Aqueles pássaros

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aqueles pássaros todos
voando
com suas asas
sem limites
sem tempo

todos aqueles pássaros
apenas eles
com seus rumos
e uma jornada nessa estação
o tempo voa

aqueles sonhos todos
de uma vida toda
com liberdade e paz e felicidade
deslizando
como um sopro de Deus

apenas pássaros.

Isso aqui vai acabar

Um dia isso vai acabar. Quando digo, não me refiro ao todo, ao conjunto da obra, falo disso aqui, agora, eu deitado na cama de barriga pra cima e minha esposa grávida ao meu lado, e a Nina, a Lucy, o apartamento, tudo. A vida vai seguindo.

Isso aqui. Um lampejo de consciência sobre a brevidade da vida e o ineditismo de cada minuto, a finitude escancarada do tempo. Precisamos aproveitar.

Não falo de curtir a vida de forma inconsequente como se tudo pudesse terminar hoje. Falo de curtir, falo da vida, da consciência de que o tempo esvai. Que amanhã vamos olhar para trás e ter desejado fazer diferente.

Outro dia, o Dr. Pedro disse numa consulta: “Tudo o que um velho mais quer, Luiz Henrique — ele é uma das três pessoas que me chamam pelo nome composto — é ter os pés bons para poder andar por aí”.

Dois pés, funcionando. Não é pedir muito. Falamos tanto da busca pelo significado da vida, mas às vezes é só uma questão de ter uma vida para preencher de significado.

Semana passada eu lia sobre longevidade e o aumento da idade média da população e fazia contas pensando que seria muito bacana se eu pudesse — se tivesse condições financeiras — de me aposentar aos 50 anos.

Aos 50, ainda teria tempo de viajar e conhecer o mundo, pensei. Daria ainda para ter os dias livres para ler tantos livros quanto anoto para ler depois, escrever histórias novas e, quem sabe, aprender a tocar um instrumento. Eu poderia ser um cinquentão saudável se malhasse. Passearia com a Manú em parques e museus num dia de semana à tarde. E teríamos tempo, aí sim, finalmente, para curtir os filhos, nossas crianças…

…Que estarão com 24 e 17 anos de idade, respectivamente (e passear com os pais pelas ruas de São Paulo certamente não constará em suas listas de programas favoritos).

E terei trabalhado mais 17 anos cega e arduamente e juntado recursos e capital suficientes para lhes dar tudo aquilo que eles jamais me pediram, que jamais precisaram que lhes deixássemos como legado. Porque o que eles precisavam – e nós também – nós deixamos para depois.

A Manú me mandou um email há algum tempo com uma carta de Charles Bukowski para John Martin, seu primeiro editor, que certo dia lhe ofereceu 100 dólares por mês até o fim de sua vida se ele abandonasse seu emprego numa agência dos correios para se dedicar à escrita. Já com mais de 60 anos, ele escreve num dos trechos:

“Você conhece meu ditado antigo, ‘A escravidão nunca foi abolida, ela apenas foi estendida para incluir todas as cores’” (…) “Eles nunca pagam os escravos o suficiente para serem livres, apenas o suficiente para ficarem vivos e voltarem para o trabalho.”

E em outra parte: “E, o que machuca é a consistente diminuição de humanidade daqueles que lutam para manter seus trabalhos que não querem mas tem medo que as alternativas sejam piores. As pessoas simplesmente se esvaziam.” (…) “Seus filhos vão fazer o mesmo que eles fizeram?”

A gente tem esses lapsos de vez em quando. Tropeços da consciência, acho. O coração que se abre reverente a Deus e sua criação tão delicadamente bela por um instante e queremos respirar isso, contemplar, construir um altar para não esquecer jamais. Mas passa logo. Passa, sim. É só distrair, só ligar a TV, abrir um e-mail do trabalho e checar a lista de tarefas do dia seguinte.

Mas até lá, encaro o teto iluminado por uma nesga de luz que invade a persiana entreaberta. Procuro dormir. Quero sonhar. Um dia isso aqui vai acabar.

A história sem fim – o capítulo final de um livro que não termina

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(1 de agosto de 2014)

Às vezes, tudo parece voltar ao começo. A sensação de que certas experiências se repetem, a história passa pelos olhos e concluímos que vivemos de começar e encerrar ciclos.

Agora é noite. Já fiz minha ronda pela casa. Fui até a cozinha, enchi os três copos de água que sempre deixo sobre os criados-mudos de todos. Fiz um cafuné na Lucy com o pé enquanto cruzava a sala. Entrei no quarto da Nina, a cobri melhor, ajeitei seu cabelo, beijei sua testa e fiz uma prece. Então vim para a minha cama escrever.

Lá fora está frio e alguns pássaros fazem festa nas árvores do campo ao lado de casa. O dia entra em repouso enquanto, ao meu lado, observo por um instante a mulher da minha vida. Ela dorme. A sutileza de seus gestos, a respiração leve, o rosto delicado, os cabelos soltos meio bagunçados sobre o travesseiro de fronha branca que ela faz questão de comprar pelo toque e não pelo preço. Temos sido felizes. Dividimos tanto que, ao longo dos anos, já nem sabemos o que é um e o que é o outro. Mas quando a vejo desse jeito, lembro que ela ainda é aquela menina, a minha menina de 15 anos atrás, para quem paguei um lanche e levei ao cinema no primeiro encontro, dei a mão para atravessar a rua na saída e nunca mais soltei.

Hoje ela me deu a notícia de que está gravida outra vez.

Seremos quatro.

E se havia um desfecho ideal para esse ciclo, ei-lo aqui. Não vou negar que não pensei nisso. Há alguns anos, quando esses relatos sobre paternidade começaram a se tornar uma seqüência e a Manú começou a me incentivar para que os compilasse — talvez, num livro — comecei a pensar que seria bom demais se pudesse, um dia, poder escrever um último capítulo narrando a sensação da paternidade outra vez e testificar que a história se repete, que as sensações de repetem, que a emoção toda vem à tona outra vez e o amor se multiplica em nova medida instantaneamente em nosso peito por um ser humano que já existe mas que ainda nem conhecemos.

Sim, acontece tudo isso.

Sim, o amor se multiplica. Seremos pais, tudo outra vez, a sensação toda outra vez. Dentro dela, um coração novo já bate, a vida pulsa, um ser humano virá ao mundo. Mais um pedaço de nós, mais uma criação de Deus, outra criança para nos realizar e fazer a felicidade, a tão desejada felicidade, ser essa coisa que a gente até alcança com as mãos, até ampara com as mãos, embala no colo até.

Porque já parecia impossível e tínhamos na conta a resignação de que nosso sonho de um par de filhos correndo em volta da mesa talvez fosse grande demais. Mas quem foi que disse que a capacidade de Deus se limita à nossa visão? O Pai ultrapassa barreiras pelos filhos. Seus braços sempre estendidos, o amor que rasga a eternidade para nos alcançar. Somos pequenos demais.

Gratidão. Não posso expressar outro sentimento agora. Impossível imaginar estado de espírito melhor. E sei que não será como da outra vez. A Nina mudou completamente quem somos. Somos pessoas melhores graças a experiência de ter uma filha como ela. Porque tem sido ela, do seu jeito, que nos transformou em pessoas mais preocupadas com outro ser humano além de nós mesmos. Ser pai é ser um pouco mais de si duas vezes, é ser você mesmo e também o outro, é continuidade e desapego. É o nosso amor que se concretiza plenamente em um coração fora de nós.

Porque pais doam, pais protegem, ensinam, enxugam lágrimas e contam histórias. Pais acham bonito até o que é de gosto duvidoso, rolam no chão, brincam de boneca, pegam no colo, constroem mundos imaginários numa barraca no meio da sala. Pais comem os restos, dividem, abrem mão só para ver aquele rosto feliz. Pais disciplinam, falam duro e depois choram escondido, pais atrasam o passo para o filho acompanhar. Pais arrancam dentes moles, pais fazem corpo mole no jogo para ver o pequeno vencer, deixam de lado o futebol na TV para ser derrotado numa batalha de cócegas. Pais curam com beijinhos, pedem beijinhos o tempo todo, têm essa carência eterna do toque de sua cria. Pais saem mais cedo de uma reunião importante no escritório só para ver o ensaio-da-cantata-para-a-festa-de-encerramento-do-primeiro-bimestre-do-pré-primário e depois ficam até mais tarde no trabalho para garantir o pão na mesa toda manhã. Pais sonham, tem esperança, enfrentam e vencem os monstros, reais e imaginários, para que seus filhos trilhem caminhos mais serenos. Pais observam enquanto eles dormem, escutam até o que eles não falam e atendem as necessidades que eles não pedem. Pais acham graça nas semelhanças que tem com os filhos e carregam a convicção de que o universo se tornou um lugar melhor depois que aquela criatura abriu os olhos pela primeira vez e deu o ar de sua graça.

Deus é pai.

Me pego chorando nos cantos da casa, rindo a toa enquanto espero o elevador. Apaixonado que estou de repente por mais essa criança que ainda nem vi o rosto, ainda nem cheirei o pescoço, sequer toquei e sussurrei em seu ouvido sobre meu amor, na esperança que grave em sua mente virgem a primeira mensagem de seu pai.

Talvez seja um prêmio, essa coisa toda. É possível que Deus nos recompense pelas fraudas trocadas, pelas noites em branco e os fios de cabelos brancos, nos pagando com essa moeda tão cara, o amor. Ele faz multiplicar em nós um sentimento que não podemos comprar. E brota na gente esse negócio, surge e fica ali pra sempre. E não há dinheiro que pague, não há preço pelo qual se venda, não há valor que se exija. Porque quem ama, ganha um presente que doa. E quanto mais amor se dá, mais dele se tem. Sim, o amor multiplica. E filhos são a materialização disso.

Eu diria que já quero mais filhos, quero três ou quatro agora. Mas a Manú me mataria se eu falasse esse tipo de coisa.

Queremos que eles cheguem longe, que enxerguem além do que vimos, que caminhem além das linhas que cruzamos, que evitem os erros que comentemos, que não sofram tanto com uma derrota da Seleção, que escutem a Deus, que sonhem um mundo melhor e o transformem no que não fomos capazes de fazer. Os queremos tão bem que queremos que o mundo seja digno de sua existência.

Porque no fundo é isso. Pais e filhos, imagem e semelhança, Deus e o homem.

É claro que essa história não acaba.

E agora, essa criança, esse outro nós dois que vem para nos transformar mais uma vez em pessoas novas. Porque certamente não é a mesma experiência que se repete — já mudamos tanto desde então. É uma nova etapa, a família crescendo, a partir de agora seremos “nós e as crianças”. A árvore e seus frutos, que dão frutos, que darão frutos, que serão árvores.

A Nina, desde o minuto em que soube da notícia, ficou inquieta. Anda agitada pela casa, manifesta sua alegria incontida com abraços e gritinhos (ah, mulheres…), começou a tomar nota de uma possível lista de nomes para a irmã — por razões compreensíveis ela não considera outra hipótese de sexo — e se preocupa excessivamente com o estado de saúde e a barriga da mãe. Ansiosa, tardou a deitar essa noite.

Agora elas dormem. E eu sonho.

Sonho que veremos outra vez um bebê engatinhando pelo chão da sala. Aqueles pezinhos descalços marcando o assoalho com os primeiros passos, os choros, as primeiras palavras, o cheiro de creme Johnson’s no ar, as noites em branco, as fraldas aos quilos, as canções de ninar, os contos de fadas, as histórias inventadas, as “primeiras vezes” em tudo. Sonho também poder ser um pai mais seguro dessa vez e cometer menos falhas nesses dias que são o começo das vidas das pessoas que mais amo nessa Terra. E sonho também que a Galinha Pintadinha já tenha saído definitivamente de moda nos próximos oito meses (quem merece aquela tortura!?).

Tal como no princípio, continuo sonhando com o tempo em que envelheceremos lado a lado, de mãos dadas. Os dois heróis da vida cotidiana sentados junto à mesa, à espera das crianças para um almoço no domingo. E esse será o verdadeiro prêmio da caminhada toda, eu acho. O quintal verde, um balanço perdurado na árvore, passarinhos, a bagunça dos netos espalhada, um cachorro correndo, os braços abertos para quem volta ao lar. Eu sei que vou me vestir com a melhor roupa para esses momentos e vou usar o perfume que algum deles me deu de presente. Estaremos lá. Sim, porque sempre estaremos à sua espera.

E o tempo dando uma trégua e parando naqueles instantes, aqueles pequenos instantes, que definem nossa eternidade.

A vida só começou.


(capítulo final da série Imagem e Semelhança)

Aquela hora do dia

“O homem feliz é que faz coisas inúteis; o homem doente não dispõe de força suficiente para ficar sem fazer nada.”
– G. K. Chesterton

Tem aquela hora do dia, aos finais de semana, de que gosto especialmente. Em geral, são as tardes de sábado ou manhãs de domingo, em que estico no sofá com um livro nas mãos e, ignorando compromissos e tarefas, descanso um pouco. Era assim que eu estava outro dia quando ela chegou lá de fora. Ela nunca pede licença, nem pra ocupar um lugar, nem para atravessar nossa zona de conforto. Empurrou o livro que eu lia e sentou sobre minha barriga (sim, certo, há maciez e espaço de sobra ali para uma garotinha de sete anos).

– Pai, vamos conversar.

– Vamos, né. Do que você quer falar?

– Pai, por que a maldade existe?

Sete anos. As perguntas não apenas não diminuíram como começaram a ficar complexas. Se em algum momento os “porquês” eram saias justas que me faziam exercitar a capacidade de inventar respostas aleatórias agora as coisas ganharam um caráter mais existencialista.

Na milionésima fração de segundo que eu tinha entre começar a balbuciar algo e continuar sendo um sábio ou ficar em silêncio e perder de forma precoce e definitiva a moral com minha filha, me ocorreu que eu jamais conseguiria responder essa questão para uma criança porque simplesmente sou incapaz de responde-la para qualquer pessoa.

Mas partindo do pressuposto de que o silêncio não era uma opção e ela me encarava com aqueles olhinhos da mãe dela, recorri a uma saída pela esquerda e inventei uma historinha, com uma longuíííssima e detalhada introdução, até que ela se desse por satisfeita, se desse por cansada, me desse uma folga ou que eu tivesse uma epifania e pudesse ilustrar algum conceito real a respeito.

Depois, anotei a questão no bloco de notas do meu telefone celular. Às vezes, abro o aplicativo para escrever algum lembrete de conta para pagar e a interrogação me salta à tela. Por quê?

