Ao torcedor de Arujá

Domingo à noite, nove e alguma coisa para ser impreciso, tv ligada no jogo do São Paulo contra o Vasco lá em São Januário (ou, aí em São Januário, caso o leitor seja vascaíno e nativo). Precisávamos ganhar, mas era pouco provável, bem pouco mesmo. Em um daqueles momentos em que a bola escapa para a lateral e algum jogador já cansado fica fazendo cera na reposição, a câmera não tinha lá muito o que mostrar e resolveu dar aquela checada na arquibancada para alegria dos telespectadores. Vascaínos faziam festa jogando em casa, o estádio cheio, a torcida eufórica tendo em conta os cinco jogos vitoriosos até ali. Em um canto desprestigiado da arquibancada – mas bem desprestigiado mesmo, como costuma ser entre visitantes – a televisão mostrou os torcedores do São Paulo Futebol Clube, a pequena torcida do São Paulo, os duzentos ou trezentos gatos-pingados torcedores do São Paulo, cantando com tudo o que suas gargantas permitiam sobre as glórias tricolores, fazendo coro como se daquele jogo dependesse o título, tocando samba e levantando bandeiras. Faixas especialmente criadas para serem levadas a um estádio e o orgulhoso torcedor poder marcar território com o nome do seu local de origem. A câmera deu seu close em “Arujá!”, era o que estampava a maior delas, de forma que cobria a cabeça do torcedor e deixava seu corpinho à mostra. Outra, um pouco menor, conclamava orgulho de pertencer a “Grajaú” (com o reforço na legenda dizendo “Zona Sul”, para certificar que se tratava do bairro paulistano e não o carioca). Domingo, meus amigos. Domingo à noite, nove e tantas. E enquanto eu vestia uma calça xadrez flanelada e pantufas sentado no meu sofá, bebericando um copo de suco, comendo rosquinhas de coco e bocejando com os passes mal dados de um lado e do outro naquela partida, essa gente que, tanto quanto eu, teria que encarar a labuta no dia seguinte, estava lá em São Januário, fazendo batuque, a nove horas de viagem de ônibus de casa, acreditando que o melhor a fazer com sua preciosa vida era estar naquele campo, em outro estado, para torcer para o São Paulo conquistar, veja bem, a oitava posição na tabela classificatória. Era impensável, um tanto quanto irracional e eu lamentava por aqueles homens até que, já nos acréscimos do primeiro tempo, Arboleda sofreu um pênalti que o juiz a princípio não deu, mas foi checar no zero-emocionante VAR, naquela cena sem graça, mas minha frequência cardíaca já começou a subir sensivelmente e aí o Lucas Moura, o amado Lucas Moura que eu nunca critiquei, o craque Lucas, colocou a bola pra dentro, no cantinho, deslocando o goleiro. E eu já estava sem as pantufas, em festa, batucando o hino do São Paulo no fundo de um balde de pipoca e desejando muito poder estar ali para abraçar aqueles duzentos ou trezentos camaradas numa noite visivelmente gloriosa. O futebol é uma caixinha de… Pandora.

(Publicado originalmente no Estadão em 3/11/25)

José do Egito dirige um táxi

“Eu sei o que é isso aí”, ele disse enquanto me fitava os olhos através do espelho, “quando eu tinha quinze anos, meu pai me expulsou de casa. E foi por causa do casamento com essa outra mulher. Ele me mandou embora, assim ó. Me jogou pra fora e eu fiquei ali na rua, sem ter pra onde ir”.

Suas costas preenchiam todo o banco do carro e ainda sobrava para as laterais. A cabeça quase tocava o teto, ele se apoiava curvado sobre o braço que repousava no volante. Sentado no banco de trás, era isso o que eu via daquele homem. Do seu rosto, só um pedaço dos olhos refletidos no espelho retrovisor, emoldurados também por um par de óculos de armação fina. Seu olhar manso oscilava entre a atenção ao trânsito e me encarar pelo espelho para poder narrar sua história.

“Minha mãe morava em outro estado, eu não tinha família perto, saí pedindo ajuda para algumas pessoas para ver se me deixavam dormir na casa delas uma noite aqui, outra ali, até eu arrumar um trabalho e começar a me virar. Hoje, com a graça de Deus eu tô aqui em São Paulo. Sou eu que ajudo minha família na Bahia. Mas só volto lá para passear. Morar eu não consigo mais”.

O assunto que nos levou ao seu comentário foi uma notícia irrelevante que ouvíamos no rádio. Mas eu disse alguma coisa que serviu como gatilho para ele abrir as comportas dessa represa. Irrelevante também me parece agora qualquer coisa que eu tenha dito. Foi um diálogo longo, eu me lembro. Mas nada me parece merecer mais essas linhas do que a história que escutei.

“Tem meu pai, meus irmãos… Os que também são filhos da minha mãe, mais novos que eu. E os que meu pai teve com essa mulher depois. Eu tinha seis anos de idade. Minha mãe foi embora e deixou a gente com meu pai. Ele se casou de novo. E a nova mulher dele, ela não gostava de mim, sabe? E, cara, eu só tinha seis anos. Ele trabalhava o dia todo e foi deixando a gente. Ele me esqueceu, sei lá. Ela me deixava trancado num quarto, acredita?”

O trânsito estava fluindo livre. Como em raras ocasiões, naquela tarde eu ia chegar mais cedo no destino daquela corrida. Como em raras ocasiões, desejei que chegássemos atrasados.

“Assim que meu pai saia pro trabalho, ela me mandava para o quarto e trancava a porta. Eu ficava o dia todo lá sozinho. Me levava um prato de comida no almoço. Eu tinha que comer ali mesmo. Até as coisas de banheiro, eu tinha que fazer ali no chão, num cantinho”.

Com seis anos?

“Um pouco antes do meu pai chegar, ela abria a porta, me fazia lavar e limpar aquela sujeira e me mandava tomar banho. Aí ele chegava em casa e sentava pra jantar. Só ele tinha janta, com comida mesmo, a gente comia a sobra do que tinha do almoço. E durante o jantar, ela sentava do lado dele e falava, falava e falava de mim pra ele, até ele se convencer de que eu merecia apanhar. Cara, eu apanhava toda noite. Enquanto meus irmãos viam alguma coisa na TV, eu levava surra”.

A mansidão do olhar também estava na fala. Contava a história como se narrasse sua última ida até a quitanda. Falava do pai com afeto.

“Foi assim desde que eu tinha uns seis anos. E durou até perto dos meus quinze anos, por aí. Quando tinha dez, onze, comecei a ir pra escola. Fui aprender tudo atrasado. Mas era sair e voltar para casa. E apanhar. Aos quinze foi quando ele me expulsou de casa e eu fiquei na rua”.

José. Seu nome é José.

“Eu me revoltei, sabe? Não vou dizer que não. Mas eu fiquei tentando entender e não conseguia. Como pode? Com uma criança. Era meu pai”.

Me diga, por favor, que essas pessoas estão presas. Eu pensava. Não. Só me diga que houve justiça, que houve algum tipo de reparação, me conte sobre os pedidos de perdão. Fale, José.

