Pausa

De repente, por uns dias, você se vê forçado a parar com a coisa toda. Uma crise, férias, um problema de saúde, o que for, surge e te coloca para dançar em outro ritmo. E você nota que a Máquina talvez não precise realmente funcionar naquela rotação, estar ligada tão intensamente a ponto de esvair as forças que deveriam estar sendo usadas para outro propósito. Você se afasta, olha para a Máquina e se lembra que a vida não é bem… que o meio não pode ser tratado como um fim. Tudo o que você precisava era de solitude, uma certa distância e sua casa a qualquer hora. O pé na grama, o sol na pele, crianças por perto, por aí, a vida se completa lá fora. O homem se completa em Deus. E as coisas parecem estar se ajustando outra vez.

“Pois onde estiver o seu tesouro, aí também estará o seu coração.” (Jesus, em Mateus 6:21)

Assombrações

“Não tenham medo!” (Mateus 14:27)

Hora de dormir. Noite após noite, o ritual se repete: ela veste o pijama, faz xixi, escova os dentes, enrola a gente, pede uma história, conta um milhão de coisas da escola, faz uma oração e dorme. No meio da madrugada, invariavelmente, a vozinha rouca chama lá do quarto e – sim, nos condenem os pais super eficientes – ela encerra as últimas horas da noite dormindo na nossa cama.

Temos tentado, juro, mas parece em vão. Se as experiências de amiguinhas e personagens de desenhos animados servem de lição e inspiração para convencê-la sobre quase tudo, o mesmo não acontece com a ideia fixa de que é difícil dormir sozinha. Ela continua choramingando e nós, às quatro e tantas da manhã, não temos a menor condição física e mental de discutir a relação com nossa filha de cinco anos.

Noite dessas, enquanto ela vestia o pijama, fui até a cozinha buscar o copo de água que sempre deixo sobre o criado-mudo. Cheguei no quarto e vi que ela estava atravessada em cima do colchão, debruçada, procurando algo atrás da cama.

“O que foi, filha?”. Achei que ela procurava algum brinquedo perdido.

“Pai?”. Ela perguntou, ignorando minha dúvida.

“Oi.”

“Tem uma cobra ali atrás?”

Ela tem medo de monstros. E naquele momento, muita coisa sobre essa dificuldade toda fez sentido. Cobras, morcegos, a escuridão, bandidos, dragões, ela acha que algum perigo pode surgir no meio da noite para atacá-la. E não há argumento, parábola ou estudo de caso que a faça abandonar o temor e aceitar uma verdade simples que afirmo todos os dias: “isso é bobagem, você não precisa ter medo”.

Curiosamente, tudo passa, tudo pode ser vencido, se eu simplesmente ficar ali ao seu lado. Ela não dorme sozinha porque tem medo, mas descansa como um anjo – ou princesa, como ela prefere – se me sento ao pé da cama e vigio seu sono. Se estou por perto, as cobras se transformam em minhocas, bandidos voltam para casa janela afora, monstros se apequenam e escondem-se resignados, a escuridão perde a frieza. Então, ela pode repousar e sonhar com suas fantasias coloridas.

Até que se sinta sozinha no meio da noite, acorde, resmungue e cambaleie descabelada para nossa cama. Até que se sinta desamparada e clame pela proteção que o abrigo paterno parece oferecer.

E ainda que isso soe como uma tremenda massagem na auto-estima de um pai que gosta de sentir-se o amparo de sua prole – gosto de falar “prole”, mesmo que minha prole seja de uma pessoinha só – sei que não é bom que seja assim, não é saudável para ela. A Nina precisa saber que já tomei as providências para que nenhum perigo se aproxime e que ela pode fechar os olhos sem esse tipo de preocupação. Eu não estou lá ao pé da cama, mas estou o tempo todo com ela, cuidando, com meus limitados poderes, para que tudo vá bem e ela se acolha guardada em meus braços.

Mas, às dez da noite, às voltas com esses pensamentos enquanto a observo, fico tentando descobrir como fazer para minha filha de cinco anos – com a imaginação fervilhando de fantasias – acreditar que esses temores são tolice, devaneios da imaturidade e que ela pode ter paz, descansar, porque seu pai está de vigia?

“Em paz me deito e logo adormeço, pois só tu, Senhor, me fazes viver em segurança.” (Salmos 4:8)

Ela dorme.

E enquanto ela sonha em ser “uma heroína com asas, coroa dourada, maquiagem e muito brilho” – um dos pedidos que ela dirigiu a Deus na oração que fez -, eu luto com os monstros. Os meus. O estresse da vida cotidiana, a sensação de não estar dando conta do recado, dos recados, da lista enorme de pendências que se acumula. Sem que eu percebesse, a vida adulta foi tomando conta de tudo, lembro à distância, ainda com certo romantismo, da espontaneidade juvenil que regia as coisas e percebo que vou me tornando o tipo de sujeito saudosista que costumo criticar. Alguns fios de cabelo começam a cair, os que não caem vão se tingindo de branco, uma sombra parece se projetar sobre a alma. Está difícil dormir, preciso acender uma luz.

Tenho medo. As minhas assombrações adquirem as formas do cotidiano. Sei que jamais serei totalmente suficiente, que me apavoro com tolices, mas minha imaturidade não me deixa enxergar que não há nada que eu possa fazer, não há nada que eu deva ou precise fazer, que a graça deveria bastar. Cego, não percebo os braços que me acolhem. Eu também sei que monstros não existem, que bandidos não escalam prédios para invadir apartamentos no décimo primeiro andar e que, a menos que se viva na selva, cobras não costumam montar seus ninhos embaixo de camas.

Sei que não preciso ter medo da escuridão porque o Pai zela por mim o tempo todo. Ouço suas histórias, suas promessas e acredito, acredito mesmo, em suas palavras. Mas ainda assim, mesmo sabendo de tudo isso, percebo muitas vezes a inquietação e a dúvida ganhando espaço em minha mente e titubeio, eu paro, retrocedo.

O medo manipula. Dá aparência de dor ao que é só ameaça, dá sensação de trevas ao que são tão somente sombras. Então parece mais fácil fugir, fazer de conta que o problema não está lá e buscar amparo numa muleta qualquer do que encarar a verdade assombrosa de que os monstros, em grande parte, se escondem dentro de nós.

Mas ao tentar ensinar a Nina, tenho aprendido que fugir do problema não resolve o problema, fingir que ele não existe não faz com que ele desapareça. E às vezes, é preciso aceitar que o conflito é necessário e que devemos encarar a realidade, vencer o obstáculo e finalmente seguir em frente. E jamais estamos sozinhos.

É nessas horas em que preciso tomar a decisão que já conheço mas da qual quase sempre me esquivo: eu preciso confiar e seguir em frente. Crer e saber, de forma pura, que o mal já foi vencido e que o Pai, ao meu lado, me protege e preenche.

E eu posso apagar a luz, fechar os olhos e viver em paz.

Abaixo da superfície

Quando você vê a dor nos olhos de outra pessoa, no dia em que presencia o sofrimento explícito na expressão e nas lágrimas de alguém, é impossível ficar indiferente. Qualquer barreira, qualquer resistência se dissipa. Gostaríamos de poder dizer algo, estender a mão, um lenço. Por um instante que seja, você perdoa, deseja sinceras condolências e as diferenças se vão.

De repente, você entende o que se passa de verdade no coração do homem.

Eu gostaria de falar sobre compaixão.

* * *

Há alguns meses, pude testemunhar o sofrimento de um pai que perdeu o filho em uma tragédia. Eu vi a sua dor, vi a sombra negra sobre sua face engessada e, no olhar taciturno, o vazio desesperador. O que seria a vida então?

Na mesma semana, senti o abraço aflito da filha que perdeu seu pai, já idoso, vítima do tempo, do Alzheimer e da morte da esposa que o deixara um ano antes. Amparei seu choro, chacoalhei com os soluços que a faziam descarregar em lágrimas o peso que lhe caía sobre a alma.

De novo, a dor. Mas não somente então, não só na morte – só!? – mas também naqueles que alimentam o sofrimento oculto por detrás dos breves risos, da espuma de sociabilidade, das curtidas no Facebook, do senso comum que nos carrega. As coisas tem que estar mais ou menos bem, porque no dia seguinte tem aula, tem trabalho, tem trânsito, tem hora marcada no dentista, tem uma dúzia de pessoas esperando que você não surte e a rotina deve seguir seu fluxo.

Um dia… ele sempre surge, vem à tona quem somos. Nas medidas desesperadas, nos atos mais grotescos, pessoas revelam o que se passa abaixo da superfície, aquilo que se acumulava nos porões sobe a escada até a sala, abre-se a porta do quarto escuro e ele não tem um bom aspecto.

O garoto tímido que se esconde num computador, atrás de suas dúvidas sobre o mundo e suas escolhas. O velho casal que ainda se ama mas já não se respeita. A menina e sua boneca, olhando pela janela, para o muro, para cada adulto que passa apressado pelo orfanato, pensando se é hoje que ela poderá ter alguém que lhe faça uma trança e que possa chamar de mãe. O vizinho mal humorado que tosse a noite toda, que sobe o elevador com um envelope sob os braços. O filho que ainda espera um telefonema. A jovem mulher, seu bebê ressonando no berço e um travesseiro em silêncio ao seu lado na cama.

O estranho ao seu lado no trem, o conhecido ao seu lado na festa, o amigo ao seu lado na sala, a esposa ao seu lado o tempo todo. Eles podem estar sofrendo. Se esperarmos por evidências talvez seja tarde demais e talvez devêssemos observar mais e tentar entender, estar sensíveis ao outro, nos envolver, tocar sem luvas, viver sem máscaras, ser cúmplices do que se passa sem tecer comentários, sem julgamentos. Carecemos da capacidade de olhar nos olhos e entender o que se passa antes que a tragédia aconteça. Precisamos nos antecipar, porque a dor, estranhamente, é algo que a gente acumula, mas é urgente.

Eu acho que estou falando sobre compaixão.

* * *

A compaixão é uma das coisas que me fazem acreditar em Deus. Bem, eu falo sobre minha fé vez ou outra, mas é raro que alguém me pergunte por que eu creio em Deus, por que desse jeito, em Jesus Cristo e a coisa toda da cruz e da Bíblia. Mesmo entre meus amigos agnósticos, nunca precisei responder a essa pergunta. Mas confesso que eu, entretanto, me questiono o tempo todo a respeito.

Tenho diversos motivos que me trazem à mente a razão da minha fé, mas a que cabe nesse parágrafo e me afeta sensivelmente é porque Jesus é compassivo. Se você ler os evangelhos, verá um sujeito totalmente sensível às pessoas. Pela primeira vez, acompanhamos a história de um deus que jamais desejou devotos ignorantes prostrados diante de seu egocentrismo. Ao contrário, ele se revelou ao homem na condição de homem, homem simples, que foi até o fim. A história conta que ele olhou para as pessoas que o seguiam famintas e foi movido de “íntima compaixão”. Eram para ele “como ovelhas sem pastor”. Perdidas e desamparadas.

“Eu sou o bom pastor”, ele disse em outra ocasião, “e o bom pastor dá a vida pelas suas ovelhas”. Ele olhava nos olhos e compreendia. E porque compreendia, se aproximava. Estando perto, tocava, oferecia consolo. E sentindo a dor do outro, curava. Porque ele amou. Escolheu não ignorar o que se passava, procurou olhar além do que um rosto revela. Jesus enxergava abaixo da superfície, das cascas e máscaras que o tempo todo escondem quem realmente somos.

E se deu. Ofereceu-se ao cego, à adultera, aos religiosos extremistas, aos doentes, aos pobres, às crianças, a cada um dos excluídos. Ele se revelou Deus sendo o filho o carpinteiro. Era seu mestre e seu cúmplice. Ele não quis sacrifícios, ele foi sacrifício. E porque sofreu, tornou o sofrimento humano santo. E porque triunfou sobre a dor, tornou a vitória possível.

* * *

Ter algo ou alguém como seu deus, imagino, é ter nisso a imagem total do que afirmamos com a perfeição e diante do que aceitamos nos curvar em devoção resoluta. Eu me dobro em louvor ao Nazareno, diante de sua índole, seu amor desinteressado e puro. Sou devoto do Deus que se fez homem, do homem a quem chamo Deus e firmo esperança em suas palavras que prometem que esse seu caráter – espírito – acompanharia aqueles que o seguissem, que então como um espelho, poderiam refletir sua imagem ao mundo, que então como filhos poderiam se dirigir a Deus como Pai.

Porque precisamos olhar para as pessoas – nossos semelhantes – sem que seus sentimentos nos sejam invisíveis. O porteiro do prédio, a faxineira no escritório, o chefe rabugento, o trombadinha no semáforo, o familiar esquecido. O que se passa realmente? Lá no fundo, dentro da embalagem, quem é, como está? Não podemos permanecer indiferentes, devemos compreender o coração do homem e nos aproximar, estender a mão e tocar, oferecer um ombro, oferecer consolo, um milagre, talvez perdão. E sentindo a dor do outro, finalmente podemos ser sua cura. Porque Deus em nós é amor.

Compaixão.

Passagem

por Luiz Henrique Matos

Tanta coisa pra fazer, tão pouco pra pensar. Ele pensava que gostaria de estar vivendo exatamente o contrário naqueles dias. Que falta fazia ter os dias livres.

Era o último dia da viagem, as últimas horas antes de embarcar, e um passeio no parque da cidade era uma forma bem convencional de se sentir um turista finalmente.

Queria que tudo pudesse ser simples de novo, que a quietude fosse outra vez reduto da imaginação, que a fantasia regesse a realidade.

No ponto mais alto do parque, ele escalou uma pequena elevação do gramado, de onde podia observar todo o pequeno lago que decorava a paisagem e em torno do qual uma família se divertia. Podia ver as árvores ainda secas do outono contornando as margens e emoldurando as alamedas, tinha toda a vista da cidade e, no fundo, sempre lá, como se observassem a vida aos seus pés, as montanhas. A neve repousando sobre os cumes, o céu deixando-se tocar.

De novo, desejou estar perto da família. Queria que estar perto de quem se ama pudesse ser tão somente estar perto.

As gaivotas começaram a se agitar e cantar no pequeno lago. Quietas, elas nem pareciam tantas, mas de um minuto para outro, a revoada de pássaros, centenas deles, estavam voando e voando em círculos e círculos, num caos frenético que durou cinco ou seis minutos, ou o dia todo. O som estridente e encantador, as gaivotas dançavam, cada uma a seu ritmo. Mas então elas se organizaram, baixaram o tom, enquadraram o ritmo, montaram posição e migraram para o norte.

Era hora de ir pra casa.

À procura de um significado

por Luiz Henrique Matos

Na maior parte do tempo, com a maior parte das pessoas, as coisas funcionam mais ou menos assim: a não ser que alguém apareça e atrapalhe a forma como encaramos o mundo e as nossas vidas, em geral tudo caminha bem. Enfrentamos algumas dificuldades, conquistamos meia dúzia de feitos, reclamamos um bocado de tudo mas no fundo não trocaríamos o que temos por outra coisa.

Detestamos admitir que fazemos parte da média porque queremos estar no grupo das pessoas diferenciadas, mas acredite, tem muita gente igual e com os mesmos padrões de comportamento que você e eu. Ao longo da vida, nos adequamos aos modelos de conduta e meio-ambiente à nossa volta. Convenhamos, não é preciso lá muito esforço para encontrar uma receita de vida em que as coisas funcionem.

Seguimos confortáveis, numa certa inércia, nos acomodamos em nossa condição até que, certo dia, aparece alguém, uma voz inquieta em nossa orelha, que tem a ousadia de perguntar:

“Por quê?”

Se esse alguém tem um metro e dezenove centímetros de altura, cabelos cacheados e bochechas grandes, a tendência, em grande parte, é que a pergunta tenha uma natureza imprevisível e provoque algum tipo de desconforto, no mínimo uma reflexão. E se você já se deparou com a artilharia de interrogações de uma criança descobrindo o mundo, sabe que na maioria das vezes, nós não temos uma resposta.

Ela diz: “Pai…?” e pelo jeito com que fala, eu sei que devo me preparar para o golpe.

“Pai…?”

Titubeio.

“Oi?”.

“Éé… assim… pai, por que as pessoas morrem? Por que elas vão para o céu? Por que é que japonês tem o olho assim ó, meio fechado? E o chinês!? Por que aquela moça está chorando? Por que é que tem gente que não tem casa, que mora na rua? Por que, pai?”

As questões vão das mais obvias às absolutamente desconcertantes. Algumas dúvidas, eu descubro que também sempre tive mas nunca soube. E o ambiente da nossa casa, que sempre navegou sobre as águas calmas do senso comum, se transformou, sem que eu me desse conta, numa enxurrada de interrogações.

“Por que eu tenho que tomar banho todo dia? Por que a sua barba arranha? Por que o arco-íris não aparece toda vez que chove? Por que a Fulana fala daquele jeito, com aquele sotaque estranho? Ela fala ‘porrrrque’. Pai, por que as pessoas ficam velhas?”

“Pai, por que você tem que trabalhar? Por que não pode ficar brincando aqui comigo só mais um pouquinho?”

“Porque o papai precisa ganhar dinheiro, filha.”

“Por quê?”

Talvez, se também perguntássemos porquê fazemos as coisas que fazemos, é bem possível que deixássemos de fazer a maior parte delas. Porque há algum tempo nós mesmos paramos de fazer perguntas assim. Nos ajustamos, deixamos de questionar o significado das coisas e passamos a vida repetindo um único tipo de pergunta: como?

Nisso reside a mais precisa teologia, o ponto congruente de nossas reflexões existenciais. Talvez Kierkegaard pudesse ter dialogado com a Nina – e, se não é essa uma definição ampla e cientificamente aceita, deveria. Ela não quer conhecer procedimentos, não quer caminhos, ela quer motivos e significados. Disse Paulo a seu discípulo Tito: “para os puros, todas as coisas são puras”, para quem entende que a satisfação da vida está no “ser” e não em ter ou fazer, a felicidade se revela simples e as dúvidas, ao invés de fardos, adquirem a dimensão de grandiosas explorações e descobertas.

