueles povos precisam reerguer suas cidades. Eles estão começando de novo, catando as sobras e as lembranças, procurando sob escombros um pouco de força.

Mas o que mais me intriga é pensar que ainda antes de reconstruir, aquela gente vai precisar tirar o lixo da frente. Bem, lixo… o que eram suas casas, suas famílias, seus bens e apegos, agora são escombros que precisam ser movidos, limpos, organizados, para só então uma nova cidade ser edificada.

Tira-se pedra sobre pedra, ergue-se um tijolo após outro. E nos alicerces, em cada novo palmo da vida, um pouco do passado, uma memória recente, agora assentada com massa e reboco.

Pessoas estendem suas mãos e clamores a Deus, outras pessoas estendem suas mãos e ajudam, doam e participam. Mas em geral, passada a comoção imediata, a reconstrução é um processo bem solitário.

Ontem à noite fomos a um casamento. Preciso dizer que, ao contrário de muitos amigos, gosto de casamentos. Além da beleza da festa e do fato de ser a única ocasião em que uso gravata – e passo 45 minutos tentando acertar o nó daquela tirinha de pano que penduro no pescoço – me encanta o significado todo do ritual e os procedimentos, tudo ainda meio primitivo, um homem e uma mulher no exato momento em que decidem se tornar uma só carne. Coisa bonita, a cena toda, muito melhor do que qualquer novela. Eu sou um romântico.

Mas essa, a de ontem, talvez tenha sido uma das cerimônias mais tocantes em que já estive. Toda a cena, beleza e expectativa estavam lá, mas o que tornava o momento ainda mais peculiar é que aquele se tratava do segundo casamento dos dois, que vinham de divórcios depois de viverem anos tentando sustentar suas famílias. Cada um com sua história, trazendo consigo o passado, as experiências, filhos, sonhos e talvez um terremoto que tenha destruído e deixado em escombros boa parte do que construíram em suas vidas.

Foi uma cerimônia simples, elegante e muito agradável. Mas aquele momento trazia todo o significado que essa analogia descreve. Era incrível vê-los ali, confirmando um para o outro os seus votos, empurrando no dedo o anel dourado que cobrirá a marca antiga, na alegria e na tristeza. Uma nova aliança, uma nova chance, sonhos refeitos e Deus renovando o amor, puro amor, para que um homem e sua garota, apaixonados como jamais pensaram ser possível outra vez, construam juntos uma família.

É bonito ver como Deus age. Após a tragédia, sob a aparente destruição, ele faz brotar vida. Nas marcas do passado, seu toque é capaz de cicatrizar e sarar feridas. Ele oferece redenção, consolo, cuidado, ele refaz sonhos e nos veste com uma roupa limpa e nova para que participemos da festa. Deus transforma o mal em bem, sempre e outra vez mais, porque ele é amor e não cabe em si.

Havia poucas pessoas no casamento. Familiares, amigos, testemunhas, talvez alguns dos que se dispuseram a ajudar na limpeza e reconstrução. Mas diferente de outras tragédias e seus processos, esse agora não é um caminho solitário. Aquele casal descobriu um ao outro, eles agora se pertencem, e carregam uma aliança, a esperança e o desejo de fazer dar certo, de se amar e edificar um novo lar.

Quando coisas ruins acontecem a crianças boas

por Luiz Henrique Matos

“A dor é inevitável, sofrer é opcional.” (Haruki Murakami)

Já faz alguns meses que estou tentando escrever esse texto e nunca consigo terminar. Fico me enganando, dizendo a mim mesmo que é um lance meio autoral, de preciosismo literário (ahãm, como se eu sofresse mesmo disso), mas o fato é que tenho certo medo de escrever sobre esse tema. Virginia Woolf disse certa vez que todo texto carrega em si um pedaço de quem o escreve. No meu caso, um fato concomitante a esse é que muitas vezes algum assunto só fica claro para mim depois que eu o coloco no papel. No fundo, a escrita acaba sendo um exercício de reflexão. E confesso que em alguns momentos não quero refletir sobre certos temas.

Tenho medo de sofrer. E também tenho medo de pensar sobre o sofrimento. Não é por superstição, nada, mas é porque na maior parte do tempo eu sou aquele tipo de pessoa naturalmente otimista, que vê as coisas pelo seu lado bom e, em geral, isso é bem positivo, uma certa vantagem no traço de personalidade. No entanto, isso carrega um fato inegável: nunca estou preparado para as coisas darem errado.

E se tem uma verdade indelével que rege o universo da paternidade das aves estrigiformes, das famílias dos titonídeos e estrigídeos (vulgo, corujas) é que só existe uma coisa pior do que pensar que algo ruim possa acontecer com a gente e essa coisa é pensar que algo ruim possa acontecer com nossos filhos.

* * *

Nenhum pai quer ver seu filho sofrer. Bom, deixe-me corrigir: nenhum pai suporta ver seu filho sofrer. E nunca estamos prontos para isso.

Eu voltei a esse assunto, outra vez, há alguns dias, quando enfrentei duas madrugadas correndo com a Nina entre clínicas e hospitais, tentando encontrar alívio para a dor que ela sentia. Sentado na sala de espera de um pronto-socorro, eu pensava que, se pudesse, tirava aquilo dela ali na hora, com as próprias mãos. Se fosse possível, sofreria toda a dor no lugar dela, só para que pudesse dormir em paz outra vez. Observar aquela criaturinha chorando sem poder fazer algo que solucionasse seu problema imediatamente me doía em dobro. Queria eu ter poder para curá-la. Queria eu ser Deus para tocar em sua testa e mandar embora o que quer a fizesse sofrer.

Mas eu não sou Deus, sou só mais um filho assustado, pedindo socorro também, e ainda queria que Deus me atendesse no pedido quase desesperado para que ele parasse um pouco de resolver os problemas tão complexos de toda a humanidade e viesse cuidar da minha criança por alguns minutos.

Outro dia, a Nina chegou da escola com uma marca vermelha nas costas da mão esquerda. Era uma mordida, obra de um coleguinha com instintos canibais que frequentou a classe dela por um tempo. Na agenda, um recado da professora dava satisfações sobre o ocorrido e explicava que, no fim, tudo ficou bem entre os dois, com o pedido de desculpas e o perdão devidamente concedido.

Eu podia jurar que um filhote de crocodilo invadiu a pré-escola e atacou minha princesa.

– Você chorou, filha? – perguntou a mãe, já chorando.
– Ahãm.
– E doeu muito?
– Muito, muito.

Em mim, crescia a certeza de que era preciso tomar alguma providência para que aquele elemento, o pequeno meliante, jamais ousasse mostrar suas presas-de-leite para minha Nina outra vez. Eu tinha sede de justiça. Mas no fundo, eu também sabia que as coisas não podiam caminhar por aí. Eu precisava ter calma, ser adulto, racional. Falei com a Manú:

– Tadinha, né?
– É, aperta o coração da gente.
– Mas e aí, o que a gente faz?
– Acho melhor matricularmos ela no jiu-jitsu.

Coisas ruins acontecem a crianças boas.

E por mais que eu realmente me esforce para ignorar a realidade e prefira concentrar meus neurônios mentalizando coisas positivas e tentando acreditar que a fé cobrirá minha família contra todo e qualquer mal… bem, por mais que eu afirme que gostaria que as coisas fossem mesmo assim, eu sei que nem sempre poderei ajudar. Reluto em aceitar, mas o fato é que minhas asas não possuem a extensão que eu gostaria que tivessem e eu devo reconhecer, penosamente, que minha filha vai sofrer.

Nem sempre poderei livrá-la da dor ou impedir que o sofrimento venha. Um tombo no parquinho, uma medida disciplinar mais rígida, um resfriado pesado, um fora do primeiro namoradinho (daqui uns 30 ou 35 anos, quem sabe), uma topada na porta com o dedinho do pé.

– Aaaaaaaaaaaaahhhh!!! – era madrugada e a Nina gritou desesperada enquanto dormia. Estava tendo um pesadelo. Assustei, pulei da cama, corri até onde ela estava.
– Nina!? Calma, querida, calma. Está tudo bem, o papai está aqui.
– Ahn!? – ela acordou confusa.
– Tá tudo bem… pronto, calma. Viu? Não foi nada… O que aconteceu, filha?
– Uma cobra… tinha uma cobra querendo me pegar.
– Não tinha nada, filha. Você estava sonhando. Olha só, está tudo bem.
– Tinha sim… ela estava aqui. Mas o papai apareceu e mandou ela embora.

Ela acha que eu tenho poderes para solucionar todas as coisas. Pensa que sou capaz de pega-la no colo e carrega-la por quilômetros sobre meus ombros e que posso abrir as tampas de todo e qualquer tipo de pote. Ela acredita que tenho como fazer a viagem de carro de quase quatro horas durar menos, que posso protegê-la de monstros que assombram seus sonhos.

Não bastasse, soma-se nessa conta o fato de que uma das grandes satisfações em ser pai está em notar, nos pequenos gestos, que minha filha me admira, acha bonito e tem em mim uma referência boa. E soma-se ainda nessa mesma conta o doloroso fato de que uma das grandes paranoias de ser pai seja notar, em algum momento, que minha filha passará por alguma situação difícil em que eu não estarei lá para ajudar.

Ou, estarei mas não poderei impedir o sofrimento. E ela não vai sofrer porque eu deixei de agir e sim porque havia uma pedra para que ela tropeçasse no caminho que escolheu seguir. Circunstâncias, uma palavra necessária aqui. E aí, a questão já nem é o fato de eu poder ou não livra-la da dor, mas de que se eu intervir, aquilo já não será resultado das decisões que ela tomou.

O amor pressupõe liberdade. E quem ama, ama a liberdade do outro.

E na intensidade desse sentimento apaixonado, muitas vezes o pai abre mão do seu poder para dar ao filho a opção de escolha, por saber que o aprendizado é necessário e que nem tudo o que é bom, é necessariamente bom para todo mundo. Deus prefere não ser chamado de Deus do que ser esse deus sádico que alguns pensam que ele é, entende?

Ele é o Pai.

Um pai não deseja o sofrimento do filho, não o permite e tampouco provoca. O sofrimento de um filho, em tudo, rasga o coração do pai, dilacera sua alma. É errado culpa-lo pela dor. Mas o homem todo, em seu crescimento, aprende pela experiência. Sabemos o caminho certo a ser trilhado pelos conselhos que ouvimos e pela vida que trilhamos. Conhecemos a estrada à medida em que a percorremos. E os buracos estarão lá, nem todos provocando acidentes. E as belas paisagens estarão lá, nem todas provocando suspiros.

O sofrimento nos forja.

Ninguém jamais disse que não vamos sofrer, os textos sagrados não afirmam isso, avôs não contam histórias assim para seus netos. Mas as palavras que nos dão esperança, lembram a todo instante que em qualquer circunstância, em cada passo dessa aventura, o Pai está ao nosso lado.

Bem, eu não estou querendo explicar o sofrimento ou sistematizar a dor. Não pretendo. Isso não se explica, não tem teoria válida que sirva de alento. Alento é o ombro amigo, é o lenço cedido, é o choro solidário. O que eu gostaria, de alguma forma, como pai apaixonado, é que minha menina soubesse que se não existem superpoderes em minhas mãos, existe consolo. Que se não existe uma palavra mágica que cure a dor ou a incerteza, existe sempre uma companhia silenciosa, um copo de água com açúcar e um colo à disposição.

Eu sei não poderei explicar na maior parte das vezes – eu nem entendo na maior parte das vezes. E ainda que eu possa, é bem provável que não faça a menor diferença para ela naquela hora. Mas eu estarei lá.

O Pai sempre está por perto.

Filhos, distâncias e talvez um documentário do Discovery Channel

por Luiz Henrique Matos

Às vezes, a Nina passa alguns dias longe de nós. Acontece duas ou três vezes no ano, quando por ocasião das férias escolares, ela fica um tempo na casa da avó materna, que mora no interior.

Ao contrário do que pensam muitos amigos, a opção não é nossa. Ela é quem pede, a avó é quem insiste, os parentes fazem coro e eu acabo cedendo, contrariado na maior parte das vezes.