Ameaçava chuva. O céu escurecia com as nuvens se formando, tornando o horizonte de São Paulo ainda mais cinza. Mas era na Bahia dos anos 80 que estávamos. Até que ele me trouxe de volta.

“Hoje, eu sou o filho pra quem ele pede conselho, acredita? Meu pai me liga quase todo dia, me pergunta as coisas, pede ajuda. Para você ver como são as coisas. Meus irmãos que ficaram lá, não tiveram as oportunidades que eu tive. Eu ajudo eles também, direto. Eu fui aquele que se deu bem”.

Eu observava o movimento frenético de carros e pessoas fora da janela, mas o universo todo estava era ali dentro. Me peguei balbuciando, quase num reflexo:

– José do Egito.

– Sou eu! – ele sorriu e se aproximou do espelho, como se quisesse chegar mais perto de mim.

– Conhece a história?

– Esse era meu apelido. Um sujeito na firma onde eu trabalhava disse que eu era José do Egito. Aí eu fui ler para entender. É – sorriu largo – eu mesmo.

– “O mal que vocês me fizeram, Deus transformou em bem”. O sujeito sofreu o que sofreu e depois ajudou o pai e os irmãos. Seu pai ainda é casado com essa mulher?

– Sim. Eu vou lá, tudo certo, cumprimento. Fazer o quê?

– E seu pai?

– Hoje somos amigos. Eu amo meu pai.

Eu ia de carona. No carro e na história. O carro foi desacelerando enquanto chegávamos no destino antes do horário previsto. Ele suspirou e seguiu:

– Ele nunca me falou nada, sabia? Nunca me pediu desculpas. Mas, eu sei. Eu sinto, sabe? O jeito como ele é comigo hoje, como ele fala e me trata. E às vezes, ele me olha de uma forma e fica um silêncio assim, fica me olhando e parece que tem uma coisa que ele quer dizer e não fala. Mas eu também não quero que ele diga, eu prefiro assim. Porque se ele disser… se ele disser, aí eu também vou ter que falar tudo. E tudo… isso aqui, meu irmão – e bateu com o punho cerrado no peito – tudo… eu acho que não consigo.

José dirige um táxi no Egito.

Não tinha um raio de luz naquela tarde. A noite se aproximava, o tempo estava nublado, o ar era frio, o céu escuro, o dia triste. José, não. José era sol.

(Publicado originalmente no Estadão)

A César o que é de César

Na fila de imigração para entrar oficialmente em território argentino, me percebi imediatamente atrás de Chico César, o cantor, filho da Mama África, que sustentou o pequeno garoto como empacotadeira nas Casas Bahia antes dele ficar famoso.

Passava das onze da noite, a fila era curta e logo ele foi chamado pelo oficial da fronteira para apresentar seus documentos. A dois metros, eu observava a cena. Pude ver a bolsinha de documentos do Chico César de onde ele sacou uns papeis, vi o passaporte do Chico César (mas sou míope e infelizmente não consegui ler o nome da mãe pra fazer o fact checking da música), vi o chapeuzinho do Chico César, que ele sacou da cabeça para poder tirar a foto que o oficial registrou. Vi a expressão de apreensão do Chico César enquanto o oficial folheava seu documento. Vi também, depois de alguma interação em portunhol que não consegui entender, o Chico César ficar na pontinha dos pés para alcançar o microfone da cabine blindada e aproximar o rosto, bem pertinho do vidro e oferecer uma canja para o oficial, cantarolando à capela: “Quando não tinha nada, eu quis; Quando tudo era ausência, esperei; Quando tive frio, tremi; Quando tive coragem, liguei…”.

E sem qualquer outra pergunta, contato visual ou interação direta, eu vi o oficial da imigração baixar a cabeça, abrir o passaporte do Chico César, carimbar, assinar e lhe devolver desejando uma boa estadia em terras portenhas.

Fiquei em dúvida se deveria aplaudir ou não.

Vi Chico César desaparecer pelo corredor em direção a seja lá o que tenha ido fazer em Buenos Aires enquanto o som da música ecoava em minha mente e eu tentava lembrar como era, raios, a continuação da letra e só me vinha “dzaia, dzaia, soiê” e sabia que isso não era português e não era espanhol e talvez fosse aquela uma oportunidade para interpelar Chico César e esclarecer elementos existenciais da sua obra. Mas era espanhol, por supuesto era español, o “señor! Señor?!” que eu escutava e que então me dei conta, vinha do oficial de imigração que me chamava, impaciente, para apresentar os documentos em sua cabine já vazia.

“Buenas noches”, ele disse. Eu quis responder: “Quando me chamou, eu vim; Quando dei por mim, tava aqui…”, mas minha voz não estava boa para serenatas àquela altura. Mas eu sorria largo enquanto tirava a foto de registro facial, satisfeito por finalmente conseguir lembrar o resto da letra.

Passaporte carimbado, tal como o artista, “quando criei asas, voei…”. “Dzaia, dzaia! Aí iii…”.

Vi Chico César de novo, lá no saguão de desembarque abraçando amigos, um deles com um violão em mãos, que entregou para o cantor apreciar e dedilhar, como se ele fosse continuar sua performance ali mesmo.

“Sr. Chico, por favor, o que significa amarrara dzaia soiê?”, pensei em perguntar. Era a primeira das importantes perguntas que tinha em mente e tenho certeza que ele ficaria super feliz em responder, mas sou tímido. Enquanto esperava o táxi chegar, recorri ao Google.

“o correto é: ‘ô amarrara dzaia soiê; dzaia dzaia; aí iii iinga dunrã”, respondeu @chicocesarof (o próprio) num tuíte de 2020, em letras minúsculas, enigmático e cheio de meias meias palavras com “of”, imagino, sendo abreviação de “oficial”.

E por fim completou: “e não quer dizer absolutamente nada. :)”, com ponto final e um emoji.

Afe, César!

Aquela noite outra vez

Acho que a coisa toda começou a complicar no momento em que ela disse: “pai, acho que já está na hora”.

Passeávamos com as cachorras em um fim de tarde e ela soltou essa convocação sem olhar na minha direção e com certa formalidade.

– O que foi, Nina? Hora de quê?

– Está na hora de você me ensinar a dirigir. Falta pouco para eu completar blábláblá anos.

Tem um tipo de bloqueio auditivo que me assalta quando esse assunto vem à tona, esse inevitável acontecimento que se projetava num futuro tão próximo, próximo demais, e eu não conseguia assimilar a ideia de que, muito antes do que eu imaginei, minha Nina enfim completaria blábláblá anos.

Eu resisto. A fala dela tinha uma seriedade não disfarçada, um tom de quem ensaiou antes para dizer. Ela resiste também. “Claro, claro. Eu vou, filha… Nós vamos, pode deixar”, comentei.

É claro que é difícil pensar naquela criança saindo por aí dirigindo um carro, adulta e independente nos seus rumos. Claro que estou com medo, em luto ou seja qual for esse sentimento de constatação do desapego do outro. Não é uma questão de apego ao carro, veja bem, mas uma questão de apego à filha, que ainda levo para cima e para baixo na carona enquanto dirijo e que levaria no colo até, se ela deixasse.