“Pai, por que você casou com a mamãe? Por que eu não posso comer a sobremesa antes da comida? Pai, por que Deus fez as cobras? Por que eu tenho que ir para a escola? Por que a gente sente dor? Por que a gente precisa orar? Por que eu orei para Deus sarar meu machucado e ele não sarou?”

Deus não se ofende com perguntas.

Temos medo, vergonha e preguiça de expor nossas questões, mas a dúvida não é algo ruim ou imaturo, não é, em absoluto, a ausência de fé. A dúvida é justamente o reflexo da nossa busca por fundamentos que sustentem nossas crenças. Por isso, as repostas não são, jamais, receitas concretas, certezas definitivas ou instruções simples, mas caminhos, o vislumbre de um significado, um propósito a seguir.

E essa é uma questão que faz sentido quando se pensa na verdadeira religião e na vida. Essa é a pergunta que as Escrituras fazem e procuram responder o tempo todo.

Acho que Deus gosta desse tipo de pergunta, os “porquês”. Acho que ele gostaria que o questionássemos mais, que procurássemos entender suas razões. Porque na maior parte do tempo, suas respostas insinuariam o grande amor que ele sente e nos tornaria mais próximos. Acredito que se buscássemos entender os motivos, para o quê fomos criados, pode ser que a vida adquirisse um outro sentido. Repito: pode ser que nossas escolhas – das mais complexas à simples rotina – fossem diferentes.

Afinal, por que você reclama tanto da sua vida? Por que murmura sobre o clima, sobre seu emprego, a falta de dinheiro, seu casamento, os outros? Por que você acredita em Deus? Por que não acredita? Por que ainda não começou a cuidar da sua saúde? Por que guarda dinheiro? Por que você não conversa mais com aquela pessoa da família? Por que não esquece logo e perdoa? Por que você alimenta esses sonhos? Por que não foi atrás deles? Por que você faz o que faz e é o que é? Quem você é? Por quê?

A verdade é que passamos a vida empenhados na busca por procedimentos, esperamos que nos passem uma lista de regras de conduta e um código moral para obedecer. Reclamamos das leis mas elas são tudo o que mais queremos – nem que seja para fazer o oposto do que nos mandam. Mas Deus, ao contrário do que pregam tantos, não nos impõe regras. Porque ele ama, quer que sejamos livres para escolher nossos caminhos. Como Pai, escuta atento as nossas questões e, se pararmos para ouvir, notaremos que ele nos dá conselhos, compartilha, explica seus motivos e nos revela quem somos.

“Pai, por que eu não posso usar vestido todo dia? Por que o pai e a mãe da minha amiguinha Fulana não moram na mesma casa? Por que quando a gente foi no médico tirar aquela foto (raio-x) eu não vi Jesus dentro de mim? Por que eu tenho que ir dormir agora?”

Daqui alguns dias ela fará cinco anos. E o tempo todo, podemos sentir que ela está absorvendo tudo à sua volta, construindo sua própria visão dos fatos e definindo, ainda sem saber, seu papel no mundo. Em cada pergunta, há algo novo que ela assimila, um fato que molda a sua personalidade e amplia seu repertório. Em cada “porque” a busca por um bom motivo que sacie a sua sede ou uma fagulha que acende outra chama. Eu espero que ela jamais se contente e se acomode num padrão que alguém lhe imponha – mesmo que esse alguém seja eu, com as melhores intenções.

E porque eu a amo, farei o que puder para que essa curiosidade jamais se sacie. Quero que ela seja livre para fazer suas perguntas e entenda a vida a partir de seu olhar. Espero mais é que ela duvide das convenções. Quero que sua mente inquieta me questione, se descubra, me constranja, se revele. Me ensine.

Fantasias

por Luiz Henrique Matos

Numa noite dessas, depois da alucinação toda de outro dia cheio no trabalho e a paralisia toda de outro dia entupido no trânsito de São Paulo, cheguei em casa mais tarde, mais estressado e cansado que o habitual. Mas, depois de passar pelo meu Portal Mágico da Paz – ou, porta da sala adentro – segui a rotina ritualista e purificadora: beijei minhas meninas, conversamos um pouco, comi algo, tomei banho, conversamos outro pouco e vimos TV até que deu a hora de a Nina ir pra cama. Banheiro, escovação, um protesto, pijama, um copo d’água, um beijo na mãe, uma enrolada no pai, uma oração, várias interrupções e, sem falta, a historinha do dia.

E como fazemos diariamente, escolhemos juntos uma história para eu contar. Nessa hora, pode ser que nos aventuremos pela septuagésima vez através de um dos livros da estante dela, por uma narrativa resgatada na lembrança (leia-se: historinha clássica sem livro) ou “alguma coisa de quando você era pequeno”, como ela costuma pedir. A verdade, é que as historinhas são o grand finale do nosso dia como pai e filha, é quando encostamos juntos por alguns minutos na cabeceira da cama, longe da correria, de celulares, televisores, computadores ou outros estímulos digitais e unimos nossa imaginação em algum ponto, uma pequena saga que habita fora – ou muito dentro – de nossas mentes. Todos os dias, um capítulo novo, misturando as nossas experiências cotidianas com a ficção e virando uma página, uma etapa e uma metáfora da vida.

Mas naquela noite, quando entramos no quarto, notei que a cama dela estava inteira ocupada por peças de Lego.

– Tava brincando de Lego, Nina?

– Sim. Essa é uma casa que eu tô construindo – era uma sequência de peças grudadas umas nas outras, enfileiradas, formando ainda a planta baixa da construção toda.

– Que linda.

– Pai, você quer montar comigo?

– Quero. Mas hoje não, tá? Agora é hora de dormir. Vamos arrumar essa bagunça.

– Tá.

Esqueci o assunto em cinco minutos, a cabeça estava cheia. Mas no dia seguinte, à noite, quando ia para meu quarto e olhei pelo corredor, notei que a pequena construção colorida estava ali no chão, ao lado da caixa com as peças e havia avançado um pouco mais, com mais detalhes e as paredes começando a ser erguidas.

Senti-me péssimo. Poucas coisas me frustram tanto quanto perceber que deixei de honrar um compromisso com a Nina. E não é porque ela se lembra da promessa não cumprida e me recorda disso também, mas porque eu, de fato, gosto de sentar ao lado dela, mergulhar um pouco no seu universo e viver aquilo ao seu lado. Fantasiar, deixar as coisas serem, por alguns minutos, como gostaríamos que fossem, simplesmente porque temos o controle da situação.

Ela cria, constrói, compõe mundos inteiros, apenas com um punhado de lápis coloridos e me guia pelas mãos em suas aventuras. Naqueles instantes, a gente esquece a correria toda e tem a sensação de que pode viver nisso, jogar de lado o peso do cotidiano, retroceder no tempo uns 27 anos e lembrar de como era tudo e ficar ali, de short, camiseta e chinelo, sentado na rua da vila, olhando uma formiga atravessar a calçada com uma folha verde nas costas e fazendo de conta que eu era o terrível gigante de quem ela se escondia.

Mas, talvez o mais curioso dessa relação das crianças com a fantasia, seja notar que elas não vivem aquilo como uma experiência momentânea, um faz-de-conta premeditado. Ao contrário, elas mergulham de forma tão natural e intensa como se pudessem assumir aquela verdade para si. Para elas, cada brincadeira é real tanto quanto o que se pode tocar. Para nós, funciona como uma espécie de fuga da realidade nos momentos em que ela quase nos sufoca.

Às vezes, julgamos tudo isso como uma bobagem, aprisionamos nossa infância nas fotografias e avaliamos as nossas crianças como seres imaturos, inferiores e despreparados. E tentamos conduzi-los, adestra-los e determinar suas escolhas em conformidade com algum raio de visão do mundo que elaboramos ou lemos em alguma revista no salão do cabeleireiro.

Tudo isso é mentira. Eles não tem nada de menores. É bem possível que seja dessa “grandeza” infantil que tanto carecemos. Essa maturidade de não se deixar influenciar por pequenos problemas, a nobreza de não julgar, a confiança integral de que o pai é capaz de suprir e providenciar o que for necessário.

Olhamos a vida do alto, mas somos tão, tão pequenos. Tentamos enquadrar a vida numa caixa, tentamos controlar a situação, tentamos e tentamos em vão e, diria o sábio rei, só “corremos atrás do vento”.

Jesus falou disso também, da pureza das crianças e tudo, advertiu sobre o quanto é fundamental que sejamos como elas para entender – e habitar – em seu Reino. E vivia cercado delas, deixava que cantassem. Pode imaginar? Deus vivendo entre os homens, andando na Terra, com todo monte de atribuições, decisões e estresse que esse “cargo” representa? E ensinava sobre a importância de alimentarmos um coração ingênuo, desinteressado e sincero.

Um reino de crianças. Um céu colorido, divertido, sem o peso de ontem ou a preocupação de amanhã.

– Papai, como é que a gente vai parar lá no céu?

Eu respirei fundo. Acessei, nos porões da mente, o pouco de teologia que me atrevi a estudar e o vasto (arrãm) repertório de releituras bíblicas e psicologia familiar que adquiri. E engasguei. Fiquei quieto por um minuto, dois e então tentei mudar de assunto. Tive algum sucesso, a conversa enveredou por alguma superficialidade qualquer, mas foi ela, instantes depois, que concluiu:

– Pai, vai ser assim: vai ter uma festa no céu e Deus vai chamar a gente. E vou com um brinco, um anel e um vestido de princesa.

Um copo de leite, três biscoitos e um legado para a humanidade

por Luiz Henrique Matos

Um copo de leite gelado e três biscoitos de coco, todas as noites, antes de dormir.

O hábito já me domina há bons meses, mas só me dei conta mesmo alguns dias atrás. Eu observava a cena montada sobre a mesa da cozinha, desviando o olhar que deveria estar sobre o livro aberto ao lado e quando ameacei dar o primeiro gole no leite, me peguei falando sozinho: “É, amigão, a idade chega pra todo mundo.”

A idade. Uma entidade clássica, a fase crucial da vida. Sabe-se lá quando ela vem, nessas horas não importa muito se você está fazendo 64 ou 19 anos, quando seus hábitos ficam velhos, é sinal de que “a idade” chegou. No meu caso, a terceira década foi determinante. Eu nem bem fiz 30 anos num dia de 2010 e, no outro, expressões tais como “no meu tempo”, “não tenho idade pra isso” e “ai, meu ciático!” surgiram como mágica em meu vocabulário cotidiano.

Acabou a minha juventude, lá se foram os vinte e poucos, definitivamente. Agora eu tenho casa própria, sou pai de família, dirijo um sedan prateado, encontrei uns fios de cabelo branco na barba – bem no queixo! – e ouço minhas bandas favoritas tocarem no programa “Clássicos do Rrrrrock” na rádio. Eu penso no futuro, me preocupo com as consequências dos próximos passos, estou deixando a mocidade lá atrás e uma certa melancolia me ocorre vez ou outra.

Hoje é dia de vez ou outra.

* * *

Como serão, afinal, as coisas daqui 30 anos? Desde que deixei três décadas para trás, às vezes me pego lucubrando sobre as próximas.

Terei o dobro da idade de hoje. A Manú e eu estaremos embarcando nos 60, aposentados, gozando das ricas benesses da previdência social na década de 2040. Nossa casa, um bolinho novo sobre a mesa, uns biscoitos, o café fresco na xícara e aquele leite lá do primeiro parágrafo em seu devido copo. A sala toda cheia de fotos, os rostos cheios de rugas, o quintal cheio de netos e as lembranças cheias de pó. E eu ali, gordinho e grisalho, na minha cadeira, fazendo um balanço das escolhas e caminhos que trilhamos.

Legados.

Na etapa final da vida, me conheço bem, estarei encucado com o fato de a altura da grama no quintal estar muito grande para tal época do ano – qualquer época do ano – e pensando que tipo de marca eu terei deixado nas vidas dos meus filhos, na humanidade e em todas essas indagações tão fundamentalmente pequenas e típicas dos seres humanos.

No fundo, essa é a questão. Os anos vão passando e o sujeito começa a refletir sobre essas coisas. Vale para o leitor de auto-ajuda e para o de filosofia clássica também. A gente pensa, quer saber: que tipo de lembrança deixaremos no mundo? Queremos que nossas vidas, de algum jeito, tenham um significado, queremos saber se fizemos as coisas certas.

É nessas crises, com o cérebro embalado por mais uma dose fresca do mais puro leite semi-desnatado que eu considero que, já que não consigo enxergar como é que serão as coisas daqui 20 ou 30 anos, deveria ao menos começar alguma coisa que cresça e dure até lá. Sei lá, talvez plantar uma árvore, escrever um livro de memórias, abrir uma caderneta de poupança. Talvez semear alguns valores na vida da minha filha.

* * *

“Na verdade, quem sabe o que é bom para o homem, nos poucos dias de sua vida vazia, em que ele passa como uma sombra? Quem poderá contar-lhe o que acontecerá debaixo do sol depois que ele partir?” (Eclesiastes 6:12)

* * *

Quem é que sabe? Pode ser até que isso, os legados e tudo, sejam uma grandessíssima bobagem. Nessa semana, enquanto pensava justamente nessa história, esbarrei no verso do rei Salomão que me fez repensar o rumo desse texto algumas vezes. Afinal, vale alguma coisa a gente gastar, neurônios ou tostões que sejam, tentando edificar algo para a posteridade? Faz algum sentido eu querer projetar alguma imagem que gostaria que o mundo – as 11 ou 12 pessoas que me cercam – tivesse de mim quando envelhecer?

Eu penso na minha carreira, penso nas fotografias da família, penso nas convicções que defendo e em cada lição de moral que aplico na Nina. Mas eu sei bem que o que vai marcar a vida da minha filha não são exatamente as coisas que conquistei ou as mensagens registradas, mas o tipo de ser humano que fui. Coisas, isso de fato nós deixamos como herança, mas o caráter é o nosso legado.

Existe uma alegria pura e inconteste que reside no fato de encarar a vida de forma mais simples, desfrutando plenamente do que recebemos de graça e deixando de lado as preocupações vazias com o dia de amanhã – a ansiedade, por definição. Jesus falou sobre isso certa vez. Mas o problema que enfrento em desfrutar de forma livre o dia de hoje é que o amanhã demora muito pra chegar – minha ansiedade, por definição.

Por si só, a vida é uma dádiva. E filhos são um bom legado. O presente, a felicidade irreprimível de ver uma vida crescer sob seu teto, do começo à eternidade. Os primeiros passos, as palavras, o ensino todo sobre alguns impasses da humanidade, sobre a fé em Deus e sobre a importância de guardar seus brinquedos na caixa após o uso.

Ter filhos é experimentar e entender, em alguma proporção, o amor de Deus pelo homem. Eu sei que isso é um clichê bem redundante, mas fatos são mesmo coisas que se repetem incansavelmente até que notemos.

Ter Deus é perceber, a certa altura, que ele não se preocupa com legados ou marcas. Ele simplesmente é, ele está, eternamente, aqui e em todo lugar.

Nós crescemos, adquirimos novos hábitos, somos moldados pelo ambiente e tudo o que nos cerca ao longo do tempo. Mesmo à revelia, jamais abandonamos a condição de filhos, de criação do Pai eterno. Carregamos seus sonhos incrustados em nossos propósitos de vida, refletimos sua imagem, herdamos seus traços. Temos em nós o sentimento de pertencimento ao Criador, ainda que questionemos sua existência ou critiquemos seus atos por tantas e tantas vezes. Ele não liga, ele ama, se oferece e é nele que encontramos o refúgio para onde podemos voltar. O Pai sempre estará lá. Aqui.

Vai chegar o dia em que nossos filhos terão filhos. Vai chegar o dia em que a Nina vai morar longe e virá nos visitar num final de semana com sua família. Ela vai entrar em casa, largar a bolsa sobre o sofá, abrir a geladeira e perguntar da nossa vida, dos parentes que não vê, do que ando lendo. Ela vai descalçar as sandálias, ajudar a mãe na cozinha, vai querer comer um pouco do que quer que seja que estiver em meu prato, vai me cobrar, reclamar que não cuido da saúde direito, que fico tomando café o tempo todo e que isso acaba com o estômago. Ela vai agradecer pela ajuda com as crianças ontem à tarde, vai criticar minha roupa, minha barriga, minha mentalidade retrógrada sobre a política e o mundo e vai ficar brava por ter que repetir cada frase duas ou três vezes porque eu já não escuto direito. E ela vai sair para o quintal, batendo o pé porta afora, cheia das suas razões, mas deixando no rastro cada pequeno gesto que contemplo hoje. Eu, minha xícara na mão, observando aquela mulher, minha filha, a pequena Nina, e a vontade absurda de poder pegá-la no colo, rodar contra o vento e jogar pro alto outra vez. A esperança de que tudo aquilo seja só um truque da imaginação, que ela ainda seja criança e que volte logo, escalando minhas pernas e me cochiche no ouvido o pedido para que eu conte mais uma história.

Meu legado.

Falta muito?

por Luiz Henrique Matos (5/10/11)

– Pai?
– Oi, Nina?
– Vai demorar pra chegar?

Essa é clássica. Estamos na estrada viajando para o interior, no avião atravessando o oceano ou no carro indo até a padaria do bairro, não importa, para a Nina sempre estamos “demorando muiiito”. É a fase, eu sei. Aos quatro anos, minha filha ainda não consegue distinguir com precisão as medidas de tempo e distância. Qualquer coisa pode ser rápida ou devagar, pequena ou grande, dependendo do grau de ansiedade dela no momento.

Às vezes, estou concentrado numa tarefa ou conversando com alguém e ela surge:

– Pai? Papai! Paaaiii!?
– Calma, filha. Espera só um minuto, tá?
– Mas, pai, por favor! – ela puxa a ponta do meu queixo tentando virar meu rosto na sua direção.
– Filha! – olho sério, repreendo, viro de volta.
– É que…
– Nina, o que a gente conversou sobre você saber esperar a sua vez?
– Tá bom – e aí ela fica ali, paradinha, esperando a vez para falar, dá até dó.
– Pronto, filha, agora sim. O que é?
– É… é… pai, é que, sabe… – e começa o assunto.