Eu poderia – talvez devesse – dizer para a Nina que eu não sabia. Geralmente, não tenho problema em admitir que não tenho respostas para as perguntas que ela me faz e aí proponho que procuremos juntos por uma definição. Mas, essa… essa eu não queria não saber. Essa certamente era uma dúvida que fazia eco em meu peito e para a qual nunca me dei o trabalho de ir a fundo numa busca.

Esqueça os conceitos, esqueça o que diz o dicionário, esqueça a definição bíblica da queda, esqueça os usuários ociosos do Yahoo! Respostas, a dualidade do ser humano e o livre arbítrio. Sei que temos explicações psicológicas, sei que temos escolhas, acredito em Deus e na redenção da alma. “Ame seu Deus. Ame seu próximo. Ame a si mesmo”, entendo o que Jesus disse, tento viver de acordo com essa lei e não conheço alguém que, cristão ou não, discorde disso como princípio elementar. Mas de alguma forma, isso ainda parece soar mais uma resposta do tipo “como” do que uma do tipo “por quê”. Porque a Nina não me perguntou sobre as pessoas que fazem o mal, os criminosos que julgamos por seus atos. Sem saber, ela me confrontou de algum jeito, com a maldade que nós praticamos. Apesar dos princípios morais que guiam nossas intenções, por que ainda agimos como agimos?

Nas grandes e nas pequenas coisas, qual é o nosso limite? Queremos menos corrupção no país, mas pagamos pelo gato na TV a cabo. Exigimos mais qualidade no transporte, mas furamos a fila do trânsito andando pelo acostamento. Temos medo da violência, mas achamos bonito pagar na mesma moeda e dizer que bandido bom é bandido morto. Reclamamos da qualidade da educação, mas não lemos.

O que é o bem, afinal?

* * *

Não muito tempo depois, numa manhã de sábado, eu estava na cozinha terminando o café, enquanto ela e a mãe brincavam com a Lucy, nossa cadela, lá na varanda. Então ela entrou, passou por mim, foi até a sala e voltou. Ao invés de voltar para a brincadeira, puxou uma cadeira e sentou à minha frente.

– Pai.

– Diga, filha – eu mastigava um pedaço de pão com manteiga.

– O que é o amor?

E como eu sou um idiota, fiz tudo errado. Teorizei.

Recorri a uma leitura antiga de um livro do C. S. Lewis guardado lá na estante e num canto obscuro da memória para ilustrar os três ou quatro tipos de sentimentos que traduzimos como amor. Julguei – acredite, julguei – ter tido algum sucesso e senti – acredite, senti – uma ponta de orgulho enquanto ela olhava atenta enquanto eu explicava.

No final, sentada na cadeira, os pés balançando sem tocar o chão, as mãos cruzadas entre as pernas, o olhar vago mirando algo lá fora, ela perguntou:

– Pai, amor é quando a gente coloca as necessidades dos outros antes das nossas necessidades, não é?

Talvez eu devesse ter ficado quieto, talvez o C. S. Lewis não precisasse ter escrito aquele livro todo – um tuíte funcionaria bem -, talvez exista muito mais a se aprender com as crianças do que julgamos.

* * *

E aí, chega aquela outra hora do dia de que gosto especialmente. É quando já dei por feitas quase todas as atividades rotineiras e a curva do dia começa a descer para seu desfecho. Chego do trabalho, deixo a mochila sobre uma cadeira, beijo a bochecha da filha, beijo a boca da esposa, faço um cafuné atrás da orelha da Lucy. O dia se encerra com o jantar, um banho (há um mês eu diria “longo e relaxante”, mas com o Sistema Cantareira clamando por economia, já não posso) e o passeio com a Lucy, nossa cadela, no gramado lá embaixo. É só então, quando viro a chave na porta finalmente, que as luzes diminuem e, uma a uma, se apagam. Aqui dentro e lá fora. Coloco a Nina para dormir, coloco a mãe da Nina para dormir e mando a Lucy ficar quieta e ir fazer o mesmo na varanda – cinco vezes, até ela obedecer. O silêncio toma seu espaço pouco a pouco. Os sons diminuem, só o que escuto é o ruído da rua, a sirene na moto do guarda noturno, os quero-queros cantando no parque ao fundo e uma torneira pingando no banheiro e que me esqueci de arrumar (Cantareira…).

Essa é a hora. O momento em que o mundo é meu. Leio um pouco, tomo notas, faço nada, faço uma prece. Faço a ronda pelos cômodos, vigio as meninas dormindo e me encho de gratidão.

O amor que sentimos, a Nina já sabe, não vive em nós. E isso basta para que eu queira ser uma pessoa melhor.

Então me dou conta de que talvez eu jamais consiga compreender o que é o mal e porque ele existe, mas me deito com a certeza de que, sob esse teto, está o maior bem com o qual eu jamais poderia sonhar.

Páscoa – O mergulho nas profundezas

O homem observa o céu a procura de Deus. Mas não o encontra. Ele procura no extremo, sonda o sobrenatural, arrisca-se nas mais grandiosas e místicas experiências, mas nem ali está Deus.

O homem perde-se em seus caminhos. Preso em um buraco, chega a cavar para tentar sair. Ele vaga, tolo, sobrevive, está sujo e fraco. Tenta encontrar, mas já nem sabe o quê.

Deus é um menino pobre.

No resgate da humanidade, Deus se embrenhou na escuridão. Por amor ao mundo, deu. Fez-se homem, na condição do homem e, como homem, libertou o homem.

Ele mergulhou nas profundezas, desceu no vazio da alma, na consciência perdida, na vastidão sem sentido. E acendeu uma luz, tomou o homem pela mão, lavou sua sujeira, o guiou pelo caminho.

Jesus resgatou o homem. O Deus homem é o homem perfeito. Com sua vida, revelou salvação. Com sua mensagem revelou propósito, com seus gestos revelou caráter, com seu serviço revelou um exemplo, com sua cruz deu redenção e, ressuscitando, a vida toda sem fim. Jesus Cristo revela o amor do Pai.

O novo homem observa Jesus à procura de Deus. E lá está. O homem contempla o céu.

“Porque Deus tanto amou o mundo que deu o seu Filho Unigênito , para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna. Pois Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para condenar o mundo, mas para que este fosse salvo por meio dele.” (João 3:16-17)

Entre quatro paredes

Gosto dos pequenos momentos, dos gestos tão repetidos que já são impensados. Gosto quando, por um instante, me sinto capaz e me torno sensível para contemplar a beleza intrínseca dos momentos do cotidiano, tão do cotidiano, que já quase se traduzem em espaço branco nas lembranças.

Mas são nesses que residem toda graça natural da vida, neles está o significado em grande parte. São dessas horas que se recheiam as memórias no futuro. E poder contempla-los, acho, é viver aquela saudade agora.

Escovar os dentes lado a lado na pia do banheiro, escutar um grilo cantando lá fora, escutar a nossa música tocando no rádio, escutar – e reclamar – do vizinho barulhento. Ver nascer o sol às seis, ver nascer um dente novo na Nina, ver que as legendas da TV estão ficando a cada dia mais embaçadas. Deixar um copo d’água para o outro sobre o criado-mudo, brincar com a filha no chão da sala, embalar a dança sincronizada na cozinha apertada durante as refeições – um pra lá, dois pra cá, entre o abre e fecha das portas de armários, gavetas, forno e geladeira para tirar e colocar tudo sobre a mesa. A troca de olhares, a troca dos lençóis, a troca de roupa, a troca de toques, de presentes, de recados, de afeto. A troca de qualquer coisa por essa vida juntos.

Entre quatro paredes o mundo todo se faz, a vida inteira acontece. Enquanto a Terra gira, a felicidade se revela, as pessoas constroem, Deus se materializa. O homem se encontra.

Resgate

Havia um tempo em que a fé era simples, em que a oração era simples, acreditar era simples.

Havia um tempo em que a comunhão era plena, em que cada suspiro era adoração, existir era contemplar.

Havia um tempo do primeiro amor, das primeiras experiências, em que tudo era novidade e encanto.

Havia um tempo em que as escrituras eram sagradas, em que a devoção era constante, Deus era tudo em todos.

Havia um tempo em que éramos reverentes, em que obedecíamos por amor, escravos da graça.

Havia tempo que esse sentimento não vinha à tona, que o peito já não rasgava em arrependimento, as lágrimas brotavam em gratidão e os lábios se abriam em louvor.

Há sempre tempo.

Sete anos e outra vez a eternidade como tema

Seguir a vida dos outros. Se tem uma coisa que o advento da internet trouxe para a vida urbana moderna e que era, até então, privilégio das pequenas cidades e de tempos muito anteriores à própria rede, foi a possibilidade de saber o que se passa na vida das pessoas com quem temos ou tivemos algum vínculo.

Sem julgamento de valor. Especialmente as redes sociais, como o Orkut (até ontem) e o Facebook (hoje e sabe-se lá até quando), que ajudam na busca por parentes distantes, colegas de colégio, amigos de infância e toda uma variedade de pessoas com quem possivelmente não trocaremos um aperto de mãos tão cedo, mas de quem gostamos de saber o que comeram no almoço, onde passaram as últimas férias, o que pensam do trânsito e por quem torcem no futebol, nas eleições, nas manifestações, nas enquetes de reality show e até nas competições de curling das Olimpíadas de Inverno.

Corro disso, confesso. Não é esse interesse pela rotina que me atrai. Não gosto de ficar na janela, olhando pra rua e tentando entender os fatos. Sou nostálgico demais pra isso. Em geral, me distraio, olho para o céu, vejo alguém passando pela timeline e me perco nas lembranças do passado. Admito que minha curiosidade digital é, em certa parte, alimentada pelo que não vejo. Me concentro pensando sobre o espaço de tempo entre a época em que, há 10 ou 20 anos, convivi com aquelas pessoas e sobre o agora, quando os revejo como adultos.

Quem eles se tornaram, essas pessoas? Era pra ser isso mesmo? O menino que empinava pipas, o menino que contava piadas, o que aprontava na escola, a menina que se vestia estranho, a menina mais inteligente da classe, o menino que tinha um videogame em casa – o herói da rua – e o menino que era dono da bola. Fico tentando imaginar se eles se tornaram o que gostariam de ser.

O fato é que, em algum momento da vida, os planos e projetos passam a ocupar espaço em nossas mentes. Talvez exista uma fase na infância em que tomamos consciência do futuro, de que há perspectiva e algo a se projetar. Talvez, quando adultos abordam crianças com a insistente pergunta: “O que você quer ser quando crescer?”.

Crianças não projetam futuro, não fazem planos. Crianças são o que são agora e afirmam querer ser para sempre aquilo que mais as anima nesse instante exato. E você sabe que não estou querendo fugir das minhas responsabilidades como pai e cidadão adulto, mas acredito que tem uma beleza nisso tudo, há graça nessa inocência. Elas não andam ansiosas.

Até que o negócio todo de “ser alguém na vida”, atender uma vocação e perseguir um certo padrão de sucesso comece a ser incutido. E aí, o menino que soltava pipas e queria ser bombeiro começa a ter que pensar no tipo de carreira pretende seguir.

E aí, crescemos. Já estamos mais velhos do que achávamos que seríamos quando achávamos que estaríamos velhos. Será que nos tornamos a resposta que dávamos?

É uma pergunta retórica.

Não que deveríamos. Acho meus sonhos de agora bem melhores do que ser o camisa 3 do São Paulo FC, o Rocky Balboa ou vocalista de uma banda.

Circunstâncias que nos afetam, fatos que nos afetam, a vida que segue o rumo sem que nos preocupemos em ser protagonistas e donos de nossas escolhas. Às vezes, somos vítimas, não temos opção. Mas outras tantas, simplesmente nos conformamos.

Tenho claras para mim e ainda frescas na memória as cenas e momentos da infância. E confesso que guardo em mim o sentimento do menino. Lembro dos medos, dos sonhos, da impressão que o mundo me causava. Lembro que as preocupações eram tão pequenas. Sei que sou continuação dessa existência, consequência das escolhas que fiz. Hoje, carrego uma tatuagem desbotada na perna, barba no rosto, 93 quilos (oscilando) e fios de cabelos brancos brotando em ritmo preocupante. Mas ainda alimento sonhos. Ainda tenho em mim aquele garoto de sete anos.

Daqui alguns dias a minha filha fará sete anos.

E, assustado com a impiedade do tempo, me pergunto como estaremos, a Manú e eu, quando a Nina tiver nossa idade?

Ela dorme abraçada com um coelho e uma tartaruga. Dois bichinhos de pelúcia, não dos mais bonitos, que compramos numa viagem recente de férias. E às vezes, como ainda há pouco, me pego pensando em como ela já está grande, nas coisas que já faz sozinha, nos argumentos e explicações que acredita serem plenamente factíveis para os pedidos mais absurdos, nas pequenas cartas e bilhetes que agora deixa sobre meu criado-mudo, na sua voz lá do quarto, lendo alto os primeiros livros de histórias que alimentam sua imaginação.

Então, só preciso observá-la dormindo por um instante, só ter que pegá-la no colo adormecida no sofá para levá-la para o quarto… e ver toda sua inocência, sua graça, a minha dependência, a nossa pequenez diante da grandeza da vida.

Não pode ser só para agora. Nessas nobres horas, tudo adquire uma dimensão maior. Não consigo acreditar na finitude do ser que somos se resumindo em matéria, num pacote de átomos que existe até que tudo acabe.

E sei que não entendo seus motivos na maior parte das vezes, mas agradeço a Deus. Eu me rendo, reconheço. Cresce em mim a reverência ao eterno que se fez finito, ao Deus que se fez homem, ao Criador que se diz pai. Que traçou a vida com essa riqueza de detalhes e a singeleza necessária para que pudéssemos compreender que está em nós e na intimidade dos nossos lares, a habitação do altíssimo. O universo inteiro numa canção de ninar, a glória divina numa brincadeira no chão da sala.

Aquieto-me quanto ao futuro. Já não importa o que serei ou como estarão meus amigos de infância daqui outros 30 anos. Há beleza ao redor, há grandeza em cada história. Seja a vida fugaz, o dia de hoje é pouco, sei que tudo vai tão rápido. De novo, aquieto, observo minha criança dormindo. A eternidade precisa ser contemplada.