É que eu detesto ficar longe dela. Fico repetindo para mim mesmo aquela conversinha de que ela já vai passar tanto tempo – a maior parte da vida – longe de casa que eu gostaria de tê-la sob minhas asas tanto quanto fosse possível.

Acho até que já escrevi isso em alguma nota antes, mas o fato é que eu realmente lembro muito pouco da minha vida de casado sem minha a Nina com a gente. A Manú e eu esperamos quatro anos para ter filhos e quando penso nessa época, a ausência dela nas lembranças me parece mais um equívoco do que a história de fato.

Quando ela sai assim e depois volta, a sensação que dá é de como se a gente participasse de um desses documentários do Discovery Channel em que eles acompanham filhotes de cervos que se perdem na savana africana. O bichinho desgarrado, perdido, ao relento… e a mãe desamparada, incansável, segue desesperada na busca por sua cria. Depois de dias, perigos e muitas aventuras (!) eles se reencontram – em geral, quando chega nessa parte do programa, eu já estou dormindo no sofá há algumas dezenas de minutos, mas quando consigo assistir até o fim, não posso negar que a coisa toda é emocionante. A câmera mostra o filhote atrás de uma moita qualquer, aqueles olhinhos e tudo. Depois, fecha a imagem na mãe, que sente o cheiro familiar nas redondezas. Então ela procura, inquieta, os olhos semi-serrados sondam todo o ambiente e, finalmente, ela vê seu filhote à distância. Ela dispara, corre o quanto pode até que esbarra no pequeno animal, finalmente, que se entrega e eles rolam naquela vegetação e ela fica lambendo sua cria sem parar.

A sensação que dá é de como se a gente participasse de um desses livros das Escrituras… filhos perdidos, um pai preocupado, a busca incansável, Deus rasgando a eternidade em busca de suas crias para salvá-los, para mostrar que ele está por perto, que vai ficar tudo bem, existe uma sombra tranqüila, uma água fresca, um caminho seguro.

Filhos precisam voltar para os pais.

Hoje a Nina voltou de viagem. Sete dias na casa da avó, setenta vezes sete dias incontáveis de vazio aqui em casa. Então ela chega, as malas cheias, um pacote de biscoito de polvilho nas mãos, aquele sorrisinho puro que mal sabe o quanto nos domina. Eu a trago para perto, eu cuido, eu rolo com ela, eu lambo minha cria. Família. E a casa está cheia outra vez.

– Papai…

Já é tarde. Ela está na cama deitada e pede que eu conte uma história. Quer saber sobre a minha infância, ouvir alguma aventura, quer saber como era quando eu era filho.

Me faço de macho, me faço de sábio, faço de conta. Faço um esforço danado pensando em como explicar que pai, um dia a gente vira, mas filho… ah, filho a gente nunca deixa de ser. Precisando de colo, precisando aprender o caminho de volta, precisando ouvir que tudo ficará bem, precisando do amor paterno. Eu só dispenso as lambidas.

Ela ainda cabe no meu colo

por Luiz Henrique Matos

No próximo fim de semana ela fará quatro anos. Eu posso jurar que nunca imaginei esse momento da vida dela chegando. Crianças de quatro anos para mim costumavam parecer grandes demais perto do frágil bebê que eu carregava nos braços por aí. Mas agora eu tenho uma menina em casa, a cada dia com mais jeitos, vestidos, vontades, brilhos e argumentos, mandando em mim desde o princípio das eras, tal qual a mãe – e antes que a coisa esquente por aqui, reconheço que obedeço satisfeito a ambas.

De um modo inexplicavelmente rápido e fora de controle, as coisas foram acontecendo. Ainda há pouco éramos um casal de namorados decidindo sobre o cinema de sexta, o curso na faculdade, a data do noivado, o bairro onde morar, o nome do bebê, a maternidade onde ela nasceria… vivíamos momentos tão diferentes em nossas vidas. Hoje, mal conseguimos lembrar o que era viver – ou que graça poderia ter uma casa – sem um filho por perto.

Toda a rotina quadrada se tornou plena em si. E o cotidiano de pai de família que poderia talvez parecer a alguém o resigno de um sujeito acomodado, se tornou para mim a maior conquista a que eu poderia ter acesso. Em geral, são nesses preciosos momentos, que esse mesmo alguém poderia chamar de comuns, que se pode observar a beleza inesquecível de certos detalhes. Aquele tipo de coisa rara que, enquanto acontece você já sabe que jamais esquecerá.

Estou vendo TV ou lendo algo no sofá quando percebo que ela vem lá do quarto pelo corredor cantarolando e pulando (se tem algo que os livros e o Google não explicam mas que é uma espécie de lei natural na formação das crianças é que, antes de aprender a andar civilizadamente, lá pelos 17 anos, elas praticamente só se locomovem pulando ou correndo). Então, ela surge na sala rodopiando e plana como uma bailarina por sobre o piso de madeira. E dançando, com caras, bocas, tropeços e poses, enche de graça toda uma semana. A mãe, aluna de balé durante a infância, se encanta e ensina o “pli-ê, es-tica” por algumas horas. Eu, aspirante a Carlinhos de Jesus, balanço a cabeça fora de ritmo e babo em minha pequena cria.

Eu a chamo de “bailanina”.

Se ela pudesse, passaria os dias vestida com aquele colan cor-de-rosa, o par de sapatilhas, o tutú rodado e o cabelinho penteado em coque.

E se tem uma coisa que mexe comigo, é que eu amo essa espontaneidade dela, o mundo maravilhoso, infantil e imaginário que constrói e me convida para participar quando estou por perto. Posso observar seu olhar curioso, a descoberta de algo novo e, nessas horas, eu gostaria que ela soubesse o quanto isso é precioso, o quanto sua dança tão pura é capaz de mover, que um mundo inteiro gira ao ritmo dessa beleza frágil, pequena e atrapalhada.

Seus passos. Aos saltos, ela atravessa a sala e os anos.

Já faz um tempo, estávamos viajando em família quando entramos no elevador de uma loja. A Nina dormia no meu colo, a Manú a cobria com um casaco e uma senhora nos observava, sorrindo com um jeito meio melancólico, até que disse: “E na próxima semana ela fará 20 anos”.

Eu sei, no duro, que um dia a fantasia vai acabar. Logo, ela terá mais papéis a cumprir, assumirá compromissos, responsabilidades… e essa essência, o que a formou de fato, será uma lembrança na rotina apressada. Logo, ela vai se dar conta que entre milhares de defeitos, seu pai também não dança como o Baryshnikov, não tem respostas para todas as questões da humanidade e é mais baixo e fraco do que ela pensou quando pequena. E então, eu já não serei mais “o cara”, o príncipe, o homem com quem ela quer se casar e que sempre a socorre quando ninguém mais consegue.

Talvez Deus também tenha esse tipo de sentimento em relação a nós. No dia em que vai embora toda aquela espontaneidade de criança, seu coração deve apertar. Vamos costurando nossas complexas teias de problemas, relacionamentos, trabalho, família, círculos sociais e, de repente, o tempo se torna nosso recurso mais escasso. Mergulhamos na rotina e depois nos debatemos para tentar entender onde foi que erramos. Então saímos a procura de algo que nos preencha, buscamos um tipo de felicidade e simplicidade que parece inatingível mas que, de alguma forma, também pareceu tão real e próxima um dia.

Acho que Deus observa tudo isso e procura formas de nos convidar para voltar. “Dance”, ele deve dizer. Nós mudamos nossa visão de mundo, mas Deus não muda sua visão sobre nós. E nós insistimos em pensar que o ser humano se lança eternamente numa busca pessoal por Deus, mas o que as escrituras nos contam é sobre a história de Deus, o Pai incansável, em busca do homem.

Ela será sempre uma menininha para mim.

E eu gostaria que ela soubesse, um dia, que independentemente das escolhas que faça e da mulher que se torne, que ela sempre poderá encher um pai de alegria com sua presença. Que não importa sua estatura ou idade, haverá um colo e dois braços onde se abrigar. Talvez eu não tenha conselhos sábios ou as respostas para todas as questões da humanidade, mas eu vou tentar acompanhá-la numa dança.

Já faz alguns dias, estávamos chegando numa festa de aniversário e ela ainda dormia em meu colo. Ficou um tempo naquele estado confuso, ainda acordando e eu, meio sem jeito, segui cumprimentando as pessoas. Um sujeito veio até mim, estendeu a mão educadamente e em seguida resolveu fazer um gracejo:

– Ei, mocinha, você não acha que já está grande demais para ficar no colo?

Sonolenta, ela só meneou a cabeça. Eu nada disse, apenas sorri, olhei para o homem e desejei no íntimo: “Espero que não… tomara que nunca esteja.”

Eu espero. Sento-me no sofá, no mesmo canto de sempre, de onde assisto TV, leio sob a luz e olho a cidade pela janela. No silêncio, eu alimento minha expectativa, eu aguardo o barulho dos passos, tento ouvir sua voz de menina ao fundo e ver surgir pelo corredor os saltos da minha bailarina.

Que tenha música, que seja com festa, que Deus a preencha e o amor a inspire em cada pequeno passo. Que a vida a contemple.


(Esse texto faz parte da série Paternidade)

Sobre minimalismo, Roberto Carlos e a importância da higiene bucal

por Luiz Henrique Matos

Estava escovando os dentes quando um pensamento antigo voltou: se um dia eu tivesse que viver com o mínimo de coisas possível, uma boa escova de dentes certamente seria fundamental na bagagem. O creme nem tanto, até que dá pra me virar sem, acho. Então olhei para a pia do banheiro e comecei uma faxina mental. Do que realmente preciso? Como eu poderia sobreviver apenas com o estritamente necessário?

Esse tipo de coisa me perturba às vezes. A Manú diz que eu tenho TOC, aquela doença do Roberto Carlos (eu prefiro dizer que é do Jack Nicholson, por causa daquele filme com a Helen Hunt, fica melhor) e talvez eu até concorde, só de brincadeira, mas é um fato que, vez ou outra, eu me pegue organizando coisas, jogando tranqueiras no lixo e doando todo tipo de objeto que julgo desnecessário por hora. Em parte das vezes é altruísmo mesmo, mas em outros casos é pura mania.

Ainda escovava os dentes quando a coisa degringolou e acabei estendendo a pergunta para as outras coisas da vida. Pensando na casa toda, se eu precisasse abandonar nosso agradável apartamento numa emergência, levaria comigo o computador, meus livros (não todos, mas o cuidado com a estante de livros é uma compulsão que merece capítulo à parte), o carregador do celular e uma muda de roupas. A escova, pensando bem, eu não levaria, deixaria para comprar uma melhor no caminho.

Faço isso, vez ou outra. Fico tentando aplicar essa regra para tudo e imaginando como ia ser se desse mesmo para as coisas funcionarem assim. Se não fosse casado e morasse sozinho: colchão, TV, computador, microondas e geladeira. Vestuário: camiseta, calça jeans e tênis, sem meias. Pra sair de casa: carteira, celular e chave do carro (atualmente, ando relutando também com o relógio, que abandonei há um tempo, e com um pen drive que insiste em ser necessário em certas horas). O shopping center ideal: livraria, loja de esportes, loja de eletrônicos e um café. Meu escritório: mesa, cadeira, uma caneta, computador e telefone. E assim vai, eu aspiro uma vida minimalista. Minimalista e impecavelmente organizada por ordem alfabética, cores e/ou gênero (ou as todas as anteriores).

– Amor, o que você tá fazendo?
– Separando umas roupas pra dar.
– Ah é? Preciso fazer isso também, mas depois eu vejo.
– É uma boa, né?
– É… Mas, nossa, tudo isso? O que tem nessas sacolas?
– Só umas coisas que a gente não usa mais.
– A gente?
– …
– Henrique, o que é aquela blusinha… Henrique… você vai dar as MINHAS roupas também!?

Eu aspiro uma vida minimalista e impecavelmente organizada por ordem alfabética, cores e/ou gênero para os outros também.

Talvez eu precise de ajuda.

* * *

O pior de tudo pra mim é que, por mais que eu tente, a mente nunca funciona assim. Eu bem que me esforço mas não consigo reduzir os papéis, compromissos e a lista de pendências que carrego no bolso. A cada ano que passa, as coisas vão acumulando e complicando gradativamente.