O “falta pouco” daquele dia chegou. Em poucas horas ela faz aniversário.

Adulta? Eu escrevi isso?

*

Ela tinha dois anos e fazíamos nossa primeira viagem longa em família. Nina ainda dormia quando o avião pousou e seguiu dormindo no meu colo enquanto esperávamos na fila para sair da aeronave. O rosto encaixado no meu pescoço, o cabelo ondulado caído sobre as bochechas, a respiração completamente entregue. À minha frente, uma senhora a fitou por alguns instantes, sorriu e me disse: “e daqui uma semana ela fará vinte anos”.

Nenhum avião voa tão rápido como o tempo.

Cheguei a escrever a respeito alguns meses depois. Uma crônica chamada “Ela ainda cabe no meu colo” com divagações angustiadas a respeito dos sentimentos que ela nutriria – ou deixaria de nutrir – a meu respeito quando se tornasse adulta. O comecinho diz: “No próximo fim de semana, ela fará quatro anos. Eu posso jurar que nunca imaginei esse momento chegando…” e por aí segue em altas doses de neurose e melancolia. Se eu não me comportar direito aqui hoje, talvez acabe inserindo um trecho no final.

Sorte que não sou mais assim. Sorte também que ainda falta uma eternidade para ela chegar aos vinte anos.

*

Escrevo com a lapiseira que ganhei da Manu dezoito anos atrás. Quer dizer, neste momento eu digito em um teclado, mas venho escrevendo e sublinhando algumas leituras com aquela velha lapiseira que, passado algum tempo, resolvi voltar a usar.

Foi em julho de 2006 que eu a ganhei de presente. Não é uma lapiseira com qualquer atributo que a torne especial ou rara senão a circunstância em que me foi dada. E por isso, claro, lembro do dia exato em que compramos um conjunto de caneta e lapiseira como presente para meu sogro, que adorava canetas e lapiseiras, e Manu pediu ao vendedor que colocasse numa caixinha preta cartonada bonita, que vinha com um laço também preto.

Ela saiu pelo shopping com aquele presente em mãos e com ele ficou em mãos o tempo todo, até quando foi ao banheiro, até quando sentamos para comer e até depois, no carro, quando estávamos indo para casa e ela sugeriu que parassemos para visitar meus pais. E se eu estranhei que ela sugerisse visitarmos meus pais, já não estranhei que o presente do meu sogro estivesse com ela o tempo todo e nem que ela o tenha levado consigo para dentro da casa e ficado com o embrulho em mãos quando sentamos todos no sofá da sala para conversar e só ali, depois de alguns minutos, ela repentinamente disse “ah, você gostou tanto, fique para você. Depois eu compro outro presente para o meu pai”.

Eu não era tão apegado a canetas e lapiseiras, mas fiquei feliz com o gesto. E se não era surpresa que eu soubesse o que tínhamos escolhido para estar dentro daquela sacola, foi surpresa o gesto, foi surpresa o contexto e foi surpresa, definitivamente, abrir o embrulho e notar, no lugar da lapiseira e da caneta, um teste de gravidez com dois pequenos traços indicando que, positivo? Caramba, positivo! Teríamos um bebê.

Em março de 2007, Nina nasceu. Ela é um pouco mais nova do que uma lapiseira Faber-Castell preta com a qual tenho mantido um perigoso vínculo nesses dias. Mais velha do que eu jamais imaginei que uma criança poderia ser. Mas filhos sempre são crianças, afinal. Ainda à beira de tantas coisas que se prenunciam em sua história que virá com suas próprias surpresas, traços e formas. Mas, cujo breve passado de vez em quando eu rabisco com grafites 0.7 2B.

*

Meu bloco de notas tem uma dúzia de listas de pendências para as mais diferentes categorias de assuntos e atividades nas quais me envolvo. O principal liberador de dopamina no meu cérebro vem da recompensa de poder clicar nas bolinhas de tarefas completadas. Nesses dias, tenho uma lista com a Nina como título.

[ ] Fazer matrícula na auto-escola
[ ] Ensinar a Nina a dirigir
[ ] Preencher autorização para excursão
[ ] Organizar festa com amigos e familiares
[ ] Deixar a Nina fazer tatuagem (???)
[ ] Agendar exames médicos (@Manu)
[ ] Comprar presente de aniversário da Nina (@Manu)

Antes eram fraldas, brinquedos, idas ao pediatra e atividades escolares. Os afazeres mudam, mas não o centro em torno dos quais gravitam. Desde que chegaram, nossas filhas são o objeto para o qual nossos olhares são atraídos primariamente, para quem nosso afeto se destina e uma força que intensifica nosso laço. Porque éramos um casal e viramos família. E vê-las florescer sob este teto é um privilégio singular.

*

Tem cheiro de chuva entrando pela janela agora. Uma garoa fina cai, exatamente como naquela noite. Aquela noite outra vez. A noite em que Nina nasceu. Era madrugada quando saímos com as malas nos ombros a caminho da maternidade. Manu se contorcia no carro com as dores das contrações, eu cruzei as ruas alagadas da cidade, os semáforos apagados e chegamos ao hospital, que estava sem energia elétrica. Era como se fosse preciso certa escuridão para alguém poder dar a luz.

Três dias depois, cruzaria novamente a cidade, dirigindo a vinte quilômetros por hora (ou menos), coberto de medo enquanto levava pra casa aquele bebê, acomodada na cadeirinha super estofada e protegida do banco de trás.

E agora, coberta de razão, ela quer pular para o banco do motorista.

Porque existem os ciclos que se cumprem, os ciclos que se refazem, existem as histórias sobrepostas, um emaranhado de eventos que assistimos e existe essa linha, esse fio cuja ponta puxamos, seguimos e que nos conta a história de alguém.

Hoje, é a história da Nina que testemunhamos gratos. Do primeiro abrir de olhos, do primeiro choro, os primeiros passos, saltos, tombos, suas danças, o desbravar a vida e suas tantas experiências pela primeira vez. Inserida, mas também alheia aos fatos que a cercam, enquanto a guerra acontece, enquanto o mundo despenca, enquanto o bolo assa no forno, enquanto a terra segue girando, Nina cresce. O nascimento de cada criança é esse fio de esperança que se tece. E sua existência, o deslumbre magnífico da eternidade. Deus em festa regendo a vida, enquanto seguimos seu ritmo, rendidos a essas pequenezas, a vida miúda que edificamos e que nos maravilha e assombra.

Ela vai dirigir um carro, claro que vai. Vai seguir rumos e estradas que serão novas também para nós. Seguirá, a seu modo, traçando os caminhos que trilha com uma velha lapiseira 0.7 e colorindo com as cores de sua aquarela as paisagens que a encantam e o futuro que apenas seus olhos enxergam. Nina vê um mundo novo que se abre. Nós a vemos. Mais um ano diante dela. Que tenha música, que seja com festa, que Deus a preencha e o amor a inspire em cada pequeno passo. Que a vida a contemple.