Fé na estrada

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As mudanças quase sempre parecem sombras novas e desafiadoras no horizonte. Mas só até o instante em que, refletindo sobre o momento, nos deparamos com fragmentos do passado recente que nos lembram que já vivemos essa sensação, essa mesma situação, pouquíssimo tempo atrás. Ainda ontem, circunstancialmente, lembrei de algo que anotei há pouco mais de um ano:

Sentado no quarto escuro, olho para a porta entreaberta, sondo a luz que vem da sala pelo corredor e admito uma ponta de medo ao notar a sombra do futuro que se projeta adiante. Bendita incerteza, quando parece que as coisas vão se acomodar e tomar um rumo finalmente, percebo que preciso reaprender a ser pai, ser marido, profissional, a encarar desafios diferentes outra vez.

Mudanças. Às vezes, precisamos mesmo que elas aconteçam para que nos desapeguemos. Alguém deve tirar nosso apoio, de supetão, de repente, para que a gente possa acordar, para que um novo passo seja dado.

E aí, sem mais, vem tudo aí de novo.

Orações não respondidas

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Era um dia desses de ficar à toa em casa e eu arrumava qualquer coisa num canto quando ouvi a Nina me chamar lá do quarto. Fui ver o que era e ela estava quieta na cama, meio amuada e reclamava de uma dor de cabeça. Dava pena. Queria fazer algo para ajudar mas não gostaria de, logo de pronto, dar algum remédio. Sugeri então que fizéssemos uma oração juntos e que ela esperasse um pouco ali deitada.

Minutos depois, ela saiu da cama e foi até onde eu estava dizendo que a dor havia passado. Animado com a oportunidade de ensinar para minha filha os sólidos fundamentos de fé que tantas vezes me são fracos, comecei o discurso:

– Está vendo, filha? Quando a gente ora, Deus nos responde.

– É, pai.

Três segundos de silêncio até ela disparar:

– Mas, pai, eu já pedi um montão de vezes para Deus me dar asas e ele nunca me respondeu.

– Asas?

– É, para eu poder voar. E pedi também pra eu poder mandar um dia mas ele não deixa.

– Mandar?

– É. Poder mandar em você e na mamãe, só um dia.

Orações não respondidas.

Certo domingo, um pastor muito querido da nossa comunidade nos visitou para ensinar e, dentre tantas coisas marcantes, disse algo que lembro com frequência de repetir para os outros: “Quando Deus nos diz não, ele não está nos privando, está nos protegendo”.

A Nina pede para comer mais um prato de sobremesa, ela pede para ficar acordada até mais tarde, ela quer ter amigas e amigas por perto todos os dias e noites, quer faltar na escola às vezes, ela quer ver TV além do tempo combinado, quer brincar, quer mais uma, só mais uma história antes de dormir. Ela quer providências inofensivas e também quer feitos inalcançáveis. Em geral, me pede coisas que posso dar. Mas em muitos casos eu preciso dizer não.

Às vezes, ela me faz perguntas que não tenho condições de responder, ela quer motivos quando eles não existem, quer respostas que não sou capaz de lhe dar ou que, como adulto, sei que ela ainda não está preparada para ouvir.

E não é que eu tenha qualquer satisfação em ver minha filha frustrada. Sou tentado, quase todas as vezes, a atendê-la só para ter de volta aquele sorriso, um abraço e o beijo de gratidão na bochecha. Entretanto, deixar de atender o seu pedido não significa uma privação, mas cuidado. Minha negativa para algo que lhe parece tão legítimo e saudável, é porque eu sei que o melhor para ela, certas horas, é apagar a luz e ir dormir, é não abusar do açúcar, é não receber uma satisfação.

Quase sempre adoro esse conceito. Quase sempre. Eu o detesto quando sinto seu efeito sobre mim. Não que Deus me negue coisas de forma taxativa, mas com frequência chego a pensar que ele não parece ter tanta certeza do que vai responder. A espera me parece insuportável, eu tento dizer: “Na dúvida, Deus, que tal fazer o que te pedi e depois a gente vê como é que fica?”. Mas minha sugestão nunca foi aceita.

Das coisas que peço, tão legítimas, não peço dinheiro, não desejo bens ou futilidades, nada que possa me favorecer ou prejudicar alguém. Em grande parte, em minhas orações mais repetidas e íntimas, só quero respostas que dizem respeito a mim e minha família. No fundo, eu gostaria é de entender. Gostaria de discernir os caminhos, de ter revelações grandiosas sobre os próximos passos que preciso dar na vida. Há tantas escolhas a serem feitas. Queria saber por que certas coisas aconteceram de um jeito e não de outro. Por quê pessoas fazem o que fazem? Por quê existe o mal? Por quê, como disse Paulo, o bem que eu desejo fazer eu não faço e o mal que não gostaria de fazer, acabo fazendo? Por quê uma doença, uma tragédia, tal fatalidade, justo com aquela pessoa? Por quê justo comigo?

De circunstâncias a questões existenciais, de um prato de comida pedido por um pai de família às asas desejadas pela Nina, existem orações que nos parecem sem respostas.

Não acho, porém, que Deus se cale, não acredito em seu consentimento com o sofrimento e a incerteza. Tenho para mim que o Deus Pai responde, fala, se relaciona conosco e expressa o tempo inteiro a sua opinião. E quando não posso ouvi-lo, é que surdo, tão surdo, tão insensível acabei me tornando que já não percebo. Dirijo minha busca na direção errada, me expresso sem permitir que ele fale, desabo tentando decifrar enigmas quando sua resposta, sua voz, está bem na minha frente, está na paisagem, em alguém, dentro de mim. Não existe oração sem resposta.

Porque ele fala aos ventos e através dos ventos se manifesta, escancara, faz o mundo gritar sua verdade, tanto e tão alto. Porque ele fala no íntimo e no coração se manifesta, revela, faz nossa consciência perceber sua vontade, tanto e tão perto.

Porque pais querem ensinar seus filhos a buscarem por resoluções e não que as tenham de mão beijada. A Nina quer voar, quer saber porque precisa ir dormir tão cedo, eu quero que ela aprenda a fazer perguntas, que aguce os sentidos e explore o redor. Ela quer um par de patins como presente de Natal, eu quero que ela esteja sensível para perceber e ouvir o sentido de sua existência, que compreenda o amor que a mãe e eu sentimos por ela e que descubra que existe um amor ainda maior em Deus que ela pode experimentar. Ela quer tomar dois sorvetes depois do almoço, quer poder mandar em nós por um dia, eu oro para que ela seja inquieta e determinada em sua busca mas, ao mesmo tempo, seja humilde para compreender que o “não” de um pai é cuidado e não castigo.

Outro dia, ela fazia uma oração antes de se deitar enquanto eu recostava na cabeceira da cama até que adormecesse. Meu pensamento ia longe, confesso, distante um pouco da oração usual que ela fazia. Até que ela concluiu a prece pedindo:

– E Deus, por favor, mude o coração dos vilões.

Crianças. É possível que ela não lembre do que pediu no futuro. É possível que ela não lembre do que pediu hoje. Pode ser que nunca ouça claramente uma resposta para sua oração, mas em sua fé infantil sei que ela acredita que acontecerá.

Não tenho respostas tampouco. Como pai ou como filho, também acredito. Ela quer um mundo sem maldade, ela pede que o bem triunfe sobre o mal e que os homens perdidos encontrem redenção em Deus.

Ela tem asas.

Eu oro. Recostado na cama, cerro os olhos, junto as palmas das mãos, baixo minha fronte e peço que um dia possa ver que ela será parte dessa resposta.

No trem

trem

No trem. Pessoas entram e saem. Pessoas conversam, pessoas lêem, pessoas observam, pessoas escutam música em seus fones de ouvido, escutam música sem fones de ouvido, pessoas cutucam e cutucam e cutucam e cutucam seus celulares, pessoas em pé, sentadas, apertadas, pessoas falam ao telefone, pessoas seguem em alguma direção, pessoas são levadas a qualquer direção, pessoas saem e pessoas entram, pessoas surfam no teto, pessoas vendem coisas a preços irrisórios, pessoas pagam, pessoas olham pela janela, se jogam pela janela, pessoas chegam de mãos dadas, pessoas se despedem, pessoas saem e pessoas entram, se aglomeram, pessoas dormem, pensam na vida, pessoas passam do ponto, pessoas jogam vídeo-game, pessoas comem um sanduíche, uma bala, uma maçã, pessoas de gravata, pessoas de chinelo, pessoas entram, pessoas chegam ao destino. Eu saio.

A cena global

Crédito da foto: A. Strakey (Creative Commons)

Crédito da foto: A. Strakey (Creative Commons)

É um senhor, deve ter seus 70 anos. Usa um uniforme preto sobrando largo num corpo de 1,60 e passa todos os dias lá pelo andar recolhendo o lixo reciclável acumulado embaixo das mesas.

Ele gosta de discutir o noticiário internacional. Começou há coisa de três ou quatro semanas, quando chegou de manhã, eu já estava em minha mesa trabalhando e lançou a pauta:

– Os Estados Unidos sempre fizeram essas coisas, agora é que vão reclamar?

– Como? – às oito da manhã, tem pouca coisa que eu consigo absorver assim de cara. Naquele dia especialmente, confesso que não esperava a abordagem.

– Espionagem.

– Ahn. Verdade.

Nunca me chama, ele chega e aborda, surge detrás de uma baia com o assunto pronto. O boné baixo esconde os olhos que nunca encaram ninguém. Anda torto, mancando, arrastando o saco preto onde acumula os papeis.

A conversa foi ganhando ares mais complexos, ao ponto que passei a correr os olhos na editoria internacional do jornal pela manhã com mais atenção para poder discutir as questões à altura. Ele não quer falar das mazelas da cidade, não toca na agenda cultural, jamais fala de futebol, o negócio é a política externa.

E só puxa papo quando estou sozinho. Se tem mais alguém por perto, passa calado, nem responde ao “bom dia” de quem quer que o cumprimente, murmura alguma coisa e segue invisível, queixo colado no peito, peso apoiado nas costas.

Ontem, só tinha eu no andar. Estava respondendo e-mails triviais e ele me veio com a crise no Oriente Médio:

– E a Síria, hein? Vai virar a nova Coreia do Norte?

– Pois é, rapaz. Pena daquele povo. Imagina? Não dá pra deixar o Assad fazer o que está fazendo.

– Mas olha o coreano, falou um monte, ameaçou com bomba nuclear e agora ninguém toca mais no assunto. Vai ser assim na Síria também. Não pode, alguém tem que fazer alguma coisa lá.

Então eu fiz a lição de casa e devolvi:

– Mas isso é uma demagogia danada. A mídia só coloca isso na pauta mas a mesma coisa acontece em outros lugares também. Os EUA ficam levantando essa bola porque tem interesse na região. Mas e a África? Tem ditador lá dizimando a população lá há quanto tempo?

– Arre! Da África eu escuto desde criança. Já tem 30, 40 anos e ninguém faz nada, ninguém intervém!

Então vai embora, ele nunca para pra conversar. Começa a falar enquanto chega, passa recolhendo as sobras e tal como chegou, vai. Não sei seu nome, ele não sabe o meu. No peito, não leva um crachá, só o logotipo da empresa bordado em vermelho: Viking.

Suas preocupações passam ao largo da pequenez cotidiana, estão longe da crise do meu tricolor, bem distantes da cotação do dólar. Ele leva sobre os ombros um saco com pilhas de lixo de papel e os problemas complexos do mundo. Ele tem prioridades claras. Só está de olho no que precisa ser reciclado.

Tamanho família

Outro dia, era um domingo à noite, fomos ao shopping jantar. Eu confesso que acho as noites de domingo algo meio deprimentes, como também acho deprimentes shopping centers depois que as lojas estão fechadas e os corredores ficam meio escuros, com as vitrines a meia-luz. Mas foi que deu uma vontade em família de comer hambúrguer e fomos saciar o desejo em uma das lanchonetes aqui perto de casa.

Estava frio e o lugar vazio. Enquanto eu esperava na fila para fazer o pedido, a Manú e a Nina foram guardar uma mesa. Eu mal havia dado um passo e sacado o celular pra jogar uma coisa qualquer e já vi a minha filha passar correndo atrás de mim acompanhada de alguma nova amiga com quem brincava. Acho impressionante a capacidade das crianças de descobrirem afinidade com alguém só porque a pessoa tem basicamente a mesma faixa etária. Seria como se qualquer homem de 32 anos estivesse imediatamente apto para, sei lá, vir em casa assistir a um jogo do São Paulo na TV. Se perguntasse, talvez as duas nem soubessem o nome uma da outra, mas já tinham uma brincadeira preferida juntas e isso bastava.

Quando me sentei à mesa com as meninas para comer, a amiguinha nova da Nina ficou ali ao lado fazendo companhia. Ela já havia jantado e contou, quando lhe perguntamos o que fazia ali, que estava no seu dia de passeio com o pai. Esperei uns minutos e olhei ao redor para tentar adivinhar. Não foi difícil, a praça de alimentação estava quase vazia e poucas mesas atrás de nós um sujeito moreno, de meia-idade, jaqueta jeans, cabelo ralo e rugas nos olhos, estava sentando enquanto segurava uma pequena mochila cor-de-rosa entre os braços e fitava a menina com um sorriso. Acenei com a cabeça, ele retribuiu breve e voltou a observar as meninas que, naquela hora, já corriam pelo corredor outra vez. Ele tinha um olhar melancólico, tinha um cansaço de sei lá o quê, ele tinha um dia na semana para estar com a filha e um passeio num shopping de periferia aos domingos talvez fosse o melhor que ele tinha para oferecer a ela.

Talvez ela fosse o melhor fruto da vida que ele tentou construir um dia. Talvez seja a única lembrança concreta do que ele já teve de melhor. Não sei – não me cabem – as razões que separaram aquela família. Se o homem “pisou na bola”, se a mulher o deixou por outro, se descobriram diferenças irreconciliáveis e já não podiam ter uma vida em comum. Sei que me cortou o peito ver a forma como ele admirava a garota e, depois, o seu andar meio curvado, pendurando a mochila e umas sacolas num dos braços e segurando uma bola colorida no outro enquanto se esforçava para caminhar de mãos dadas com a menina.

Na volta pra casa aquela noite, além de um arrependimento brutal por ter ingerido um combo cheeseburger-batata-refrigerante-tamanho-super-família de forma absolutamente irresponsável, eu voltei no carro em silêncio pensando no homem. Nem troquei palavras com o sujeito, mas me passou pela cabeça naquele dia e às vezes me volta ao pensamento, a angústia de imaginar os dias todos, mesmo esses mais comuns, longe da minha família. Amo apaixonadamente a minha esposa, adoro minha filha e, a medida que o tempo passa, vamos construindo e acumulando tanta coisa juntos – viagens, refeições, experiências, livros, apartamentos, aprendizados, um cachorro – que já nem dá pra saber ao certo o que nessa história é a parte de cada um de nós. Se é que há mesmo uma parte, se é que tem algo que deva ser enxergado de forma isolada, se é que existe mais de uma história aí de fato. No fundo, eu acho que é isso. Somos só nós, andando de mãos dadas.