Do que eu preciso, de fato, minimamente, para viver? Faço a pergunta e acho que isso traduz um pouco o que, no fim das contas, realmente importa. A resposta que procuro é outra, nada material, e eu já tenho isso, sei que tenho. Deveria investir meu tempo dando atenção ao que vale de verdade, desfrutando do essencial, ao invés de ficar olhando para o que é descartável, criando listas e decidindo se devo arrumar meu dinheiro na carteira com a cara da Princesa Isabel virada para frente ou para trás.

Família, amigos, Deus. Não dá para ser minimalista com pessoas. E nessa hora, devo dizer que a mania toda não se aplica aqui, não tento cortar vínculos para simplificar as coisas e tão pouco classifico meus amigos em categorias, listas e perfis. Acumular bons relacionamentos é um caos agradável e reconfortante.

A mente funciona a mil, as coisas ficam cada vez mais aceleradas, o tempo parece escoar pelo ralo – e pensar que tenho as mesmíssimas 24 horas que meu avô usava para viver, apesar de os dias parecerem ter medidas tão diferentes. E quando a gente pára pra tentar entender que coisas, duas ou três, são totalmente necessárias para a vida toda funcionar, faz sentido procurar por algo, ou alguém, ou Alguém, que nos supra. Não existe o “cada um por si”, existe o Ele por nós, com um par de braços estendidos para nos apascentar.

Quando os olhos finalmente enxergam – e se fixam – naquela imagem nítida, quando o passo toma rumo no caminho certo e algumas peças se encaixam (ou não, agora pouco importa), então, o equilíbrio todo, a questão da dúvida existencial e da angústia, se transformam em quietude, num sorriso franco e uma paz confortável.

Eu cuspo a espuma do creme dental que promete deixar meus dentes brancos agora (isso, agora!, está escrito na embalagem), volto para o quarto, a janela está aberta para refrescar um pouco e minhas meninas dormem tranqüilas. Resolvo abrir o computador para escrever sobre a importância da higiene bucal e decido que hoje, só hoje, vou largar a toalha molhada ali em cima da cômoda e descansar em paz.

Tenho o que preciso.

Bem aqui

Deus não é algo, ele é alguém.

Reunião de pais

por Luiz Henrique Matos

Na semana passada, fui à minha primeira reunião de pais como pai. É bem estranho isso. Já sou pai há um tempo, mas ainda parece que a reunião de pais e mestres é algo em que minha mãe deveria comparecer e não eu. E por motivos que não vem ao caso agora, eu costumava ter um pouco de medo desses eventos quando era garoto.

Mas agora as coisas são diferentes. No mês que vem eu faço 30 anos e preciso amadurecer. Eu lembro do meu pai quando ele tinha essa idade. Já tínhamos uma casa, um carro bacana e ele usava um bigode igual ao do Magnum. No meu aniversário, acho que vou deixar crescer o bigode.

Naquela manhã, a Manú tinha um compromisso importante e acabou que fui até a escola, me fazendo de desinteressado, mas curioso até as últimas para saber o que a Tia Mariza iria me contar sobre a Nina.

Gastei menos de uma meia-hora na sala de aula, sentado numa cadeirinha de uns 10 centímetros de altura, preenchendo formulários e vendo os trabalhos da classe. Até que a professora me chamou. Eu achei que ouviria uma porção de novidades sobre minha filha e que finalmente descobriria o que os professores tanto falam para os pais nessas reuniões bimestrais, mas não tinha nada demais. Por esse ponto, foi meio decepcionante. Nenhuma confidência, nada de conspirações ou planos arquitetados. No fim, a reunião de pais e mestres é só uma reunião entre pais e mestres.

E a única coisa que ouvi sobre minha filha é que ela é sociável, gosta de cantar e dançar, de ouvir histórias e gasta um tempão desenhando, concentrada nas cores e no papel. “É essa coisa da imaginação, da mente do artista que as crianças tem”, definiu a Tia Mariza.

Saí de lá sem novidades pra contar. Nossa Nina é na escola exatamente como é em casa.

Nem digo como isso é algo confortável de se ouvir. Entenda, o período que minha filha passa no colégio é o único tempo em que ela está fora do meu “controle”. Não que ela esteja, de fato, em algum minuto, mas você sabe o que eu quero dizer. Ali, longe do meu olhar, ela é livre para não ser como eu peço que seja quando está ao meu lado. Distante das asas que os cobrem, filhos podem ser como bem entenderem. E o que são, suas atitudes livres, define de certa forma o seu caráter.

São princípios, como costumo insistir em outras conversas. O que o filho aprende do pai, pratica na vida.

Quando a Manú estava grávida, nos matriculamos num curso de educação de filhos. É verdade que hoje não me lembro de muita coisa do que aprendemos ali, mas foi importante na ocasião. Lembro de uma aula em especial, quando o professor nos disse que “os filhos são como uma folha em branco e cabe aos pais preencher esse espaço com as verdades em que acreditam para a formação do caráter da criança”. Não bastasse isso já ser apavorante o suficiente, ele ainda completou: “o espaço que vocês não preencherem, o mundo preencherá”. E eu tenho perdido algumas horas de sono com esse negócio desde então.

Minha filha, uma folha em branco, um lápis na mão e fiquei imaginando que ela seria uma história que a Manú e eu precisaríamos escrever. Pelo menos as primeiras linhas, pelo menos algo que registre os princípios e tenha algo bom para contar, um estilo, estrutura, forma, conteúdo… Mas não, eu não consigo. Não tenho o direito de determinar o que será sua vida. Acho que posso ajudá-la a descobrir. Talvez apontar um caminho, contar algumas experiências, mas é ela, essencialmente, quem vai escolher que direção tomar.

“Você pode pegar as obras de arte da Nina e levar, está bem? Olha aquela ali que bonita”. A professora apontou para os desenhos fixados na parede. Procurei pelas pinturas que tinham o nome dela assinado, recolhi uma a uma, juntei num envelope grande e, meio sem jeito, coloquei na mochila.

Caminhei da escola até a estação de trem e, no caminho, pensava nessa história toda e mantinha a postura e os passos alinhados, com medo de que qualquer tropeço ou distração pudesse pôr em risco aquelas cartolinas desenhadas. Eu ia carregando os desenhos como um troféu, exibia as pontas das folhas coloridas que ficaram pra fora da bolsa como medalhas, uma jóia, me sentindo o Frodo levando o anel precioso.

Não os criamos para nós mesmos, isso é bem difícil de admitir. E acredito que parte da beleza da criação e da escolha de Deus em nos fazer como somos, seja justamente essa liberdade assustadora que às vezes faz a gente querer correr por aí só para sentir o vento no rosto e, em outras horas, voltar rápido para o aconchego dos braços do nosso Pai. Sabe, essas coisas. Precisamos do Pai para nos dar direções, mas acho que seu amor é tão grande que ele não se mete nas nossas decisões sem ser consultado. Ele confia que vamos fazer as escolhas certas com aquilo que aprendemos por caminhar ao seu lado.

Os filhos refletem o caráter daquele que os criou. O que vemos em casa, define em muito o que somos. Daí a importância de se ter para onde voltar. Daí a importância de se ler menos esses manuais de educação de filhos e um pouco mais as histórias que os encantam.

Eu queria ser um pouco assim para minha filha. Isso eu tento aprender. Eu queria ser um filho que faz as coisas certas para ser um pai decente para a Nina. Percorro de volta essa distância para tentar espelhar sabedoria e caráter. Eu costumo pedir a Deus que, se possível, sejam corrigidos os traços imperfeitos que tenho e que ele me deixe apresentável para minha família, para ser um bom pai, para ser divertido, para ser o seu par numa brincadeira, num baile, na entrada da igreja, na caminhada até Cristo. Até que se abra uma trilha que ela percorra sozinha, nos passos que determinar para si, mas lembrando sempre – aí eu torço – o caminho de volta sempre que for preciso. Eu estarei aqui.

Não tem muito que eu possa fazer, a tal da folha em branco. Não é tanto o que faço, mas quem eu sou que vai influenciá-la. Só espero que ela não use um bigode.

Pode ser que eu faça alguns traços, pode ser que eu registre um pequeno conto ou pinte um desenho para ela se lembrar. Pode ser que eu escreva textos assim. Mas serão sempre coisas bem pequenas, discretas mesmo. Eu quero é deixar espaço para que Deus reflita nela a sua beleza, a inspire e ela trace, a seu modo, a história que quiser contar.


Esse texto faz parte da série Paternidade.

A ilustração foi tirada do livro “O homem que amava caixas” de Stephen Michael King.

Reinos, princesas e castelos de Lego

por Luiz Henrique Matos

Outra noite, fiquei sozinho em casa com a Nina. Comemos juntos, dei banho nela, pus o pijama e brincamos um pouco sentados no chão da sala – só um pouco mesmo, até eu perceber que existem dois ossinhos nos quadris que não pareciam estar ali até pouco tempo. Na hora de dormir, como de costume, eu contaria algumas histórias. E para a Nina, esse costuma ser o ápice do dia.

Mas para marcar nosso tempo de pai e filha, confabulei uma idéia, dessas que a gente só tem quando sabe que não tem ninguém por perto para repreender: “Filha, já sei! Vamos colocar um colchão aqui na sala e montar sua barraquinha… aí depois a gente trás as cobertas, travesseiros e dormimos lá dentro. Que tal?”

É engraçado como crianças gostam dessas idéias fantasiosas. Para ela, aquilo não era só uma bagunça autorizada na sala, nós estávamos mesmo construindo um castelo. Entre lápis de cor, livros e peças de Lego espalhadas, edificamos o nosso pequeno reino, definimos as regras e vivemos uma aventura.

E o projeto até que correu bem. A exceção se deu por minha tentativa de entrar, deitar e me manter minimamente confortável numa barraca cor-de-rosa de um metro quadrado. Puxa, eu torcia para ela dormir logo e eu poder evitar os sérios danos que aquilo estava causando à minha coluna. Onde eu estava com a cabeça?

Ela gostou, mas na hora de dormir, se mexia de um lado pro outro, virava, chutava as paredes do castelo, me deu uma cotovelada, até que: “Papai, eu não quero dormir aqui! Eu quero ir pro meu quarto e dormir na minha caminha e tomar um leitinho e pôr o cobertor quentinho!”.

E assim, percebendo que minha filha herdou de alguém aqui de casa o temperamento minuciosamente sistemático, vi morrer a idéia mirabolante que eu havia planejado passo a passo e calculado em cada detalhe.

* * *

Se você ainda não é pai, deixe-me dar uma dica: uma coisa boa de se ter filhos é que a gente sempre pode saciar a vontade de brincar, desenhar com giz de cera e correr pela casa fazendo barulhos esquisitos sem que alguém nos julgue por isso. Aliás, pelo contrário, quanto mais estranho você se faz passar para que seus filhos se divirtam, mais as pessoas vão te elogiar e dizer que é um pai presente, amigão e cuidadoso. Mal sabem.

Às vezes, eu fico pensando na minha filha, observo ela concentrada desenhando alguma coisa e percebo que é dessa pureza que Jesus fala quando repreende seus discípulos e diz que “o Reino de Deus pertence aos que são semelhantes a elas”.

No fundo, a história toda não é sobre ser infantil, é sobre ser puro. A questão da vida eterna ao lado de Deus, não diz respeito sobre o quanto deixamos de errar ou o quão eficientes somos em seguir rigidamente as regras todas, mas tem a ver com o nosso coração e a busca sincera em tentar viver de acordo com o que o Pai nos aconselha.

Crianças acreditam em milagres, acreditam em promessas feitas por pais apressados, acreditam em príncipes e contos de fadas, confiam na fidelidade eterna dos amigos, elas acreditam que podem voar. Mas tem gente – os adultos e suas leis – que trata a fantasia como bobagem, colocam freios na imaginação infantil e acabam por matar a beleza da vida com sua visão pragmática dos fatos. Puxa, “visão pragmática dos fatos” já é, em si, uma expressão que mata muita coisa.