(Publicado originalmente no Estadão)

Não vejo a hora

Não preciso saber as horas. A menos não nessa semana em que tirei férias, me desfiz de compromissos e me devoto à intenção de não ser útil (a inutilidade voluntária pode ser desafiadora). Tanto faz se faltam quinze para as tantas ou se já são alguma-coisa-e-meia. Não preciso saber o horário, a medida, o volume ou o peso.

Quero essa sensação de liberdade. Mas, a linha pálida em meu punho denuncia o relógio que não está ali. Joguei o dito na gaveta nas primeiras horas dessa folga e a marca da parte não queimada pelo sol fica no meu braço, deixando um risco branco em contraste com o antebraço e o dorso da mão. A linha da pulseira onde tradicionalmente ficam os números piscantes que determinam cada evento dos meus dias, agora carrega aquela marca para onde olho centenas de vezes ao dia, mesmo sem precisar, em busca do tempo que já perdi. Já não vejo a hora.

Não preciso saber que um porta-aviões norte-americano agora navega em águas próximas ao sudeste asiático, próximo de onde os chineses se posicionam defensivamente. Não preciso saber do resultado do recurso apresentado pelo presidente, ou presidente afastado, ou ex-presidente da Coreia do Sul a respeito de seu processo de impeachment. Não quero saber de muros, tarifas, embargos. Não preciso saber se o mercado está mal humorado ou saltitante de alegria, se o teto da inflação está sendo perfurado, se haverá reforma de ministérios e se as commodities seguem seu vai e vem, sei lá de onde e para onde, preenchendo de expectativas o cenário internacional que agora se revela com ondas de otimismo.

Quero saber é do riso que nos assalta, do humor incontido, o ir-e-vir das águas trazendo suas ondas gentis na direção da praia onde meus pés repousam enterrados num montinho de areia. Hoje, o cenário que espero contemplar é só esse, essa a linha azul infinita que é o mar divisando o horizonte com a outra linha azul infinita que é o céu imenso como teto sobre minha cabeça.

Não preciso saber do resultado das oitavas de final da disputa masculina do Aberto da Austrália, dos últimos reforços contratados pelo São Paulo para o Campeonato Paulista, da convocação do Dorival Júnior para os jogos da Seleção nas eliminatórias. Não preciso conhecer as tabelas de classificação de jogo algum.

Quero saber é de jogar conversa fora, a céu aberto. Quero me empenhar na prática preguiçosa do frescobol (o único esporte onde só se ganha quando ambos ganham). Eliminar as disputas, as contas tolas, as camisas. Vestir um calção de banho e deixar que os dias se regulem pela tabela das marés. Quero esquecer o telefone num canto até que a bateria acabe. E que tudo silencie por um instante, enquanto eu recarrego.

Não sei o bastante sobre a crise climática, mas preciso.

Quero. Mas não hoje.

Não preciso saber da agenda cultural essa semana, das estreias no cinema, da programação da tv, do teatro, dos museus, dos shows infinitos e caríssimos que se sucedem e não vou frequentar. Não preciso – e nem desejo – estar em blocos, multidões e filas. Não preciso saber quais foram as vinte músicas mais tocadas no Spotify ontem.

Quero o som da chuva, quero assistir minhas filhas em seu ócio, ouvir a canção de suas risadas à toa, o tilintar da louça e dos talheres sendo colocados na mesa, um descanso com a Manú nos braços no meio da tarde. Quero que nosso pequeno universo doméstico seja a multidão toda que se basta, por alguns dias, com o que transbordamos uns para os outros. A rotina que estreia repetida em cada novo dia. Essa é a única música em cujo ritmo me empenho em dançar.

Continuo não precisando saber que horas são. Só de birra, chamarei as horas de oras.

Quero, definitivamente, perder tempo. Acordar e dormir ao sabor da disposição. E que o deitar tenha o mesmo valor e nobreza do despertar porque, afinal, não estar é o melhor estar nessas oras. Quero não precisar, desejo não desejar. 

No entanto, eu sei. Fico a remoer precisamente as coisas que gostaria de evitar, pensando e pensando nas tragédias iminentes e concretas que enfrentamos e não precisávamos. Taxas, tabelas, índices, métricas, dados, notícias, imagens e prognósticos. Procuro por um sinal dos tempos. Olho para o pulso. Já não era sem hora.

Não preciso fazer citações, mas não resisto em ecoar uns versos do Caetano que sobram por aqui nesses dias: “a esperança é um dom que eu tenho em mim”. E ele insiste: “eu tenho sim”. Talvez essa seja uma boa trilha sonora para sobrepor os tantos ruídos de fundo que insistem em nos assombrar cotidianamente e nos afastam do essencial, bloqueiam a inutilidade necessária para que o utilitarismo maligno siga nos escravizando/esvaziando.

Quero que a esperança possa preencher esse tempo. O tempo… Ora. Miro meu pulso e ele não está lá. Eu oro para ter uma porção de paz nesses dias. Não quero guerras de nenhuma espécie. Desejo ficar o dia todo descalço. O corpo leve e o coração prostrado, contemplando os lírios do campo, como Ele disse. Fabricar gelo em doses cavalares, carregar um livro fácil de ler sob o braço pra cima e pra baixo e talvez ler um capítulo ou uma linha até cochilar numa sombra. Ver minha filha sorrir de uma piada boba e então fazer uma prece. Ter filhos é um ato de fé.

Preciso seguir por esse caminho para me distanciar do tumulto, esquecer do que não preciso agora e procurar lembrar do que importa, só esse mínimo tão essencial, hoje, para conseguir refazer a ordem justa das coisas enfim.

Não vejo a hora.

(Publicado originalmente no Estadão)

Doce doce lar

Na poltrona 4D eu sentei, na ida e na volta, de um voo para Buenos Aires.

Na poltrona 3C, diagonal à minha frente, sentou-se o mesmo sujeito, na ida e também na volta, dois dias depois.

Pediu água, dispensou os snacks, não quis café, trocou gentilezas com os comissários. Da minha parte, água, snacks e cafés foram bem vindos. A timidez – e não a falta de educação – é que me impede de avançar na troca de amenidades.

Eu – preciso informar, antes que você se preocupe – não fico bisbilhotando vizinhos de viagem, só guardei detalhes sobre esse passageiro especificamente porque o homem falava alto. Simpático, sorridente e muito alto no tom grave em que se manifestava, a ponto de vencer a barreira do bloqueio sonoro dos meus fones de ouvido.

Me atraiu em especial, no entanto, o fato de que nas três horas de viagem da ida e nas outras três horas da volta, empunhando um tablet de treze polegadas, ele se dedicou a superar fases e recordes jogando Candy Crush Saga. A tela reluzia no corredor da aeronave, que deslizava sobre nuvens e o sul do continente, enquanto o dedo indicador do meu vizinho se transformava num eficiente e motivado instrumento destruidor de gelatinas, balas e frutas coloridas.