O curioso de tudo é que eu já sei, em detalhes, tudo o que ela vai me dizer, mas eu paro e escuto. Eu gosto de ouvi-la, tenho uma certa satisfação em observar minha menina expondo seus argumentos e falando de si. É nessas horas que a gente vai descobrindo que eles crescem de verdade. Mais tarde, na hora de dormir, aproveito o momento para contar uma historinha que transmita alguma moral que, subjetivamente, trate sobre a importância da paciência. Não sei se ela entende, ela dorme, eu viro as costas, vou para meu quarto, deito a cabeça no travesseiro e faço as minhas preces antes de cair no sono.

– Pai!?

E começo o mesmo relato diário, repetitivo e insistente as últimas décadas. Pedidos, necessidades urgentes, casos de vida ou morte, mesmo. Eu insisto. Se pudesse alcançar o queixo dele – ou o último fiozinho da barba longa e branca – tentaria puxar na minha direção. E o curioso de tudo é que, apesar de conhecer cada mísera letra de tudo o que vou despejar nos próximos minutos, ele pára e escuta. Talvez ele se satisfaça me ouvindo ali parado, bradando imaturidades, como eu com a Nina. Talvez.

“Antes mesmo que a palavra me chegue à língua, tu já a conheces inteiramente, Senhor.” (Salmo 139:4)

E não importa quantos sermões e histórias eu escute que evoquem o valor da paciência e sua importância para a alma, o estômago e a queda de fios de cabelo, minha tendência é pensar que não é bem de espera que eu preciso. Eu avalio que é bem provável que eu não tenha sido muito específico e ele não tenha entendido do que eu preciso e-x-a-t-a-m-e-n-t-e. É melhor pensar num jeito adequado para falar na próxima vez, talvez uma outra ordem para as palavras, um jeito mais didático.

Mas, porquê, afinal de contas, tudo demora tanto?

Somos imediatistas. A Nina e eu. Talvez você também. Acho que vivemos num período da história em que isso se torna ainda mais evidente e critico. É o que falam. Essa nossa cultura do agora, em que tudo está online, fácil e abundante faz a gente ignorar o valor da espera ou a necessidade de tempo que certas coisas demandam. O excesso de informação, a overdose de estímulos, acabamos desaprendendo – ou, pode ser que nunca tenhamos assimilado isso de verdade – o valor de disciplinas como quietude e contemplação. Não sabemos esperar, não nos prestamos a reconhecer que certas coisas levam mesmo anos ou meses para acontecer.

Não nos prestamos a reconhecer que certas coisas levam mesmo cinco minutos para acontecer.

Há algum tempo, eu estava chegando no escritório pela manhã e, sei lá o motivo, me espantei com um fato cotidiano. Tudo ia acontecendo mais ou menos como na coisa toda da rotina diária. Entro na garagem, estaciono o carro, tranco o carro, esqueço que tranquei o carro, volto para checar, desço até o hall, pego um café na lanchonete, chego na catraca, caramba-cadê-meu-crachá?, procuro num bolso, procuro em outro bolso, procuro na mochila, procuro no casaco, pronto, passo pela catraca, cumprimento o segurança e caminho até a fila do elevador, que demora um bocado pra chegar. O sujeito à minha frente já fez o favor de apertar o botão para subir. Então, passam-se trinta segundos e nada do elevador. Um minuto e nada. Um minuto e meio e ainda nada do elevador. Nem chegamos a dois minutos de espera e o indivíduo apertou outra vez o botão. Não satisfeito com o fato de a máquina não obedecê-lo imediatamente, começou a apertar, insistentemente, o botãozinho, seguidas vezes, na esperança de que ela fosse sensível à sua necessidade e resolvesse acelerar o passo e vir mais rápido porque, afinal, havia um homem com pressa esperando lá no térreo. Absurdo.

Depois de mais alguns minutos esperando, finalmente entramos todos em nosso meio de transporte. Eu olhava de canto e meio assustado para o sujeito, que apertou o sexto andar. Apertei o oitavo, me acomodei próximo à porta, esperei todos entrarem e, tal como faço diariamente, apertei o botão para a porta fechar logo, duas vezes. Aff… quem é que agüenta aqueles segundos intermináveis até que ela resolva fechar sozinha?

Somos egoístas. A Nina, eu e o sujeito do sexto andar. Talvez você também. Julgamos o mundo a partir das nossas perspectivas. Queremos determinar o tempo, queremos do nosso jeito. Queremos. E acreditamos que alguém tem a obrigação de atender esses desejos. E achamos que Deus é um funcionário com boas qualificações para o cargo.

Não pensamos em Deus, só pensamos em nós mesmos, nossos umbigos e o mundo todo girando em torno dele. Queremos que tudo aconteça de acordo com a nossa vontade e julgamos que esse ponto de vista é suficientemente aceitável para todos. Se as coisas acontecessem, afinal, exatamente como planejamos, o mundo seria um lugar melhor. E aí entra a contradição existencial do negócio: como as coisas podem acontecer exatamente como cada um de nós planejou sem que isso afete, diretamente, os planos uns dos outros? Não é necessário então que algo, alguém ou o acaso determinem os fatos?

O ponto é: o homem não está no centro do universo, Deus é quem está no centro do universo – bem, isso se você, como eu, descartou a opção “acaso” no parágrafo anterior. O homem está no centro do coração de Deus. E é nele que nos descobrimos.

Só em Deus entendemos quem somos e a razão de sermos. O Pai revela nossa identidade e em seus braços a vida toda adquire uma nova perspectiva, não mais centrada em mim, mas no outro. Não mais imediatista, mas contemplativa. Não mais materialista, mas cheia de significado. Não mais, mas menos. Porque Deus é simples.

Mas, quanto tempo as coisas levam para acontecer? Quanto ainda mais até que minhas dúvidas sejam sanadas, que meus desejos sejam atendidos, até que certas coisas façam sentido e eu finalmente compreenda?

Somos dependentes. A Nina, eu, o sujeito do sexto andar e a humanidade toda. Talvez você também.

Me ajuda com o banho? Me ajuda com o cadarço? Me faz um copo de leite? Escova meus dentes? Pode pegar a massinha no armário pra gente brincar? Empresta seu celular pra eu jogar? Pode me contar uma história? Pode sarar o machucado na minha perna? Pode ir mais rápido? Pode dormir aqui comigo hoje a noite? Pode ser agora?

Para a Nina, eu sou um repositório de conhecimento, força bruta e um pai com capacidade multitarefa. Ela me julga capaz de resolver seus problemas. Ela julga e espera que eu faça tudo isso. Bem, ela julga e espera que eu faça tudo isso, agora!, ao mesmo tempo. E eu acho que ela vai aprender o valor de certas coisas se conseguir esperar um pouco. Ela precisa conhecer alguns chavões – que para ela ainda não são chavões – como o de que a caminhada vale mais do que o destino final e que a verdadeira felicidade não está no fim, mas no durante. São essas coisas, quase pílulas de auto-ajuda e tal, mas que no fundo, são mesmo o que importa numa boa história.

O tempo, no fim das contas, é muito preciso, o segundo após o outro, o ponteiro nunca falha, nunca muda sua forma. Mas a medida de tempo em cada circunstância é relativa.

Ela acha que eu demoro muito.

Eu não a culpo.

Somos crianças. Sim, todos nós.

Reconstrução

por Luiz Henrique Matos

“As coisas velhas já passaram; eis que tudo se fez novo!” (2 Coríntios 5:17b).

Tenho pensado no Japão e no Haiti de uns tempos pra cá. Mais especificamente, desde que os dois países foram atingidos por terremotos, volta e meia me pego curioso sobre as tragédias que aquelas pessoas viveram. Num antagonismo singular, de um lado uma das cinco economias mais prósperas do planeta e, do outro, uma das misérias mais evidentes. Duas ilhas, o mesmo mal e a testificação dolorosa de que tempestades atingem a todos.

Ao contrário do que parece, não tenho sido tocado por sentimentos altruístas. Quisera fosse, mas preciso ser honesto aqui. O que me vem à mente agora, meses depois, é que passada a devastação imediata da tragédia, aqueles povos precisam reerguer suas cidades. Eles estão começando de novo, catando as sobras e as lembranças, procurando sob escombros um pouco de força.

Mas o que mais me intriga é pensar que ainda antes de reconstruir, aquela gente vai precisar tirar o lixo da frente. Bem, lixo… o que eram suas casas, suas famílias, seus bens e apegos, agora são escombros que precisam ser movidos, limpos, organizados, para só então uma nova cidade ser edificada.

Tira-se pedra sobre pedra, ergue-se um tijolo após outro. E nos alicerces, em cada novo palmo da vida, um pouco do passado, uma memória recente, agora assentada com massa e reboco.

Pessoas estendem suas mãos e clamores a Deus, outras pessoas estendem suas mãos e ajudam, doam e participam. Mas em geral, passada a comoção imediata, a reconstrução é um processo bem solitário.

Ontem à noite fomos a um casamento. Preciso dizer que, ao contrário de muitos amigos, gosto de casamentos. Além da beleza da festa e do fato de ser a única ocasião em que uso gravata – e passo 45 minutos tentando acertar o nó daquela tirinha de pano que penduro no pescoço – me encanta o significado todo do ritual e os procedimentos, tudo ainda meio primitivo, um homem e uma mulher no exato momento em que decidem se tornar uma só carne. Coisa bonita, a cena toda, muito melhor do que qualquer novela. Eu sou um romântico.

Mas essa, a de ontem, talvez tenha sido uma das cerimônias mais tocantes em que já estive. Toda a cena, beleza e expectativa estavam lá, mas o que tornava o momento ainda mais peculiar é que aquele se tratava do segundo casamento dos dois, que vinham de divórcios depois de viverem anos tentando sustentar suas famílias. Cada um com sua história, trazendo consigo o passado, as experiências, filhos, sonhos e talvez um terremoto que tenha destruído e deixado em escombros boa parte do que construíram em suas vidas.

Foi uma cerimônia simples, elegante e muito agradável. Mas aquele momento trazia todo o significado que essa analogia descreve. Era incrível vê-los ali, confirmando um para o outro os seus votos, empurrando no dedo o anel dourado que cobrirá a marca antiga, na alegria e na tristeza. Uma nova aliança, uma nova chance, sonhos refeitos e Deus renovando o amor, puro amor, para que um homem e sua garota, apaixonados como jamais pensaram ser possível outra vez, construam juntos uma família.

É bonito ver como Deus age. Após a tragédia, sob a aparente destruição, ele faz brotar vida. Nas marcas do passado, seu toque é capaz de cicatrizar e sarar feridas. Ele oferece redenção, consolo, cuidado, ele refaz sonhos e nos veste com uma roupa limpa e nova para que participemos da festa. Deus transforma o mal em bem, sempre e outra vez mais, porque ele é amor e não cabe em si.

Havia poucas pessoas no casamento. Familiares, amigos, testemunhas, talvez alguns dos que se dispuseram a ajudar na limpeza e reconstrução. Mas diferente de outras tragédias e seus processos, esse agora não é um caminho solitário. Aquele casal descobriu um ao outro, eles agora se pertencem, e carregam uma aliança, a esperança e o desejo de fazer dar certo, de se amar e edificar um novo lar.

Quando coisas ruins acontecem a crianças boas

por Luiz Henrique Matos

“A dor é inevitável, sofrer é opcional.” (Haruki Murakami)

Já faz alguns meses que estou tentando escrever esse texto e nunca consigo terminar. Fico me enganando, dizendo a mim mesmo que é um lance meio autoral, de preciosismo literário (ahãm, como se eu sofresse mesmo disso), mas o fato é que tenho certo medo de escrever sobre esse tema. Virginia Woolf disse certa vez que todo texto carrega em si um pedaço de quem o escreve. No meu caso, um fato concomitante a esse é que muitas vezes algum assunto só fica claro para mim depois que eu o coloco no papel. No fundo, a escrita acaba sendo um exercício de reflexão. E confesso que em alguns momentos não quero refletir sobre certos temas.

Tenho medo de sofrer. E também tenho medo de pensar sobre o sofrimento. Não é por superstição, nada, mas é porque na maior parte do tempo eu sou aquele tipo de pessoa naturalmente otimista, que vê as coisas pelo seu lado bom e, em geral, isso é bem positivo, uma certa vantagem no traço de personalidade. No entanto, isso carrega um fato inegável: nunca estou preparado para as coisas darem errado.

E se tem uma verdade indelével que rege o universo da paternidade das aves estrigiformes, das famílias dos titonídeos e estrigídeos (vulgo, corujas) é que só existe uma coisa pior do que pensar que algo ruim possa acontecer com a gente e essa coisa é pensar que algo ruim possa acontecer com nossos filhos.

* * *

Nenhum pai quer ver seu filho sofrer. Bom, deixe-me corrigir: nenhum pai suporta ver seu filho sofrer. E nunca estamos prontos para isso.

Eu voltei a esse assunto, outra vez, há alguns dias, quando enfrentei duas madrugadas correndo com a Nina entre clínicas e hospitais, tentando encontrar alívio para a dor que ela sentia. Sentado na sala de espera de um pronto-socorro, eu pensava que, se pudesse, tirava aquilo dela ali na hora, com as próprias mãos. Se fosse possível, sofreria toda a dor no lugar dela, só para que pudesse dormir em paz outra vez. Observar aquela criaturinha chorando sem poder fazer algo que solucionasse seu problema imediatamente me doía em dobro. Queria eu ter poder para curá-la. Queria eu ser Deus para tocar em sua testa e mandar embora o que quer a fizesse sofrer.

Mas eu não sou Deus, sou só mais um filho assustado, pedindo socorro também, e ainda queria que Deus me atendesse no pedido quase desesperado para que ele parasse um pouco de resolver os problemas tão complexos de toda a humanidade e viesse cuidar da minha criança por alguns minutos.

Outro dia, a Nina chegou da escola com uma marca vermelha nas costas da mão esquerda. Era uma mordida, obra de um coleguinha com instintos canibais que frequentou a classe dela por um tempo. Na agenda, um recado da professora dava satisfações sobre o ocorrido e explicava que, no fim, tudo ficou bem entre os dois, com o pedido de desculpas e o perdão devidamente concedido.

Eu podia jurar que um filhote de crocodilo invadiu a pré-escola e atacou minha princesa.

– Você chorou, filha? – perguntou a mãe, já chorando.
– Ahãm.
– E doeu muito?
– Muito, muito.

Em mim, crescia a certeza de que era preciso tomar alguma providência para que aquele elemento, o pequeno meliante, jamais ousasse mostrar suas presas-de-leite para minha Nina outra vez. Eu tinha sede de justiça. Mas no fundo, eu também sabia que as coisas não podiam caminhar por aí. Eu precisava ter calma, ser adulto, racional. Falei com a Manú:

– Tadinha, né?
– É, aperta o coração da gente.
– Mas e aí, o que a gente faz?
– Acho melhor matricularmos ela no jiu-jitsu.

Coisas ruins acontecem a crianças boas.

E por mais que eu realmente me esforce para ignorar a realidade e prefira concentrar meus neurônios mentalizando coisas positivas e tentando acreditar que a fé cobrirá minha família contra todo e qualquer mal… bem, por mais que eu afirme que gostaria que as coisas fossem mesmo assim, eu sei que nem sempre poderei ajudar. Reluto em aceitar, mas o fato é que minhas asas não possuem a extensão que eu gostaria que tivessem e eu devo reconhecer, penosamente, que minha filha vai sofrer.

Nem sempre poderei livrá-la da dor ou impedir que o sofrimento venha. Um tombo no parquinho, uma medida disciplinar mais rígida, um resfriado pesado, um fora do primeiro namoradinho (daqui uns 30 ou 35 anos, quem sabe), uma topada na porta com o dedinho do pé.

– Aaaaaaaaaaaaahhhh!!! – era madrugada e a Nina gritou desesperada enquanto dormia. Estava tendo um pesadelo. Assustei, pulei da cama, corri até onde ela estava.
– Nina!? Calma, querida, calma. Está tudo bem, o papai está aqui.
– Ahn!? – ela acordou confusa.
– Tá tudo bem… pronto, calma. Viu? Não foi nada… O que aconteceu, filha?
– Uma cobra… tinha uma cobra querendo me pegar.
– Não tinha nada, filha. Você estava sonhando. Olha só, está tudo bem.
– Tinha sim… ela estava aqui. Mas o papai apareceu e mandou ela embora.

Ela acha que eu tenho poderes para solucionar todas as coisas. Pensa que sou capaz de pega-la no colo e carrega-la por quilômetros sobre meus ombros e que posso abrir as tampas de todo e qualquer tipo de pote. Ela acredita que tenho como fazer a viagem de carro de quase quatro horas durar menos, que posso protegê-la de monstros que assombram seus sonhos.

Não bastasse, soma-se nessa conta o fato de que uma das grandes satisfações em ser pai está em notar, nos pequenos gestos, que minha filha me admira, acha bonito e tem em mim uma referência boa. E soma-se ainda nessa mesma conta o doloroso fato de que uma das grandes paranoias de ser pai seja notar, em algum momento, que minha filha passará por alguma situação difícil em que eu não estarei lá para ajudar.

Ou, estarei mas não poderei impedir o sofrimento. E ela não vai sofrer porque eu deixei de agir e sim porque havia uma pedra para que ela tropeçasse no caminho que escolheu seguir. Circunstâncias, uma palavra necessária aqui. E aí, a questão já nem é o fato de eu poder ou não livra-la da dor, mas de que se eu intervir, aquilo já não será resultado das decisões que ela tomou.

O amor pressupõe liberdade. E quem ama, ama a liberdade do outro.

E na intensidade desse sentimento apaixonado, muitas vezes o pai abre mão do seu poder para dar ao filho a opção de escolha, por saber que o aprendizado é necessário e que nem tudo o que é bom, é necessariamente bom para todo mundo. Deus prefere não ser chamado de Deus do que ser esse deus sádico que alguns pensam que ele é, entende?

Ele é o Pai.