O que eu sinto, é que não preciso ensinar um conjunto de leis para minha filha. Eu preciso lhe ensinar bons princípios. E então os caminhos e a vida toda dela será de acordo com esse bom ensino. Uma a uma, suas decisões serão certas, não porque ela obedeceu cegamente ao que ordenei, mas porque soube escolher conforme suas próprias convicções e interpretação do mundo.

Tá, tá legal, eu sei que esse é o tipo de conselho que aparece em qualquer manual para pais de primeira viagem. Não que eu tenha lido algum livro desses – não li – mas é de se imaginar que conste esse tipo de afirmação. Mas o que eu quero dizer (ou tentar entender) é: quem disse que o mundo é do jeito que eu acho que é?

A Nina acha que é uma bailarina e dança em frente à TV até na trilha de abertura da novela das sete – de preferência usando um vestido florido, que roda suspenso no ar enquanto ela gira em torno do próprio corpo. Ela acha que cobrir os olhos com uma almofada a faz desaparecer. Ela ouve as histórias que contamos sobre reinos, reis e heroínas e arregala os olhinhos brilhantes imaginando tudo aquilo acontecendo de verdade, talvez ali na esquina ou no apartamento de baixo.

Crianças acreditam em coisas impossíveis. E pode até ser que o grande valor disso seja porque também acreditam, piamente, nas coisas possíveis. Em todas elas. Para elas, ainda não há mentira no mundo, não existe essa falsidade que a gente vê por aí e o mundo pode ser, de verdade, aquilo que lhes alimenta os sonhos. E isso basta.

* * *

Há alguns dias, eu dirigia pela cidade e parei meu carro num semáforo. Tinha ali um menino, com seus seis ou sete anos, que possivelmente estaria me pedindo algum trocado. Mas ele se distraiu. Estávamos num cruzamento, carros passavam por todos os lados, a cidade gritava com buzinas e motores, fumaça, pessoas cruzando pelas ruas como manadas e motoristas isolados em suas bolhas. E um garoto pobre, sozinho, sem a mãe ou o pai por perto para protegê-lo de tudo aquilo, estava agachado no canteiro gramado, sentado sobre os calcanhares, brincando com um carrinho quebrado, minúsculo, fazendo barulho de motor com os lábios e a imaginação vagando longe, no mundo que ele construía.

Jesus nos pede para acreditar em coisas impossíveis. Ele diz que devemos amar nossos inimigos, que não precisamos nos preocupar com o que vamos comer ou vestir, ele fala que os pobres, os que choram, os humildes, os pacificadores, que toda essa gente sem rumo aos olhos da nossa sociedade são, na verdade, os felizes e bem-aventurados. Jesus diz que crianças são um modelo de vida.

Elas acreditariam nele se tudo isso lhes fosse contado. E talvez até construíssem algo baseado nessa instrução. Um mundo inteiro, quem sabe. Não dá pra duvidar das crianças, porque elas tem dessas coisas, elas confiam, imaginam e, ao seu jeito, obedecem. Crianças brincam e sonham nos cenários mais improváveis. É bonito de ver. É até um aprendizado talvez.

“Digo-lhes a verdade: Quem não receber o Reino de Deus como uma criança, nunca entrará nele.” (Lucas 18:17).

Bom, veja bem, é possível que a coisa toda do aprendizado seja, no fim das contas, eu me converter à visão da minha filha. Seu coração infantil, a pureza nos gestos, a fantasia, o olhar fixo no pai procurando uma direção.

Eu sei que é contraditório. Pode ser um pouco de fantasia, como isso de acreditar que Deus nos chama a todos de filhos, ama o mundo inteiro e pensa coisas boas sobre nós. Aí sim faz mesmo algum sentido que o olhar de todas as pessoas do mundo estejam fixos numa única direção, que exista um caminho bom.

Ali, guardada sob as cobertas, de pijama, na cama em que dorme todas as noites, antes de fechar os olhos, a Nina ainda me chamou uma última vez, só pra oferecer algum consolo: “Papai, outro dia a gente faz cabaninha e eu durmo lá, tá bom?”. Essas coisas acabam comigo.

Eu queria saber com o que ela sonha.

E nessa caminhada, eu só espero não atrapalhar a espontaneidade das coisas com meu jeito sistemático, sabe? Eu fico aqui reclamando e sentindo essa melancolia toda só porque eu já não brinco mais de Playmobill, mas eu prefiro mesmo é que ela cresça com sua própria visão do mundo e de Deus, criando com ele algo tão diferente e tão belo que, em algum ponto, ela acredite que é possível edificar a verdade nessa terra, que dá mesmo para as coisas serem diferentes se ela se conservar menina e que pode, com seu canto, sua dança, sua fé, um vestido florido e boas escolhas, construir o Reino de Deus, com peças de Lego e castelos cor-de-rosa.


(Esse texto faz parte da série “Paternidade”)

Alienação

por Luiz Henrique Matos

Luz vermelha. Ponto morto.

Então, pela manhã eu acordo, tomo banho, troco de roupa, desço o elevador até a garagem no subsolo do prédio. Entro no carro, dirijo com o vidro fechado e o ar-condicionado ligado por cerca de 10 quilômetros até o escritório. Isso leva bem uma hora. Entro no prédio, estaciono na garagem coberta, subo direto pelo elevador até o andar em que trabalho. Almoço no refeitório do prédio. No fim da tarde, o mesmo itinerário até o elevador me deixar novamente na porta de casa. Isso leva bem o dia todo. Chego, tomo meu banho, troco de roupa, desfruto o jantar, vejo TV, brinco com minha esposa e minha filha, leio algo e então deito para dormir.

E o dia passa, inteiro, sem uma única experiência ao ar livre.

Sabe, tem gente – gente mau caráter – que acredita realmente que os fins justificam os meios. Dá pra ver isso a toda hora nos jornais, na vizinhança e por aí. Gente que não mede esforços para conquistar o que deseja ou precisa. Eles tem um plano e fazem o que for necessário para alcançá-lo. Julgamos e condenamos esse tipo de atitude o tempo inteiro.

Mas, sei lá o motivo, há algum tempo, tenho conhecido gente que acredita que os meios por si só se justificam – volta e meia tenho sido essa gente também. Elas não tem um fim concreto em que acreditam ou algo perseguem. O dinheiro, seus bens, o trabalho, tudo o que era instrumento virou objeto. E as pessoas vivem cercadas disso, dedicadas a isso, alienadas em atividades e coisas que estão longe de serem respostas. A gente esquece que o dinheiro serve, o trabalho serve, nossas posses servem… para alguma coisa. E viramos escravos e nem bem sabemos de quê.

Quando o meio vira fim, alguma coisa ficou de fora da história. Talvez a história toda, em muitos casos.

É como correr atrás do vento. E a gente faz o quê com isso?

Luz verde. Primeira marcha. Segunda. Buzina. Uma fechada. E então, rapaz, será que chove?

O enxugador de lágrimas

por Luiz Henrique Matos

Aconteceu uma tragédia em nosso aprazível e pacífico lar. Tudo era calmaria quando, num instante, sem que percebêssemos, a fúria dos mares, os ventos do sul, trovões ensurdecedores e todas as forças da natureza se levantaram para promover a pior e mais temível tempestade em copo d’água da história dessa família. Eu mal tive tempo de correr até o fim do corredor que liga a sala ao quarto, guiando-me pelo som do choro desesperado e então encontrar, desamparada, a Nina derramando rios de lágrimas.

– Que foi, filha? O que aconteceu?
– Doeu, pai.
– Doeu o quê, Nina?
– Meu dedo. Snif! Ó, tem uma pelinha.
– Calma. Vem cá, eu tiro pra você – e dei aquela mordida com a ponta do dente pra tirar a pele.
– Humf…
– Pronto. Viu? Não tem mais nada.
– E uma picada, pai, de pernilongo.
– Onde?
– Aqui.
– Vou fazer um carinho e já sara. Olha bem…
– Sarou, papai.
– Pois é. Tá vendo, não precisa chorar. Vem cá, deixa eu enxugar seu rosto.
– O enxugador de lágrimas?
– É isso aí.

Lembro-me de quando era criança e ganhamos o Shake, nosso primeiro vira-latas. Um dia ele saiu para dar uma volta e se machucou feio numa briga de rua (ah, rapaz, você não conheceu o Shake…). Quando voltou, além de dormir pra burro, ele passava o tempo todo lambendo suas feridas. Eu achava aquilo meio esquisito, até que meu irmão mais velho, cheio da sua sabedoria de Manual do Escoteiro Mirim, disse que a saliva tem um efeito cicatrizante nos animais, que as lambidas são como massagem para os cães e que, também por isso, as mães lambem suas crias quando pequenas. Se isso tudo é verdade, juro que não sei, mas ele é mais velho e quando se tem 10 ou 11 anos, a gente acaba respeitando esse tipo de autoridade.

É engraçado notar como os pais tem um efeito calmante sobre os filhos. A situação pode ser a mais desesperadora – algo como bater a cabeça na quina da mesa ou o fato de a roupa de passeio ser só “rosa branco” e não “rosa pink”, que nas definições da minha filha, tem pesos e gravidades idênticos – e o toque, a voz e o consolo paterno fazem com que tudo fique bem outra vez.

E a paz reina. E os brinquedos se acomodam, os amigos dividem as coisas, a comida fica saborosa, a hora do banho passa a fazer sentido, a TV pode ser desligada sem maiores traumas e garotos com crises crônicas de bronquite durante a madrugada conseguem dormir em paz porque uma mão está repousada sobre seu rosto fazendo algum tipo de carinho e dizendo que tudo vai ficar bem.

Filhos acreditam nos pais.

Para nós, adultos, é divertido observar como situações tão banais adquirem proporções gigantescas no universo (i)limitado de uma criança. E também chega a ser invejável a facilidade com que a dor logo passa, como tudo se resolve e a próxima brincadeira toma forma em instantes.

Talvez seja verdade mesmo que as preocupações nos sobrevém à medida que os anos se acumulam. Ou talvez, a medida que os anos passam, vamos ficando um tanto mais experientes nessa habilidade inata ao ser humano que é tornar complicadas as coisas mais simples. E choramos.

Antes eu dormia como uma pedra, agora eu perco o sono. E eu noto que, a cada dia, vou ficando um pouco menos paciente e menos tolerante em relação a acontecimentos que antes não me incomodavam – peles soltas nos cantos dos dedos e picadas de pernilongo certamente estão entre elas.

A gente fica só um pouco mais velho e já vai perdendo a graça. Perdemos a irreverência da infância e acumulamos a amargura dessas circunstâncias que nos afetam. Olhamos no espelho uma vez e ainda achamos que somos os mesmos meninos. Olhamos uma outra e, num minuto, os anos correm diante dos olhos, que agora precisam fazer alguma força para enxergar direito. Fica no ar o cheiro de menta do creme dental de todas as manhãs e o desejo de ter de volta um pingo daquela inocência. Eu queria bem é resmungar um pouco, abrir o berreiro, e logo vir alguém para resolver tudo com uma voz mansa e cheia de sabedoria, dizendo que tudo vai ficar bem, que eu posso dormir em paz.

E pensar que isso tudo é tão pequeno…

E eu fico refletindo que se tem uma coisa que é real, é que a vida é tão ampla, o mundo todo é tão cheio de opções, com tantos caminhos possíveis, que é estranho imaginar que na maior parte do tempo, queimamos nossos neurônios preocupados com coisas que, no fim das contas, cabem no nosso umbigo – para onde concentramos nossos olhares e esforços a maior parte do tempo.

E, bem, Deus é tão grande. Eu acredito mesmo. Ele é bom, amável, e quando penso que posso simplesmente me dirigir a ele para falar dos meus problemas e contar o que se passa, às vezes deixo de fazer por constrangimento. É estranho pensar que posso ter acesso ao criador do Universo se tão simplesmente aceitar isso como fato – ou, talvez, deixar de resistir. Posso ser dirigido pelo divino em cada um dos passos tortos que teimo dar na caminhada. Posso chamar o autor da vida de “pai” e ele vai achar isso bom.