“Delicious!” brilhava o texto na tela e me distraía, na penumbra do voo noturno, da leitura do último Paul Auster que, por melhor que seja, não conseguia competir com o instinto de torcer por aquele guerreiro em sua saga para deixar o mundo mais doce.

Na hora do jantar, ele não dispensou a sobremesa.

(Publicado originalmente no Estadão)

Polo morte

Papai Noel fumava um cigarro sentado na calçada em frente a árvore de Natal que era rodeada por uma multidão de famílias e crianças saltitantes encantadas com suas luzes e inebriadas pela canção natalina que saía sabe-se lá de onde.

Alheio ao grupo de pequenos admiradores, à sombra de todo espetáculo, Noel fitava o infinito com olhos caídos, o gorro tombado para o lado e a longa barba desalinhada sobre o casaco frouxo, revelando a camiseta branca puída sob a roupa vermelha.

Tragou fundo no tubinho branco fazendo a brasa queimar forte a ponta e deixando o cigarro quase um centímetro menor. Soprou a fumaça num desabafo longo, desgostoso e então deixou tombar o corpo sobre o cotovelo direito apoiado no joelho.

Não tinha saco, nem cheio, nem vazio, aos pés do bom velhinho. Sinal de missão cumprida ou de uma tragédia a essa altura irremediável na cadeia logística de duendes e renas em sua equipe.

A árvore gigante reluzia com uma estrela iluminada no topo e a admiração das pessoas que ali davam voltas para… para… bem, sabe-se lá para qual fim pessoas dão voltas em árvores iluminadas.

Minha filha mais nova, que ainda gosta de acreditar na ideia de acreditar em Papai Noel, caminhava na direção dessa cena quando foi interpelada pela minha filha mais velha – que ainda gosta de acreditar no acreditar da irmã em acreditar – e tapou-lhe os olhos tentando distraí-la, como se um crime hediondo estivesse prestes a acontecer.

Passei fitando o homem, nossos olhares se cruzaram. Estava com pressa, não dava tempo de dizer nada, mas tivesse eu um instante, só por empatia, acho que diria a frase banal que mais repito nesses dias: “Passou voando, né amigo? Esse finzinho de ano está uma correria só”.

Mas eu não sei falar a língua que eles falam no Polo Norte.

(Publicado originalmente no Estadão)

Linhas de expressão

Ao lado do açougue onde um velho desossava metade de um boi na calçada, ficava a loja em que o homem que torrava cafés estava encostado na porta, vestindo seu avental jeans e observando o movimento de turistas na rua. Estávamos em uma ilha com pouco mais de cinco mil habitantes e só me tornei alvo do seu olhar negligente quando entrei na loja atraído pelo cheiro agradável e pelo saco de juta de sessenta quilos escrito “Café do Brasil” prostrado na entrada e a julgar pelo estado, viajou para aquele lugar décadas antes de mim. Pelo período em que as meninas perambularam por uma loja de acessórios coloridos dispostos em corredores infinitos, eu me distraí naquele ambiente monocromático, observando a máquina de torra e moagem, os recipientes com a diversidade de grãos e as ferramentas empoeiradas.

Sozinho e socialmente desconfortável à medida que era seguido pelo dono do estabelecimento, fiz o que sempre faço nessas horas: piorei a situação. Desembestei a fazer perguntas para as quais eu não tinha interesse em saber a resposta, mas me pareceu uma medida de sobrevivência útil no momento. Até que uma saída melhor me ocorreu: comprar. Vinte minutos depois, saí dali com um pacote de meio quilo de grãos nobres de café forte e encorpado – foi o que ele disse e me fez acreditar que anotou, em seu idioma, na etiqueta que colou no lacre que selou na hora – me dando conta então de que aquela embalagem viajaria comigo pelos próximos vinte dias, a milhares de quilômetros da minha própria cafeteira, onde Manú prepara todas as manhãs nosso café nada forte, nem encorpado, mas com habitual nobreza e conversas nada constrangidas.

Sentei-me num banco na rua para esperar as meninas. O homem voltou para a porta da loja. O açougueiro seguia com sua carnificina, agora ajudado por um menino. Enquanto estive ali, ninguém entrou para comprar café ou carne.

Viver em uma pequena ilha, crescer em uma ilha, os limites tão claramente definidos, as linhas de fronteiras perfeitamente visíveis, o mar. Gastar ali os dias, talvez a vida toda, cortando bifes, vendendo presilhas ou torrando cafés importados de lugares cujos pés nunca tocaram. Tornar-se uma ilha.

O caderno onde eu faria anotações sobre as experiências e impressões de viagem não tem uma frase escrita por mim. Eu o carrego na mochila, mas tão logo o ponho sobre a mesa, é surrupiado por alguma mãozinha, cujo esforço é confrontado por outra e elas brigam pelo caderno, repartem folhas, me pedem a caneta “eu primeiro! Eu pedi primeiro!” e eu tiro da bolsa duas canetas porque já era claro, desde sempre, que essa cena se repetiria, como se repete, cada vez que papeis e canetas aparecem sobre a mesa de qualquer lugar onde estejamos.

Nina agora desenha com traços cada vez mais precisos, bastante artísticos e poéticos e já se expressa com uma identidade bem definida. Cecília observa e tenta imitar a irmã mais velha, mas embora procure por um espelho, ela acaba fazendo do seu jeito, com cores, histórias e riscos que desrespeitam limites que os anos impõem e, especialmente por isso, também são tão belos.

E são elas que registram em meu pequeno bloco, a seu modo, as impressões do que viram. Seus rastros em meus cadernos, lembranças de destinos por onde passamos, que se somam às notas mentais que preservo dessas andanças na esperança de que a memória preserve as imagens que devem permanecer. Porque eu não poderia escrever nada melhor do que isso que vejo e guardo. As linhas para onde volto quando desejo viajar no tempo.

Linhas de expressão. No espelho e, sobretudo, nas fotos em que me vi. Vejo linhas que não existiam antes e agora marcam meu rosto. Fios grisalhos ocupando uma área cada vez maior de cabelo e barba. O rosto curvado, a coluna míope, a visão que me trai, uma certa confusão com as palavras… E ao redor disso, as meninas, também mais crescidas e mudando a fisionomia. Consegui notar – a contragosto, registrem – o avanço da idade de uma forma que no dia-a-dia, entre um pão com manteiga pela manhã e a hora da televisão à noite, não dá para assimilar. Seguimos adiante, uma dor no joelho aqui, um frasco com comprimidos ali, o evitar de café depois das seis acolá e permanecemos crentes de que é pouco, só um pouco de dias a mais que se acumulam. Por isso, quando viajamos nas férias e passamos algumas semanas confinados juntos nessa época do ano, é como se existisse um recorte na marcação do tempo que funciona como a janela de espaço temporal em que observamo-nos. O fio da existência, sutil, nos arrasta.

O fio da meada se perde, de repente, e sem que um aviso prévio seja dado, a cápsula em que habitávamos e nos fazia acreditar que pertencíamos a um grupo geracional em movimento, explode. E notamos que esse degrau que um dia duramente descobrimos existir entre nós e nossos pais também se apresenta, acachapante, entre nós e nossas filhas.