“Desfrute a vida com a mulher a quem você ama, todos os dias desta vida sem sentido que Deus dá a você debaixo do sol; todos os seus dias sem sentido! Pois essa é a sua recompensa na vida pelo seu árduo trabalho debaixo do sol.” (Eclesiastes 9:9).

Cenas domésticas – A agente literária

– O que você tá fazendo, pai?
– Estou escrevendo uma história.
– Pra quem?
– Para as pessoas.
– E pra mim?
– Também, filha.
– E é legal?
– Ah, não sei, acho que sim. Tomara.
– Você que tá inventando, pai! Você é que sabe se é legal ou não!

O engano da felicidade

Banksy

Banksy

Está nos comerciais de TV, está nos livros, está nas estampas de camisetas descoladas, nos posts compartilhados pelo Facebook e nas reportagens especiais do Globo Repórter nas noites de sexta. A felicidade retumbante é só o que desejamos, perseguimos e refletimos com a camada da nossa vida que expomos ao mundo.

Mas é um engano danado isso aí.

Outro dia, véspera de uma data comemorativa qualquer, recebi por email o link para um vídeo novo do Google. Um comercial lindíssimo, daqueles com marido e esposa trocando um com o outro momentos singelos da vida a dois. Uma trilha sonora charmosa ao fundo, aquela edição com cortes de vídeo-clipe e um filtro, uma película sobre a imagem que quisera eu ter uns óculos para só enxergar o mundo com aqueles tons. Era a felicidade, o ideal dela estampado num vídeo de 30 segundos que queria me dizer que eu teria tudo aquilo se… se, juro por Deus, se eu instalasse um software para navegar na internet. Sim, a vida é mais bonita e cheia de sorrisos sinceros de uma linda esposa quando você usa o Chrome para acessar seus emails ou o site do banco para pagar uma conta.

Mas o discurso que nos fazem é tudo o que queremos ver. Já não se vendem mais produtos nos comerciais. Quem, afinal, quer saber sobre o índice de gordura hidrogenada e o sabor pasteurizado de um pote de margarina? “Pra quê vender margarina?” – pensa o publicitário enquanto morde a tampinha da sua Bic e pensa em algo genial, segundo seu próprio julgamento genial. Muito melhor é vender o sonho de um lar aprazível, os primeiros raios de sol entrando pela janela da cozinha, a família reunida em torno da mesa, um labrador saltitando por perto e a mulher maquiada servindo uma torrada na boquinha do marido engravatado. Sim, você compra 500 miligramas de creme vegetal e leva junto a felicidade para a geladeira da sua casa.

Automóveis, cartões de crédito, lâminas de barbear, cerveja, apartamentos. As mensagens são nada originais: compre felicidade.

Porque vivemos na era das sensações. E compramos coisas não mais para usar, mas para “sentir” algo. Como se a vida fosse assim, de fato. Como se mais nada importasse. O negócio todo é ser feliz. Queremos um estado de espírito, queremos ser enganados.

Já nem é preciso ser muito esperto para afirmar que essa busca por uma sensação de realização plena da alma soa meio artificial. As carinhas felizes com piscadelas que nos enviamos ao final de mensagens ;-) essa coisa do “felicidário” que andam circulando por aí, o lance do Butão com seu indicador nacional de Felicidade Interna Bruta, tudo isso vem dando nas ventas.

É implicância minha achar que estamos exagerando? Essa busca toda não vai provocar em nossa geração – e na dos nossos filhos – o sentimento de que qualquer experiência contrária, as frustrações e dores, são repulsivas, incomuns e devem ser evitadas a todo custo? Qualquer contrariedade deve ser rejeitada ou esquecida. Como se não pudéssemos aprender nada com isso. Tropeços, dores e frustrações não nos ensinam tanto ou mais do que momentos de júbilo?

A vida, esse todo da existência, é recheado de imprevistos, de circunstâncias e fatos que, gostemos ou não, compõem o que fomos e nos tornamos. É feita de altos e baixos. E são os pontos baixos que fazem os altos ficarem maiores quando então neles.

No relacionamento que procura estabelecer com o homem, Deus jamais promete essa infinita felicidade. Não há um conto de fadas em que habitaremos de forma encantada, cercados de passarinhos em coro, sem dor, sem decepções, sem uma topada com o mindinho do pé na quina de uma penteadeira.

Não, Deus não promete essa sensação de torpor ou uma anestesia para a vida. Isso é justamente o oposto do seu plano, de que tenhamos uma existência livre e rica. Ele não promete um estado de espírito, promete seu Espírito e uma nova perspectiva nos orientando para enxergar o mundo.

Porque a suprema felicidade a que, sim, podemos almejar, é que Deus promete estar presente. E isso nos basta, nisso não há engano. Não é um comercial, não é margarina, um sorvete ou espuma. Não é uma família sorridente ao redor da mesa. Nada efêmero. Essa presença é a promessa inabalável do puro amor e seu reino, nos inspirando para viver a vida como ela é e como deveria ser.

O espelho

“Quando nos livramos do ego, estamos livres para ver o divino”
-Karen Armostrong

Tem dias, em que por mais que eu me esforce, não consigo encontrar alguém ou algo em que eu possa colocar a culpa por meus problemas. Eu olho no espelho e o vidro está rachado. Preciso reconhecer que fracassei. Admitir que a culpa é toda minha, olhar aquele reflexo torto e fitar a dura realidade nos olhos. Perdi uma, ou mais uma.

Imperfeito, incompleto, pecador. Toda vez que me deparo com a frustração de não poder fazer algo contando apenas com minhas forças, caio abraçado com meu orgulho. A consciência de que não sou auto-suficiente é o choque de humildade de que necessito para reconhecer que preciso de ajuda. No fundo do poço, expelidas todas as camadas de superficialidade, eu me revelo. Resta pouco ou quase nada do que é rótulo, cai a máscara, sobra a essência.

E talvez a surpresa mais escandalosa seja, na hora inglória, olhar em frente e enxergar a imagem do Cristo. A notícia pungente é ter que encarar o fato de que, em meu resgate, Deus não me leva de volta a ponto de conforto algum onde eu gostaria de estar. Ele se rebaixa, se acomoda. Deus já estava ali.

Toda vez que me humilho e me sinto inferior à condição do mundo, estou, na verdade, me aproximando da imagem de Jesus. É controverso, mas o padrão de sucesso dele é assim. O Deus que vira homem, o Messias que caminha com ladrões e prostitutas, o Mestre que lava os pés dos seus discípulos, o Senhor que a todos torna e trata como iguais. É na simplicidade da alma que ele me encontra, na essência do que fui criado para ser, sem as cascas, que ele se revela, me cura e me guia de volta pelo Caminho.

Ficamos cegos às vezes, insensíveis. O fato é que Deus nos dá sua presença e temos tanto dele o tempo todo – nos eventos cotidianos e na natureza – que já não nos damos conta do deserto cruel que seria a sua ausência. Não sabemos o que é sentir fome. No entanto, quando nos deparamos com o que somos de fato, como num espelho, entendemos nossa natureza.

Precisamos reaprender a viver carentes da influência de Deus. Com fome, com sede, ansiosos por aprender e ter mais da sua pureza influenciando nossas mentes.

“Ele tinha a natureza de Deus, mas não tentou ficar igual a Deus. Pelo contrário, ele abriu mão de tudo o que era seu e tomou a natureza de servo, tornando-se assim igual aos seres humanos. E, vivendo a vida comum de um ser humano, ele foi humilde e obedeceu a Deus até a morte – morte de cruz.” (Filipenses 2:6-8)

Jesus veio ao mundo e nos mostrou que é debaixo para cima que se olha para o céu. E é lavando os pés que nos relacionamos com o próximo. Cada vez que enxergo o reflexo da minha fragilidade e me reconheço nele, me aproximo, me preencho de seu Espírito e sou renovado. Porque a consciência de que dependo totalmente é a revelação de que só sou, de fato, quando estou em Deus.

“Portanto, eu me gloriarei ainda mais alegremente em minhas fraquezas, para que o poder de Cristo repouse em mim. Por isso, por amor de Cristo, regozijo-me nas fraquezas, nos insultos, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias. Pois, quando sou fraco é que sou forte.” (2 Coríntios 12:9-10)


(Crônica publicada no site carisma.com.br)

São 20 centavos, sim

Caro amigo,

Vinte centavos não é pouco dinheiro. Talvez na sua – ok, nossa – perspectiva, não faça falta pensar nessa merreca diante do rombo das tantas outras despesas que nos assaltam cotidianamente. Mas não é preciso ir muito longe para inverter essa ótica.

No Brasil, segundo o IBGE, temos 8,5% da população vivendo na faixa de extrema pobreza. Em grana, isso quer dizer que 16,27 milhões de pessoas vivem com renda mensal entre zero e 70 reais todos os meses (ou 2,33 reais por dia – muito menos do que uma passagem de ônibus). Isso, nossos compatriotas, nossos semelhantes, aqueles a quem chamamos irmãos.

Mas, como já temos feito há muito, vamos continuar ignorando esse fato por mais um instante e nos concentrar numa camada mais “próspera” da sociedade: as pessoas que vivem com um salário mínimo: R$ 678,00. Ainda parece muito pouco? Te soa como minoria? Bem, pasme, o último Censo aponta que 56% (sim, mais da metade) dos domicílios brasileiros vive com até um salário mínimo per capta.

Pois bem, meu caro, estamos falando do brasileiro médio. Tente imagina-lo. Suponha que essa pessoa, como todos de seu meio, vive na periferia da nossa cidade e precisa tomar duas conduções para chegar no trabalho diariamente e depois mais duas para voltar para casa. Agora vamos fazer umas contas: com a passagem a R$ 3,00, ele gasta R$ 12,00 por dia. Com a passagem a R$ 3,20, como queria aumentar o governo, gastaria R$ 12,80. O aumento de R$ 0,80 por dia, no final do mês, somaria R$ 24,00.

Esse acréscimo, na renda de um salário mínimo, representa 4%. Mais do que isso, se dividirmos o valor do salário pelos 30 dias do mês veremos que essa pessoa recebe R$ 22,60 por dia (o preço de um combo especial no McDonald’s). Isso quer dizer que “só” o aumento de 20 centavos no transporte já lhe garfaria um dia inteiro do ordenado.

Já não parece tão pouco, certo?

Se ainda assim você me disser que isso não é da sua conta, juro que paro agora mesmo com as expressões “caro” e “amigo”.

Na semana passada eu estava ouvindo no rádio a notícia sobre a greve dos profissionais dos trens e metrôs. A repórter então abordou um homem para entrevistar. Ele era porteiro num prédio no centro da cidade e estava preso em seu bairro sem conseguir chegar ao trabalho. Ela perguntou se não havia um meio alternativo de transporte e ele respondeu que sim, haviam vans particulares levando as pessoas. Questionado sobre o motivo pelo qual não fazia uso desse meio, o sujeito respondeu: “As vans cobram 5 reais na corrida. Aí não dá. Se eu pagar na ida, não sobre dinheiro pra voltar”.

Você entendeu, meu caro? 20 centavos é muita coisa no bolso de quem vive com R$ 22,60 por dia. E mais da metade dos nossos compatriotas amarga essa condição.

* * *

Ah, tem mais uma coisa.

Se isso não parece suficiente, preciso dizer que revogar o aumento na tarifa do transporte significa, de fato, muito mais. Para o trabalhador e para qualquer cidadão do nosso país, é uma resposta para os que duvidaram do poder da vontade popular. Conseguir que o governo volte atrás numa decisão porque as pessoas foram às ruas e reclamaram seus direitos, significa que, sim, eles precisam parar e ouvir e que, não, eles não podem fazer o que bem entendem com o dinheiro que arrecadam e deveriam administrar com lisura – para usar uma palavra que eles tanto gostam de gastar.

Meu caro, você, eu e eles todos ouviram muitas vozes gritando. Eu gritei, confesso. Conquistar a volta dos 20 centavos significa que o indivíduo pode requerer e conquistar tantos outros direitos que lhe foram roubados ao longo dos anos. E significa que muita gente engravatada – eleitos por nós, não vamos esquecer – vai começar a pensar duas vezes antes de tomar qualquer decisão arbitrária e unilateral. Significa que precisarão fazer alguma coisa decente para que preservem suas posições e gabinetes luxuosos. Nós temos voz. Isso quer dizer ainda que deverão tomar bastante cuidado antes de desrespeitar o povo brasileiro com decretos que ceifam seus direitos básicos.

Meu amigo, os 20 centavos nunca valeram tanto.

Um filho teu não foge à luta

Foto de Fabio Motta (O Estado de S. Paulo)

Foto de Fabio Motta (O Estado de S. Paulo)

Há coisa de três semanas, eu escutava o noticiário político no rádio e senti um amargor me vir à boca. Tudo de novo, as mesmas notícias, os mesmos métodos, nada muda, nunca. Já há tempos isso me incomodava, mas naquela hora, travado no trânsito da Marginal Pinheiros, escrevi um tuíte de desabafo:

“Cansado dessa esquerda enferrujada. Cansado da direita asquerosa. Será mesmo que não tem nada de novo, na prática e nas ideias, a ser feito?”

Pouco tempo depois, li no jornal sobre uma manifestação na Avenida Paulista contra o aumento na tarifa do ônibus. Confesso que ignorei solenemente a questão. De cara, não me parecia diferente das outras tantas marchas lentas e paradas que tomam a cidade ao longo do ano que não me atraem como adepto – Marcha para Jesus, Parada Gay, Marcha da Maconha ou greves de qualquer tipo ou instância.

Mas os dias se passaram e por meio de amigos, informações paralelas em redes sociais e alguns blogs, pude ter uma perspectiva diferente e mais profunda dos fatos. Julguei mal, admito, e assumi um ponto de vista.

A verdade é que estamos todos cansados, com tantas coisas presas na garganta pra serem ditas. E, finalmente, agora escuto uma resposta para minha dúvida solitária no trânsito. Ela vem em gritos de protesto, ali mesmo nas ruas. Há, sim, algo novo sendo feito. Há uma alternativa, nas práticas e nas ideias: o povo.

Filhos deste solo. Está em nossas mãos.