Então, num pequeno passo, nessa escolha, meus problemas de proporções gigantescas finalmente se resumem à insignificância que têm de fato. E a tempestade dá lugar a calmaria. O oceano revolto era um copo d’água. Os olhos se abrem e, com eles, tantas novas possibilidades. Eu tenho um porto onde ancorar. Deus.

O enxugador de lágrimas.

Lembrei de João, o pescador, que ainda menino, viu passar por sua terra um homem que se dizia o Messias e, tão irresistível era o seu ensino, que ele e o irmão largaram tudo para segui-lo. E João viu morrer seu mestre. Aos pés da cruz, viu Jesus balbuciar a dor, bradar seu amor pela humanidade e dar o último suspiro. Logo depois, João viu morrer ao fio da espada seu irmão Tiago, vítima de um rei ganancioso. Passaram-se os anos e João ainda se despediu de cada um dos amigos de toda sua vida. E ao final dela, com sua missão cumprida, o velho João não esperava pelas visões que teve e registrou.

Das suas notas, de todas as cartas, um trecho em especial me toca.

Confesso que não sei como serão as coisas depois que eu morrer – eu mal sei do meu próximo passo e já me preocupo mais do que deveria – e também não faço muita idéia do fim do mundo, do último dia e tudo isso do Paraíso. Mas, se eu me apego a uma coisa quando penso em Deus, no amor, na minha família e na humanidade, acho que o futuro tem a ver com isso:

“Nunca mais terão fome, nunca mais terão sede.
Não os afligirá o sol, nem qualquer calor abrasador,
pois o Cordeiro que está no centro do trono será o seu Pastor;
ele os guiará às fontes de água viva.
E Deus enxugará dos seus olhos toda lágrima”.
(Apocalipse 7:16-17)

Filhos acreditam nos pais.

(Esse texto faz parte da série Paternidade)

A eterna busca

“Criaste-nos para Vós e o nosso coração vive inquieto, enquanto não repousa em Vós.”
Santo Agostinho, em “Confissões” (Liv. I, cap. 1)

Com sua licença para republicar a frase já postada antes, há pouco mais de dois anos.

O tempo, o amor e um Chevette 1982

por Luiz Henrique Matos

Ela agora me liga no meio do dia para pedir coisas. Estou no escritório, toca o telefone, percebo que é o número de casa e acho que é assunto sério. Então uma voz fina do outro lado derrete minha postura de profissional empenhado, pedindo para que eu leve algum doce no fim do dia, perguntando se pode ir brincar na casa da avó ou querendo assistir um DVD diferente.

Não reclamo, eu gosto. Apesar do constrangimento em falar com uma criança no telefone diante de uma audiência concentrada no trabalho, atender as ligações da minha filha ou esposa durante o dia é como fazer uma visita instantânea até em casa.

Outro dia, tocou o telefone e era ela outra vez.

– Alô?
– Papai…
– Oi, filha?
– Eu quero você aqui.
– O quê?
– Eu quero você aqui em casa agora.

Crianças…

Ela não quer saber se vivemos em uma mansão ou numa quitinete, se dirijo o carro do ano ou um Chevette 1982. Para ela pouco importa o cargo que ocupo, a marca da roupa estampada em sua camiseta suja de chocolate, a quantidade de prêmios que ganhei – e não ganhei nenhum, se quer saber – ou qualquer dessas coisas que nos parecem fundamentais em grande parte do tempo.

Ela não se importa com o valor dos presentes que ganha. Aliás, ela nem se importa com presentes. Ela é feliz quando os recebe e também é quando nada acontece. Basta a brincadeira, uma nova história e pessoas ao seu lado.

A cada mês, minha menina deixa de ser aquele serzinho dependente e começa a revelar um pouco de sua personalidade. Ela tem olhos bons. Quando sorri, eles ficam apertados entre as bochechas e as sobrancelhas. De uns tempos pra cá, os cachos já encostam nos ombros, seu rostinho já não está tão fofo e o português vai se ajustando num vocabulário correto e claro nas idéias que quer expressar. Se em algum momento eu achei que tinha qualquer controle sobre as coisas, já não me iludo.

E aos poucos, limitado como sou, vou percebendo que longe de objetos e artifícios de que lanço mão para mostrar o bom pai que pretendo ser, ela prefere que eu lhe dê algo mais simples: tempo.

E ela não está interessada em recompensas, não espera que eu retribua o seu carinho, ela só me quer por perto. Ela quer alguém para viajar junto em sua imaginação, quer jogar qualquer coisa, brincar do que der na telha, quer um leite fresquinho quando acorda e um braço pra se apoiar enquanto a Dora, a Aventureira, resgata algum animal perdido na floresta.

Nada do que ela me pede, nada, me custa mais do que um mísero centavo. A verdade é que as crianças tem um tipo de amor que eu não entendo e não expresso. Um amor desinteressado, gratuito, livre de coisas, que não exige condições, que aceita um pedido de desculpas quando a gente deixa de brincar e que espera o dia inteiro, às vezes bem longo, só para ganhar um colo e ouvir uma nova história antes de dormir.

– Nina, as princesas dormem sozinhas em suas próprias camas, sabia?
– Mas, pai, a princesa quer ficar aqui, perto do príncipe.

Ela me acha bonito.

Às vezes eu me pego pensando no dia em que ela vai descobrir que eu não sou “o” cara. De príncipe, herói e marido exemplar, um dia minha menina vai me achar careta, fraco e pedir para que eu estacione a 300 metros da escola para que os amigos não a vejam entrar no carro comigo. Mas até que isso aconteça, deixo as preocupações para a hora apropriada. Enquanto ela ainda se sente suprida simplesmente por eu sentar ao seu lado no sofá, eu desfruto.

Eu me regozijo em sua inocência, no pensamento puro, nos contos de fadas, nas palavras mal faladas e no cheiro de xampu de neném que ainda perfuma uma parte da casa.

– Pai…
– Oi, Nina.

Ela me mostra a mão espalmada.

– Você fica… você fica só mais assim, ó. Fica só mais cinco minutos comigo?
– Claro, querida. Como não?

Sorri.

– Tá. Então senta, pai.

Ela não me cobra se estou acima do peso, não quer saber serei um sujeito careca daqui um tempo e também não liga se não me visto segundo o catálogo da Armani. Ela só quer que eu esteja ali.

Pais são assim. Às vezes, depois que passamos da infância e, num instante crescemos, pode acontecer de o assunto acabar. Pode ser que o encanto se quebre. Pode até ser que filhos e pais, em função do tempo e das circunstâncias, deixem de ter a afinidade natural, aquela amizade que parecia instransponível lá atrás. Mas inexplicavelmente, a gente sabe o quanto precisa deles. Bem, às vezes nem sabemos, mas notamos que em determinados momentos, precisamos daquele colo, daquele cheiro, sentimos falta de estar perto, gastando um tempo que parece à toa, mas que preenche um vazio que só esse tipo amor pode completar.

O primeiro amor, aquele desinteressado, que tudo sofria e suportava, que acreditava e esperava, de repente parece cheio de condições, cercado de regras, empoeirado, espremido entre tantas lembranças naquele baú esquecido no sótão. E a gente sente saudades mas não sabe como voltar.

Nesses momentos, numa fagulha, filhos se distanciam, amigos se perdem, casais se separam e o homem, ao longo da história, se afasta do seu Criador.

O filho perde de vista o Pai, que nunca deixou de esperar pela volta de sua criança, ansioso, aguardando por mais uns minutinhos. E Deus tenta dizer que ele não quer súditos ou empregados que o sirvam com sacrifício, ele quer seus filhos invadindo a cozinha, cansados de correr no quintal, pedindo por uma história, contando sobre o novo amigo e precisando de um copo de água para saciar sua sede.

E como em qualquer relacionamento, um e outro não esperavam mais do que presença, nada além daquele amor simples, o respeito, carinho… nada que se represente em coisas, nenhuma grande fortuna. Talvez uma aventura frustrada a bordo de um Chevette, uma história para contar juntos, talvez uma conversa franca de vez em quando.

No amor, não se dá nada que custe mais do que um mísero centavo.

(Esse texto faz parte da série Paternidade)

Do que realmente importa

Portanto, vá, coma com prazer a sua comida e beba o seu vinho de coração alegre, pois Deus já se agradou do que você faz. Esteja sempre vestido com roupas de festa, e unja sempre a sua cabeça com óleo. Desfrute a vida com a mulher a quem você ama, todos os dias desta vida sem sentido que Deus dá a você debaixo do sol; todos os seus dias sem sentido! Pois essa é a sua recompensa na vida pelo seu árduo trabalho debaixo do sol. O que as suas mãos tiverem que fazer, que o façam com toda a sua força, pois na sepultura, para onde você vai, não há atividade nem planejamento, não há conhecimento nem sabedoria.

[…]

Agora que já se ouviu tudo, aqui está a conclusão: Tema a Deus e obedeça aos seus mandamentos, porque isso é o essencial para o homem.

– Eclesiastes 9:7-10 e 12:13

As coisas não precisam mudar

por Luiz Henrique Matos

Toda vez que estou lendo um bom livro e percebo que está chegando ao fim, fico meio apreensivo. Em geral, paro quando faltam 15 ou 20 páginas e penso se aquela realmente é a melhor hora para concluir a história. Gosto de terminar minha leitura no momento apropriado, é preciso ter o clima ideal para honrar o fim daquele relacionamento que construí durante um tempo. Eu sei, isso é bem esquisito.

Estou lendo um livro muito bom e faltam pouco menos de 20 páginas para acabar. Nesse momento, achei que não era a tal hora ideal. Marquei a página e o coloquei sobre meu criado mudo para poder dormir. Mas antes de apagar a luz do abajur, fiquei observando por algum tempo uma foto que enfeita meu lado da cama (é, casais tem dessas coisas). Estamos lá, Manú e eu, sorridentes, comemorando nosso segundo aniversário de casamento. Lembrei do restaurante em que estávamos, dos amigos com quem festejamos, da viagem que acabáramos de fazer e também que tínhamos comprado há pouquíssimo tempo nosso primeiro apartamento.

Fiquei pensando na vida que levávamos naquele ano. Eu sei que não faz muito tempo – estamos juntos há 11 anos e casados há sete – mas ainda assim, tanta coisa mudou de lá pra cá. É engraçado pensar que algumas histórias que vivemos nesses cinco anos nem passavam pelas nossas mentes naquele dia.

Tivemos uma filha, mudamos de casa, viajamos juntos, o Brasil perdeu duas vezes em Copas do Mundo, guardamos dinheiro, fizemos novos amigos, amadurecemos, mudamos de igreja, mesclamos nosso gosto musical, gastamos dinheiro, vimos o quanto ainda somos imaturos e descobrimos que rugas e cabelos brancos também aparecem em adolescentes como nós.

E aí, olhando para trás, a gente redescobre o óbvio: que as lembranças são boas para recordarmos as histórias que vivemos, o que fizemos de certo e errado. Notamos que um porta-retrato pode nos levar outra vez a um grande dia que vivemos, revela a mulher admirável que nesse instante suspira deitada ao meu lado. E ela é forte, meiga, madura, e ainda aquela menina que numa tarde de março, vestida de branco e brilhando como o sol, entrou ao som de música por aquele jardim, ouviu meus votos de amor eterno, me disse sim, me deixou colocar um anel de ouro em seu dedo e me deu um beijo.

As promessas, os planos, as inquietações. Gastamos tanto tempo tentando entender o mundo e a vida, brigando para mudar o rumo das coisas e procurando nossa realização pessoal em questões tão superficiais, que deixamos de notar muitas vezes que a grande alegria da vida está em guardar e desfrutar do tesouro mais precioso que Deus nos deu.

A minha alegria tem dois nomes curtos e mora aqui em casa. Alegria é voltar ao lar no fim da tarde e dar o segundo beijo do dia, repartir um copo de suco, falar do que se passou e ver um filme na TV. Alegria é ver minha filha gargalhando com as cócegas que eu faço, é sentar ao seu lado e assistir Toy Story pela 78ª vez, é construir todo um reino com peças de Lego, é observá-la por horas a fio, enquanto dorme inocente, tentando imaginar os sonhos que alimenta.