Falando neles, meus pais estavam em nossa casa há algumas semanas e Cecília veio do quarto para a sala. “Como ela está grande! Até assustei quando vi”, minha mãe comentou. “Às vezes”, respondi, “escuto os passos de uma delas vindo pelo corredor e imagino que a criança que vai passar pela porta é menor do que a que aparece. Na minha mente, elas sempre são muito menores do que já estão”. Meu pai pousou sua xícara sobre a mesa e olhando para baixo, deu um sorriso discreto e comentou “isso nunca muda”. Esperou um instante – ele sempre espera mais um instante – e emendou: “não importa quanto tempo passe, a gente só vê as crianças. O olhar para os filhos continua sendo assim”.

Em algumas manhãs, quando saio para correr, noto à distância um casal vindo no sentido contrário. A miopia me impede de enxergar com clareza, mas pelo movimento dos braços, o jeito de caminhar, sei que são meus pais fazendo sua caminhada matutina. Eu queria que soubessem que em certos dias eu vejo aquele casal de idosos com seus passos curtos e dentro de mim também bate o sentimento do menino querendo colo. Não importam os caminhos da vida, como os fios que minha mãe tece com agulhas nossas linhas se cruzam emaranhadas.

“Nenhum homem é uma ilha”, escreveu John Donne, que nasceu e morreu em uma, nas suas meditações. Pensava nisso enquanto viajávamos entre pedaços de terra pseudo-flutuantes naquelas férias. Cruzando o mar dentro de um barco enorme durante uma noite inteira e, lá fora, era água, água, céu, água, céu, o barco, uns pássaros, outros barcos, muita água passando em movimento e eu esticado na cama sem conseguir dormir. Caramba, como os pássaros chegam até aqui? Viajar num barco é estar em estado completo de impermanência. Entre uma cidade e outra, seguíamos. Navegar a vida não é nada preciso. Há esses portos novos onde atracamos e há o lugar a que pertencemos.

Durante aqueles dias, nossas mãos tocaram monumentos e artefatos que foram criados há milhares de anos. Caminhávamos por aqueles lugares, cercados de câmeras capturando fotos que habitariam publicações que sobrevivem por míseras horas num perfil de internet. O passado que sondávamos por essas frestas e fragmentos da história era mais intenso que o presente efêmero em que estávamos. O que é o tempo, o que é velhice, o que determina esse espaço entre começo e fim e o que significa o passar dos dias diante dessa imensidão? Frutos de mãos como as nossas, trançando fios e linhas. A impermanência do homem que permanece em suas obras.

“O homem nasce com o anseio pela eternidade em seu coração”, disse um rei no fim de sua vida. Essa eternidade que nos ocupa, plantada em nós pelo Eterno em quem habitamos, o fruto que somos e os frutos que damos.

É preciso fazer do tempo um amigo, foi um conselho que recebi e teimo em não acatar. Em geral, é justamente o tempo meu algoz e inseparável companhia. Jamais um amigo. Nele navego e me refestelo nas lembranças que me compõem. Com ele também luto, luto e sempre perco a batalha, na expectativa de que suas águas fluam de forma mais serena e possam ser navegadas, com o desejo de que possamos vivenciar melhor os dias, nossas filhas, no espaço miúdo da rotina caseira em que habitamos e que tanto nos preenche.

Nenhum homem é uma filha, o poeta talvez dissesse se fosse testemunha da minha nostalgia. “Mas, e filhas?”, eu iria retrucar, só de teimosia.

Volto e volto nessas páginas, reviro lembranças e cadernos com os traços que elas deixam por aqui para compor nossa história. É um quadro, fico pensando. A imagem que capturamos convivendo diariamente, microscópicamente, abrindo os sentidos para experiências novas enquanto nos unimos nessas viagens. Rastros de eternidade. Olho pela janela, vejo as fotos que registramos, penso nas meninas em cada lugar que desembarcamos como se as novas paisagens que contemplamos nessas caminhadas fossem a moldura que se move em torno do que atrai meu olhar como ímã: elas, sempre ali, que permanecem como o único ponto de continuidade enquanto tudo ao redor se movimenta.

Os sinos da igreja tocaram para nos lembrar que era hora de partir. O sol se punha sobre o mar no horizonte. Terminamos nosso jantar apressados e corremos para a balsa que nos levaria embora. Manú dormiu aconchegada em meu ombro enquanto navegávamos. Por sorte, há coisas que não mudam.

Viver em uma ilha.

John Donne segue: “Nenhum homem é uma ilha, um ser inteiro em si mesmo; todo homem é um partícula do continente, uma parte da terra. Se um pequeno torrão carregado pelo mar deixa menor a Europa, como se todo um promontório fosse, ou a herdade de um amigo seu, ou até mesmo a sua própria, também a morte de um único homem me diminui, porque eu pertenço à humanidade. Portanto, nunca procures saber por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti”.

Ainda não abri o pacote de café que comprei naquela manhã. De vez em quando, eu pego a embalagem no armário, aperto um pouco para sentir o cheiro dos grãos ali dentro e fico conferindo os traços da caligrafia do homem e lembrando dos dias em que fingimos suspender a passagem do tempo só para poder contemplá-lo. 

Me distraio enquanto meu café esfria na xícara sobre a mesa e Manu termina de preparar a refeição que as meninas comem apressadas antes de irem para a escola. Desde que voltamos, entramos novamente na cápsula cotidiana que mascara as linhas de expressão e a passagem dos dias. A hora se impõe. Elas saem apressadas, lanches nas mãos, a bagagem cheia de cadernos e folhas em branco. Linhas e linhas, pela vida afora. Eternidade adentro.

*

(“Linhas de expressão”. Depois de muito tempo, voltando com as crônicas para o Estadão).

Escrevendo a lapso

Vontade de escrever a mão,
de rabiscar com lápis,
de rasurar papel,
sentir cheiro do grafite,
da folha, do lápis apontado,
do resto de borracha apagada.
As lembranças dos primeiros dias
de escola.

Vontade de ficar descalço,
de pisar o chão,
de caminhar na grama,
sentir o cheiro do mato,
da terra,
da folha,
do resto de orvalho.
Um lapso dos últimos dias
de inocência.

Vontade de escrever a lapso,
de rabiscar o chão,
de descalçar na terra,
sentir o cheiro dos primeiros dias
da inocência,
da escola
que aponta as folhas
de lembranças apagadas.

Quando você sai, já está dentro

“Eu queria ficar só um dia preso. Dois, três, até dá. Se for mais, bem, vou ter que aguentar, né? Mas é f… Tem uma galera que fica uns dois meses. Aconteceu com um amigo meu. Mas, depois, não tem erro. Quando sai, você já tá dentro”. Minutos depois, ele completou: “o cara tem que ter ambição na vida. Não dá pra ficar parado”.