“Erga a voz em favor dos que não podem defender-se, seja o defensor de todos os desamparados. Erga a voz e julgue com justiça; defenda os direitos dos pobres e dos necessitados”. (Provérbios 31:8, 9)


(Mais aqui: O poder do indivíduo)

A estranha coleção de lanternas

por Luiz Henrique Matos

semelhancas

“Filha, com quem você acha que é mais parecida, com o papai ou com a mamãe?”

Mãe e filha partilhavam um momento a sós e, numa tarde primaveril qualquer, aquela delicada progenitora fazia uma pergunta inocente. Enquanto isso, não imaginava que a menina, cravada nos cinco anos de idade, ainda não havia aprendido o sentido da palavra ponderação.

“Mãe, sabe o que é…”, a menina arqueou as sobrancelhas, olhou para baixo, contraiu um pouco os lábios, “Me desculpe, mas é que eu sou a cara do meu pai”.

A história me foi contada horas depois. Fiz de conta que não achei nada demais, “Ah, que nada, ela tem os seus olhos, seu jeitinho, as bochechas…”, enquanto, por dentro, uma onda de satisfação das mais imaturas me lavava a alma.

Talvez alguém um dia ainda explique – talvez – o motivo pelo qual pais, tios, avós e amigos chegados insistem nesse jogo esquisito de discutir e tentar descobrir semelhanças com algum familiar nem bem a criança saia da barriga da mãe.

Quando olho para minha filha e paro pra pensar nesse tipo de coisa, acho tudo uma grande bobagem. Qual o sentido, afinal, dessas discussões tolas? Não levam a nada. Ela parece comigo, é a minha cara, vai gostar das mesmas coisas que eu e a opinião dos outros que se exploda.

* * *

Adoramos frequentar livrarias, jogamos o mesmo joguinho do Snoopy no iPad, dançamos ao som de Strawberry Fields Forever e Blitzkrieg Bop no carro, montamos Lego no chão da sala, assistimos às Crônicas de Nárnia com ela deitada sobre meu peito infinitas vezes, temos a mesma mania de ficar parados segurando o braço esquerdo acima do cotovelo e alimentamos uma estranha obsessão por colecionar lanternas – sim, temos por toda a casa, várias delas nas gavetas e, apesar de mal fazermos uso, são tidas como item de primeira necessidade no lar.

Qualquer pai se enche de orgulho ao notar sua pequena cria desenvolver os hábitos e traços que lhe são peculiares. É um sinal da nossa continuidade, da herança que deixaremos, uma espécie de legado para a humanidade que nos identifique – bem, talvez não a humanidade toda, no sentido amplo da coisa, você entende, mas aquela dúzia e meia de parentes com certeza.

Adoramos nos ver em nossos filhos porque amamos que sejam parte de nós. Queremos, claro, que sejam melhores do que seremos, em tudo, que sigam a caminhada numa jornada bem-sucedida, feliz e com realizações. Sonhamos que suas vidas tenham significado e que façam história. E poder imaginar que existe um pouco da gente ali sendo carregado naquele ser humano que amamos mais do que a nós mesmos, é alegria das mais radiantes. Provoca, de algum jeito, um certo conforto, uma falsa sensação de segurança ao imaginar que sabemos o que estão passando.

E seria muito bom se tudo parasse por aí.

Entretanto, em medida sem igual, preciso dizer, dói como poucas coisas notar, vez por outra, que minha menina sofre ao carregar o peso de males que herdou de mim. Das patologias às manias e defeitos mais complexos. Ela é alérgica, ela é sistemática até o último cromossomo, precisa usar um aparelho nos dentes para corrigir um problema genético e tem uma carga exagerada de nostalgia para com as coisas que não cabem nos seis anos vida que acumula.

Imagens e semelhanças.

Ela não tem culpa. Eu a amo tanto, não gostaria que sofresse por nada, muito menos por defeitos que são meus. Não quero que a Nina pague esse preço. Seja dos problemas físicos, seja dos morais. E nesse sentido, Deus sabe como não quero que ela repita os meus erros. Não, ela não precisa.

Eu oro por ela. Gostaria que Deus me dissesse o que ele tem em mente. Que tipo de aprendizado ainda não fui capaz de assimilar e que minha filha, alguns pontos de QI a mais do que eu, pode superar mais cedo? Cedo na vida, eu rogo em minhas preces, quero que ela conheça a Jesus, que desenvolva seu caráter e descubra o sentido da sua existência.

Oro a Deus, o pai sem defeitos. Para que do alto de sua perfeição, aprimore sua criação corrompida. Porque eu sei que nele podemos ser transformados e, ele em nós, corrige nossas falhas, limpa nossas impurezas, cura as doenças, muda a condição em que estamos e até, há de se esperar, faz sumir as manias mais estranhas.

A imagem e semelhança perfeitas, em Jesus.

* * *

Eu a observo brincando, sentada em sua mesinha desenhando cuidadosamente. Tal como a Manú, ela tem um certo talento pra isso, um bom traço, é criativa, passa horas concentrada em seu “trabalho” – como ela chama. Eu a ouço falando qualquer coisa sobre seu dia, cantando a trilha sonora do desenho da TV, contando das amigas da escola, das brincadeiras, tudo nos mínimos detalhes. Fico olhando enquanto ela come com a cabeça apoiada numa da mãos, espetando os legumes com o garfo. Passo um tempo em silêncio, admirado com a velocidade ingrata com que minha menina está crescendo sob nossos olhares. O tempo é um velho cruel e indomável. Preciso desfrutar, tento reter cada instante que posso ao seu lado nessa infância que passa tão rápido. Queria dar pra ela uma lanterna para ajudar a iluminar melhor o caminho que terá pela frente. Que ela vai seguir com as próprias pernas, que ela vai descobrir com seu olhar brilhante, desbravar com sonhos que Deus plantou só na sua mente. Porque é tudo o que eu quero ver nela: nada de mim na verdade. Mas dela. Quero viver para ver o que ela se tornará, sua identidade, sua a visão do mundo, sua imagem graciosa refletindo na vida dos netos que nos dará um dia.

Ela dorme no chão da sala. Estávamos vendo um filme quando pegou no sono. Levanto, preparo sua cama no quarto, aumento a quantidade de cobertas, está frio, então volto para a sala e a pego no colo. Ela está ficando maior, eu estou ficando mais velho, mas esse é o lugar onde espero que ela sempre caiba. Carrego minha menina para a cama com todo o peso desse sentimento no peito, ajeito seu pijama, tiro a franja que lhe cai no rosto e ela suspira inocência.

Admiro minha cria. Ela é bonita. E Deus, que ninguém me ouça, mas é a cara da mãe.


(Esse texto faz parte da série Paternidade)

Um passo após o outro

Um passo após o outro

Não se percorre um caminho, qualquer que seja a distância, sem dar um passo após o outro. Não se come uma boa fruta, nem uma laranja azeda sequer, sem antes plantar a semente na terra, esperar pela chuva e ver crescer a árvore – o que pode levar anos.

Uma coisa de cada vez, a seu tempo, é preciso esperar. É mentira que podemos fazer tudo ao mesmo tempo, que podemos ter qualquer coisa agora e colocar algo na frente, fora da ordem natural das coisas. Nós não somos seres multi-poderosos, nem fomos criados para ser. Não daremos conta de todas as pendências que esperam que resolvamos antes de o sol se pôr no horizonte, nem deveríamos.

Os ciclos precisam se cumprir, cada etapa sucessivamente acontecer, uma tarefa de cada vez, cada decisão bem pensada.

O alimento saboreado na boca, um gole de água fresca saciando a sede, nossas crianças descobrindo a vida em capítulos, a voz da mulher amada recitando poesias e contando sobre as coisinhas do dia. A natureza não tem pressa.

Momentos. Instantes eternos. Um dia após o outro, um passo após o outro, para que se cumpra a caminhada.

Porque a Deus não se apressa.

O escândalo da bondade

Semana de Páscoa.

Estava rolando minha página do Facebook enquanto procrastinava alguma tarefa importante quando vi a foto de uma criança portadora de deficiência raríssima. A legenda dava conta de que passou muito tempo internada, enfrentou inúmeras cirurgias e depois de muito esforço dos médicos, da família e de tantas boas almas que se juntaram nessa corrente, estava curada e vinha se recuperando. Na tela azul da rede social, em meio a outras postagens com imagens de filhotes de cachorros e flores silvestres com frases de autoajuda, a foto da criança era chocante. E o autor fazia uma pergunta, estampada em letras garrafais sobre a imagem: “E aí, quantas curtidas essa pequena guerreira merece?”. No rodapé, centenas de milhares de procrastinadores haviam clicado sobre o pequeno polegar estendido em sinal de solidariedade.

Três ou quatro rolagens abaixo, outra foto. Dois homens tiveram suas casas invadidas pela enchente. Um deles carregava sobre a cabeça sua televisão de tubo, coisa de 21 polegadas e a muda de roupas que conseguiu salvar. O outro, com a água barrenta quase na altura do pescoço, erguia sobre si um cachorrinho vira-latas assustado e livrava a sorte do seu fiel amigo. A legenda dizia algo sobre eleger prioridades, exaltava a conduta do rapaz e convidava os demais admiradores desse herói a curtirem e compartilharem a sua atitude.

Eu não cliquei no joínha e quase fiquei com um peso danado na consciência, questionando se, afinal, sou um indivíduo frio e sem coração. Como eu não podia curtir a pequena guerreira? Como eu, dono recente de um cachorro que encanta – e destrói – o nosso lar, não iria me juntar às miríades que clicavam e comentavam a boa ação do sujeito na enchente?

À noite, em casa, o William Bonner reservou parte do último bloco do Jornal Nacional para contar a história do dono de um supermercado que doava cestas básicas para as pessoas desabrigadas, vítimas da mesma enchente. Havia certa celebração na voz do jornalista, louvando a boa e generosa alma do comerciante como um Super-Homem da periferia carioca.

Um último fato. Tem uma seguradora investindo alguns milhões de reais em uma campanha de publicidade que convida os motoristas de São Paulo a serem mais gentis no trânsito – e quem vive em São Paulo sabe o quanto o trânsito é algo crítico. Fizeram um adesivo, com um coração e tudo, para que as moscas brancas da ética grudem na traseira de seus automóveis e avisem ao cidadão do carro de trás que, sim, respeitam seu vizinho de congestionamento e que, não, não arremessam seus carros em cima dos pedestres pela rua.

Vivemos em um tempo da história – ou talvez nunca tenhamos saído dele – em que o que deveria ser regra se tornou uma exceção esdrúxula. A generosidade, a ternura, a compaixão e os pequenos gestos de solidariedade são noticiados em horário nobre, mobilizam interações em redes sociais e são foco de campanhas de marketing de empresas.

Vivemos em um tempo em que a humanidade sente saudades do que deveria ser um sentimento elementar do homem para a vida em comunidade. De forma espantosa, os valores que mais louvamos no ser humano são os que julgamos serem tão pouco praticados pelas pessoas ao redor, a ponto de darmos destaque, como notícia, quando alguém se voluntaria em cumprir o seu dever cívico, ser gentil ou respeitar o direito do próximo.

Vivemos num tempo em que Jesus faz uma falta danada.

* * *

É no mínimo curioso observar que Jesus viveu de forma escandalosa e integral o exemplo de ser humano que admiramos ainda hoje. Eram suas atitudes, a doçura e a gentileza que encantavam e atraíam multidões. Era a predileção pelos mais fracos, a compaixão pelos carentes, a defesa dos oprimidos, o olhar além da superfície que encarava, constrangia e revelava a alma para aquele que não julgava, mas compreendia. Era o amor abundante, o toque restaurador, a paciência em ouvir. Era ele, o Deus encarnado, a humanidade em sua plenitude.

O mundo hoje destila indignação contra o cristianismo. Quando não indignação, um certo desdém. Não sem razão, se tomarmos como partida que o Cristo que as pessoas enxergam é o que a igreja anuncia em seus templos e canais de televisão. Mas o mundo que rejeita o Cristo é mesmo que o adoraria se o conhecesse, porque se o mundo ainda se comove com gestos de compaixão, ternura e generosidade, então ainda está aberto a Jesus Cristo e sua mensagem.

Ele só pode ser realmente conhecido através dos que afirmam refletir sua imagem. Se a imagem que projetamos é de intolerância, preconceito, atraso e egoísmo, até mesmo Jesus se afastaria – e se afastou – do que ele mesmo chamou de hipocrisia e cegueira.

Seus primeiros seguidores foram chamados “cristãos” pelos outros judeus porque eram vistos como “pequenos cristos”, tal era a semelhança que tinham com seu mestre. Eram também vistos com simpatia pelas pessoas e era justamente essa graça que fazia com que tantos desejassem ser como eles e saber mais sobre o Messias que anunciavam.

Jesus faz muita falta nesse mundo. Ele confiou a seus seguidores a responsabilidade de agir e falar em seu nome. Ser sal para escandalizar uma sociedade insossa, ser luz num mundo cheio de sombras, ser uma fagulha para incendiar a Terra de amor, servir para destruir o egoísmo.

Esse não é um compromisso que se deve cobrar da igreja. Não é a dívida moral de uma instituição. Não é uma mudança que alguém deva assumir porque se diz cristão. Esse é um voto que precisamos assumir como seres humanos. Uns pelos outros, de cada um para Deus.

Porque Deus não escolhe filhos, os homens é que escolhem seus deuses. Deus é um só, o Pai da humanidade toda, o criador do mundo. Para os que acreditam e para os que não acreditam também.

* * *

Na Páscoa, refletimos por um instante na vida de Jesus. Paramos para olhar principalmente os momentos finais de sua jornada na Terra, culminando na morte de cruz no Calvário numa sexta-feira e, dois dias depois, em sua ressurreição redentora.

A Cruz nos diz muita coisa. A gruta vazia está cheia de significado. Mas a histórica da Páscoa não é só sobre morte e ressurreição, mas sobre o renascimento da esperança, sobre o resgate da humanidade da condição de escravos do egoísmo para a de pessoas livres. Os dias da Páscoa antecedem em algumas semanas o momento do Pentecostes em que Jesus cumpre a promessa feita aos seus amigos de que voltaria, em Espírito, para habitar em cada um e inspirá-los na caminhada que os conduziria a uma semelhança total com seu mestre. Antecedem em poucos dias o encontro em que Jesus pede que eles sigam, mundo afora, anunciando e sendo uma boa notícia.

A humanidade inteira parecendo com Jesus.

Isso é urgente, é para agora, é a semente de um novo fruto que desejamos plantar para que nossos filhos colham. É preciso uma revolução. Não dá para procrastinar.