Tenho um amigo que sempre diz que eu me preocupo demais. Ele fala que fico aqui escrevendo essas coisas, mas preciso desligar um pouco e deixar que tudo aconteça naturalmente. Sei não. A verdade é que eu não fico encanado com o que desfruto, mas o contrário. Preocupo-me com o que possa estar tomando o tempo das coisas realmente importantes, entende? E para mim, isso não é lá muito natural.

Sei que ainda sou novo e que possivelmente vivi bem menos da metade do que ainda tenho pela frente. Mas sei também que a vida é fugaz e que ao menor vacilo, os brinquedos espalhados pela casa vão dando lugar a cadernos e roupas de gosto duvidoso, os livros vão ficando cada vez mais grossos e com menos figuras e nossas crianças, de repente, entram pela porta sala com suas crianças a tiracolo.

Eu lembro da minha infância numa vila lá na Barra Funda. Era um bairro industrial e eu gostava especialmente das manhãs quentes, depois de abrir a janela do quarto e ouvir o som das fábricas no quarteirão misturados ao de uma família de bem-te-vis que vivia numa árvore atrás do nosso quintal e cantava o tempo todo. E lembro dos brinquedos que deixava pela sala, dos cadernos, das minhas roupas de gosto duvidoso e dos livros todos, com muitas e poucas figuras. E lembro dos meus pais, do meu irmão e da minha irmã, que também já não tem mais aquela idade, no quanto os amo e em como quase não digo isso a eles.

Eu acho um grande paradoxo pensar que, segundo nossas crenças, viveremos para sempre, mas que só temos alguns anos – uma partícula de tempo na história toda – para determinar essa eternidade. Morreremos daqui a pouco e acabamos gastando nossos dias em futilidades, enquanto vemos nossos relacionamentos mais importantes se converterem em diálogos superficiais.

A verdade é que eu quero saber que fiz coisas relevantes. Que mais do que me preocupar em saber das últimas notícias, da escalação do time do São Paulo em 1982 ou ter assistido aos grandes clássicos do cinema, eu sentei à mesa e fiz a refeição de todas as noites com as pessoas que amo. Que eu tive tantos filhos quanto sonhei, que escrevi um poeminha para a Manú e recitei pessoalmente, que fui, por mais um dia, o herói da Nina na brincadeira do rei e da princesa.

Talvez a gente gaste tempo demais querendo encontrar motivos, querendo encontrar culpados, querendo encontrar uma resposta que nos salve da insanidade que estamos vivendo. Mais tempo, mais dinheiro, mais prazer, mais respostas instantâneas, mais planos complicados. Queremos que Deus seja um escritor de auto-ajuda, com um livro de poucas páginas, muitas figuras e cinco passos básicos para que tudo se resolva. Mas tudo é muita coisa.

Queremos que as coisas mudem, mas as coisas não precisam mudar. Quem precisa mudar somos nós.

Mas, jamais conseguiremos isso sozinhos. Precisamos de um refúgio, de um porto seguro onde ancorar e organizar as idéias, rever os conceitos. Às vezes, eu tenho para mim a idéia estúpida de que, tal como algum ancestral que vivia nas cavernas, eu saio de manhã todos os dias para fazer minha caçada, batalhar e trabalhar nos campos pela colheita – bem, convenhamos, é um jeito emocionante e otimista de se encarar dez horas sentado em frente a um computador. Então eu volto, pouco depois de o sol se pôr, para minha paz, minha casa, minha esposa, minha filha, uma caneca de Nescau e as melhores horas do dia.

E Deus.

Eu penso na Bíblia e nas coisas em que acredito e fico feliz em saber que Jesus é o Deus desse mundo. Isso já basta. Eu creio e é mais do que suficiente para que ele seja meu Deus também. E é verdadeiramente libertador e aconchegante ter esse Deus simples, sem me preocupar com os milagres, com as interferências na história, com discussões bobas sobre crenças e com minhas crises existenciais. É esse Deus a quem chamo de pai, é para ele que me sinto livre de abrir tudo o que se passa, que me rendo, agradeço, peço desculpas e peço conselhos.

E acredito ainda que quando ele nos dá uma família e bons amigos, está nos mostrando um pouco dessa verdade, nos oferecendo refúgios de paz para onde podemos retornar quando o sol se esconde no horizonte. Está nos dando o sinal mais explícito do que realmente importa e faz sentido na vida e que, no fim das contas, deveria ocupar mais do nosso tempo.

Olho outra vez para a foto no porta-retrato que eterniza a boa lembrança. A Manú dorme aqui do lado, ouvindo a trilha-sonora das teclas preenchendo a tela do computador. Então eu levanto, faço a última ronda pela casa para checar se está tudo bem (sempre está, mas preciso fazer isso mesmo assim). Volto, deito, dou um último gole no copo d’água e estico o braço para alcançar o interruptor que apaga a luz do abajur. Já é tarde e eu preciso dormir.

Meu livro repousa fechado no canto. O desfecho ficará mesmo para os próximos dias. No momento ideal para eu ler (e viver) as próximas páginas da história.

Onde nascem os sonhos

por Luiz Henrique Matos

– Nina, já contei uma história e nós já oramos. Agora vamos dormir.
– Mas pai…
– O quê?
– E depois que dorme?
– Ah, aí você sonha, filha.
– Sonha com o quê?
– Com um monte de coisa legal. Com brincadeira, com os amigos, com Deus, com o que você quiser. Só coisa boa.
– E depois que sonha?
– Aí a gente acorda e vai brincar.

Alguns segundos de silêncio…

– Papai?
– Oi, Nina.
– Onde é que sonha?
– O quê?
– Onde é que a gente sonha?
– Onde? Hmmm… a gente sonha no coração.
– Eu não quero…
– Tudo bem, filha, não precisa sonhar.
– E você, pai?
– …eu?

Escrevendo o mundo (Donald Miller)

Naquela época, quando me deitava na cama ou atravessava um corredor na faculdade, a consciência de que eu estava vivo me espantava, como se ela chegasse por trás de mim e me batesse com um livro de cada lado. […]

A experiência é tão lenta que você poderia facialmente chegar a acreditar que a vida não é tão importante assim, que ela não é incrível. O que estou dizendo é que acho a vida incrível, e nós simplesmente nos acomodamos com ela. Todos somos como crianças mimadas que não nos impressionamos mais com os presentes que recebemos – é só mais um pôr do sol, só mais uma pancada de chuva sobre os montes, só mais uma criança nascendo, só mais um enterro.

[…] Se tenho uma esperança é a de que Deus ficou sentado no vazio escuro e escreveu-nos, você e eu, especificamente na história, e colocou-nos com o pôr do sol e a pancada de chuva como se estivesse dizendo: “Aproveite seu lugar em minha história. A beleza dela significa que você é importante e pode ser criador dentro dela, assim como eu o criei.”

Donald Miller, em “Um milhão de quilômetros em mil anos” (p. 74 e 75)

Contando histórias


Pai e filho (foto de Jim Skea)

por Luiz Henrique Matos

– Papai?
– Oi, filha.
– Senta aqui comigo.
– Claro, querida. Que que você quer?
– Histórinha, papai! Conta uma histórinha?

E lá vou eu. Em minha saga diária de inventar histórias. As preferidas envolvem uvas (isso aí, uvas. Vai entender…) e um passarinho que vive na árvore da casa da vovó. O resto do enredo é por minha conta e risco. E bota risco! As tramas precisam ser originais, senão:

– Não, papai, essa não. Outra.

Às vezes, eu crio histórias aleatórias, por puro entretenimento. Mas em outros momentos, acabo achando que essa é uma chance de incutir bons princípios e ensinamentos na mente da minha filha. E é nessas horas que uvas deixam de chupar chupetas, fazem orações de agradecimento e passarinhos dividem brinquedos com seus amigos de escola.

Fico tentando pensar num jeito de fazê-la entender verdades importantes, de ser educada de um jeito divertido e aprender um pouco sobre o Deus que eu amo, sobre as coisas certas, sobre ser obediente, sobre torcer pro São Paulo.

E acho que as histórias são um bom jeito para isso. Funcionaram comigo, afinal. Quer dizer, funcionam. Seja quando criança, freqüentando a biblioteca pública ao lado da minha escola no Bom Retiro ou lendo as dicas da revista Alegria. Seja agora, já adulto, extraindo valores dos bons romances que carrego pra todo lado embaixo do braço ou entendendo que através das Escrituras, Deus me mostra suas ilustrações e princípios – porque, em certos casos, não importa tanto a literalidade dos fatos, mas seu significado e efeito.

– Papai, conta uma história de você?
– Conto. Qual você quer?
– De você pequeno. Na bicicleta.

Agora ela deu de querer saber da minha infância.

A verdade é que pais são seres insondáveis, grandiosos, infalíveis, perfeitos – e eu tardo a me dar conta de que eu sou, para minha menininha, um herói. Seu mundo, sua história, tudo parece despertar a curiosidade dos filhos. E de alguma forma, é nesse olhar, nessa expectativa toda, que as crianças firmam sua referência.

Eu me lembro do meu pai enquanto eu ainda era criança. Ele era o homem mais forte, o melhor jogador de futebol, o motorista implacável, o churrasqueiro talentoso e, além do Magnum, o único cara bonito de bigode que poderia existir no mundo. E ele me contava as histórias sobre sua vida no sítio, sobre o pai que perdeu na infância, a vinda para a cidade grande… e me ensinou a andar de bicicleta!

E quem imaginaria que tirar as rodinhas da minha Caloi azul-marinho seria, décadas mais tarde, um grande exemplo de bravura e traria novamente à tona todo o sentimento de conquista e liberdade daquele dia? Quem diria que uma dolorosa cicatriz no joelho seria tão útil para ensinar a Nina sobre certos cuidados que devemos ter ao brincar com os amiguinhos – especialmente se for um pega-pega ultra-mega-super-rápido em volta de uma Kombi num chão cheio de areia?

Todo filho deseja conhecer seu pai. E nessa relação de descoberta, das pequenas coisas e das grandes conquistas, o relacionamento amadurece. No conhecimento transmitido, no aprendizado ensinado e nas histórias inventadas. Na troca de palavras e no toque, nisso se solidifica o amor e se edifica uma vida de cumplicidade. Nisso, um filho admira seu pai, o homem se apaixona por Deus, um pai se aproxima do filho, Deus se revela ao homem, um garoto escolhe seu time de futebol e a paternidade ganha um sentido assustador.

Às oito e meia ela dorme. Depois de ouvir uma ou duas histórias, eu cubro minha menina, oro por ela uma outra vez, desejo que tenha sonhos encantadores e deixo o quarto com a luz indireta acesa, sem deixar de estar atento a cada um de seus movimentos.

Então eu me acomodo num canto da sala, recosto a cabeça em algo macio e, com a Bíblia aberta nas mãos, balbucio meu pedido:

– Pai, senta aqui comigo? Me conta uma história de você?

Essa crônica faz parte da série “Paternidade”:

1. A explosão da vida
2. Versos infantis dessa minha felicidade
3. As grandes conquistas do homem
4. As cegonhas não existem
5. O amor, um calção e gestos primitivos (cinco minutos antes de minha vida mudar)
6. Colos, cólicas, chavões e uma crônica de continuação
7. Na falta do que dizer
8. Pequenas lições
9. Doentes curando doentes
10. Primeiros passos
11. Sobre a velhice, rotinas e prioridades
12. Música para os meus ouvidos
13. E o futuro, a quem pertence?
14. Versos infantis 2 – alegria, tristeza e distração
15. De mãos dadas
16. Sobre ser pai no Dia dos Pais
17. A doce presença
18. Transportando tesouros e atropelando cachorros – os heróis da vida pequena

Os evangélicos-bomba

por Luiz Henrique Matos

Estava pensando nesses caras que amarram uns quilos de dinamite na barriga e, em nome de Alá, se explodem em algum local público e movimentado do mundo. Pensei em como isso algo totalmente possivel de fato, em como tanta gente acredita nesse tipo de absurdo.

Minha curiosidade passava por tentar entender em que momento exatamente um rapaz se convence de que a resposta para todas as coisas passa por apertar um botão e botar tudo pelos ares. A sua vida inclusive.