*

“Desculpe, eu não queria estar em seu lugar”, foi o que eu disse para ele quando nos falamos pela primeira vez. Não em função da convidativa história que me contou, mas porque me sentei por engano na sua poltrona no avião. O sujeito chegou, mochila de cinquenta litros nas costas e disse que 7C era o assento dele. Estava certo. Recolhi celular, livro e garrafa d’água e pulei para a 7K no corredor ao lado.

Instantes depois, murmurei em voz alta que minhas pernas não cabiam na poltrona do avião e o joelho ficava apontando para fora. Olhei em volta e ele estava me fitando. Superei meu bloqueio para socializar com desconhecidos e soltei:

– E a gente ainda paga mais caro pra ter essas poltronas com espaço extra. Onde tem espaço extra?

– Pois é… Pelo menos o voo é rapidinho, né? Duas horinhas.

– Duas? Não, esse é um voo de seis horas. Do Brasil até a Colômbia tem muito chão.

– Jura? Achei que era rapidinho.

Mostrei a passagem para ele – a mesma que ele também tinha – e apontei o tempo de viagem anotado no cartão de embarque.

Que raios, pensei, quem embarca numa viagem sem ter ideia de quanto tempo o trajeto leva? Eu ligo o Waze até pra saber quanto tempo demora para chegar no açougue. Eu ligo o Waze quando pego Uber pra ver se o tempo estimado no Waze do Uber está coordenado com o meu.

Meia hora depois, senti um cutucão no braço.

– Viu isso aqui? Nem água eles dão de graça no voo. Me cobraram mais de vinte reais numa garrafa. Não vão servir nem um biscoitinho de graça.

– Palhaçada. E a poltrona com espaço extra, pelo qual a gente paga, mas que não tem espaço extra? – eu estava meio obsessivo com essa reclamação e ainda não a tinha esgotado o suficiente para poder embarcar em outra.

– Você vai ficar por lá mesmo? Na viagem? – e apontou na direção da cabine do piloto como se estivesse enxergando pelo pára-brisas de um ônibus algum ponto de chegada ali na frente.

– Pra Colômbia? Sim. Vou a trabalho para Bogotá e volto em alguns dias. Você não?

– Não, meu velho – ele comprimiu os lábios, coçou o topo da cabeça e sondou as pessoas em volta – ainda tô só no começo.

– Conexão em Bogotá é cansativo. Vai pra onde? – perguntei, enquanto pensava quem diabos ainda chama os outros de “meu velho” nesses dias.

– Lá pra cima. Estados Unidos. Mas – longas reticências por parte dele – não é bem conexão. Em Bogotá tenho outro voo para El Salvador. De lá, a gente sobe de carro até Cancún, no México. Aí tem outro voo para Tijuana, de onde seguimos a pé para cruzar a – outras reticências, por sua conta – cruzar a fronteira.

Nenhum livro que eu pretendia ler, nenhuma incompatibilidade social ou timidez que me consomem, nenhum podcast que baixei pra escutar, nenhum espaço limitado para as pernas na poltrona que supostamente deveria ter 15 centímetros adicionais pelos quais pagamos uma pequena fortuna ou qualquer filme que eu tivesse salvo em meu computador para me entreter ao longo de seis horas de viagem, nada, era mais interessante do que aquela história. Mas, claro, eu fingi normalidade:

– Ah é? Caramba… Co-como assim? Rapaz! Mas, e aí, como faz? Eu sei de uma galera que tenta cruzar a fronteira pela floresta ou ali pelo sul da Califórnia. Só que é difícil, não é?

– O esquema, eles falam, é você ir a pé e ficar lá no deserto esperando. Quem vai pela floresta, se esconde ou tenta pular qualquer cerca, é difícil, mas pode até conseguir passar. Mas depois fica por lá como ilegal e se complica para regularizar a documentação. Sem falar que se te capturam, mandam de volta e você fica marcado. Agora, nesse outro esquema, você vai preso antes, se entrega. Você só tem que ir para o deserto e eles te pegam. De boa.

– De boa. E depois?

– Aí você vai preso, né? Os caras te levam, ficham e você fica lá à espera de asilo. Depois de tudo, eles te soltam lá mesmo e você fica como imigrante. Mas já está lá dentro, nos Estados Unidos. Tem umas organizações que ajudam com documento e a ser inserido. Dependendo da situação, é rapidinho, até uns três dias. Mas se estiver muito cheio, se tiver criança junto, aí pode demorar mais. Tudo isso influencia o tempo que você vai ficar fechado.

Ele olhou em volta novamente:

– Meu velho, só aqui nesse voo tem mais de dez pessoas indo. Tudo lá da minha cidade, em Rondônia.

– Você é de Rondônia?

Eu nunca conheci ninguém de Rondônia.

– Ahãm. Cheguei hoje em São Paulo. Vim de ônibus. Olha, é puxado. Mas vai muita gente. Na minha cidade, só na minha cidade, que tem uns três mil habitantes, já tem mais de 300 pessoas que já foram embora esse ano. Gente solteira, família, casal, velho, tem de tudo. A gente precisa buscar uma situação melhor, né? Eu não tenho medo, não. Já morei em um monte de lugar, já morei até na Bolívia. Agora, esse esquema pode mudar tudo.

– Outra vida, né? Em Rondônia, você faz o quê?

– Era corretor. Vendia casa, sítio. Mas tava ruim demais. Preciso ir, né? Tentar melhorar. O cara tem que ter ambição na vida. Não dá pra ficar parado.

Enquanto me contava sua história com a normalidade de quem resume um empate em 0 x 0 da segunda divisão do campeonato rondoniense, ele tentava sem sucesso conectar o carregador do celular na tomada da aeronave. Me mostrou o cabo. Tinha trazido o adaptador errado.

– Cara, e agora? Imagina se eu ficar sem bateria nessa viagem? Aí já era tudo.

Peguei o meu adaptador na mochila e ofereci. Ele agradeceu, espetou o cabo no celular, ligou um filme e dormiu em seguida.

Enquanto ele cochila, amigos, vamos recapitular essa rota:
– Viagem de ônibus de Rondônia a São Paulo (58 horas).
– Voo de São Paulo a Bogotá na Colômbia (6 horas).
– Voo de Bogotá a San Salvador em El Salvador (3 horas).
– Viagem de carro de San Salvador até Cancún, no México (20 horas).
– Voo de Cancún até Tijuana (5 horas).
– Viagem a pé pelo deserto de Tijuana até… até ser preso depois de cruzar a fronteira do México com os – Estados Unidos (8 a 72 horas, em média).
– Depois da prisão (sabe-se lá quantos dias), uma viagem de ônibus até Ohio para assumir um trabalho braçal (6 horas).

Ambição na vida.

Eu procurei pela palavra “coiote” na minha mente por algumas horas durante e depois dessa conversa, tentando lembrar das longas reportagens do Globo Repórter que narravam o trabalho das pessoas que cobravam pequenas fortunas para facilitar a saga dos imigrantes ilegais cruzando a fronteira do México com os Estados Unidos ou de cidadãos cubanos que tentavam chegar nas praias da Flórida navegando em balsas. Só agora, no entanto, ela me veio à mente finalmente.