Um pai não deseja o sofrimento do filho, não o permite e tampouco provoca. O sofrimento de um filho, em tudo, rasga o coração do pai, dilacera sua alma. É errado culpa-lo pela dor. Mas o homem todo, em seu crescimento, aprende pela experiência. Sabemos o caminho certo a ser trilhado pelos conselhos que ouvimos e pela vida que trilhamos. Conhecemos a estrada à medida em que a percorremos. E os buracos estarão lá, nem todos provocando acidentes. E as belas paisagens estarão lá, nem todas provocando suspiros.

O sofrimento nos forja.

Ninguém jamais disse que não vamos sofrer, os textos sagrados não afirmam isso, avôs não contam histórias assim para seus netos. Mas as palavras que nos dão esperança, lembram a todo instante que em qualquer circunstância, em cada passo dessa aventura, o Pai está ao nosso lado.

Bem, eu não estou querendo explicar o sofrimento ou sistematizar a dor. Não pretendo. Isso não se explica, não tem teoria válida que sirva de alento. Alento é o ombro amigo, é o lenço cedido, é o choro solidário. O que eu gostaria, de alguma forma, como pai apaixonado, é que minha menina soubesse que se não existem superpoderes em minhas mãos, existe consolo. Que se não existe uma palavra mágica que cure a dor ou a incerteza, existe sempre uma companhia silenciosa, um copo de água com açúcar e um colo à disposição.

Eu sei não poderei explicar na maior parte das vezes – eu nem entendo na maior parte das vezes. E ainda que eu possa, é bem provável que não faça a menor diferença para ela naquela hora. Mas eu estarei lá.

O Pai sempre está por perto.

Filhos, distâncias e talvez um documentário do Discovery Channel

por Luiz Henrique Matos

Às vezes, a Nina passa alguns dias longe de nós. Acontece duas ou três vezes no ano, quando por ocasião das férias escolares, ela fica um tempo na casa da avó materna, que mora no interior.

Ao contrário do que pensam muitos amigos, a opção não é nossa. Ela é quem pede, a avó é quem insiste, os parentes fazem coro e eu acabo cedendo, contrariado na maior parte das vezes.

É que eu detesto ficar longe dela. Fico repetindo para mim mesmo aquela conversinha de que ela já vai passar tanto tempo – a maior parte da vida – longe de casa que eu gostaria de tê-la sob minhas asas tanto quanto fosse possível.

Acho até que já escrevi isso em alguma nota antes, mas o fato é que eu realmente lembro muito pouco da minha vida de casado sem minha a Nina com a gente. A Manú e eu esperamos quatro anos para ter filhos e quando penso nessa época, a ausência dela nas lembranças me parece mais um equívoco do que a história de fato.

Quando ela sai assim e depois volta, a sensação que dá é de como se a gente participasse de um desses documentários do Discovery Channel em que eles acompanham filhotes de cervos que se perdem na savana africana. O bichinho desgarrado, perdido, ao relento… e a mãe desamparada, incansável, segue desesperada na busca por sua cria. Depois de dias, perigos e muitas aventuras (!) eles se reencontram – em geral, quando chega nessa parte do programa, eu já estou dormindo no sofá há algumas dezenas de minutos, mas quando consigo assistir até o fim, não posso negar que a coisa toda é emocionante. A câmera mostra o filhote atrás de uma moita qualquer, aqueles olhinhos e tudo. Depois, fecha a imagem na mãe, que sente o cheiro familiar nas redondezas. Então ela procura, inquieta, os olhos semi-serrados sondam todo o ambiente e, finalmente, ela vê seu filhote à distância. Ela dispara, corre o quanto pode até que esbarra no pequeno animal, finalmente, que se entrega e eles rolam naquela vegetação e ela fica lambendo sua cria sem parar.

A sensação que dá é de como se a gente participasse de um desses livros das Escrituras… filhos perdidos, um pai preocupado, a busca incansável, Deus rasgando a eternidade em busca de suas crias para salvá-los, para mostrar que ele está por perto, que vai ficar tudo bem, existe uma sombra tranqüila, uma água fresca, um caminho seguro.

Filhos precisam voltar para os pais.

Hoje a Nina voltou de viagem. Sete dias na casa da avó, setenta vezes sete dias incontáveis de vazio aqui em casa. Então ela chega, as malas cheias, um pacote de biscoito de polvilho nas mãos, aquele sorrisinho puro que mal sabe o quanto nos domina. Eu a trago para perto, eu cuido, eu rolo com ela, eu lambo minha cria. Família. E a casa está cheia outra vez.

– Papai…

Já é tarde. Ela está na cama deitada e pede que eu conte uma história. Quer saber sobre a minha infância, ouvir alguma aventura, quer saber como era quando eu era filho.

Me faço de macho, me faço de sábio, faço de conta. Faço um esforço danado pensando em como explicar que pai, um dia a gente vira, mas filho… ah, filho a gente nunca deixa de ser. Precisando de colo, precisando aprender o caminho de volta, precisando ouvir que tudo ficará bem, precisando do amor paterno. Eu só dispenso as lambidas.

Cenas domésticas – Todos dizem eu te amo

por Luiz Henrique Matos

sunshine

Um: Tenho o hábito de beber a água e deixar o copo vazio sobre a pia, bem ao lado do filtro. Depois, saio, faço minhas coisas, brinco um pouco, vejo a TV. Mais tarde, volto até a cozinha e noto que o copo está lá, cheio outra vez, no mesmo lugar em que eu o havia deixado. Eu acho estranho, bebo e ao sair em direção a sala dou de cara com a Nina, que me observava e sorri simpática: “Pai, você já bebeu a água que eu deixei pra você?”

Dois: Costumo dormir tarde aqui em casa. Em geral, quando me deito, a Manú e a Nina já estão na cama há algum tempo. Vez por outra, quando entro no banheiro para escovar os dentes, encontro minha escova repousando sutilmente sobre a pia, já com a pasta colocada. E é assim desde que nos casamos.

Três: Às vezes, eu vejo o sol nascer. Acordo cedo, preparo a lancheira da Nina para a escola, me arrumo, ajeito algumas coisas e, nesse meio tempo, percebo os primeiros raios de sol atravessando as frestas da janela. Então eu paro para espiar. Abro a cortina devagar e contemplo o dia nascendo, o sol, um ou outro pássaro cantando, a cena da cidade acordando, a lembrança das manhãs amarelas da infância. E isso muda toda a dinâmica do dia, sempre. Fico pensando que Deus faz essas coisas de propósito, ele insiste em me mimar.

Não custa nada, mas ninguém também precisaria fazer. Eu não preciso disso, elas tão pouco, mas existem gestos, esses assim, que tornam as coisas melhores. Não é uma carta ou uma declaração explícita de amor, nada espantoso ou absurdamente caro. Mas é aquilo que se faz para o outro, simples, com afeto, só porque é para o outro.

Já é noite e preciso descansar. Escovo os dentes pensando nisso tudo. Depois, faço a ronda pela casa e sigo até a cozinha para o último copo d’água antes do sono. Acendo a luz e o copo está lá, cheio, no lugar de sempre, com toda expressão de amor que isso carrega.

(Escrito em 19/12/2010 e 15/07/2011)

Já que tocamos no assunto

por Luiz Henrique Matos

Acabei de ler no site da VEJA que o Brasil fechou o ano de 2010 com 155 mil pessoas milionárias, segundo relatório sobre riqueza global “World Wealth Report” elaborado pela Merrill Lynch Global Wealth Management (é isso aí, coisa de rico ainda tem nome grande para soar tal como é). Isso garante ao país a 11a. posição no ranking mundial de milionários, que é liderado, evidentemente, pelos Estados Unidos. Aliás, ainda segundo a reportagem e o tal estudo de nome comprido, os três primeiros países no ranking (EUA, Japão e Alemanha), concentram 53% dos milionários do mundo. No total, o mundo tem 10,9 milhões de pessoas com 1 milhão de dólares ou mais na conta.

Li já há mais tempo, no G1, a notícia de que o Brasil tem, hoje, 16,3 milhões de pessoas que vivem com menos de 70 reais por mês. Ou seja, o que você gasta numa ida ao shopping com sua namorada é o que um cidadão tem para o mês inteiro. Essa gente pertence à chamada “faixa da miséria” e note você que quase 10% dos nossos compatriotas tentam sobreviver nessa condição. Se para nós a pobreza é a base da pirâmide, para eles é o sonho de ascensão social.

Agora, se a coisa está feia por aqui, lá fora pode estar ainda pior. No mundo todo, calcula-se que quase 5 bilhões de pessoas tenham renda inferior a 30 dólares mensais – e considere que o mundo tem pouco menos de 7 bilhões de habitantes -, o que daria, hoje, uns 50 reais por indivíduo. Isso significa que quase dois terços dos seres humanos no planeta tentam sobreviver com menos da metade de uma cesta básica todos os meses, enquanto 0,2% tem mais de 1 milhão de dólares guardados na conta.

Bom, era isso.

Ela ainda cabe no meu colo

por Luiz Henrique Matos

No próximo fim de semana ela fará quatro anos. Eu posso jurar que nunca imaginei esse momento da vida dela chegando. Crianças de quatro anos para mim costumavam parecer grandes demais perto do frágil bebê que eu carregava nos braços por aí. Mas agora eu tenho uma menina em casa, a cada dia com mais jeitos, vestidos, vontades, brilhos e argumentos, mandando em mim desde o princípio das eras, tal qual a mãe – e antes que a coisa esquente por aqui, reconheço que obedeço satisfeito a ambas.

De um modo inexplicavelmente rápido e fora de controle, as coisas foram acontecendo. Ainda há pouco éramos um casal de namorados decidindo sobre o cinema de sexta, o curso na faculdade, a data do noivado, o bairro onde morar, o nome do bebê, a maternidade onde ela nasceria… vivíamos momentos tão diferentes em nossas vidas. Hoje, mal conseguimos lembrar o que era viver – ou que graça poderia ter uma casa – sem um filho por perto.

Toda a rotina quadrada se tornou plena em si. E o cotidiano de pai de família que poderia talvez parecer a alguém o resigno de um sujeito acomodado, se tornou para mim a maior conquista a que eu poderia ter acesso. Em geral, são nesses preciosos momentos, que esse mesmo alguém poderia chamar de comuns, que se pode observar a beleza inesquecível de certos detalhes. Aquele tipo de coisa rara que, enquanto acontece você já sabe que jamais esquecerá.

Estou vendo TV ou lendo algo no sofá quando percebo que ela vem lá do quarto pelo corredor cantarolando e pulando (se tem algo que os livros e o Google não explicam mas que é uma espécie de lei natural na formação das crianças é que, antes de aprender a andar civilizadamente, lá pelos 17 anos, elas praticamente só se locomovem pulando ou correndo). Então, ela surge na sala rodopiando e plana como uma bailarina por sobre o piso de madeira. E dançando, com caras, bocas, tropeços e poses, enche de graça toda uma semana. A mãe, aluna de balé durante a infância, se encanta e ensina o “pli-ê, es-tica” por algumas horas. Eu, aspirante a Carlinhos de Jesus, balanço a cabeça fora de ritmo e babo em minha pequena cria.

Eu a chamo de “bailanina”.

Se ela pudesse, passaria os dias vestida com aquele colan cor-de-rosa, o par de sapatilhas, o tutú rodado e o cabelinho penteado em coque.

E se tem uma coisa que mexe comigo, é que eu amo essa espontaneidade dela, o mundo maravilhoso, infantil e imaginário que constrói e me convida para participar quando estou por perto. Posso observar seu olhar curioso, a descoberta de algo novo e, nessas horas, eu gostaria que ela soubesse o quanto isso é precioso, o quanto sua dança tão pura é capaz de mover, que um mundo inteiro gira ao ritmo dessa beleza frágil, pequena e atrapalhada.

Seus passos. Aos saltos, ela atravessa a sala e os anos.

Já faz um tempo, estávamos viajando em família quando entramos no elevador de uma loja. A Nina dormia no meu colo, a Manú a cobria com um casaco e uma senhora nos observava, sorrindo com um jeito meio melancólico, até que disse: “E na próxima semana ela fará 20 anos”.

Eu sei, no duro, que um dia a fantasia vai acabar. Logo, ela terá mais papéis a cumprir, assumirá compromissos, responsabilidades… e essa essência, o que a formou de fato, será uma lembrança na rotina apressada. Logo, ela vai se dar conta que entre milhares de defeitos, seu pai também não dança como o Baryshnikov, não tem respostas para todas as questões da humanidade e é mais baixo e fraco do que ela pensou quando pequena. E então, eu já não serei mais “o cara”, o príncipe, o homem com quem ela quer se casar e que sempre a socorre quando ninguém mais consegue.

Talvez Deus também tenha esse tipo de sentimento em relação a nós. No dia em que vai embora toda aquela espontaneidade de criança, seu coração deve apertar. Vamos costurando nossas complexas teias de problemas, relacionamentos, trabalho, família, círculos sociais e, de repente, o tempo se torna nosso recurso mais escasso. Mergulhamos na rotina e depois nos debatemos para tentar entender onde foi que erramos. Então saímos a procura de algo que nos preencha, buscamos um tipo de felicidade e simplicidade que parece inatingível mas que, de alguma forma, também pareceu tão real e próxima um dia.

Acho que Deus observa tudo isso e procura formas de nos convidar para voltar. “Dance”, ele deve dizer. Nós mudamos nossa visão de mundo, mas Deus não muda sua visão sobre nós. E nós insistimos em pensar que o ser humano se lança eternamente numa busca pessoal por Deus, mas o que as escrituras nos contam é sobre a história de Deus, o Pai incansável, em busca do homem.

Ela será sempre uma menininha para mim.

E eu gostaria que ela soubesse, um dia, que independentemente das escolhas que faça e da mulher que se torne, que ela sempre poderá encher um pai de alegria com sua presença. Que não importa sua estatura ou idade, haverá um colo e dois braços onde se abrigar. Talvez eu não tenha conselhos sábios ou as respostas para todas as questões da humanidade, mas eu vou tentar acompanhá-la numa dança.

Já faz alguns dias, estávamos chegando numa festa de aniversário e ela ainda dormia em meu colo. Ficou um tempo naquele estado confuso, ainda acordando e eu, meio sem jeito, segui cumprimentando as pessoas. Um sujeito veio até mim, estendeu a mão educadamente e em seguida resolveu fazer um gracejo:

– Ei, mocinha, você não acha que já está grande demais para ficar no colo?

Sonolenta, ela só meneou a cabeça. Eu nada disse, apenas sorri, olhei para o homem e desejei no íntimo: “Espero que não… tomara que nunca esteja.”

Eu espero. Sento-me no sofá, no mesmo canto de sempre, de onde assisto TV, leio sob a luz e olho a cidade pela janela. No silêncio, eu alimento minha expectativa, eu aguardo o barulho dos passos, tento ouvir sua voz de menina ao fundo e ver surgir pelo corredor os saltos da minha bailarina.

Que tenha música, que seja com festa, que Deus a preencha e o amor a inspire em cada pequeno passo. Que a vida a contemple.


(Esse texto faz parte da série Paternidade)

Cenas domésticas – Em nome do pai

Brincando no quarto:

– Então, mocinha, como é seu nome mesmo?
– Nina.
– Hmm. Mas e o meu nome, você sabe?
– Sei, é Loizenrique!
– Hahah, isso aí. Mas são dois nomes, filha: Luiz e Henrique. Tem gente que me chama de Luiz, tem gente que chama Henrique, outros chamam de Rique…
– E tem gente que te chama de papai!

Sobre minimalismo, Roberto Carlos e a importância da higiene bucal

por Luiz Henrique Matos

Estava escovando os dentes quando um pensamento antigo voltou: se um dia eu tivesse que viver com o mínimo de coisas possível, uma boa escova de dentes certamente seria fundamental na bagagem. O creme nem tanto, até que dá pra me virar sem, acho. Então olhei para a pia do banheiro e comecei uma faxina mental. Do que realmente preciso? Como eu poderia sobreviver apenas com o estritamente necessário?

Esse tipo de coisa me perturba às vezes. A Manú diz que eu tenho TOC, aquela doença do Roberto Carlos (eu prefiro dizer que é do Jack Nicholson, por causa daquele filme com a Helen Hunt, fica melhor) e talvez eu até concorde, só de brincadeira, mas é um fato que, vez ou outra, eu me pegue organizando coisas, jogando tranqueiras no lixo e doando todo tipo de objeto que julgo desnecessário por hora. Em parte das vezes é altruísmo mesmo, mas em outros casos é pura mania.

Ainda escovava os dentes quando a coisa degringolou e acabei estendendo a pergunta para as outras coisas da vida. Pensando na casa toda, se eu precisasse abandonar nosso agradável apartamento numa emergência, levaria comigo o computador, meus livros (não todos, mas o cuidado com a estante de livros é uma compulsão que merece capítulo à parte), o carregador do celular e uma muda de roupas. A escova, pensando bem, eu não levaria, deixaria para comprar uma melhor no caminho.

Faço isso, vez ou outra. Fico tentando aplicar essa regra para tudo e imaginando como ia ser se desse mesmo para as coisas funcionarem assim. Se não fosse casado e morasse sozinho: colchão, TV, computador, microondas e geladeira. Vestuário: camiseta, calça jeans e tênis, sem meias. Pra sair de casa: carteira, celular e chave do carro (atualmente, ando relutando também com o relógio, que abandonei há um tempo, e com um pen drive que insiste em ser necessário em certas horas). O shopping center ideal: livraria, loja de esportes, loja de eletrônicos e um café. Meu escritório: mesa, cadeira, uma caneta, computador e telefone. E assim vai, eu aspiro uma vida minimalista. Minimalista e impecavelmente organizada por ordem alfabética, cores e/ou gênero (ou as todas as anteriores).

– Amor, o que você tá fazendo?
– Separando umas roupas pra dar.
– Ah é? Preciso fazer isso também, mas depois eu vejo.
– É uma boa, né?
– É… Mas, nossa, tudo isso? O que tem nessas sacolas?
– Só umas coisas que a gente não usa mais.
– A gente?
– …
– Henrique, o que é aquela blusinha… Henrique… você vai dar as MINHAS roupas também!?

Eu aspiro uma vida minimalista e impecavelmente organizada por ordem alfabética, cores e/ou gênero para os outros também.