“Venham a mim, todos os que estão cansados e sobrecarregados, e eu darei descanso a vocês. Tomem sobre o meu jugo e aprendam de mim, pois sou manso e humilde de coração, e vocês encontrarão descanso para as suas almas. Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve” (Jesus, em Mateus 11:28-30).

Seis anos e a eternidade pela frente

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Seis anos. Eu ainda me lembro da festa. Foi uma surpresa tramada pelo meu irmão e minha mãe. À tardinha, saí de bicicleta para buscar um jogo na casa de um amigo e, quando voltamos, tudo escuro, já estavam todos escondidos na cozinha. Amiguinhos, vizinhos, primos e familiares saltaram detrás da geladeira, da porta e debaixo da mesa. Eu lembro da farra, do bolo, de alguns presentes e do meu pai dizendo: “É, cara, já encheu uma mão inteira e agora vai começar a contar na outra”. E aquilo era toda a maturidade com que eu podia imaginar.

São dessa idade as primeiras lembranças ordenadas que guardo da infância. Bom, tem realmente pouquíssimas coisas que eu faço acima da média, uma delas é ter uma memória visual impecável. Eu não sei jogar bola, sou incapaz de tocar uma guitarra, mas sou bom pra burro com a memória. Fatos, cores, cenas, detalhes, diálogos, nada me foge. E desse tempo na infância, às vezes as lembranças me resgatam como uma âncora. Lembro em detalhes da vila onde morávamos lá na Barra Funda, as casas pequenas, todas iguais, grudadas umas nas outras. O cheiro e o som da fábrica de asfalto cujo sinal apitava toda manhã na avenida, os bem-te-vis que cantavam numa árvore cuja copa se projetava sobre o nosso quintal bem perto da janela do quarto onde dormíamos, os três irmãos.

Estávamos nos anos 80, era o tempo do meu primeiro ano na pré-escola, das brincadeiras de bola, de pipa, figurinhas da Copa União e rachas de carrinho na rua. Foi naquele ano que aprendi a decifrar as primeiras palavras escritas e todo o mundo de descobertas que surgiu depois disso. O mundo. O mundo para mim era aprender, era o som dos Titãs tocando “cabeça, cabeça, cabeça dinossauro…” no micro-system do meu primo, era aquele presidente bigodudo anunciando coisas e coisas na tevê com uma voz estridente e preocupante, era a vinheta do jornal da Jovem Pan tocando no rádio do Fusca do meu pai enquanto eu ia pro colégio e o sol nascia através do pára-brisas. E tirando uma viagem por ano para a Praia Grande, meu mundo todo era aquela pequena vila de 30 casas que eu explorava tarde afora em cada detalhe.

Era tudo o que eu tinha. Eu tinha seis anos e nem imaginava o que vinha pela frente.

Hoje a minha filha faz seis anos.

Ontem, antes de dormir, a Manú e eu recapitulamos para ela a história do dia em que nasceu – ela adora ouvir – e depois, enquanto fazíamos a nossa prece rotineira e casualmente me dei conta do tamanho que a Nina tem agora, essa criança cheia de personalidade e graça que já ocupa seu espaço na casa e nas nossas vidas, me senti intensamente grato, fingi um cisco nos olhos, mudei o rumo da conversa e saí de lado. “Hora de dormir, filha, vê se pega logo no sono. Tenha bons sonhos”.

Com o quê nossa menina vai começar a sonhar? Como será que ela vê as coisas hoje?

Não foi um dia de festa surpresa para ela. Teve escola como todo dia, teve trabalho, consulta médica e lição de casa. A rotina que se impõe sobre a gente fez com que o aniversário dela corresse como num dia qualquer. Só mais a noite, já no fim do dia, é que a levamos para um passeio, um sorvete, um livro novo, brincadeiras, uma bonequinha, o lanche e, em poucas horas, a sensação infantil de que o dia era todo dela.

Não sei dizer se daqui a 26 anos ela vai se lembrar desse dia. Tentamos tornar as coisas memoráveis, nos esforçamos nessa busca tola por grandes experiências na vida, mas sabemos bem que não são exatamente essas situações que nos marcam. A memória nos trai, a vida faz curvas e no fim as histórias que levamos na bagagem são, em geral, as menos prováveis. Mas fico tentando imaginar o que a Nina vai guardar desse tempo. Do que ela vai se lembrar? Quais serão, quando adulta, as lembranças remotas que ela terá da infância? Os amigos, a casa, as Escrituras, a escola, a cachorrinha nova que chegou por aqui há duas semanas – Lucy, muito prazer. Será que ela terá consigo a raiz ainda firme com os princípios que a Manú e eu tentamos ensinar diariamente? Que princípios devemos ensinar para ela? A paternidade é um fardo adorável.

Ela tem pressa. Tenho quase certeza de que esses seis anos se passaram, na verdade, em três. Papo sério, acho que tem gente conspirando e fazendo tudo andar mais rápido e os cabelos ficarem brancos mais cedo. E eu bem sei que nesse ritmo, já, já ela vai ganhar o mundo, vai sair de debaixo das nossas asas e voar por aí sem que a gente possa controlar ou prover, vai descobrir e construir seu próprio mundo, sua visão de mundo, vai notar um dia que não passávamos de um casal bem-intencionado que, entre muitos erros, deixaram escapar alguma coisa boa que servirá para que ela seja alguém muito melhor do que jamais imaginamos ser. Esse é o sonho, é um desejo, é até uma oração agora. Sua liberdade será a nossa eterna insegurança. E então, só o que poderá trazê-la de volta vez ou outra para nosso ninho, é essa mesma liberdade, o desejo de vir e sentir-se querida. O único princípio que podemos ensinar pra ela é o amor. A paternidade jamais é um fardo.

Ainda ontem, antes de dormir, enquanto eu me esgueirava quarto afora com aquela lagriminha correndo num canto dos olhos, ela me lançou uma pergunta:

“Pai, quando a gente for pro céu, nossa vida nunca mais vai acabar?”

“Não, filha. Deus fez a gente para viver pra sempre.”

“Pra sempre?”

“É. Isso que chamamos de eternidade.”

“Pai, quando eu for pro céu, eu queria continuar sendo criança.”

Isso deveria ser uma condição, certo? Não resisti: “Faz bem, querida. Você sabia que Jesus falou que todo mundo, os adultos todos, deveriam mudar e tentar ter um coração como as crianças tem?”

“Boa noite, pai” – ela não estava interessada em teologia.

Ela tem seis anos e nem imagina o que vem pela frente. E aí mora toda a beleza da coisa. Somos filhos. Quem é que imagina, afinal?

O semblante

Brasilia

Há uma mensagem entalhada na cruz; há um eco no túmulo vazio.

Somos pessoas remidas, somos seres eternos. Ao crermos em Jesus, em sua mensagem e na ressurreição, recebemos por antecipação a dádiva da eternidade. Somos salvos, isentos de culpa, somos amados e livres para ser e amar. A consciência disso deveria naturalmente transformar nosso semblante e inspirar nossa maneira de viver integralmente. Deveríamos ser mais gratos, mais afetuosos, caridosos, servis, menos egoístas. Deveríamos refletir o caráter gracioso de Jesus Cristo no mundo em cada fôlego de vida. Porque Deus, o dono do Universo, o criador de todas as coisas, o Pai, nos ama, habita em nós e nos chama de filhos.

Mas a obscuridade do mundo nos desvia o olhar. Deixamo-nos dispersar e perder a rota. Somos afetados pelas circunstâncias, pelas sombras que se projetam sobre nossas almas, pela dúvida que paira no canto do ouvido, pelo pecado que nos isola. Permitimos que a soma dos fatos cotidianos nos disperse. Os erros, nossos e dos outros, as notícias do cotidiano, da política, de guerras, um funk tocando alto, um cadarço desamarrado, uma discussão em casa, um pastor corrupto em evidência, uma tempestade que surge sem avisar. E tudo isso é tão pequeno, é fugaz, mas deixamos que questões superficiais, efêmeras e passageiras nos desviem da rota e afetem nosso senso sobre a realidade.

E a realidade não é, absolutamente, o que se passa sob nosso olhar inquieto. A realidade suprema, devastadora e pungente, é a eternidade, a paz, o amor transcendente da graça divina nos tomando nos braços para sempre.

A crônica da montanha

solitude

– Não esquece de ligar quando chegar.
– Tá, pode deixar.

Fazia quase dez anos que estavam casados e nunca tinham ficado mais do que duas ou três noites longe um do outro. Ainda assim, nunca mais do que quatro horas de carro ou um telefonema interurbano de distância. Agora ele viajaria a trabalho para fora do país por uma semana e tudo aquilo era um sentimento inédito.

Abraçaram-se mais do que o normal naquelas vésperas, almoçaram juntos no dia da viagem, trocaram afeto, certezas e olhares confidentes. Chegou o taxi, ele partiu, o coração apertado num misto de apreensão e saudade que durou toda a viagem de dezoito horas. Aterrissou, o peito ainda daquele jeito, se virou com um café no aeroporto, tomou um taxi, acomodou as malas no amplo quarto do Little America Hotel e finalmente ligou para ela avisando que “sim, foi tudo bem, graças a Deus”. Tirou uma foto do quarto com o celular e saiu para comer um sanduíche de peru, caminhar e conhecer os dois pontos turísticos da cidadezinha.

Na primeira noite, durante um jantar, soube que depois de quatro dias de conferência, os participantes seriam levados para um dia de esqui nas montanhas. “Acho que vamos para o leste”, disse um que já havia estado na cidade outras quatro ou cinco vezes. “Mas aqui, eu prefiro outras montanhas. Eu gosto é de ir para Solitude.”

Solitude é uma montanha.

Os dias se passaram sem qualquer grande fato que mereça essas linhas, mas com a observação não menos descartável de que, a cada manhã, enquanto caminhava em silêncio em direção ao centro de convenções e voltava à tarde, ainda calado, para o hotel ou um restaurante, ele podia observar as montanhas cercando a cidade. A neve nos picos, o céu azul, talvez dez ou doze delas se projetando imponentes sobre aquele vale. Havia realmente tanto o que se pensar na vida naqueles dias, decisões importantes a tomar, reflexões que lhe requeriam tempo. Mas ali, longe de tudo, não havia o que pudesse ser feito. Naquele momento, só restava se concentrar no trabalho, aliviar a saudade de casa em ligações pelo Skype, seguir em frente e esperar.

Pisou a neve no dia do esqui. Espatifou-se naquele tapete branco por boas horas. Comeu um hambúrguer, bebeu uma cerveja vermelha local, comprou luvas, um chocolate quente, procurou se manter aquecido. Via aquela gente toda flutuando sobre suas pranchas, por todos os lados, se deixando levar pela velocidade, vivendo na superfície. Tudo parecia uma dança elegante. Mas ele precisava ouvir o som. Olhou para o topo, no frio mais alto, queria subir a montanha, a neve lhe caia nos ombros, sentia que precisava daquilo. Solitude parecia um encontro consigo.

Mas não subiu, não dava, não naquela manhã. Tomou o ônibus de volta para a cidade, caminhou, comeu, fotografou os prédios e as pessoas, observou os pássaros, anotou coisas. Podia ver as montanhas cercando a cidade o tempo todo, todas elas, e se perguntava se o que procurava estaria lá, ao alcance da vista, talvez sob os pés.

Sentou-se na parte elevada do prado para observar o lago, as gaivotas e um pai que brincava com o filho. Lembrou do Drummond e o do “sentimento do mundo” que lhe corria nas veias então, sentiu saudades de casa, da família, onde sabia de verdade quem era, o abrigo de si mesmo onde sua identidade se revelava. O coração não tinha partido.

Balbuciou uma oração, uma precezinha de gratidão e sentiu-se confortado por Deus, bem ali. A alma do homem ansiava por solitude, mas sua maior satisfação agora era saber que, em montanhas ou vales, jamais estava sozinho.

História em tempo real

Ninarte

Ela atravessou a sala e veio caminhando em minha direção.

– Pai?
– Oi, filha.
– Sabe esse caderno que você me deu? – ela o carregava encaixado sob o braço. Eu vou brincar que esse vai ser o meu diário.
– Ah é? E o que você vai escrever aí?
– As coisas que acontecem.
– Entendi. Tá bom então. Acho que vai ser legal.
– É… E pai, quando eu crescer e eu souber ler, vou escrever nele.
– Combinado.

A mesa dela fica no meio da sala, entre a TV e o sofá. É laranja, cheia de figuras do Co-co-ri-có e destoa completamente da decoração off white cuidadosamente planejada pela Manú. Mas ninguém liga, é uma mesinha pequena, com uma cadeirinha também, sobre a qual ela deixa três canecas de plástico transbordando de lápis-de-cor, giz de cera e canetinhas, dezenas de folhas com desenhos, cadernos rabiscados, pincéis, alguns livros e um mundo inteiro de fantasias. Ela gasta horas ali sentada, concentrada, desenhando e pintando.

– Papai, quando eu crescer vou querer ser cabeleireira, costureira e artista. Eu nasci pra isso – ela disse outro dia no carro.

Das três, a última é a única que, para o bem-estar social coletivo, ela pode exercer aos cinco anos de idade. E eu prefiro mesmo que ela não pense em trabalho agora. Eu gostaria de não estar pensando.

Estou sentado na mesa de jantar, tomando essas notas num pequeno caderno de folhas amarelas. É onde quase tudo começa. Acabamos de jantar, tirei a mesa com as louças da casa e lá no quarto mãe e filha se preparam para dormir. Foi um dia cheio. Dias, aliás, eles têm sido.

Li, hoje, uma coluna do jornalista Alexandre Matias comentando a morte prematura do programador e ativista norte-americano Aaron Swartz, que cometeu suicídio na semana passada. Matias lançou mão do trecho de um poema de Allen Ginsberg que diz “vi as melhores mentes da minha geração destruídas pela loucura” que foi posteriormente parodiado e se propagou por esses ventos digitais como “vi as melhores mentes da minha geração pensando em como fazer as pessoas clicarem em anúncios”.

Eu pensava nisso antes do jantar, enquanto descia pelo elevador e caminhava até a portaria do prédio para buscar a pizza que havia pedido. Onde estão os nossos gênios agora? A que fins tem se prestado senão em servir a Máquina com seus préstimos em troca de dinheiro?

Num momento da história em que tantas oportunidades se revelam, em que o acesso à informação e o conhecimento se escancaram, temos preferido mesmo a frieza dos escritórios e carreiras em companhias “inovadoras” ao desconforto da incerteza. Falta algo aqui.

Nosso mundo carece desesperadamente de ideais. Falta nobreza às nossas causas. Falta um significado.