Minha outra curiosidade era tentar imaginar o tipo de deus em que um indivíduo acredita para chegar à conclusão genial de que ele se satisfaz com esse ódio todo. Que paz, afinal, pode coexistir com a guerra?

E então eu lembrei de um sujeito que eu conheci quando me converti. Um não, vários sujeitos. Pensando bem, igrejas inteiras. E acho que se eles tivessem nascido no Afeganistão, estariam hoje numa fila de voluntários talibãs para morrer em nome de sua fé.

Fé o escambau, essa gente se mata em nome do ódio. Deus, Alá ou seja lá quem for, é um pretexto para a amargura que os entorpece. Fariseus. Estão cegos e acham que podem conduzir alguém a algum lugar.

Se o Bin Laden fosse evangélico e vivesse no Brasil, acho que ele faria um baita sucesso. Com programas na tv, emissoras de rádio e mega cruzadas em praças públicas.

MST? Farc? Al-Qaeda? Que nada, nós teríamos os evangélicos-bomba. Fogo puro.

Eu juro que tenho medo.

Mas pior do que o absurdo desse extremo físico, eu acho que é o que já acontece por aqui. Os evangélicos bomba já estão entre nós. E eles matam silenciosamente. Com suas mensagens, com as pregações escabrosas e as bizarrices doutrinarias, nossos terroristas escravizam inocentes, manipulam vítimas emocionalmente feridas e, aos poucos, minam suas forças. Eles matam, milhares, todos os dias, com suas campanhas que prometem milagres e prosperidade instantâneas, com a culpa e o medo incutidos nas mentes que influenciam e se escondem atrás de um subterfúgio: o deus que professam, mas que contraditoriamente, existe para lhes servir em seus caprichos.

Eu tenho mesmo muito medo.

Tenho medo porque convivo com gente assim. Tenho medo porque, preciso confessar, eu mesmo já quase entrei na fila dos homens-bomba (duvida? Então dê uma olhada em alguns dos textos que escrevi há seis ou sete anos).

Mas eu temo, principalmente, por duas razões fundamentais. Temo pelas pessoas que morrem todos os dias, enganadas, acreditando num deus tão cruel. E temo – me apavoro – pelas pessoas, as que não caem na lorota dos terroristas, mas que acreditam que o cristianismo, no fim das contas, é o que esses bandidos pregam.

Mas há esperança, sempre há. Precisa. Porque em outros momentos da história em que ideologias parecidas ganharam espaço (vide os fariseus do primeiro século, as cruzadas na Idade Média, a inquisição da igreja romana…), Deus providenciou uma mudança de cenário. Não, ele não travou guerras. Ele também não dizimou os enganadores com raios ou enviou exércitos para a batalha – bom, tome cuidado você, se desejou que fosse assim. Deus não faz isso porque Deus não tem inimigos. Deus não fere, não mata, não condena. Deus é Pai, ele é amor.

E o amor é a sua espada, é seu argumento, seu único recurso, é a revolução pela qual escolhe salvar o mundo sempre que teimamos destruí-lo.

Por amor ele criou, viveu entre nós, perdoou, nos ama e procura. Com o amor, ele nos derrota. Amando incondicionalmente, o Pai nos constrange, nos faz cair de joelhos. E amados, nos rendemos, nos prostramos. E já não há outra saída.

O homem cujo coração se rende a Deus, passa a enxergar como ele. Odeia o que Deus odeia e ama o que ele ama.

Porque, pensando bem, não precisamos de algo pelo qual morrer. Precisamos de uma causa pela qual viver.

“Ame o outro como a si mesmo.” (Jesus)

Esse texto faz parte da série “Correndo atrás do vento”. Leia mais:

1. A teologia não salva
2. Em defesa da crise
3. E o futuro, a quem pertence?
4. Pessoas mudam, o mundo muda (manifesto)
5. Os riscos da prosperidade
6. Clichês
7. Deus não tem um sonho pra você
8. Julgando um livro pela capa (e pessoas por sua opção religiosa)
9. Jesus não tinha inimigos
10. Um Deus, diversos cultos
11. Comodidade
12. Churrasco, futebol, igreja e uns quilos a mais

Vida eterna


por Luiz Henrique Matos

Ainda que estejam certas as vozes que anunciam o fim, que o céu não exista e que a vida acabe no meu último fôlego.

Ainda que tudo não passe de cinzas, que o que me cabe esteja restrito a esses dias que podem ser contados e meu destino seja uma cova.

Ainda que não haja céu, que o jardim do Senhor não floresça e que a eternidade seja apenas um sonho.

Ainda que minhas lágrimas não sejam enxugadas por suas mãos, que o fardo pesado não me seja tirado das costas e eu nunca o veja face a face e me sente ao seu lado.

Ainda que tudo tenha fim, terei comigo o seu amor.

Ainda que os outros julguem ser pouco, o seu amor, Pai, eu conheci. E no último dia, no suspiro derradeiro, adorarei. E serei grato, pela vida eterna que vivi em ti.

Um pedaço de nós

por Luiz Henrique Matos

Em geral, temos um certo orgulho e valorizamos mais as coisas que nos mesmos fizemos.

Brinquedos para as crianças, pipas, lavar o carro, pendurar um quadro, construir uma casa – mesmo que seja de bonecas -, constituir família. Filhos.

Precisamos nos envolver, dedicar tempo. Precisamos nos doar para que tenhamos um pouco de nós mesmos semeados naquilo que chamamos “nosso”. Sejam coisas ou pessoas.

Devemos ser parte de algo para entender o seu valor e, finalmente, dar a vida por isso.

Como maridos, pais, artesãos, profissionais, carpinteiros, filhos…

Deus entende dessas coisas.

“Porque Deus tanto amou o mundo que deu o seu Filho Único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna.” (João 3:16).

Pra quê?

por Luiz Henrique Matos

Sabe, acho que a competição toda já passou do ponto para mim.

É que chega um hora em que as pessoas ao redor começam a te observar e cobrar um “próximo passo”. Nessa altura do jogo, já não basta sua capacidade, talento e empenho para que o mérito lhe seja outorgado, agora é preciso vencer, é hora de arregaçar as mangas e partir para a luta. Como se a vida fosse um campo de batalha e nós, combatentes ambiciosos.

Desculpe, mas eu não quero. Peço perdão também pela imaturidade dessas palavras, mas às vezes a infantilidade ergue a voz petulante. Pensando bem, eu nem diria que é infantil, isso tudo é coisa de adolescente, que acredita ter a razão no bolso do shorts e o direito de se expressar e reivindicar sua… sua… bem, adolescentes só querem ter o direito de alguma coisa, não importa exatamente o que seja.

E eu tenho muito disso, admito. Eu quero ter o direito de não precisar provar minhas habilidades a todo instante – até porque, é fato, não sou hábil em muitas coisas, muito menos a cada instante.

Quero viver. Quero amar, estar, crer, ser. Simplesmente ser.

Quero desfrutar a boa vida ao lado da mulher que amo, dos meus filhos, da família, dos amigos, em Deus.

E quero ter o direito de estar errado sem que isso me pese como condenação.

Quero parar de competir, porque acho que não vale a pena e, no fim das contas, isso não é vitória coisa nenhuma.

Eu quero acreditar – e tenho esse direito – que ao invés de me estapear com alguém para ocupar o lugar mais alto, posso lhe estender a mão, chamá-lo de irmão e finalmente estarmos, todos, na posição mais nobre.

Jesus disse: “do que adiantará ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?”.

Quando crescer, eu quero é ganhar a vida.

Comodidade

por Luiz Henrique Matos

A comodidade é um perigo que não bate à porta. Ela chega sem avisar. É duro se dar conta, num certo dia, que a aparência de felicidade e paz na sua vida é, na verdade, o marasmo. Tudo parece tão fácil, as coisas caminham bem, cada passo pode ser dado com um certo planejamento. Mas nem percebemos que estamos andando em círculos.

É um perigo.

E não se trata de alegria ou tristeza, nem de riqueza ou pobreza. Trata-se de realização. O fato é que nos deixamos levar pela vida, nos cercamos de pequenos confortos e isso, sem risco que nos amedronte, se ocupa de nos preencher.

É a rotina com aspecto de aventura. É o caminhar sobre uma esteira rolante, é viver no modo automático sem se dar conta de que nossas escolhas e atitudes – ou a falta delas – nos fazem apenas existir.

Sabe, me perdoe a ousadia, mas preciso dizer: às vezes, se tudo vai indo bem é porque algo não está bem.

Se o próximo grande passo que tenho para dar na vida é a troca do meu carro por um modelo mais novo ou decisões sobre meu trabalho, então eu me apequenei.

A vida é grande demais para eu tratá-la dessa forma. É um presente inestimável para que eu faça dele algo tão diminuto. Eu desonro o seu Autor conduzindo-a de forma tão triste.

Faço um balanço: onde estão os meus planos? Onde dormem meus sonhos? Onde guardei as aventuras, viagens, filhos e os jantares a dois que imaginei? Cadê as grandes conquistas que brotavam na imaginação e faziam valer qualquer desafio?

Vamos nos afundando. No sofá, no marasmo, no lero-lero repetitivo dos dias. E a barriga cresce, os cabelos caem, a mente atrofia. E a gente fica querendo um controle-remoto para poder mudar de canal e esquecer.

Não, isso não é auto-ajuda. Absolutamente. Não estou aqui para mudar o rumo das coisas e dizer que você e eu somos seres especiais, feitos para vencer e que se pensarmos positivamente, tudo dará certo.

Não, pode ser que não dê. As chances de fracasso são bem grandes.

Mas eu acredito – e é disso que preciso me lembrar – na esperança, na tentativa e na vocação. Creio em Deus e nos seus sonhos me inspirando e alimentando. Tenho conhecimento de que não sou suficientemente sábio para julgar que posso pensar a respeito da vida e de mim mesmo, algo diferente do que seu Criador um dia imaginou.

Quero e preciso retomar o plano inicial. Não perder de vista o propósito e viver consciente e aberto para sonhar. E alimentar velhos sonhos.

Não, de novo, isso não trata de ambição, determinação ou foco. Ao contrário, isso aqui diz respeito à entrega, renúncia e o retorno à essência, em Deus, de quem eu sou realmente.

Ser um bom marido, um pai dedicado, trocar as lâmpadas queimadas, lavar o carro, fazer planos para o futuro e para a hora do jantar. Viver o dia de hoje. Trazer o pão quente pra casa, me alimentar do pão da vida a cada dia.

Sonhar. E viver o bom sonho do homem que se realiza em seu Deus.

Transportando tesouros e atropelando cachorros – os heróis da vida pequena

por Luiz Henrique Matos

Atropelei um cachorro na estrada. Foi tudo tão rápido, estava escuro, ele correu para o meio da pista e parou diante do carro, uns cinco metros à frente. Eu nem consegui pisar no freio. Lembro do olhar estático do pobre animal paralisado pela luz alta do farol e em seguida o impacto seco no pára-choque. Vi, depois, a sombra escura e morta no asfalto pelo retrovisor, cada vez mais distante, pequena, até sumir. Sem nada que pudesse fazer, chorei e segui viagem.

Voltávamos do interior do estado, onde visitamos alguns familiares e eu dirigia por uma estrada paralela enquanto as duas dormiam no banco de trás.

E pensando no momento que acabava de viver, me preocupei com algo mais que pudesse nos acontecer. Viajamos por essas estradas tantas vezes e, é bem verdade, não tenho noção real dos riscos que corremos. Olhei de relance para as duas, mãe e filha, que dormiam desconfortáveis e temi pela responsabilidade de levá-las para casa em segurança.

Eu carregava um tesouro precioso. Confiadas à minha direção, estavam as coisas mais importantes que tenho nessa terra e, bem, eu peno em admitir, mas não sou dos melhores motoristas que conheço – e isso já é um auto-elogio – o que torna o desafio um tanto maior.

Exagerando outra vez nas analogias, eu me sinto como um daqueles guerreiros de histórias épicas que saem em cruzadas pela terra com a missão de transportar algum tesouro precioso para o rei. Levam consigo uma carta de recomendação, viajam em nome da coroa e estão dispostos a abrir mão da própria vida em favor de algo que não lhes pertence mas pelo qual, não se sabe a razão, são apaixonados.