Talvez eu precise de ajuda.

* * *

O pior de tudo pra mim é que, por mais que eu tente, a mente nunca funciona assim. Eu bem que me esforço mas não consigo reduzir os papéis, compromissos e a lista de pendências que carrego no bolso. A cada ano que passa, as coisas vão acumulando e complicando gradativamente.

Do que eu preciso, de fato, minimamente, para viver? Faço a pergunta e acho que isso traduz um pouco o que, no fim das contas, realmente importa. A resposta que procuro é outra, nada material, e eu já tenho isso, sei que tenho. Deveria investir meu tempo dando atenção ao que vale de verdade, desfrutando do essencial, ao invés de ficar olhando para o que é descartável, criando listas e decidindo se devo arrumar meu dinheiro na carteira com a cara da Princesa Isabel virada para frente ou para trás.

Família, amigos, Deus. Não dá para ser minimalista com pessoas. E nessa hora, devo dizer que a mania toda não se aplica aqui, não tento cortar vínculos para simplificar as coisas e tão pouco classifico meus amigos em categorias, listas e perfis. Acumular bons relacionamentos é um caos agradável e reconfortante.

A mente funciona a mil, as coisas ficam cada vez mais aceleradas, o tempo parece escoar pelo ralo – e pensar que tenho as mesmíssimas 24 horas que meu avô usava para viver, apesar de os dias parecerem ter medidas tão diferentes. E quando a gente pára pra tentar entender que coisas, duas ou três, são totalmente necessárias para a vida toda funcionar, faz sentido procurar por algo, ou alguém, ou Alguém, que nos supra. Não existe o “cada um por si”, existe o Ele por nós, com um par de braços estendidos para nos apascentar.

Quando os olhos finalmente enxergam – e se fixam – naquela imagem nítida, quando o passo toma rumo no caminho certo e algumas peças se encaixam (ou não, agora pouco importa), então, o equilíbrio todo, a questão da dúvida existencial e da angústia, se transformam em quietude, num sorriso franco e uma paz confortável.

Eu cuspo a espuma do creme dental que promete deixar meus dentes brancos agora (isso, agora!, está escrito na embalagem), volto para o quarto, a janela está aberta para refrescar um pouco e minhas meninas dormem tranqüilas. Resolvo abrir o computador para escrever sobre a importância da higiene bucal e decido que hoje, só hoje, vou largar a toalha molhada ali em cima da cômoda e descansar em paz.

Tenho o que preciso.

Um casal conversando e dois criados mudos

por Luiz Henrique Matos

É engraçado como a gente gasta tempo, neurônios e uns fios de cabelo botando preço na felicidade.

Não tem nada disso. Mas parece que a gente só se dá conta quando é feliz de fato. Digo, quando a gente vive desses momentos em que sabe que é feliz.

Primavera, a luz da lua entrando pela janela do quarto aberta, a Manú deitada sobre meu braço esquerdo, o papo solto e a certeza de que podemos viver essa alegria simples em qualquer circunstância ou lugar do mundo, contando que tenhamos um ao outro.

Caminhada

por Luiz Henrique Matos

Nas últimas semanas tenho vivido uma experiência que não experimentava há muito tempo: caminhar. Não falo de caminhadas como atividades físicas – que, a propósito, também não faço com a assiduidade que deveria – mas como meio de locomoção básico e fundamental entre minha casa e o escritório.

Devo dizer que não tem sido um ato voluntário. Meu carro está na oficina e meio que aproveitando a situação atípica, resolvi que faria todo trajeto que fosse possível andando.

No fim, noto que tem sido bom. Tirando um ou outro desconforto com o qual eu já não estava habituado – tipo dores nas panturrilhas, pessoas me apertando no trem e a multiplicidade de odores se misturando no ambiente – tenho gostado desses momentos. Em 20 dias a pé, já notei algum avanço físico. Venho me pesando com freqüência e, pelas contas, perdi cerca de 300 gramas. É praticamente a porção de queijo prato fatiado que compro na padaria.

Eu poderia arriscar aqui uma seqüência de metáforas entre a caminhada e a vida (é incrível como é frutífero pensar nesses clichês, posso imaginar uma série deles), mas isso seria muito lugar-comum e acho que vou te poupar disso. Acho.

O que tem sido interessante, principalmente, é a oportunidade de ficar em silêncio e poder me concentrar em uma única atividade durante um tempo. É fato que o período da caminhada não pode ser abreviado, existe uma distância a ser percorrida, eu tenho um limite de velocidade na minha passada e então não há muito que se possa fazer senão ligar a música, colocar um pé na frente do outro e seguir em frente.

Bom, parece meio idiota, mas para alguém que passa a maior parte do dia entretido com uma dezena de atividades simultâneas, isso é um bom exercício de foco. No mais, o que me resta é gastar esses minutos pensando e observando o cenário ao redor.

E acho que posso dividir as coisas dessa forma:

Um: Pensar

O que poderia ser um exercício de auto-conhecimento está sendo, na verdade, a parte menos produtiva da história toda. Eu costumava acreditar que teria oportunidade para meditar e refletir sobre a vida. Pensei que faria minhas orações e tomaria decisões importantes nesse tempo de quietude. Mas tem sido um tanto frustrante por esse ponto. Eu mal começo a considerar alguma situação específica e numa fração de tempo minha mente entra num vazio completo. Quando desperto desse estado, não faço a menor idéia do que se passou, penso em três milhões de coisas e nada que possa reter, é como se o cérebro entrasse em hibernação.

Comecei a ficar preocupado. Até que peguei um livro do escritor Haruki Murakami em que ele comenta sobre o que se passa em sua mente enquanto treina corrida: nada. Ele chama isso de vácuo. E saber que alguém também sofre do mesmo mal é algum consolo, principalmente porque ele é japonês e esses caras japoneses costumam ser bem focados. Mas, por outro lado, ele tem 60 anos, corre 10 quilômetros e nada 1500 metros todos os dias. Nem que eu fosse o Secretário Geral das Nações Unidas acho que conseguiria pensar em coisas produtivas por tanto tempo.

Dois: Observar

Se a reflexão tem sido frustrante, acho que um hábito meio vergonhoso que adquiri tem uma parte de responsabilidade nisso: é a mania de ficar olhando para as pessoas e tentar imaginar a vida que levam. Entenda, não é nenhum julgamento preconceituoso. É que nas ruas, você cruza com todo tipo de gente, fica perto de uma porção de desconhecidos e acaba sendo inevitável ceder à curiosidade de criar personagens a partir desse tipo de suposição.

Se me permite…

Tem um homem, ele trabalha como gari e varre a calçada de uma avenida por onde passa gente e carro sem parar. Eu o vejo quase todos os dias, tem a pele escura, um ou dois dentes faltando no sorriso, bigode ralo, vassoura nas mãos e o uniforme de cor laranja berrante. Ele é nordestino. Fico tentando imaginar as circunstâncias que o trouxeram para o Sudeste. O que será que ele pensa sobre o próprio ofício? Entenda, varrer o pó de uma avenida em São Paulo é algo como enxugar gelo na praia e ele faz isso por oito horas, diariamente. Penso então que quando acaba o expediente, ele toma um banho, troca de roupa e segue para sua casa onde deve ser o herói de alguns garotos. A esposa e os filhos estão esperando em casa pelo pai que chega, já à noite, cansado do dia na rua. Faz sua refeição, checa a lição de casa do mais velho, assiste a novela com a patroa e dorme em paz num quarto bem pequeno. Esse homem deve jogar um futebol com seus meninos no sábado a tarde. Pode ser que ele ligue para os parentes em sua cidade natal de vez em quando, pode ser que sonhe ganhar a vida na cidade para juntar algum dinheiro e voltar para sua terra um dia.

Teve um casal. Ambos desajeitados, brancos, extremamente altos e um pouco obesos. Andavam bem rápido. Eu os vi descendo a rua desde lá de cima, com as mãos dadas e dedos entrelaçados, conversavam animadamente e a toda hora os olhares se cruzavam e sorriam. Deviam namorar há poucas semanas. Pareciam tímidos. E pensei que possivelmente estiveram apaixonados por um tempo antes de se declararem. Deviam trabalhar no mesmo escritório, mas não tinham coragem de se convidar para um café, até que um dia ele mandou o MP3 de uma canção do Elvis Costello para ela por e-mail e foi aí que as coisas começaram. Estavam apressados para ir ao cinema ver qualquer filme em cartaz. Eles ficarão noivos daqui um tempo, farão uma viagem pela Irlanda quando casarem, demorarão para ter filhos, mas quando vierem, ela vai largar o trabalho para se dedicar à casa.

E tinha também uma mulher e sua filha. Eu as vi sentadas num vagão de trem meio vazio numa manhã de terça-feira. A menina de cabelo cacheado, comportada, bonita, banho recém tomado. Tinha aquele olhar inocente, devia ter sete ou oito anos. Carregava sua boneca num braço e a própria mochila sobre o colo, porque a mãe já levava uma carga pesada demais. As sacolas de compras, uma mala, as blusas para caso esfriasse, um guarda-chuva. Ela tinha o olhar cansado, olhava ao redor procurando uma resposta. Queria entender porquê tudo isso com ela, porquê ele foi embora depois de tantas promessas, sempre queria, mas já havia se conformado. Aquela era a vida, que a menina aprendesse e não precisasse passar pelo mesmo. Era assim que ela demonstrava seu afeto. Essa era sua luta diária, sua esperança e sua busca. Ela queria acreditar que tinha um destino naquele trajeto.

É assim que eu gasto meu tempo. Meu rico tempo que deveria ser rico e cheio de meditações, veja você. Mas por favor, entenda, não quero fazer julgamentos e nem acho que esteja em posição para isso. Por isso, me constranjo. Fico encabulado porque acho que é bem possível que alguém pense esse tipo de coisa de mim também. Tenho isso como algo certo. E, sabe, se as pessoas tiverem essa mesma mania, eu devo ser um alvo bem estranho. Eu penso um pouco nisso. Se alguém fica curioso olhando para um sujeito como eu, o que deve pensar? Aí começam as neuras todas.

Geralmente, quando minha mente chega nesse ponto, é o momento em que percebo o quão improdutivo é o tal do estado de vazio em que me afundo. Esse é o limite. E eu penso: sério mesmo, Henrique? Com tantos problemas para resolver e tanta coisa importante em que se concentrar, você está mesmo pensando nisso agora? E aí então o ciclo recomeça.

* * *

Tem sido assim em todos esses dias. Na ida e na volta do trabalho, nos deslocamentos até um comércio ou a oficina para acompanhar o conserto do carro. Vou andando. Minha rotina foi sensivelmente alterada e isso tem tido algum efeito benéfico sobre mim.

O trecho mais longo da caminhada é na volta para casa. Desço numa estação de trem das proximidades e caminho por pouco mais de 40 minutos até abrir a porta da sala. Dou de cara com as duas expressões risonhas e os beijos capazes de restaurar o cansaço da maratona. É nesse instante exato que o tal vazio da mente se preenche com a razão da existência do homem – esse homem, pelo menos. Em um minuto assim, um minuto que qualquer sujeito vive, pensei certo dia que se alguém com quem cruzei pela rua fizesse mesmo de mim algum julgamento, se quisesse encontrar um adjetivo para me definir, poderia ter uma palavra em mente: afortunado.

É uma boa palavra. É a minha riqueza. É um lugar-comum, eu sei. Mas é um bom caminho para se percorrer todos os dias.

Reunião de pais

por Luiz Henrique Matos

Na semana passada, fui à minha primeira reunião de pais como pai. É bem estranho isso. Já sou pai há um tempo, mas ainda parece que a reunião de pais e mestres é algo em que minha mãe deveria comparecer e não eu. E por motivos que não vem ao caso agora, eu costumava ter um pouco de medo desses eventos quando era garoto.

Mas agora as coisas são diferentes. No mês que vem eu faço 30 anos e preciso amadurecer. Eu lembro do meu pai quando ele tinha essa idade. Já tínhamos uma casa, um carro bacana e ele usava um bigode igual ao do Magnum. No meu aniversário, acho que vou deixar crescer o bigode.

Naquela manhã, a Manú tinha um compromisso importante e acabou que fui até a escola, me fazendo de desinteressado, mas curioso até as últimas para saber o que a Tia Mariza iria me contar sobre a Nina.

Gastei menos de uma meia-hora na sala de aula, sentado numa cadeirinha de uns 10 centímetros de altura, preenchendo formulários e vendo os trabalhos da classe. Até que a professora me chamou. Eu achei que ouviria uma porção de novidades sobre minha filha e que finalmente descobriria o que os professores tanto falam para os pais nessas reuniões bimestrais, mas não tinha nada demais. Por esse ponto, foi meio decepcionante. Nenhuma confidência, nada de conspirações ou planos arquitetados. No fim, a reunião de pais e mestres é só uma reunião entre pais e mestres.

E a única coisa que ouvi sobre minha filha é que ela é sociável, gosta de cantar e dançar, de ouvir histórias e gasta um tempão desenhando, concentrada nas cores e no papel. “É essa coisa da imaginação, da mente do artista que as crianças tem”, definiu a Tia Mariza.

Saí de lá sem novidades pra contar. Nossa Nina é na escola exatamente como é em casa.

Nem digo como isso é algo confortável de se ouvir. Entenda, o período que minha filha passa no colégio é o único tempo em que ela está fora do meu “controle”. Não que ela esteja, de fato, em algum minuto, mas você sabe o que eu quero dizer. Ali, longe do meu olhar, ela é livre para não ser como eu peço que seja quando está ao meu lado. Distante das asas que os cobrem, filhos podem ser como bem entenderem. E o que são, suas atitudes livres, define de certa forma o seu caráter.

São princípios, como costumo insistir em outras conversas. O que o filho aprende do pai, pratica na vida.

Quando a Manú estava grávida, nos matriculamos num curso de educação de filhos. É verdade que hoje não me lembro de muita coisa do que aprendemos ali, mas foi importante na ocasião. Lembro de uma aula em especial, quando o professor nos disse que “os filhos são como uma folha em branco e cabe aos pais preencher esse espaço com as verdades em que acreditam para a formação do caráter da criança”. Não bastasse isso já ser apavorante o suficiente, ele ainda completou: “o espaço que vocês não preencherem, o mundo preencherá”. E eu tenho perdido algumas horas de sono com esse negócio desde então.

Minha filha, uma folha em branco, um lápis na mão e fiquei imaginando que ela seria uma história que a Manú e eu precisaríamos escrever. Pelo menos as primeiras linhas, pelo menos algo que registre os princípios e tenha algo bom para contar, um estilo, estrutura, forma, conteúdo… Mas não, eu não consigo. Não tenho o direito de determinar o que será sua vida. Acho que posso ajudá-la a descobrir. Talvez apontar um caminho, contar algumas experiências, mas é ela, essencialmente, quem vai escolher que direção tomar.

“Você pode pegar as obras de arte da Nina e levar, está bem? Olha aquela ali que bonita”. A professora apontou para os desenhos fixados na parede. Procurei pelas pinturas que tinham o nome dela assinado, recolhi uma a uma, juntei num envelope grande e, meio sem jeito, coloquei na mochila.

Caminhei da escola até a estação de trem e, no caminho, pensava nessa história toda e mantinha a postura e os passos alinhados, com medo de que qualquer tropeço ou distração pudesse pôr em risco aquelas cartolinas desenhadas. Eu ia carregando os desenhos como um troféu, exibia as pontas das folhas coloridas que ficaram pra fora da bolsa como medalhas, uma jóia, me sentindo o Frodo levando o anel precioso.

Não os criamos para nós mesmos, isso é bem difícil de admitir. E acredito que parte da beleza da criação e da escolha de Deus em nos fazer como somos, seja justamente essa liberdade assustadora que às vezes faz a gente querer correr por aí só para sentir o vento no rosto e, em outras horas, voltar rápido para o aconchego dos braços do nosso Pai. Sabe, essas coisas. Precisamos do Pai para nos dar direções, mas acho que seu amor é tão grande que ele não se mete nas nossas decisões sem ser consultado. Ele confia que vamos fazer as escolhas certas com aquilo que aprendemos por caminhar ao seu lado.

Os filhos refletem o caráter daquele que os criou. O que vemos em casa, define em muito o que somos. Daí a importância de se ter para onde voltar. Daí a importância de se ler menos esses manuais de educação de filhos e um pouco mais as histórias que os encantam.

Eu queria ser um pouco assim para minha filha. Isso eu tento aprender. Eu queria ser um filho que faz as coisas certas para ser um pai decente para a Nina. Percorro de volta essa distância para tentar espelhar sabedoria e caráter. Eu costumo pedir a Deus que, se possível, sejam corrigidos os traços imperfeitos que tenho e que ele me deixe apresentável para minha família, para ser um bom pai, para ser divertido, para ser o seu par numa brincadeira, num baile, na entrada da igreja, na caminhada até Cristo. Até que se abra uma trilha que ela percorra sozinha, nos passos que determinar para si, mas lembrando sempre – aí eu torço – o caminho de volta sempre que for preciso. Eu estarei aqui.

Não tem muito que eu possa fazer, a tal da folha em branco. Não é tanto o que faço, mas quem eu sou que vai influenciá-la. Só espero que ela não use um bigode.

Pode ser que eu faça alguns traços, pode ser que eu registre um pequeno conto ou pinte um desenho para ela se lembrar. Pode ser que eu escreva textos assim. Mas serão sempre coisas bem pequenas, discretas mesmo. Eu quero é deixar espaço para que Deus reflita nela a sua beleza, a inspire e ela trace, a seu modo, a história que quiser contar.


Esse texto faz parte da série Paternidade.

A ilustração foi tirada do livro “O homem que amava caixas” de Stephen Michael King.

Origens

por Luiz Henrique Matos

Se você vive numa cidade como São Paulo, é capaz de morar a 30 minutos de um lugar sem jamais ir até lá. Se esse local – um bairro – foi onde você nasceu, pode soar como anos e anos sem voltar à sua terra natal.