Eu, que não sou nada genial, uma mente ordinária e limitada, fiquei com a dúvida inconveniente. E quando terminamos o jantar e me sentei para tomar essas notas, eu ainda pensava nessa coisa toda. Lembrei dos meus cadernos e lápis, que eu carregava por onde fosse na infância. Como os da Nina, eles tinham um desenho aqui, outro ali, e um monte de histórias inventadas. Esse era meu passa-tempo, eu gostava de escrever. Eu tinha nove anos e, quando crescesse, queria ser jogador de futebol, vocalista de uma banda de rock e escritor. Hoje, no duro, eu passo o dia pensando em como fazer as pessoas clicarem em anúncios.

E não é preciso ser gênio para notar que era na infância que nos alimentávamos, além de todinho e lactobacilos vivos, com sonhos puros. Você e eu, admita. Tínhamos, com a imaturidade, também a inquietude, a fé simples e um milhão de interrogações para despejar no mundo dos adultos. Líamos histórias, inventávamos histórias, imaginamos e passamos a querer escrever a nossa própria, de um jeito diferente.

Mas… bem, você conhece essa continuação tanto quanto eu.

As luzes da casa foram se apagando nos minutos que seguiram, o volume todo se reduzia aos poucos, ficava tarde. Então o som dos passinhos veio do corredor e ela se aproximou.

– Tô com sede.
– Sua água ficou aqui.
– Hum.

Continuei no caderno.

– Pai? O que você tá escrevendo aí? Posso pintar? Que legal sua caneta. Isso aqui você usa pra marcar a página onde parou?
– É só uma história, filha, umas coisas.
– Lê pra mim?
– Hum, tá.

Comecei. Do primeiro parágrafo: “Ela atravessou a sala e veio caminhando em minha direção…”

– Haha, ah, paiê!
– O que foi?
– Por quê você…?
– Filha, agora vai dormir, já está tarde.
– Pai, lê pra mim!
– Mas eu ainda não terminei, Nina.
– Então deixa eu te ajudar a escrever sua história?

E eu só queria dizer: “você está na melhor parte dela, querida.”

Reticências

Todo fim é a chance de um novo começo. E cada começo pode ser ruptura, pode ser seqüência. Pode ser novo ou de novo.

Porque a vida é um conjunto de ciclos, mas é também continuidade. É divisão e é soma. O sol que nasce e se deita, a vida que brilha e se põe. É todo dia um novo nascimento e a cada fôlego a eternidade soprada por Deus em nossas narinas.

Feliz ano novo, feliz vida nova.

(em memória do Fernando)

Excesso de bagagem

Faz coisa de três anos, li um artigo de Anita Patil no The New York Times que contava sobre como alguns norte-americanos, depois de enfrentar a crise financeira de Wall Street em 2008, se viram forçados a viver com menos. Ela citava também o fato de algumas empresas que, atentas à impaciência das pessoas com a pujança de outros tempos, se empenhavam em transmitir uma imagem minimalista em suas propagandas. Na América pós-crise até a simplicidade virou moda e discurso de consumo. Mas um trecho do texto me chamou atenção:

“Roche Fierman, que dirige a Little Elves, serviço de limpeza usado por alguns dos estilistas mais chiques de Nova York, limpou o excesso de sua própria vida. Ela tem apenas três pratos de jantar, as duas prateleiras da sala estão nuas e ela joga fora os livros quando termina de ler. ‘Acho que realmente aprendi com a recessão e com alguns de meus clientes, que são dominados por suas coisas, é que é um modo de vida ridículo’, disse. ‘Levei anos para perceber que realmente não vale a pena se preocupar com coisas.'”

Há cerca de um mês, viajamos em férias. Durante alguns dias, conhecemos lugares novos, revisitamos paisagens em que amamos estar no passado, reencontramos velhos amigos, exploramos pontos turísticos, caminhamos à toa pelas ruas das cidades e, tal como a força da gravidade atrai os corpos para seu centro, fomos por algumas vezes – ok, várias vezes – sugados para dentro de… lojas. Voltamos para casa com a bagagem recheada de novas experiências, perspectivas, lembranças, fotografias, itens de decoração, roupas, eletrônicos, brinquedos e, evidentemente, um adorno para a tralha em si: uma mala azul que, se foi útil para trazer tudo em segurança, agora é um trambolho de metro e tantos que precisa caber em algum lugar da casa.

O Rubem Alves, num trecho com que me deparei ontem a noite, sacramentou: “Simplicidade tem a ver com as coisas que são essenciais. Simplicidade é caminhar com uma mochila leve. A riqueza, ao contrário, é caminhar arrastando muitas malas pesadas, sem alças” (…) “A pobreza simples é uma pobreza feliz. Feliz porque leve. É a comparação, origem da inveja, que a torna infeliz”.

Acho que Roche Fierman tinha razão, não preciso achar nada para que o Rubem Alves também já tenha razão – ele costuma ter – e acabo achando que, apesar do uso justificado de cada novo item que adquiro e trago para casa numa sacola, nas costas ou na consciência, eu também sei que poderia perfeitamente viver sem a maior parte daquilo tudo.

Carregamos muito, além do que dá para suportar. É um mundo louco. Perdemos a noção de leveza, confundimos hiperatividade com eficiência, deixamos de valorizar o ócio e a solitude como elementos fundamentais de recarga das nossas forças e defendemos a competição como virtude. Tentamos armazenar tudo mas nos perdemos em meio a tanta coisa. A certa hora, invariavelmente, cedemos à pressão e caímos. E a queda dói. Sofremos. Por nossos próprios erros, sucumbimos em crise. E no entanto, existe uma amarga ironia em perceber que, muitas vezes, só depois de passarmos pelo rolo compressor do sofrimento é que adquirimos uma noção clara do que é, de fato, elementar na vida. A dor nos descasca e permite enxergar que, no âmago, só sobra o que – ou quem – é realmente essencial.

Desde que voltamos da viagem, estou tentando encontrar espaço em algum armário para acomodar a mala azul. É um objeto caro, grande, oco, inútil e está vazio. O que trouxemos de mais precioso da nossa viagem não veio dentro dela, mas arrasto aquele trambolho pelo apartamento enquanto aproveito e vou depositando ali dentro outras coisas que encontro pelos cômodos.

Não é preciso muito esforço para notar que é bem pouco provável que consigamos nos livrar da carga toda que acumulamos na caminhada. Reconheço que o meu ideal de vida minimalista é utópico e acredito aqui que a distinta senhora citada pelo Times, passados alguns anos, já deixou empoeirar algumas tranqueiras nas prateleiras da sua sala em Manhattan. Porque vivemos em comunidades, em famílias, numa sociedade dirigida pelo consumo e estamos sujeitos a intempéries de todo tipo. Tudo é circunstancial, a gente passa pela rua, pega, bota no bolso, carrega, curte e depois deposita num canto qualquer. Faz parte da ordem caótica de como a vida acontece, desejamos simplicidade mas somos complicados demais. E ao contrário do que eu poderia querer ou esperar, é possível que aí esteja parte da beleza da vida, no imprevisto, no sentido orgânico com que se desenvolve, na perfeição improvável da criação presente em sua total falta de simetria.

Podemos e precisamos gastar um instante, vez ou outra, para colocar uma certa ordem no caos. Priorizar, ter consciência do que realmente importa e deixar por perto aquilo que é tão precioso mas andava esquecido lá no fundo da bagagem. O que está tão perto todo dia, o que mais nos consome e pesa nos ombros, pode não ser o que mais importa realmente.

Porque hoje, ao invés de guardar, talvez possamos nos esvaziar, nos doar, abandonar certos projetos. Talvez seja hora de retomar velhos sonhos. Talvez seja hora, finalmente, de ligar para um amigo, trazer flores para a esposa, visitar aquele parente, ajudar alguém. Talvez seja hora de voltar à essência, de esquecer o orgulho, perdoar, viver mais leves, calar, estar a sós por um pouco, escutando, deixando Deus sussurrar sua vontade. Certamente é hora de voltar à essência.

“Venham a mim, todos os que estão cansados e sobrecarregados, e eu darei descanso a vocês. Tomem sobre o meu jugo e aprendam de mim, pois sou manso e humilde de coração, e vocês encontrarão descanso para as suas almas. Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve” (Jesus, em Mateus 11).

Eu quero menos

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Dia desses, eu fazia qualquer coisa no Facebook quando me dei conta, observando a linha do tempo na página, que já faz quatro anos que freqüento aquela tela azul. Eu quase alimentei um certo orgulho do meu pioneirismo não fosse uma resistência velada que tenho pela ferramenta. Não sei o que é, eu uso mas não gosto. Ou gosto de não gostar, só pra ter algo do que reclamar.

Zapeei pela página e vi que o Facebook sugeria que eu ficasse amigo de um parente distante. Ele acreditava que eu poderia adicioná-lo à minha rede, dado que temos 26 outros amigos em comum. Senti-me tentado, cliquei, adicionei, tal como se incluísse um item num carrinho de compras. Aproveitei as ofertas do dia e incluí também dois ex-colegas de trabalho e um amigo de infância a quem não via há muitos anos. Saí do Facebook de sacola cheia naquela manhã. E apesar das novas e velhas amizades virtuais, não fiz contato real com ninguém.

Sendo muito sincero, acredito que isso se deva muito menos a um interesse real de resgatar relacionamentos que eu acredite que ainda vão avançar para um novo grau de intimidade – a ponto de eu querer saber, numa conversa pessoal, que o cachorro do Beltrano acabou de sair do petshop de penteado novo e curtir a ideia de que a filha da Fulana ganhou uma festa porque completou aniversário de um ano, três meses, duas semanas e oito dias de vida – e muito mais ao fato de que, tendo por perto todas essas pessoas que frequentam apenas minhas lembranças distantes, sabendo o que elas curtem, comentam e compartilham, eu me sinta menos culpado em não manter um contato real.

Pois é, veja você, cá estou eu reclamando de redes sociais.

Mas veja, não é contra novas formas de se vincular às pessoas que eu tenho andado inconformado – nem poderia, se você está lendo isso agora, muito provavelmente foi porque publiquei em algum canto obscuro da internet – mas contra o tipo de personalidade que assumimos nesse ambiente e, pior, o tipo pessoa que nos tornamos – ou revelamos ser – desde que esses meios passaram a afetar a nossa rotina de forma tão significativa.

A superficialidade das relações nos anestesia, tem nos tornado indiferentes às dores e à vulnerabilidade dos que estão ao nosso redor. Não temos mais nada uns com os outros, senão vínculos cada vez mais frágeis.

O excesso de estímulos e o simplismo das informações, que já quase assimilamos pelos poros, nos torna também impacientes. Já não temos tempo ou não queremos despender esforços com a parte do outro que não nos agrada. No fim, só queremos o que “curtimos” e bloqueamos o resto.

Vivemos uma busca desorientada pela felicidade, como se ela fosse um fim, um destino, e estamos ansiosos, queremos ver pessoas felizes e nos mostrar como pessoas felizes acreditando nisso como um ideal projetado de realização. E cada vez menos essa busca tem como objetivo o bem-estar comum, cada vez menos as conquistas que celebramos tem a ver com a comunidade em que vivemos. Porque estamos sozinhos, à caça da aprovação alheia, vivemos a explosão do ego, a incrível era da contemplação do umbigo e o mundo já não é da nossa conta.

Nesse tempo, relacionamentos amorosos duram pouco, amizades são casuais, casamentos são contratos, efêmeros, buscas existenciais são feitas pelo Google. Não contemplamos mais o horizonte, literal ou figuradamente. Só vemos o que está um palmo à frente e amamos o que temos ao alcance das mãos, literal ou figuradamente. Só merece nossa atenção o que nos oferece, uma pílula que seja, de êxtase instantâneo.

Porque só pensamos em nós, nos bastamos e desejamos, coisas, pessoas, experiências e um deus que nos satisfaça.

* * *

Meu amigo Rui diz que se os primeiros textos bíblicos fossem escritos nos dias de hoje, Deus trocaria a palavra “pecado” por “egoísmo”. Egoísmo é a melhor tradução para o tipo de comportamento tão condenado no homem ao longo da história.

Bem, talvez você não pense em pecado como algo com o que você deva se preocupar porque, afinal, isso trás consigo um vínculo religioso e, em geral, a gente não costuma gostar de ter o nosso senso de liberdade podado por uma regra definida sabe lá onde por alguém alegando se expressar em nome de Deus.

Talvez você, assim como eu, também não pense em egoísmo como algo que lhe diga respeito. Somos, afinal, tão cheios de compaixão, tão desprendidos e beneficentes. Não matamos, não roubamos, não cometemos crimes, doamos algum dinheiro e brinquedos para instituições de caridade, somos capazes de construir relacionamentos sólidos.

No entanto, ao contrário disso tudo, nos animamos com a ideia ou conceito de altruísmo (do latim *alter*: outro + *ismus*: adepto, seguidor). Somos bons cristãos, transbordantes de generosidade. Nos levantamos entusiasmados em defesa do outro, com profundo desejo de nos doar pelo bem-estar alheio. Deixamos de lado nossos interesses para ter como prioridade o bem-estar coletivo, nos doemos pelas feridas do nosso próximo, compartilhamos os “posts” com fotos de criancinhas malogradas na África.

Hmm, bem, talvez a gente pense em egoísmo, sim.

Finalmente, se nós pensamos em Jesus como alguém que conseguimos reconhecer como nosso Deus, então é possível que nossa expressão de devoção esteja sendo feita na direção errada.

De novo, vou gastar uma dose do eruditismo que eu não tenho para recordar que *hamartia* é uma palavra grega que pode ser definida como “errar o alvo, fracassar”. É essa mesma expressão que aparece nas escrituras em parte das referências a pecado.

O egoísmo foi, possivelmente, o sentimento que Jesus mais combateu com seus ensinos. Suas atitudes mostram uma caminhada na direção oposta a isso. E seu caráter, sua história e mensagens revelam que é bem possível que a gente precise dar razão ao Rui.

E, no duro, eu acredito que Jesus é o alvo em cuja direção precisamos seguir. Ele é o padrão perfeito de humanidade, é o Deus encarnado, o ser humano apaixonante e gracioso, o Deus que senta à mesa e divide o pão. Jesus não era egoísta. Suas relações eram profundas, seu interesse no outro era verdadeiro, ele era tolerante com as falhas e defeitos dos que estavam ao seu lado, ele dividia tudo o que tinha, doava de si, do seu tempo, para ouvir e estar junto. Ele sofria verdadeiramente com a dor dos mais frágeis. Compassivo. Lembre-se: ele morreu por cada um daqueles que o insultaram, cuspiram em seu rosto e o penduraram numa cruz de madeira.