Mas, peno em dizer, eu não sou um guerreiro habilidoso. Não manejo bem uma espada, não sei montar cavalos e meu reflexo não é apurado. O fato é que às vezes eu falho nessa missão. Piso feio na bola. Deixo cair, desprotejo, penso mais em mim mesmo do que nelas. Mas, apesar de minhas limitações, a carta do rei sempre me faz lembrar a que vim. Seu olhar não me deixa esquecer que são suas filhas que estão sob minha responsabilidade.

Não, não pense que isso é um desabafo arrependido. Pelo justo contrário, eis aqui meu voto de fidelidade, minha alegria, o reconhecimento, afinal, do que entendo por realização.

Descobri que longe de ser um fardo, essa missão consiste em minha grande alegria. E não é que a minha visão seja limitada ou que me falte ambição, eu só notei que tenho em casa o tesouro mais nobre que jamais poderia sonhar conquistar. E empenhar a própria vida em favor desse prêmio, talvez seja o mais heróico dos gestos que poderei ostentar.

O herói da vida pequena. A refeição em casa. As férias em família. O tempo juntos sentados no sofá da sala vendo o mesmo desenho pela trigésima vez. As brincadeiras simples na rua. O cineminha com pipoca de sexta à noite com a eterna namorada. Deus, a família, os amigos. As melhores coisas da vida não nos custam sequer um centavo.

Que feito pode ser mais nobre do que dar vida a um ser humano, guiar seus primeiros passos e conduzi-lo em sua existência para que um dia seja alguém melhor do que eu jamais sonhei ser? O que pode ser melhor do que amar uma linda mulher e empenhar a vida em protegê-la, sustentá-la e lhe ser fiel? Que massagem no ego pode ser melhor do que descobrir que duas lindas garotas te acham o cara mais bonito, forte e bacana do planeta, apesar da barriga proeminente, da barba por fazer e da toalha molhada largada sobre a cama (tá bom, eu admito que exagerei no bonito, forte e bacana)? Que honra maior em ver multiplicar o fruto desse amor (leia-se netos) e acompanhá-los crescendo saudáveis, santos, unidos e correndo pelo quintal da nossa casa?

Bom, parece simples, mas não é simplório. Parece pouco nobre, talvez porque seja tão comum a todos. Parece não dar nenhuma fama e reconhecimento público, e realmente não dá mesmo. Mas eu acredito sinceramente que nada pode fazer um homem mais feliz.

Penso nisso tudo agora, seguindo de volta pra casa, para que um dia eu não precise ver as coisas importantes que deixei para trás. Para que a vida que eu sempre quis não seja atropelada pelas escolhas erradas que fiz, como uma sombra na escuridão, pequena e distante no retrovisor.

Eu sigo viagem. Eu, meu cavalo, a carta do Rei me incumbindo da nobre tarefa de ser pai e um tesouro incalculável em meus braços. Sim, essa é a grande missão do guerreiro. Habilidoso ou não, sigo satisfeito em saber que já carrego comigo o grande prêmio da vida.

Essa crônica faz parte da série “Paternidade”:

1. A explosão da vida
2. Versos infantis dessa minha felicidade
3. As grandes conquistas do homem
4. As cegonhas não existem
5. O amor, um calção e gestos primitivos (cinco minutos antes de minha vida mudar)
6. Colos, cólicas, chavões e uma crônica de continuação
7. Na falta do que dizer
8. Pequenas lições
9. Doentes curando doentes
10. Primeiros passos
11. Sobre a velhice, rotinas e prioridades
12. Música para os meus ouvidos
13. E o futuro, a quem pertence?
14. Versos infantis 2 – alegria, tristeza e distração
15. De mãos dadas
16. Sobre ser pai no Dia dos Pais
17. A doce presença

Clichês

por Luiz Henrique Matos

Clichês. Algumas pessoas vivem em clichês, como se a vida fosse a letra de um pagode. Outras, são tocadas por eles e acreditam em frases prontas como guias para suas vidas, como se apresentações em PowerPoint fossem escrituras sagradas. Tem gente também que simplesmente não liga e passa pelos dias, livros, filmes e canções simplesmente sem notá-los. E a essa gente do meio, todos chamam de frios, tanto os pagodeiros de uma ponta quanto os outros, na ponta oposta da balança, que odeiam os clichês, que se arrepiam com uma citação óbvia, que fingem nem pensar assim de vez em quando, que preferem fazer de conta que nunca viram um capítulo da novela das oito ou que não se encantaram, lá na adolescência, com uma banda juvenil.

Mas o fato inegável e irrefutável é que sendo ou não algo tão obvio e simplório, a vida tem das coisas simples e das eruditas. Tem, no fundo no fundo, o sentimento comum de cada homem por aquilo que não se explica, pelos gestos instintivos e primitivos dos quais não podemos fugir e precisamos admitir que, sim, que toda mulher se arruma para encontrar o grande amor, se deslumbra com algum perfume, seja qual for, que se derrete ao receber uma flor. E que todo homem se impõe, se faz diferente e imponente para conquistar sua amada – ainda que sua imponência seja, no fim, não mostrar alguma sequer –, se orgulha dos bons amigos que ostenta, que precisa de algo pelo qual torcer e vibrar.

Não dá pra negar que todos temos um romance pelo qual choramos, um filme que sempre lembramos, uma canção para os momentos especiais. É fato incontestável que todo mundo se deslumbra diante da beleza natural do mundo, que quer um dia fazer alguma coisa pra mudar o rumo, que acha que noutros tempos as coisas eram melhores do que são agora.

Nas diferenças de estilos ou costumes, somos na essência iguais, ligados por esse sentimento semelhante – mas nos apegamos às mínimas diferenças para não admitir que somos tão parecidos. Todos temos, de alguma forma, o medo da morte, o sonho da vida abundante, a busca pela felicidade, a satisfação pacífica da alegria. Todos apelamos na hora da dor. Todos nós, cada um dos seres humanos, se rende e renuncia diante do amor.

É fato que todo homem precisa de Deus. Mas alguns vivem isso como se fosse a letra de um salmo em levada de samba, outros acreditam e se guiam pelas páginas do livro sagrado, tem gente que passa simplesmente sem pensar no assunto, ignorando o fato, as canções, o romance. E a essa gente do meio todos chamam de frios e insensíveis, tanto os crentes de uma ponta quanto os outros, no lado oposto da balança, que acham que isso tudo é clichê.

De mãos dadas

por Luiz Henrique Matos

De mãos dadas

De mãos dadas

Se tem algo que eu gosto é segurar a sua mão. Não importa a ocasião, ao atravessar a rua, sentados nos sofá, ajudando a fazer força enquanto ela usa o banheiro ou simplesmente para dirigi-la em alguma situação. Aquela mãozinha envolvida na minha me ajuda a ter a dimensão da sua dependência – e o meu desejo de sempre garantir que ela saiba disso. Os dedos finos, a pele delicada, a palma da mão morna e úmida de suor, a minha certeza de ter o que é meu por herança.

Por uma mão ela arrasta uma boneca, um copo de leite, um lápis de cor com a ponta gasta. Por outra ela se arrasta, segue cegamente os passos daquele em quem confia e lhe dirigirá os passos.

Não preciso dizer que ela tem crescido mais rápido do que eu gostaria. Daqui a pouco ela será maior do que eu, mais inteligente, independente e, apesar de mais magra – isso não é nada difícil dado o meu último indicador na balança da farmácia – eu já não conseguirei carregá-la no colo.Mas não importa o quanto ela cresça, acho que sempre terei a sensação de que sua mão cabe dentro da minha e que, desse jeito, continuarei sendo o “papá” a quem ela recorre quando precisa de algo, quando deseja brincar, quando quer descansar.

Gosto de não precisar ouvi-la dizer nada e apenas erguer os braços com a mão espalmada tendo a certeza de que eu retribuirei. Gosto de sentir os dedinhos se entrelaçando aos meus, me dando a sensação tátil do mesmo sangue que somos. Não gosto de vê-la com medo, chorando, mas corro e me precipito em segurá-la, mãos erguidas em minha direção, para que saiba que sempre, sempre estarei ali para ampará-la. Faço tudo para estar.

Imaginar minha cria sozinha, abandonada à sorte, provas e desafios que esse mundo descarrega sobre nós não é dos sentimentos mais agradáveis. Chego a pensar que gostaria de tê-la nos braços o tempo todo. Mas sei que não é possível e, por hora, imagino também que não é o mais apropriado. Ela precisa viver, vai precisar aprender, vai ter que se virar sozinha. O coração debate com a razão e preciso aprender, eu, que o melhor a ser feito é o que é melhor pra ela. Dura realidade.

Ela já toma algumas decisões sozinha. Já fala por si. Ela já sabe andar em alguns lugares que antes lhe pareciam difíceis. Agora ela pedala o velotrol e já não depende de mim para empurrá-la. Eu estufo peito, coruja, ela tem aprendido coisas comigo – e eu ainda não me toquei que “velotrol” é uma palavra que morreu na minha infância e muito provavelmente ela nunca usará na vida!

Mas ainda tenho coisas a ensinar e minha alegria é estar com ela para isso. Caminhando de mãos dadas, fico feliz em poder andar devagar, no seu ritmo e limitações, para lhe mostrar o caminho que eu vejo à frente. Falo da forma mais simples possível para garantir que ela me entenda. Conto histórias e imagino coisas para que o conhecimento lhe seja algo claro.

Quero percorrer ao seu lado as trilhas que já conheço. Quero que sua infância seja recheada das brincadeiras, da ingenuidade e da inocência que eu acho que teve a minha. Quero que saiba que ao contrario do que argumenta um dos seus tios, torcer para o São Paulo é definitivamente uma boa escolha. Quero que ela conheça o Deus amoroso que eu conheço e o ame mais do que eu. Quero aprender tabuada, logaritmos, pi, raiz quadrada e alguma coisa de física – que nunca me entraram na mente – para poder ajudá-la a estudar nas provas do colégio. Quero, a contragosto e sem a mínima pressa (fique isso bem claro e documentado), poder conduzi-la até o altar ao encontro do homem de sua vida e que se realizem, que descubram juntos o amor e a razão do que os dois nasceram para ser: um. Quero repartir minhas experiências e aprendizados para poupar-lhe esforço e sofrimento, mesmo sabendo que, assim como eu fiz um dia, ela vai me achar um tolo antiquado e ignorar a maioria desses conselhos – e eu não me sentirei vingado quando, depois de se dar conta, ela falar que eu tinha razão. Quero mesmo que ela tenha mais razão do que eu, porque isso também mostrará que foi mais longe do que o pai.

E só quero ainda, assim de forma egoísta mesmo, que ela saiba de tudo isso e quando afinal descobrir que não sou tão grande, forte, inteligente quanto pensou a vida toda e então souber que o herói de sua infância é um pobre homem falível e cheio de pecados, que ainda assim se sinta orgulhosa em me chamar de pai. E que eu estarei sempre ali.

É irônico, talvez, saber que um filho não conhece a fraqueza de seu pai até que os anos passem e finalmente os corações se encarem e tudo venha a tona.

É irônico, certamente, depois de alguns anos de convivência mais íntima, saber que o meu Pai, o Deus da minha vida, perfeito e soberano, tem justamente no amor a sua fraqueza. E sensibilizado pelos corações quebrantados, pelas atitudes rebeldes, pelo choro desesperado, pela rendição cega e confiante dos filhos, ele se move, ele se rende, se entrega, encarna, perdoa, carrega, refaz. Ele estende a mão.

O Deus amor é Pai.

E, bem, talvez ele não seja são-paulino, talvez nunca me explique pra que raios servem os logaritmos, talvez tenha me deixado só por um tempo para eu aprender a andar sozinho. Mas, quando estendo minha mão espalmada, morna e úmida de suor para o alto e diante dele estou… arrependido, dependente, grato, resignado, com medo ou simplesmente estou, posso sentir a sua mão, forte e também delicada, e os dedos entrelaçados aos meus me dando a segurança de sua presença e a afirmação eterna de que sou filho, fruto do seu sangue.