Na última segunda-feira, fui logo cedo levar um casal de primos à rodoviária e aproveitei que tinha algum tempo livre (estou de férias) para esticar o caminho de volta por mais quatro quadras até a rua onde nasci e morei até os nove anos. Cheguei a voltar lá outras vezes depois que nos mudamos, mas já fazia 15 anos que não pisava naquela rua – uma vila – espremida num bairro velho da cidade.

Achei que o lugar não existiria mais – só tem uma coisa que você vê mais do que padarias e pombinhas em São Paulo: obras – mas me enganei. Está tudo lá, exatamente do jeito que era na década de 80. O bairro todo, as casas, as fábricas, o barzinho, a farmácia, o posto de combustível… o tempo foi passando e aquela paisagem industrial só ganhou uma coisa: poeira. O lugar está sujo, cinzento. Pensando bem, talvez sempre tenha sido, mas crianças não notam esse tipo coisa.

Eu vi a casa onde cresci. Sempre pintávamos de bege, mas agora está azul. Eu passei de carro pela rua, a Nina dormindo atrás, nem desci.

Lembrei do tempo bom da infância ali, da vizinhança e das manhãs, mas não tive nenhum flashback ou aqueles sentimentos revividos, nada. Vi o que vi, tirei umas fotos com o celular e fui embora.

Só lembrei mesmo de um evento engraçado. Nas vésperas da mudança, combinei com o Cuca, meu melhor amigo, que um dia voltaríamos ali. Calculamos um tempo, quando já estaríamos bem mais velhos e teríamos rodado todo o mundo, aos 20 anos, e nos reencontraríamos na vilinha (é como chamávamos a rua) para fazer sei lá o quê.

Atrasei 10 anos no acordo selado em 1989. Encontrei o Cuca, casado e de barba, pela internet há alguns anos e as coisas vão como vão. E, sim, ele ainda atende por Cuca.

A Nina nem acordou. Eu até queria que ela conhecesse a casa, a vila, o clima do lugar. Ela vive me pedindo pra contar histórias sobre a minha infância. De repente, notei que na idade dela, eu morava ali, brincava naquele asfalto e dava meus primeiros passos. A história toda que eu conto se passou naquele cenário.

O passado é uma coisa curiosa. Não que eu ache bacana esse saudosismo, nem acho, mas às vezes é bom a gente olhar para trás para entender, nas marcas, caminhos e histórias, a construção do que somos hoje.

Reinos, princesas e castelos de Lego

por Luiz Henrique Matos

Outra noite, fiquei sozinho em casa com a Nina. Comemos juntos, dei banho nela, pus o pijama e brincamos um pouco sentados no chão da sala – só um pouco mesmo, até eu perceber que existem dois ossinhos nos quadris que não pareciam estar ali até pouco tempo. Na hora de dormir, como de costume, eu contaria algumas histórias. E para a Nina, esse costuma ser o ápice do dia.

Mas para marcar nosso tempo de pai e filha, confabulei uma idéia, dessas que a gente só tem quando sabe que não tem ninguém por perto para repreender: “Filha, já sei! Vamos colocar um colchão aqui na sala e montar sua barraquinha… aí depois a gente trás as cobertas, travesseiros e dormimos lá dentro. Que tal?”

É engraçado como crianças gostam dessas idéias fantasiosas. Para ela, aquilo não era só uma bagunça autorizada na sala, nós estávamos mesmo construindo um castelo. Entre lápis de cor, livros e peças de Lego espalhadas, edificamos o nosso pequeno reino, definimos as regras e vivemos uma aventura.

E o projeto até que correu bem. A exceção se deu por minha tentativa de entrar, deitar e me manter minimamente confortável numa barraca cor-de-rosa de um metro quadrado. Puxa, eu torcia para ela dormir logo e eu poder evitar os sérios danos que aquilo estava causando à minha coluna. Onde eu estava com a cabeça?

Ela gostou, mas na hora de dormir, se mexia de um lado pro outro, virava, chutava as paredes do castelo, me deu uma cotovelada, até que: “Papai, eu não quero dormir aqui! Eu quero ir pro meu quarto e dormir na minha caminha e tomar um leitinho e pôr o cobertor quentinho!”.

E assim, percebendo que minha filha herdou de alguém aqui de casa o temperamento minuciosamente sistemático, vi morrer a idéia mirabolante que eu havia planejado passo a passo e calculado em cada detalhe.

* * *

Se você ainda não é pai, deixe-me dar uma dica: uma coisa boa de se ter filhos é que a gente sempre pode saciar a vontade de brincar, desenhar com giz de cera e correr pela casa fazendo barulhos esquisitos sem que alguém nos julgue por isso. Aliás, pelo contrário, quanto mais estranho você se faz passar para que seus filhos se divirtam, mais as pessoas vão te elogiar e dizer que é um pai presente, amigão e cuidadoso. Mal sabem.

Às vezes, eu fico pensando na minha filha, observo ela concentrada desenhando alguma coisa e percebo que é dessa pureza que Jesus fala quando repreende seus discípulos e diz que “o Reino de Deus pertence aos que são semelhantes a elas”.

No fundo, a história toda não é sobre ser infantil, é sobre ser puro. A questão da vida eterna ao lado de Deus, não diz respeito sobre o quanto deixamos de errar ou o quão eficientes somos em seguir rigidamente as regras todas, mas tem a ver com o nosso coração e a busca sincera em tentar viver de acordo com o que o Pai nos aconselha.

Crianças acreditam em milagres, acreditam em promessas feitas por pais apressados, acreditam em príncipes e contos de fadas, confiam na fidelidade eterna dos amigos, elas acreditam que podem voar. Mas tem gente – os adultos e suas leis – que trata a fantasia como bobagem, colocam freios na imaginação infantil e acabam por matar a beleza da vida com sua visão pragmática dos fatos. Puxa, “visão pragmática dos fatos” já é, em si, uma expressão que mata muita coisa.

O que eu sinto, é que não preciso ensinar um conjunto de leis para minha filha. Eu preciso lhe ensinar bons princípios. E então os caminhos e a vida toda dela será de acordo com esse bom ensino. Uma a uma, suas decisões serão certas, não porque ela obedeceu cegamente ao que ordenei, mas porque soube escolher conforme suas próprias convicções e interpretação do mundo.

Tá, tá legal, eu sei que esse é o tipo de conselho que aparece em qualquer manual para pais de primeira viagem. Não que eu tenha lido algum livro desses – não li – mas é de se imaginar que conste esse tipo de afirmação. Mas o que eu quero dizer (ou tentar entender) é: quem disse que o mundo é do jeito que eu acho que é?

A Nina acha que é uma bailarina e dança em frente à TV até na trilha de abertura da novela das sete – de preferência usando um vestido florido, que roda suspenso no ar enquanto ela gira em torno do próprio corpo. Ela acha que cobrir os olhos com uma almofada a faz desaparecer. Ela ouve as histórias que contamos sobre reinos, reis e heroínas e arregala os olhinhos brilhantes imaginando tudo aquilo acontecendo de verdade, talvez ali na esquina ou no apartamento de baixo.

Crianças acreditam em coisas impossíveis. E pode até ser que o grande valor disso seja porque também acreditam, piamente, nas coisas possíveis. Em todas elas. Para elas, ainda não há mentira no mundo, não existe essa falsidade que a gente vê por aí e o mundo pode ser, de verdade, aquilo que lhes alimenta os sonhos. E isso basta.

* * *

Há alguns dias, eu dirigia pela cidade e parei meu carro num semáforo. Tinha ali um menino, com seus seis ou sete anos, que possivelmente estaria me pedindo algum trocado. Mas ele se distraiu. Estávamos num cruzamento, carros passavam por todos os lados, a cidade gritava com buzinas e motores, fumaça, pessoas cruzando pelas ruas como manadas e motoristas isolados em suas bolhas. E um garoto pobre, sozinho, sem a mãe ou o pai por perto para protegê-lo de tudo aquilo, estava agachado no canteiro gramado, sentado sobre os calcanhares, brincando com um carrinho quebrado, minúsculo, fazendo barulho de motor com os lábios e a imaginação vagando longe, no mundo que ele construía.

Jesus nos pede para acreditar em coisas impossíveis. Ele diz que devemos amar nossos inimigos, que não precisamos nos preocupar com o que vamos comer ou vestir, ele fala que os pobres, os que choram, os humildes, os pacificadores, que toda essa gente sem rumo aos olhos da nossa sociedade são, na verdade, os felizes e bem-aventurados. Jesus diz que crianças são um modelo de vida.

Elas acreditariam nele se tudo isso lhes fosse contado. E talvez até construíssem algo baseado nessa instrução. Um mundo inteiro, quem sabe. Não dá pra duvidar das crianças, porque elas tem dessas coisas, elas confiam, imaginam e, ao seu jeito, obedecem. Crianças brincam e sonham nos cenários mais improváveis. É bonito de ver. É até um aprendizado talvez.

“Digo-lhes a verdade: Quem não receber o Reino de Deus como uma criança, nunca entrará nele.” (Lucas 18:17).

Bom, veja bem, é possível que a coisa toda do aprendizado seja, no fim das contas, eu me converter à visão da minha filha. Seu coração infantil, a pureza nos gestos, a fantasia, o olhar fixo no pai procurando uma direção.

Eu sei que é contraditório. Pode ser um pouco de fantasia, como isso de acreditar que Deus nos chama a todos de filhos, ama o mundo inteiro e pensa coisas boas sobre nós. Aí sim faz mesmo algum sentido que o olhar de todas as pessoas do mundo estejam fixos numa única direção, que exista um caminho bom.

Ali, guardada sob as cobertas, de pijama, na cama em que dorme todas as noites, antes de fechar os olhos, a Nina ainda me chamou uma última vez, só pra oferecer algum consolo: “Papai, outro dia a gente faz cabaninha e eu durmo lá, tá bom?”. Essas coisas acabam comigo.

Eu queria saber com o que ela sonha.

E nessa caminhada, eu só espero não atrapalhar a espontaneidade das coisas com meu jeito sistemático, sabe? Eu fico aqui reclamando e sentindo essa melancolia toda só porque eu já não brinco mais de Playmobill, mas eu prefiro mesmo é que ela cresça com sua própria visão do mundo e de Deus, criando com ele algo tão diferente e tão belo que, em algum ponto, ela acredite que é possível edificar a verdade nessa terra, que dá mesmo para as coisas serem diferentes se ela se conservar menina e que pode, com seu canto, sua dança, sua fé, um vestido florido e boas escolhas, construir o Reino de Deus, com peças de Lego e castelos cor-de-rosa.


(Esse texto faz parte da série “Paternidade”)

Alienação

por Luiz Henrique Matos

Luz vermelha. Ponto morto.

Então, pela manhã eu acordo, tomo banho, troco de roupa, desço o elevador até a garagem no subsolo do prédio. Entro no carro, dirijo com o vidro fechado e o ar-condicionado ligado por cerca de 10 quilômetros até o escritório. Isso leva bem uma hora. Entro no prédio, estaciono na garagem coberta, subo direto pelo elevador até o andar em que trabalho. Almoço no refeitório do prédio. No fim da tarde, o mesmo itinerário até o elevador me deixar novamente na porta de casa. Isso leva bem o dia todo. Chego, tomo meu banho, troco de roupa, desfruto o jantar, vejo TV, brinco com minha esposa e minha filha, leio algo e então deito para dormir.

E o dia passa, inteiro, sem uma única experiência ao ar livre.

Sabe, tem gente – gente mau caráter – que acredita realmente que os fins justificam os meios. Dá pra ver isso a toda hora nos jornais, na vizinhança e por aí. Gente que não mede esforços para conquistar o que deseja ou precisa. Eles tem um plano e fazem o que for necessário para alcançá-lo. Julgamos e condenamos esse tipo de atitude o tempo inteiro.

Mas, sei lá o motivo, há algum tempo, tenho conhecido gente que acredita que os meios por si só se justificam – volta e meia tenho sido essa gente também. Elas não tem um fim concreto em que acreditam ou algo perseguem. O dinheiro, seus bens, o trabalho, tudo o que era instrumento virou objeto. E as pessoas vivem cercadas disso, dedicadas a isso, alienadas em atividades e coisas que estão longe de serem respostas. A gente esquece que o dinheiro serve, o trabalho serve, nossas posses servem… para alguma coisa. E viramos escravos e nem bem sabemos de quê.

Quando o meio vira fim, alguma coisa ficou de fora da história. Talvez a história toda, em muitos casos.

É como correr atrás do vento. E a gente faz o quê com isso?

Luz verde. Primeira marcha. Segunda. Buzina. Uma fechada. E então, rapaz, será que chove?

O poder do indivíduo

por Luiz Henrique Matos

Uma coisa é pior do que acordar cedo numa segunda-feira para ir trabalhar: é acordar cedo num domingo para ir trabalhar.

Hoje, levantei às seis, vesti uma roupa quente e caminhei por cerca de um quilometro sob garoa e frio de 14 graus até o colégio onde voto para servir como mesário, convocado pela Justiça Eleitoral há alguns meses.

E viva a democracia.

O interessante foi chegar pontualmente ao trabalho e ter de esperar do lado de fora porque os de dentro trancaram o portão e não encontravam as chaves.

“Parabéns por servir a pátria!”. Ecoavam na minha mente as palavras do senhor que ministrou um treinamento muito produtivo sobre organização de filas e o funcionamento da urna eletrônica. Urna essa que, “esse ano é diferente, mas é igual”, segundo a senhora que falou na sequência.

E lá estive eu, a urna eletrônica, seu apito estridente e mais quatro colegas trabalhando por dez horas, duas sacolas de lanches e 20 reais para o almoço.

Mas, preciso dizer, eu gostei. Gostei da experiência pública, da rotina diferente, das pessoas. Ruim é passar o domingo longe da família, sem descanso, pensando na labuta de amanhã. Mas não posso negar que uma coisa me encantou nessa história.

Na sessão em que trabalhei, votam 397 pessoas – pelas minhas contas imprecisas, quase 200 Antonios. E eu vi entrar uma a uma durante esse dia. Um senhor, nascido em 1921, mancando, acompanhado do filho, dizia com o sorriso discreto em sua dentadura impecável: “Eu não preciso mais, mas toda vez eu teimo em fazer isso!”. Acho que era Antonio o seu nome… E vi ainda uma senhora triste porque votou errado e já não podia voltar atrás. “Tá na mão de Deus, meu filho”. Um travesti, constrangido em mostrar o documento que revelava o que tentava esconder sob a aparência.

Vi gente emburrada, desiludida, animada… mas boa parte da gente fazia questão de manifestar, no sigilo daquela cabine de papelão, sua opção. Queriam, com um gesto pessoal, expressar sua escolha. Um a um, um mais um, assim vai se construindo, sem qualquer ordem mas de forma organizada, uma escolha que determina o futuro da sociedade em que eu vivo.

Um é muito pouco, posso pensar. É só a minha opção. Mas é tudo o que eu tenho. É o que eu posso fazer.

O poder do indivíduo.

Eu, você, o vizinho, o cara sentando no banco aqui do lado. Se cada um fizer sua parte, teremos um todo. E a beleza disso está em reconhecer que a decisão da maioria pode não ser a minha vontade também – bem, eu não diria “beleza disso tudo” assim com tanta animação mas, vá lá, é a democracia e ela em si é extraordinária.

Tem um ditado japonês (ou não) que diz: “se você quer limpar o mundo, comece varrendo a sua calçada”. Vale para o voto, vale para ética, vale para relacionamentos também. Queremos ver mudanças nos outros, mas a coisa toda precisa mesmo começar em nós.

Num certo momento do dia, pedi licença aos colegas no trabalho e subi até minha sessão para votar. Eu havia anotado os números dos meus candidatos num papel. Quer dizer, todos menos um, o mais importante.

Eu tinha dúvidas – ainda tenho. E enquanto subia os degraus daquela escadaria no colégio, e até chegar à urna de votação, não sabia o que fazer. Meu dilema era decidir entre votar no que acredito de fato, numa proposta que julgo coerente com os princípios que sigo e defendo, ou votar no jogo político, escolher o candidato “menos pior” para tentar impedir que o que eu não acredito prevaleça.

Eu tinha uma tela em branco e um teclado à frente. Segui os instintos, votei pela fé. Primeira opção.

Sabia que não venceria. Sabia que não era essa a voz do bom senso naquele momento. Mas eu ainda sou um sujeito ingênuo, com meus vinte e tantos anos (bom, pelos próximo dois meses ainda posso dizer isso) e tenho muito o que aprender com a vida. Mas enquanto não aprendo, sigo minhas convicções. Enquanto não amadureço e descubro que isso tudo não presta e não passa de uma grande mentira, continuo acreditando no poder das minhas escolhas.

Ainda acho que se continuarmos fazendo opções mais para evitar o mal do que para fazer o bem, nunca daremos chances para que as boas iniciativas e propostas tenham espaço. De novo, vale para o voto, vale para ética, vale para relacionamentos também.

Quando eu parar com essa bobagem e for um sujeito esperto, talvez eu deixe também essa mania esquisita de achar que tenho, na ponta dos dedos, o poder de mudar alguma coisa.

Até lá, deixe quieto, são divagações de um mesário novato passando frio e consentindo com um Antonio qualquer, um velho manco, nada lúcido, de sorriso discreto e dentadura alinhada. Eu não preciso, mas eu teimo em fazer isso.

Cenas domésticas: aula de finanças pessoais

– Olha ali, Nina, tem umas crianças brincando no parque.
– Depois a gente vai lá, né pai? Depois da casa da vovó.
– Vamos sim.
– Pai, mas pra ir lá brincar você tem que ficar aqui comigo sempre.
– Mas e meu trabalho?
– Não, pai, não pode ir trabalhar lá longe, tem que ficar aqui o dia todinho.
– Entendi. Mas, filha, se o papai não trabalhar, como é que a gente
faz pra comprar comida?
– Já tem comida em casa.
– Mas tem que comprar sempre. E quando acabar a comida? O papai tem que ir ganhar dinheiro.
– Pai, eu compro.
– Você?
– É, eu tenho um dinheirinho.
– Ah, tem é?
– Ahãm.
– E com seu dinheiro dá pra comprar comida e roupas?
– Dá. E balinha também.
– …
– E uns doces. Tudo, muitas coisas, pai.
– Mas, Nina…
– Hum?
– E quando acabar o dinheiro?
– Ah, pai, a gente compra mais, ué!