Mas, ora, o que raios isso tem a ver com o Facebook? Com Facebook, nada. Mas sinto dizer que a conversa não é sobre redes sociais. Também não estamos discutindo sobre egoísmo ou pecado. Estamos falando de amor. E de falta de amor.

O amor, que em instância primária, não existe, não se constrói e se sustenta sem que tenha no outro – algum outro – seu alvo. Amamos alguém e ao nosso objeto de amor nos entregamos, nos doamos, cedemos, sem pensar absolutamente em extrair qualquer benefício disso que não a própria realização, pura, de poder amar.

A superficialidade das relações de hoje mata o amor. A indiferença mata o amor. Nossa insensibilidade em relação ao próximo mata o amor. O nosso egoísmo mata a Jesus – o amor em essência – e exclui sua face graciosa da Terra.

* * *

Nas horas vagas, quando não estou fazendo qualquer coisa no Facebook, eu leio livros. No último Dia dos Pais, ganhei da Manú e da Nina um livro do arcebispo anglicano sul-africano Desmond Tutu – não, ele não está no Facebook, mas eu curti.

Desde que comecei a leitura, descobri que Tutu é o cara que eu gostaria de ser. Não, não quero ter a vida dele e tampouco usar aquela túnica lilás brilhante com um chapeuzinho de côco, eu só queria ter um doze avos do caráter, da sabedoria e história desse homenzinho negro que foi capaz de liderar um movimento em seu país com a finalidade de perdoar – isso, leia bem – perdoar as pessoas que massacraram seu povo durante o regime de apartheid na África do Sul, enquanto todo o povo ainda sorvia sua sede de vingança pelo sofrimento.

Tutu resgata em sua abordagem uma expressão africana que eu quase gostaria de tatuar: Ubuntu. Em xhosa, diz ele: “Umntu ngumtu ngabantu”, que mal traduzida seria algo como: “Uma pessoa é uma pessoa por intermédio de outras pessoas”. Segundo essa ideia, ninguém vem ao mundo totalmente formado, por isso, um ser humano precisa de outros seres humanos. Ele defende: “Para nós, o ser humano solitário é quase uma contradição”.

“Ubuntu é a essência do ser humano. Ele fala de como a minha humanidade é alcançada e associada à de vocês de modo insolúvel. Essa palavra diz, não como disse Descartes, ‘Penso, logo existo’, mas ‘Existo porque pertenço’. Preciso de outros seres humanos para ser humano. O ser humano completamente autossuficente é sub-humano. Posso ser eu só porque você é completamente você. Eu existo porque nós somos, pois somos feitos para a condição de estarmos juntos, para a família. Somos feitos para a complementaridade. Somos criados para uma rede delicada de relacionamentos, de interdependência como nossos companheiros seres humanos, com o restante da criação.” (…) “A ênfase do Ocidente no individualismo tem mostrado, com frequência, que as pessoas estão sozinhas em uma multidão, despedaçadas pelo próprio anonimato.” (…) “Ubuntu nos ensina que nosso valor é intrínseco a quem somos. Temos importância porque somos feitos à imagem de Deus. Ubuntu nos lembra de que pertencemos a uma única família – a família de Deus, a família humana.”

A internet ainda funcionava a lenha quando Desmond Tutu escreveu e ministrou sobre isso. E não me parece que tenhamos feito algum avanço.

Mas, e se levarmos essa idéia adiante? E se colocarmos em prática todo o conceito, se decidirmos, no mundo contemporâneo, lutar contra o egocentrismo arraigado em nossa formação e seguir o exemplo de vida de Jesus Cristo? Não parece tão simples quanto desconectar o computador e sair por aí distribuindo abraços e oferecendo ajuda a estranhos. Nossas relações mais difíceis são, em geral, as mais próximas, com os que estão ao nosso lado e são capazes de nos fazer revirar as entranhas na busca por uma solução. Quão áspero parece ser ter que esbarrar nas falhas e contradições das pessoas. É tão mais simples, tão mais cômodo e confortável construir nossas bolhas, protegidos pelo escudo de uma tela de computador, atacando e defendendo com nossos cliques, alheios ao mau cheiro do efeito de nossos defeitos sendo expostos e sem precisar engolir o cálice amargo desses encontros.

Eu quero menos, confesso. Gostaria de poder tornar as coisas mais simples. Se tudo anda tão superficial, tão cheio de espuma, às vezes, precisamos mesmo cortar coisas para ganhar, ‘ter’ menos para ‘ser’ mais. Estar ao lado de quem amamos. E a vida toda só parece ser possível através de transparência e troca, de relacionamentos sólidos que se constroem com conversas, com sentimentos revelados, curtindo juntos, compartilhando, estando no Face… no face a face.

Ciclos

Ela já não tem medo de monstros. De dois meses para cá, como num passe de mágica, as coisas mudaram um pouco aqui em casa. Às nove, dado o alerta da hora de ir para a cama, ela escova os dentes, veste o pijama e, beijos dados, segue para seu quarto.

Não era sem tempo, a gente sabe. Mas até outro dia, esse parecia um cenário muito distante na rotina de casa. Escrevi por aqui sobre toda a tensão dos momentos que antecediam o momento do sono, a insegurança, a incerteza sobre o que estávamos fazendo de errado, como poderíamos ajudar a Nina a superar a dependência que nutria da gente para dormir. E de uma hora pra outra, tudo se foi, numa noite ela chorou e dormiu, noutra reclamou e dormiu, aí finalmente dormiu. E agora é assim, ela sai da sala sozinha, deita e dorme. Sem dengos, sem as histórias, sem aquela carência toda. E de repente, me peguei sentindo uma falta danada daquelas noites.

Ela dorme. Estou sentado no pé da sua cama e a observo. Minha menina está crescendo, o rosto afinando, os cabelos mais lisos presos num rabo-de-cavalo. O pijama, cheio de desenhos de gatos coloridos, já serve só até o meio das canelas. Três mechas vão caindo sobre o rosto, as duas mãos juntas embaixo das bochechas… a cena que eu jamais gostaria de esquecer, um momento, entre tantos, que eu sei de que terei saudade no futuro.

É mais um ciclo que se cumpre. Para ela e para nós. Desde o começo, a espera, a gestação, o corte do cordão umbilical numa madrugada chuvosa de março, as primeiras palavras, o primeiro ano, nove mil e duzentas fotos, os primeiros passos, a caminhada inteira de então em diante.

Ciclos. A gente quase não percebe quando começam, mas terminam quase sempre numa sessão de nostalgia. E para cada um, um novo marco, um altar edificado de celebração, lembrança e saudade.

Ela cresce uma era inteira a cada minuto e vive plenamente a infância, se desenvolve, sorri, cai, levanta, aprende e absorve como uma esponja – dos episódios quase infinitos da novela Carrossel às conversas secretas dos adultos – tudo o que se passa ao seu redor.

Sentado no quarto escuro, olho para a porta entreaberta, sondo a luz que vem da sala pelo corredor e admito uma ponta de medo ao notar a sombra do futuro que se projeta adiante. Bendita incerteza, quando parece que as coisas vão se acomodar e tomar um rumo finalmente, percebo que preciso reaprender a ser pai, ser marido, profissional, a encarar desafios diferentes outra vez.

Mudanças. Às vezes, precisamos mesmo que elas aconteçam para que nos desapeguemos. Alguém deve tirar nosso apoio, de supetão, de repente, para que a gente possa acordar, para que um novo passo seja dado.

É tarde, preciso dormir. Amanhã será um novo dia, mais um começo, outro ciclo.

Chegadas e partidas

Minha avó está doente. Ela tem 93 anos e até alguns meses atrás, parecia seguir com tanta firmeza e lucidez rumo ao seu centenário quanto eu caminho em direção aos quarenta. Mas uma sequência recente de breves enfermidades a deixou combalida. O negócio é que ela não está exatamente doente, não sofre de nenhum sintoma específico, ela só está cansada. Dorme muito, come pouco, já não reconhece filhos e netos com a clareza de antes. Para quem até pouco tempo estava habituada a frequentar regularmente as reuniões dominicais da igreja e visitar os filhos, não é nada entusiasmante ver-se limitada a uma rotina tão pacata.

Tenho me preocupado com seu estado. E além dos pensamentos habituais sobre sua condição de saúde, por esses dias tem me ocorrido também que minha avó, de alguma forma, é o elo vivo mais antigo que eu tenho com o passado. Nem tanto pelas questões genéticas, que também existem, mas pela relação histórica. Ela carrega vivas as lembranças, as raízes do que somos, os frutos lá da roça que ela semeou um dia.

– Ah, pai, deixa eu aproveitar pra te perguntar uma coisa: como tá a vó?. Tenho pensado nela esses dias – aproveitei um telefonema casual com meu pai para ter notícias.

– Ah, filho… ela tá daquele jeitinho que você viu, não mudou muito. A gente chega lá e ela se levanta um pouco, conversa, fica mais animada. Mas quando a gente sai, ela fica murxinha, só quer dormir. Agora tem uma senhora lá ajudando a cuidar dela. Vamos ver.

– Tsc. Tadinha.

– Bom – longos segundos se passam – ela está se despedindo da gente.

Quando muito, eu a vi duas ou três vezes no último ano. Admito que não sou um neto muito presente, é uma falha que agora eu lamento. A última vez em que a vi, faz coisa de um mês.

– É o Nelinho?

– Não, mãe, esse é o Rique.

– Oi, Rique – e sorriu largo.

Passei calado quase toda a hora em que estivemos ali. Observei meu pai na condição em que quase nunca o percebi: a de filho. Temeroso, abraçado à mãe, honrando tudo o que ela significa com seu silêncio habitual. E tudo o que ela tem é um quarto apertado, arranjado na casa da minha tia, com uma cama, um armário pequeno, uma mala de roupas e um mundo inteiro de apreensão dos filhos e seus corações rendidos naquele espaço.

Quem é que ensina a gente a perder?

Com o que será que ela sonhava quando era criança? Quando ela chegou, jovem, era essa a vida que ela imaginou que teria? Na volta para casa, no carro ao lado do meu pai, enquanto as ruas passavam pela janela, eu pensava em minha avó ali sentada na beira da cama quando me despedi dela. O pijama velho de flanela, um gorro de lã branco cobrindo os ralos fios brancos que ela já não corta desde que se converteu a uma denominação religiosa conservadora e o mingau que ela sorvia de uma xícara. Mas, o tempo todo fina, preocupada com a boa postura. Suas posses se resumem em tão pouco… mas é tudo de que ela precisa. Tem sua família, seu Deus, tem um prato de comida, roupas, tem amor e um teto sob o qual dormir.

Pensei nas palavras de Jesus: “não se preocupem com o que vão comer ou o que vão vestir, não se preocupem com o dia de amanhã, não sejam ansiosos. Busquem o Reino de Deus e todo o resto lhe será dado”.

Mas será que ela pensa nisso? Será que entende que o Criador cuida dela através das mãos das minhas tias, que lhe dão banho, trocam sua roupa, trazem o mingau quente? Deus, com as mãos estendidas, lhe acaricia o rosto marcado, alivia a dor e divide o jugo de quase um século que lhe colocaram sobre os ombros.

Será que entendemos?

Do que o homem precisa na vida, afinal? Perseguimos tanto, trabalhamos duro… e será mesmo que o começo e o fim se resumem, essencialmente, em amar e se relacionar, em estar e cuidarmos uns dos outros?

Parece que faz sentido. Mas não parece que queremos que tudo seja tão simples.

Por que desviamos tanto o olhar e a rota ao longo da vida, que é tão fugaz? Eu não sei. Erramos o alvo. Peregrinos que somos, buscamos preencher o vazio na alma com os milhares de meios que transformamos em fim, até descobrir, já exaustos, a única razão capaz de nos suprir. Uma palavra, o Verbo, o amor.

“Pois, que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?” (Jesus, em Marcos 8:36).

Quais eram os sonhos daquela moça? Eu me perguntava, tentando construir na memória a sua história até onde a conheço. Casou cedo, trabalhou no sítio, deu à luz 12 filhos, conseguiu criar os sete que sobreviveram às dificuldades da vida no campo na década de 1930. Perdeu o marido ainda jovem, deixou a terra, os amigos, a família e a vida em Minas Gerais quando se mudou para São Paulo. Fez os filhos crescerem, viu quando casaram e se foram, se multiplicaram, ficaram velhos com ela. Viu o mundo ficando cinza, urbano, digital, viu a história das últimas décadas passando na televisão, em preto-e-branco e colorida, que nem existia quando ela nasceu, que ela trancava no armário, de “castigo”, quando as notícias ficavam tristes demais. Viu guerras, presidentes, novelas, crises e bonanças.

E que diferença isso fez? Que diferença faz toda a história do país e do mundo, a humanidade, o dinheiro, as conquistas e os grandes projetos quando, no fundo, a coisa toda é sobre a vida simples, a rotina comum do homem, da avó de família, de cada um?

Ela está fraca, fala pouco, mas seu olhar vai longe, entra fundo e, nele, ela expressa todo seu legado. Nele, ela pergunta o que é que estou fazendo com a semente que ela plantou. Ela me deu sangue, deu seu filho para ser meu pai, deu carinho, café aguado, limonada e doce de leite feito na panela. Ela me ensinou a ler as primeiras palavras, quando passava uns dias em casa lá na Barra Funda e repassava comigo as letras de algum parágrafo do livro que trazia.

– Rique, que letras são essas?

– S, I, L, E, N, C, I e O.

– Isso, muito bem, “silêncio”.

Ela só não me ensinou as palavras para descrever o que estou sentindo agora.

Enquanto minha avó se despede (e desejo que ela só o faça depois de uma demorada e animada festa de 100 anos, em 2019), me consolo em saber que ela já descansa, amparada pelas mãos do Deus de sua vida. E penso que talvez não faça mesmo diferença, não valha realmente sofrer pelo dia de amanhã. Precisamos hoje – HOJE, eu penso como um grito – buscar pelo Reino dos Céus. Esse reino que, segundo as Escrituras, é “paz, justiça e alegria no Espírito Santo”. E o Espírito Santo é Deus e Deus é amor e o amor se declara, se escancara, se revela explicitamente no Verbo, na palavra, num desabafo, no toque, no convívio, na presença e a vida toda ao lado de quem amamos. Hoje.

A vida é uma centelha. No riso e na dor, nas chegadas e partidas, o contorno de um belo e admirável ciclo. A vida é eterna.