(post para o blog filial Frases de Crianças)

O enxugador de lágrimas

por Luiz Henrique Matos

Aconteceu uma tragédia em nosso aprazível e pacífico lar. Tudo era calmaria quando, num instante, sem que percebêssemos, a fúria dos mares, os ventos do sul, trovões ensurdecedores e todas as forças da natureza se levantaram para promover a pior e mais temível tempestade em copo d’água da história dessa família. Eu mal tive tempo de correr até o fim do corredor que liga a sala ao quarto, guiando-me pelo som do choro desesperado e então encontrar, desamparada, a Nina derramando rios de lágrimas.

– Que foi, filha? O que aconteceu?
– Doeu, pai.
– Doeu o quê, Nina?
– Meu dedo. Snif! Ó, tem uma pelinha.
– Calma. Vem cá, eu tiro pra você – e dei aquela mordida com a ponta do dente pra tirar a pele.
– Humf…
– Pronto. Viu? Não tem mais nada.
– E uma picada, pai, de pernilongo.
– Onde?
– Aqui.
– Vou fazer um carinho e já sara. Olha bem…
– Sarou, papai.
– Pois é. Tá vendo, não precisa chorar. Vem cá, deixa eu enxugar seu rosto.
– O enxugador de lágrimas?
– É isso aí.

Lembro-me de quando era criança e ganhamos o Shake, nosso primeiro vira-latas. Um dia ele saiu para dar uma volta e se machucou feio numa briga de rua (ah, rapaz, você não conheceu o Shake…). Quando voltou, além de dormir pra burro, ele passava o tempo todo lambendo suas feridas. Eu achava aquilo meio esquisito, até que meu irmão mais velho, cheio da sua sabedoria de Manual do Escoteiro Mirim, disse que a saliva tem um efeito cicatrizante nos animais, que as lambidas são como massagem para os cães e que, também por isso, as mães lambem suas crias quando pequenas. Se isso tudo é verdade, juro que não sei, mas ele é mais velho e quando se tem 10 ou 11 anos, a gente acaba respeitando esse tipo de autoridade.

É engraçado notar como os pais tem um efeito calmante sobre os filhos. A situação pode ser a mais desesperadora – algo como bater a cabeça na quina da mesa ou o fato de a roupa de passeio ser só “rosa branco” e não “rosa pink”, que nas definições da minha filha, tem pesos e gravidades idênticos – e o toque, a voz e o consolo paterno fazem com que tudo fique bem outra vez.

E a paz reina. E os brinquedos se acomodam, os amigos dividem as coisas, a comida fica saborosa, a hora do banho passa a fazer sentido, a TV pode ser desligada sem maiores traumas e garotos com crises crônicas de bronquite durante a madrugada conseguem dormir em paz porque uma mão está repousada sobre seu rosto fazendo algum tipo de carinho e dizendo que tudo vai ficar bem.

Filhos acreditam nos pais.

Para nós, adultos, é divertido observar como situações tão banais adquirem proporções gigantescas no universo (i)limitado de uma criança. E também chega a ser invejável a facilidade com que a dor logo passa, como tudo se resolve e a próxima brincadeira toma forma em instantes.

Talvez seja verdade mesmo que as preocupações nos sobrevém à medida que os anos se acumulam. Ou talvez, a medida que os anos passam, vamos ficando um tanto mais experientes nessa habilidade inata ao ser humano que é tornar complicadas as coisas mais simples. E choramos.

Antes eu dormia como uma pedra, agora eu perco o sono. E eu noto que, a cada dia, vou ficando um pouco menos paciente e menos tolerante em relação a acontecimentos que antes não me incomodavam – peles soltas nos cantos dos dedos e picadas de pernilongo certamente estão entre elas.

A gente fica só um pouco mais velho e já vai perdendo a graça. Perdemos a irreverência da infância e acumulamos a amargura dessas circunstâncias que nos afetam. Olhamos no espelho uma vez e ainda achamos que somos os mesmos meninos. Olhamos uma outra e, num minuto, os anos correm diante dos olhos, que agora precisam fazer alguma força para enxergar direito. Fica no ar o cheiro de menta do creme dental de todas as manhãs e o desejo de ter de volta um pingo daquela inocência. Eu queria bem é resmungar um pouco, abrir o berreiro, e logo vir alguém para resolver tudo com uma voz mansa e cheia de sabedoria, dizendo que tudo vai ficar bem, que eu posso dormir em paz.

E pensar que isso tudo é tão pequeno…

E eu fico refletindo que se tem uma coisa que é real, é que a vida é tão ampla, o mundo todo é tão cheio de opções, com tantos caminhos possíveis, que é estranho imaginar que na maior parte do tempo, queimamos nossos neurônios preocupados com coisas que, no fim das contas, cabem no nosso umbigo – para onde concentramos nossos olhares e esforços a maior parte do tempo.

E, bem, Deus é tão grande. Eu acredito mesmo. Ele é bom, amável, e quando penso que posso simplesmente me dirigir a ele para falar dos meus problemas e contar o que se passa, às vezes deixo de fazer por constrangimento. É estranho pensar que posso ter acesso ao criador do Universo se tão simplesmente aceitar isso como fato – ou, talvez, deixar de resistir. Posso ser dirigido pelo divino em cada um dos passos tortos que teimo dar na caminhada. Posso chamar o autor da vida de “pai” e ele vai achar isso bom.

Então, num pequeno passo, nessa escolha, meus problemas de proporções gigantescas finalmente se resumem à insignificância que têm de fato. E a tempestade dá lugar a calmaria. O oceano revolto era um copo d’água. Os olhos se abrem e, com eles, tantas novas possibilidades. Eu tenho um porto onde ancorar. Deus.

O enxugador de lágrimas.

Lembrei de João, o pescador, que ainda menino, viu passar por sua terra um homem que se dizia o Messias e, tão irresistível era o seu ensino, que ele e o irmão largaram tudo para segui-lo. E João viu morrer seu mestre. Aos pés da cruz, viu Jesus balbuciar a dor, bradar seu amor pela humanidade e dar o último suspiro. Logo depois, João viu morrer ao fio da espada seu irmão Tiago, vítima de um rei ganancioso. Passaram-se os anos e João ainda se despediu de cada um dos amigos de toda sua vida. E ao final dela, com sua missão cumprida, o velho João não esperava pelas visões que teve e registrou.

Das suas notas, de todas as cartas, um trecho em especial me toca.

Confesso que não sei como serão as coisas depois que eu morrer – eu mal sei do meu próximo passo e já me preocupo mais do que deveria – e também não faço muita idéia do fim do mundo, do último dia e tudo isso do Paraíso. Mas, se eu me apego a uma coisa quando penso em Deus, no amor, na minha família e na humanidade, acho que o futuro tem a ver com isso:

“Nunca mais terão fome, nunca mais terão sede.
Não os afligirá o sol, nem qualquer calor abrasador,
pois o Cordeiro que está no centro do trono será o seu Pastor;
ele os guiará às fontes de água viva.
E Deus enxugará dos seus olhos toda lágrima”.
(Apocalipse 7:16-17)

Filhos acreditam nos pais.

(Esse texto faz parte da série Paternidade)

O tempo, o amor e um Chevette 1982

por Luiz Henrique Matos

Ela agora me liga no meio do dia para pedir coisas. Estou no escritório, toca o telefone, percebo que é o número de casa e acho que é assunto sério. Então uma voz fina do outro lado derrete minha postura de profissional empenhado, pedindo para que eu leve algum doce no fim do dia, perguntando se pode ir brincar na casa da avó ou querendo assistir um DVD diferente.

Não reclamo, eu gosto. Apesar do constrangimento em falar com uma criança no telefone diante de uma audiência concentrada no trabalho, atender as ligações da minha filha ou esposa durante o dia é como fazer uma visita instantânea até em casa.

Outro dia, tocou o telefone e era ela outra vez.

– Alô?
– Papai…
– Oi, filha?
– Eu quero você aqui.
– O quê?
– Eu quero você aqui em casa agora.

Crianças…

Ela não quer saber se vivemos em uma mansão ou numa quitinete, se dirijo o carro do ano ou um Chevette 1982. Para ela pouco importa o cargo que ocupo, a marca da roupa estampada em sua camiseta suja de chocolate, a quantidade de prêmios que ganhei – e não ganhei nenhum, se quer saber – ou qualquer dessas coisas que nos parecem fundamentais em grande parte do tempo.

Ela não se importa com o valor dos presentes que ganha. Aliás, ela nem se importa com presentes. Ela é feliz quando os recebe e também é quando nada acontece. Basta a brincadeira, uma nova história e pessoas ao seu lado.

A cada mês, minha menina deixa de ser aquele serzinho dependente e começa a revelar um pouco de sua personalidade. Ela tem olhos bons. Quando sorri, eles ficam apertados entre as bochechas e as sobrancelhas. De uns tempos pra cá, os cachos já encostam nos ombros, seu rostinho já não está tão fofo e o português vai se ajustando num vocabulário correto e claro nas idéias que quer expressar. Se em algum momento eu achei que tinha qualquer controle sobre as coisas, já não me iludo.

E aos poucos, limitado como sou, vou percebendo que longe de objetos e artifícios de que lanço mão para mostrar o bom pai que pretendo ser, ela prefere que eu lhe dê algo mais simples: tempo.

E ela não está interessada em recompensas, não espera que eu retribua o seu carinho, ela só me quer por perto. Ela quer alguém para viajar junto em sua imaginação, quer jogar qualquer coisa, brincar do que der na telha, quer um leite fresquinho quando acorda e um braço pra se apoiar enquanto a Dora, a Aventureira, resgata algum animal perdido na floresta.

Nada do que ela me pede, nada, me custa mais do que um mísero centavo. A verdade é que as crianças tem um tipo de amor que eu não entendo e não expresso. Um amor desinteressado, gratuito, livre de coisas, que não exige condições, que aceita um pedido de desculpas quando a gente deixa de brincar e que espera o dia inteiro, às vezes bem longo, só para ganhar um colo e ouvir uma nova história antes de dormir.

– Nina, as princesas dormem sozinhas em suas próprias camas, sabia?
– Mas, pai, a princesa quer ficar aqui, perto do príncipe.

Ela me acha bonito.

Às vezes eu me pego pensando no dia em que ela vai descobrir que eu não sou “o” cara. De príncipe, herói e marido exemplar, um dia minha menina vai me achar careta, fraco e pedir para que eu estacione a 300 metros da escola para que os amigos não a vejam entrar no carro comigo. Mas até que isso aconteça, deixo as preocupações para a hora apropriada. Enquanto ela ainda se sente suprida simplesmente por eu sentar ao seu lado no sofá, eu desfruto.

Eu me regozijo em sua inocência, no pensamento puro, nos contos de fadas, nas palavras mal faladas e no cheiro de xampu de neném que ainda perfuma uma parte da casa.

– Pai…
– Oi, Nina.

Ela me mostra a mão espalmada.

– Você fica… você fica só mais assim, ó. Fica só mais cinco minutos comigo?
– Claro, querida. Como não?

Sorri.

– Tá. Então senta, pai.

Ela não me cobra se estou acima do peso, não quer saber serei um sujeito careca daqui um tempo e também não liga se não me visto segundo o catálogo da Armani. Ela só quer que eu esteja ali.

Pais são assim. Às vezes, depois que passamos da infância e, num instante crescemos, pode acontecer de o assunto acabar. Pode ser que o encanto se quebre. Pode até ser que filhos e pais, em função do tempo e das circunstâncias, deixem de ter a afinidade natural, aquela amizade que parecia instransponível lá atrás. Mas inexplicavelmente, a gente sabe o quanto precisa deles. Bem, às vezes nem sabemos, mas notamos que em determinados momentos, precisamos daquele colo, daquele cheiro, sentimos falta de estar perto, gastando um tempo que parece à toa, mas que preenche um vazio que só esse tipo amor pode completar.

O primeiro amor, aquele desinteressado, que tudo sofria e suportava, que acreditava e esperava, de repente parece cheio de condições, cercado de regras, empoeirado, espremido entre tantas lembranças naquele baú esquecido no sótão. E a gente sente saudades mas não sabe como voltar.

Nesses momentos, numa fagulha, filhos se distanciam, amigos se perdem, casais se separam e o homem, ao longo da história, se afasta do seu Criador.

O filho perde de vista o Pai, que nunca deixou de esperar pela volta de sua criança, ansioso, aguardando por mais uns minutinhos. E Deus tenta dizer que ele não quer súditos ou empregados que o sirvam com sacrifício, ele quer seus filhos invadindo a cozinha, cansados de correr no quintal, pedindo por uma história, contando sobre o novo amigo e precisando de um copo de água para saciar sua sede.

E como em qualquer relacionamento, um e outro não esperavam mais do que presença, nada além daquele amor simples, o respeito, carinho… nada que se represente em coisas, nenhuma grande fortuna. Talvez uma aventura frustrada a bordo de um Chevette, uma história para contar juntos, talvez uma conversa franca de vez em quando.

No amor, não se dá nada que custe mais do que um mísero centavo.

(Esse texto faz parte da série Paternidade)

As coisas não precisam mudar

por Luiz Henrique Matos

Toda vez que estou lendo um bom livro e percebo que está chegando ao fim, fico meio apreensivo. Em geral, paro quando faltam 15 ou 20 páginas e penso se aquela realmente é a melhor hora para concluir a história. Gosto de terminar minha leitura no momento apropriado, é preciso ter o clima ideal para honrar o fim daquele relacionamento que construí durante um tempo. Eu sei, isso é bem esquisito.

Estou lendo um livro muito bom e faltam pouco menos de 20 páginas para acabar. Nesse momento, achei que não era a tal hora ideal. Marquei a página e o coloquei sobre meu criado mudo para poder dormir. Mas antes de apagar a luz do abajur, fiquei observando por algum tempo uma foto que enfeita meu lado da cama (é, casais tem dessas coisas). Estamos lá, Manú e eu, sorridentes, comemorando nosso segundo aniversário de casamento. Lembrei do restaurante em que estávamos, dos amigos com quem festejamos, da viagem que acabáramos de fazer e também que tínhamos comprado há pouquíssimo tempo nosso primeiro apartamento.

Fiquei pensando na vida que levávamos naquele ano. Eu sei que não faz muito tempo – estamos juntos há 11 anos e casados há sete – mas ainda assim, tanta coisa mudou de lá pra cá. É engraçado pensar que algumas histórias que vivemos nesses cinco anos nem passavam pelas nossas mentes naquele dia.

Tivemos uma filha, mudamos de casa, viajamos juntos, o Brasil perdeu duas vezes em Copas do Mundo, guardamos dinheiro, fizemos novos amigos, amadurecemos, mudamos de igreja, mesclamos nosso gosto musical, gastamos dinheiro, vimos o quanto ainda somos imaturos e descobrimos que rugas e cabelos brancos também aparecem em adolescentes como nós.

E aí, olhando para trás, a gente redescobre o óbvio: que as lembranças são boas para recordarmos as histórias que vivemos, o que fizemos de certo e errado. Notamos que um porta-retrato pode nos levar outra vez a um grande dia que vivemos, revela a mulher admirável que nesse instante suspira deitada ao meu lado. E ela é forte, meiga, madura, e ainda aquela menina que numa tarde de março, vestida de branco e brilhando como o sol, entrou ao som de música por aquele jardim, ouviu meus votos de amor eterno, me disse sim, me deixou colocar um anel de ouro em seu dedo e me deu um beijo.

As promessas, os planos, as inquietações. Gastamos tanto tempo tentando entender o mundo e a vida, brigando para mudar o rumo das coisas e procurando nossa realização pessoal em questões tão superficiais, que deixamos de notar muitas vezes que a grande alegria da vida está em guardar e desfrutar do tesouro mais precioso que Deus nos deu.

A minha alegria tem dois nomes curtos e mora aqui em casa. Alegria é voltar ao lar no fim da tarde e dar o segundo beijo do dia, repartir um copo de suco, falar do que se passou e ver um filme na TV. Alegria é ver minha filha gargalhando com as cócegas que eu faço, é sentar ao seu lado e assistir Toy Story pela 78ª vez, é construir todo um reino com peças de Lego, é observá-la por horas a fio, enquanto dorme inocente, tentando imaginar os sonhos que alimenta.

Tenho um amigo que sempre diz que eu me preocupo demais. Ele fala que fico aqui escrevendo essas coisas, mas preciso desligar um pouco e deixar que tudo aconteça naturalmente. Sei não. A verdade é que eu não fico encanado com o que desfruto, mas o contrário. Preocupo-me com o que possa estar tomando o tempo das coisas realmente importantes, entende? E para mim, isso não é lá muito natural.

Sei que ainda sou novo e que possivelmente vivi bem menos da metade do que ainda tenho pela frente. Mas sei também que a vida é fugaz e que ao menor vacilo, os brinquedos espalhados pela casa vão dando lugar a cadernos e roupas de gosto duvidoso, os livros vão ficando cada vez mais grossos e com menos figuras e nossas crianças, de repente, entram pela porta sala com suas crianças a tiracolo.

Eu lembro da minha infância numa vila lá na Barra Funda. Era um bairro industrial e eu gostava especialmente das manhãs quentes, depois de abrir a janela do quarto e ouvir o som das fábricas no quarteirão misturados ao de uma família de bem-te-vis que vivia numa árvore atrás do nosso quintal e cantava o tempo todo. E lembro dos brinquedos que deixava pela sala, dos cadernos, das minhas roupas de gosto duvidoso e dos livros todos, com muitas e poucas figuras. E lembro dos meus pais, do meu irmão e da minha irmã, que também já não tem mais aquela idade, no quanto os amo e em como quase não digo isso a eles.

Eu acho um grande paradoxo pensar que, segundo nossas crenças, viveremos para sempre, mas que só temos alguns anos – uma partícula de tempo na história toda – para determinar essa eternidade. Morreremos daqui a pouco e acabamos gastando nossos dias em futilidades, enquanto vemos nossos relacionamentos mais importantes se converterem em diálogos superficiais.

A verdade é que eu quero saber que fiz coisas relevantes. Que mais do que me preocupar em saber das últimas notícias, da escalação do time do São Paulo em 1982 ou ter assistido aos grandes clássicos do cinema, eu sentei à mesa e fiz a refeição de todas as noites com as pessoas que amo. Que eu tive tantos filhos quanto sonhei, que escrevi um poeminha para a Manú e recitei pessoalmente, que fui, por mais um dia, o herói da Nina na brincadeira do rei e da princesa.

Talvez a gente gaste tempo demais querendo encontrar motivos, querendo encontrar culpados, querendo encontrar uma resposta que nos salve da insanidade que estamos vivendo. Mais tempo, mais dinheiro, mais prazer, mais respostas instantâneas, mais planos complicados. Queremos que Deus seja um escritor de auto-ajuda, com um livro de poucas páginas, muitas figuras e cinco passos básicos para que tudo se resolva. Mas tudo é muita coisa.

Queremos que as coisas mudem, mas as coisas não precisam mudar. Quem precisa mudar somos nós.

Mas, jamais conseguiremos isso sozinhos. Precisamos de um refúgio, de um porto seguro onde ancorar e organizar as idéias, rever os conceitos. Às vezes, eu tenho para mim a idéia estúpida de que, tal como algum ancestral que vivia nas cavernas, eu saio de manhã todos os dias para fazer minha caçada, batalhar e trabalhar nos campos pela colheita – bem, convenhamos, é um jeito emocionante e otimista de se encarar dez horas sentado em frente a um computador. Então eu volto, pouco depois de o sol se pôr, para minha paz, minha casa, minha esposa, minha filha, uma caneca de Nescau e as melhores horas do dia.

E Deus.

Eu penso na Bíblia e nas coisas em que acredito e fico feliz em saber que Jesus é o Deus desse mundo. Isso já basta. Eu creio e é mais do que suficiente para que ele seja meu Deus também. E é verdadeiramente libertador e aconchegante ter esse Deus simples, sem me preocupar com os milagres, com as interferências na história, com discussões bobas sobre crenças e com minhas crises existenciais. É esse Deus a quem chamo de pai, é para ele que me sinto livre de abrir tudo o que se passa, que me rendo, agradeço, peço desculpas e peço conselhos.

E acredito ainda que quando ele nos dá uma família e bons amigos, está nos mostrando um pouco dessa verdade, nos oferecendo refúgios de paz para onde podemos retornar quando o sol se esconde no horizonte. Está nos dando o sinal mais explícito do que realmente importa e faz sentido na vida e que, no fim das contas, deveria ocupar mais do nosso tempo.

Olho outra vez para a foto no porta-retrato que eterniza a boa lembrança. A Manú dorme aqui do lado, ouvindo a trilha-sonora das teclas preenchendo a tela do computador. Então eu levanto, faço a última ronda pela casa para checar se está tudo bem (sempre está, mas preciso fazer isso mesmo assim). Volto, deito, dou um último gole no copo d’água e estico o braço para alcançar o interruptor que apaga a luz do abajur. Já é tarde e eu preciso dormir.

Meu livro repousa fechado no canto. O desfecho ficará mesmo para os próximos dias. No momento ideal para eu ler (e viver) as próximas páginas da história.

Onde nascem os sonhos

por Luiz Henrique Matos

– Nina, já contei uma história e nós já oramos. Agora vamos dormir.
– Mas pai…
– O quê?
– E depois que dorme?
– Ah, aí você sonha, filha.
– Sonha com o quê?
– Com um monte de coisa legal. Com brincadeira, com os amigos, com Deus, com o que você quiser. Só coisa boa.
– E depois que sonha?
– Aí a gente acorda e vai brincar.

Alguns segundos de silêncio…

– Papai?
– Oi, Nina.
– Onde é que sonha?
– O quê?
– Onde é que a gente sonha?
– Onde? Hmmm… a gente sonha no coração.
– Eu não quero…
– Tudo bem, filha, não precisa sonhar.
– E você, pai?
– …eu?

Vira-latas

por Luiz Henrique Matos

No último fim de semana, depois do almoço, levei minha família a uma sorveteria. Estávamos em Itapeva, cidade natal da Manú e, sabe como é, domingo, casa de parentes, churrasco, excessos… e a gente ainda acha espaço para a sobremesa.

A sorveteria fica num calçadão em pleno centro da cidade. É o único estabelecimento em todo o comércio – fora a farmácia e o boteco – que abre aos domingos.

Parei o carro numa rua acima e enquanto caminhávamos, cruzamos com um vira-latas fuçando o lixo acumulado na rua. Cena típica. Sacos pretos revirados, restos de comida consumidos com voracidade e o forte odor da sujeira cruzando o ar. O pobre animal estava doente. Tremia enquanto procurava algo que lhe saciasse a fome.

Não seria nada diferente do que vemos em qualquer caminhada por qualquer cidade, não fosse o momento em que o coitado percebeu nossa aproximação e parou. Cambaleou um instante e, numa fração de segundos, encarou a Manú com aquele olhar de dor e desamparo.

– Esses bichos ficam o dia todo consumindo porcaria, sem comer direito. Aí chegam num momento que engolem o que tem pela frente pra tentar matar a fome.

Do alto da minha sensibilidade, passei reto e tentei desviar o foco da atenção da minha esposa, sabendo o que poderia vir em seguida caso ela…

Pois é, minha estratégia não deu certo. Entrei na sorveteria, mas ela não se contentou com minha resposta tão compassiva. Ficou ali parada no meio do calçadão, a sobrancelha franzida, a expressão intrigada, olhando pro monte de lixo revirado. Aí – como já era de se esperar – me mandou levar alguma coisa boa pra ele comer.

Claro, ela tinha razão.

Numa sorveteria, o máximo que se consegue de qualidade nutricional mastigável é um pedaço de bolo. Comprei uma fatia e subi a rua com o pratinho em mãos. Cheguei perto, meio constrangido com a cena e acho até que estalei os dedos para chamar.

– Ei, amigão, vem cá… toma. Você deve estar com fome.

Cena fofa. Me senti o próprio explorador do Discovery Channel se aproximando das feras de forma heróica e lhe entregando o alimento.

Afastei-me e observei. Ele comeu o bolo. Virei as costas e voltei para o balcão refrigerado do estabelecimento. Missão cumprida. Três bolas, por favor. A Manú orgulhosa. Chocolate, côco e morango, caprichado. Peraí, a Manú ainda estava lá fora, com a mesma expressão no rosto.

– Que foi, amor? – perguntei, sem querer ouvir a resposta.

– Acho que ele não tá bem…

Quando ela teima com algo, vai até o fim. E eu agradeço a Deus por isso.

E lá fui eu. Sorvete derretendo na mão, me aproximei dos sacos de lixo e vi o pobre coitado botando todo o bolo pra fora. Meu coração apertou. Estranhamente, pela primeira vez na vida, eu assistia a uma cena dessas sem passar mal junto. Eu sentia aquele cheiro azedo do vômito vindo em minha direção e não me movia. Eu queria pegar aquele animal no colo e correr para um hospital ou sei lá o quê.

Joguei o sorvete de lado. Pedi a alguém que trouxesse um pouco de água.

Ele tremia, suava, esfregava os olhos, ele chorava. Ele só tem 12 anos. “João Paulo”, foi o nome que falou quando conseguiu pronunciar a segunda frase. A primeira foi a que me derrubou de vez:

– Dói… dói tudo.

Poucas vezes ele me encarou. Quando o fez, seu olhar era de dor e desespero. Ele queria socorro mas não sabia pedir. Ele não estava drogado – conforme pressupus quando o notei pela primeira vez – ele estava cansado, tinha fome e talvez dengue ou uma intoxicação.

Então, liguei para a ambulância, mas o serviço de atendimento não estava funcionando. Aí liguei pra polícia, que me mandou ligar pro bombeiro, que me mandou ligar num 0800 que não funcionava e então eu liguei de volta e eles me mandaram ligar pra polícia de novo, que me mandou ligar pro bombeiro, mas eu avisei que eles não podiam atender e então ele me mandou esperar na linha e depois mandou eu ligar na guarda municipal, que finalmente resolveu mandar uma viatura pra buscar o menino.

O João Paulo mora com os pais na periferia da cidade. Saiu de casa às 7:30 para catar latinhas e vender. Estava sem comer desde que acordou e já vinha passando mal desde cedo, andando pelas ruas daquele jeito. Eram três horas tarde, um domingo de sol, as famílias reunidas para o farto almoço do fim de semana e o menino virando sacos de lixo para ajudar a sustentar sua casa.

A viatura chegou. Uma mulher dirigia o carro.

– Venha, filho. Entre no carro. Vamos no hospital pra você tomar um sorinho.

Ele se arrastou para dentro do carro. Arrastou também o saco preto com meia dúzia de latas que conseguiu no dia. E foi.

Paguei a conta na sorveteria, reuni a família e voltamos para casa. No caminho, vi o dono do sobrado onde o menino ficou sentado em frente jogando água na calçada e me encarando bravo.

Eu dirigia o carro sem nem perceber o tempo passar. E a gente passa pelo mundo e nem vê que tem alguém sentindo dor na calçada. A gente olha para um menino fuçando no lixo e logo confunde o menino com o lixo. Mais um vira-latas. Nem paramos pra pensar que a criança tem nome, tem pai, tem mãe e precisa de água, de arroz-feijão, de lápis e papel e de uma bola pra brincar. A gente vê que é um menino e nem pensa: “podia ser meu filho”. Podia.

Tem tanta gente viciada no mundo. Cocaína, cigarro, dinheiro, álcool, sexo, televisão, vídeo-game, comida… tem gente viciada em tudo. Mas quando penso nessa insensibilidade toda que nos faz ignorar a necessidade do nosso semelhante, eu acho que o pior vício do homem é o próprio homem. A maioria das pessoas que eu conheço – entre as quais me incluo – nem mesmo resiste à tentação de só se preocupar consigo mesmo.

O centro do mundo é o meu umbigo.

De volta em casa, bebi um copo de água, deitei na cama e me acomodei em minha zona de conforto pra poder cochilar um pouco. Mas aí pensei no João Paulo, lembrei dessa coisa toda dos vícios da nossa sociedade, fiquei cruzando as coisas na minha mente e orei a Deus pedindo para que não me deixasse esquecer que ele me mandou amar as pessoas.

Não quero ser insensível aos problemas dos outros. Por favor, não. Eu quero, na verdade, o contrário. Quero olhar e não conseguir dar um passo sem fazer algo. Eu quero que Deus me ajude a mergulhar num vício novo. Eu quero é ser viciado em gente.

Jesus olhou para o João Paulo… “Jesus olhou para as multidões e foi movido de íntima compaixão.” (João 14:14).

“Erga a voz em favor dos que não podem defender-se, seja o defensor de todos os desamparados. Erga a voz e julgue com justiça; defenda os direitos dos pobres e dos necessitados” (Provérbios 31:8-9).

Corrida – Forrest Gump e eu

por Luiz Henrique Matos

“Run, Forrest, run!”
(Jenny Curran, em Forrest Gump)

Comecei a correr.

Nunca tive muita habilidade para esportes. Reconheço, entretanto, que demorei para aceitar o fato. Ainda aos onze anos, eu tinha certeza de que um dia seria zagueiro do meu time de coração – bom, se um garoto sonha ser zagueiro, já dá indicações significativas de que não nasceu mesmo para a coisa. Mas depois de passar infância e adolescência entre os últimos escolhidos nas seleções de times na várzea da rua de baixo, não tive muita opção e acabei pendurando as chuteiras (sem muito uso, é verdade).

A vida passaria sem maiores dificuldades não fosse o fato de que hoje, beirando os 30 anos, noto que na mesma medida em que perco cabelos, ganho peso. Até que a ciência consiga provar a relação entre um efeito e o outro, eu sigo “expandindo” além do que deveria. Estou quase quinze quilos acima do normal e minha circunferência abdominal exige que eu faça algo urgente a respeito (tudo bem, a Manú exige bem mais do que a circunferência).

Encontrei então na corrida uma alternativa possível. Me pareceu um esporte menos complexo do que o futebol ou o tênis porque correr, no fim das contas, é o mesmo que andar bem depressa e com saltos. Se eu souber colocar um pé na frente do outro e me mover com certo impulso, então devo estar apto para a coisa.

Como fator motivacional, ganhei um par de tênis de presente no Natal. Depois de pensar no assunto por uns dois ou três anos, dei meus primeiros passos.

– Neguinha, andei pensando, acho que vou fazer corrida. É um esporte simples, está na moda, eu posso fazer em qualquer lugar, já tenho esse tênis legal… O que você acha?

A Manú ficou em silêncio. Não sem razão, em onze anos de relacionamento, já deve ser vigésima sexta vez que prometo começar alguma atividade e entrar em forma. Mas lá no fundo, eu podia ouvir minha querida esposa dizer: “Run, Henrique, run!”

Forrest Gump e eu.

Há algum tempo, assisti a uma palestra do Rick Warren e ele ensinou que se conseguirmos praticar algo por seis semanas consecutivas com uma certa frequência, então aquilo se transforma num hábito que não abandonamos com tanta facilidade. Ele falava sobre a disciplina em nossa espiritualidade e em como é importante manter uma rotina devocional para amadurecermos em nossos relacionamentos com Deus e com outras pessoas.

Lembrei disso em fevereiro deste ano, quando finalmente comecei minha atividade física com o tênis que já não era tão novo. Eu estava correndo três vezes na semana e isso me empolgou. Na ocasião, comentei com um amigo: “Eu devo ter um mínimo de inteligência e força de vontade. Não é possível que não seja capaz de fazer algo por míseras seis semanas.”

Na quarta semana, eu parei.

Rick Warren e eu.

Nas Olimpíadas de Atenas, em 2004, o maratonista brasileiro Vanderlei Cordeiro de Lima liderava a principal prova dos jogos. Ele já estava na etapa final, faltavam apenas seis quilômetros para vencer a corrida (uma maratona tem 42) e mantinha um bom ritmo e vantagem sobre o segundo colocado. Vanderlei passava por uma avenida da cidade e era ovacionado pelas pessoas que assistiam nas calçadas. De repente, um sujeito invadiu a pista e se jogou sobre ele. Os dois sumiram no meio da multidão. As pessoas ajudaram, Vanderlei se esquivou do sujeito, levantou, retomou a passada e seguiu em frente. Mas então, com o ritmo comprometido, ele perdeu duas posições e, ao invés do ouro que parecia garantido, voltou para casa com a medalha de bronze.

O maluco que se jogou sobre o corredor e boicotou sua conquista foi Cornelius Horan, um ex-padre irlandês que defendeu seu gesto como uma forma de protesto religioso.

Boicote. Na maior parte das vezes, eu sou o meu próprio padre irlandês. Encontro justificativas bizarras – e até acredito nelas – para arruinar meus planos quando eles estão em seu melhor momento.

Cornelius Horan e eu.

Geralmente, atribuímos nossos fracassos a alguém ou alguma força do mal que certamente conspira contra nossas vidas. Mas o fato é que, em grande parte, somos nós quem atrapalhamos nossos projetos. Os conflitos no casamento, a carreira que não avança, um livro lido pela metade, a reforma da casa inacabada, a vida de oração que se esfria… tudo ia tão bem e, de repente, num dia meio nublado, a gente acorda e simplesmente deixa que a preguiça nos impeça de seguir em frente.

E é aí que nossa vida de oração é interrompida por uma bola de sorvete, que paramos com a corrida por um pecado bobo, que nossa dieta vai pelo ralo porque não quisemos acordar mais cedo. E tudo se mistura, a vida vira essa bagunça toda, nos culpamos por alguns minutos, os dias vão passando, aí culpamos alguém, reclamamos da falta de tempo, reclamamos da vida e aceitamos mais uma derrota porque, afinal, alguma força do mal certamente conspira contra nossas vidas.

A hiena Hardy e eu.

No fundo, gostaríamos mesmo é de calçar um par de tênis e correr dez quilômetros no primeiro dia. Desejamos tomar uma pílula e ver nossas doenças curadas. Dormir e acordar sem preocupações no outro dia. No fundo, esperamos que Deus esteja pronto para aliviar nossa carga e resolver as dificuldades como um motoqueiro que entrega a pizza no prazo combinado. Queremos coisas imediatamente. Queremos juntar as mãos numa oração breve e saber que nosso relacionamento com Deus será íntimo e já não cometeremos tantas bobagens.

Mas a verdade – que preciso aprender urgentemente – é que o progresso se constrói lentamente. Também é verdade que as coisas dependem mais de nós do que gostamos de admitir – tá aí outra coisa para eu aprender urgentemente. Somos responsáveis pelos frutos das sementes que lançamos. E a realização é fruto de disciplina, fé e perseverança.

Como na corrida, é preciso percorrer um passo de cada vez, um metro a cada passada e, assim, um quilômetro inteiro, depois dois, três, quatro, cinco… e quarenta e dois. E um casamento feliz, uma mãe reencontrando sua filha, um rapaz concluindo os estudos, um homem vencendo o câncer, um livro publicado, o pão de cada dia posto sobre a mesa, a voz de Deus ao seu lado, a minha “barriga tanquinho”.

Schwarzenegger e eu.

“Vocês não sabem que de todos os que correm no estádio, apenas um ganha o prêmio? Corram de tal modo que alcancem o prêmio. Todos os que competem nos jogos se submetem a um treinamento rigoroso, para obter uma coroa que logo perece; mas nós o fazemos para ganhar uma coroa que dura para sempre. Sendo assim, não corro como quem corre sem alvo, e não luto como quem esmurra o ar.” (Paulo, em 1 Coríntios 9:24-26).

É importante saber onde se quer chegar. Mas não adianta querer chegar ao destino sem percorrer o trajeto. O corpo precisa entrar em forma, o caráter precisa ser moldado, há um aprendizado em todo processo. Precisamos dar o primeiro passo. Precisamos dar o segundo passo também. Mas confiantes de que nunca estamos sozinhos. Em cada etapa dessa jornada, Deus nos acompanha e nos inspira. E é assim, avançando dia após dia, que os milagres acontecem.

E eu sigo. Num dia de cada vez, sigo acreditando. E caminhando.

Deus e eu.