Durante aquele voo, a palavra que mais me ocorria era “mula”, nome dado a quem se dispõe a transportar drogas e outros contrabandos em sua bagagem ou junto ao corpo em viagens em troca de dinheiro. Porque é claro que parecia inverossímil, tudo isso. A história toda, o roteiro, as pessoas, o deserto, a prisão, Rondônia (no duro, você conhece 300 pessoas de Rondônia?). O mais provável era que ele fosse só um traficante (só um traficante, repito) com uma história inóspita para me cooptar e convencer a levar alguma mercadoria que estava naquela pochete gorda que tinha acoplada ao corpo para dentro da Colômbia, para além da linha de imigração, para as mãos de algum sujeito obscuro que nos aguardava no desembarque. Ou, quem sabe, o que seria ainda mais nocivo para meu patrimônio, um cleptomaníaco interessado em embolsar meu carregador de celular e entediado com as seis horas de viagem pela frente.

Quando ele acordou, derrubando minha última tese, quis devolver o adaptador. Recusei:

– Pode ficar, eu tenho dois. Acho que você vai precisar mais. Espero que te ajude.

Dar a outra face, disse Jesus.

– Mas, me conta uma coisa: nesse grupo que você vai, também vai alguém que organiza? Tem tipo um agência, uma pessoa, uma empresa que cuida do processo todo?

– Uma “empresa”, né? Tem um chefão lá e cinco ajudantes. Eles vão monitorando à distância e dando as orientações. A gente chega nos lugares e já tem tudo esquematizado esperando: carro, transporte, passagens. E aqui – deu três tapas na pochete – tem o dinheiro. Tudo em dólar e separadinho, pra gente ir pagando as propinas no caminho. Sobra uns 50 dólares pra tomar um café, o resto é pra suborno.

Tem família, o rapaz. Pai e mãe que ficaram cuidando do sítio. O irmão, com esposa e filhos, trabalha numa loja de móveis e pretende viajar em breve, no mesmo esquema. Ele parte com desejo de voltar. Quer um mundo novo para si e quer seu mundo de volta. No momento em que escrevo, me dou conta de que se o plano teve sucesso, ele está encarcerado em algum presídio norte-americano neste instante.

– Quero ter um documento. Ai posso voltar e ver meus pais. Juntar uma grana. Se bobear até arrumo uma americana por lá e me caso. Não quero ficar trabalhando muito, não. Eu gosto de roça, gosto de terra. Queria mesmo é ter uma terrinha, um gadinho. Eu sou do mato. Isso já tava bom.

Perambulando num deserto.

– O esquema é esse. Vou lá, ficar parado no deserto até um carro me prender. Vai dar certo.

Esfregou as mãos, esticou o pescoço e olhou para frente de novo esperando enxergar um destino.

– Se não der, não tem problema. Aí a gente volta e tenta outra coisa, não é mesmo?

Quando pousamos, desejei boa sorte e nos apresentamos. Na saída do avião, a fila foi se aglomerando e o perdi de vista. Alonguei o corpo, aliviado em poder finalmente esticar as pernas, que agora doíam pra caramba em função da poltrona que deveria ter… e pela qual… bem, a outra face a gente até dá, mas os joelhos são outra história, eu acho.

Do lado de fora, num canto depois do desembarque, eu o avistei novamente. Estava com um grupo de cinco ou seis pessoas, aguardando outros passageiros descerem. Não conversavam. Todos tinham mochilas enormes, mantinham as mãos nos bolsos e o semblante intranquilo. Trocamos olhares, ele acenou com a cabeça, eu sorri de volta e enquanto caminhava rumo ao meu destino, fiquei pensando se, por acaso, a cela do presídio teria tomada para ele espetar o carregador.

“Quando você sai, aí já está dentro”.

Eu não queria estar naquele lugar.

(Publicado originalmente no Estadão)

A fortaleza das lembranças

“Salvar alguma coisa deste tempo ao qual nós nunca mais voltaremos” (Annie Ernaux).

Quando entrava no quartinho dos fundos para pegar minha caixa de brinquedos, eu escolhia três soldadinhos Comandos em Ação e, antes de fechar a tampa, ficava incomodado com a ideia de que o Rambo, com seus complexos e cicatrizes, poderia estar chateado murmurando “poxa, agora eles vão lá fora viver grandes aventuras, salvar o mundo e tal, e eu vou ficar aqui nessa gaveta escura com esse bando de Playmobil carecas”. Então eu voltava, pegava o Rambo e o levava junto. E também os Playmobil. Nem que fosse para exercerem um papel coadjuvante na história daquela tarde.

Por alguns anos, achei que meus brinquedos tinham sentimentos. Não que eu acreditasse nisso de verdade, mas no fundo ficava com aquele sentimento de que, bem, ainda que inverossímil, isso poderia ser real. Eu não sabia o que era inverossímil, então assumia a fantasia e seus mistérios como sendo realidade, assim como quase tudo nessa fase da vida. Houve um tempo em que eu colocava esses sentimentos em outras coisas. Certa vez, meu pai vendeu um Monza vermelho e eu passei algum tempo melancólico porque não me despedi do carro. Ele deveria estar com seu capô cabisbaixo, o farol apagado e pneus murchos lá no estacionamento da loja, ao lado daquelas dezenas de outros carros usados porque nós o trocamos pelo Del Rey cinza, três anos mais novo e muito mais legal porque tinha aquele relógio digital que permanecia aceso no painel.

Hoje em dia, não consigo me lembrar de conceitos fundamentais de análise sintática ou de princípios de trigonometria que me seriam úteis em vários momentos da vida adulta (bem, depois me ajude a lembrar quais seriam tais momentos?), mas dessas bobagens eu lembro nitidamente, numa espécie de live action do Toy Story passado na periferia de São Paulo.

Lembro do Monza e lembro também da rua em que crescemos, os lugares onde nos escondíamos, o canto matutino de um bem-te-vi no terreno atrás de casa que nos acordava toda manhã, o sinal de uma fábrica no bairro tocando às sete, lembro do Cuca e do Beto e do Leandro e os detalhes de nossas memoráveis partidas de futebol, das pipas que eu não sabia empinar e meu irmão precisava colocar no alto pra mim, das brigas que encerravam o dia mais cedo e minha mãe chamando às sete porque era hora de “vem-tomar-banho-seu-pai-chegou-o-jantar-ta-quase-pronto”.

Lembro da escola, os nomes das professoras, do futebolzinho na entrada, dos colegas, da merenda que eu não comia e da cantina com aqueles cheiros misturados que lembravam algum tipo de ração, do barulho do sinal que tocava e fazia aquela mini-multidão correr atabalhoada pelo pátio da Escola Estadual de Primeiro e Segundo Grau Marechal Deodoro da Fonseca, formando filas, do menor pro maior, com distância de um braço estendido e ficar ali parado cochichando por uma eternidade de cinco ou dez minutos até tocar o segundo sinal que era a alforria para sairmos correndo outra vez, naquele mar de pequenas cabeças e mochilas pesadas passando pelo funil de um portão estreito rumo à rua onde nossas mães e um almoço nos esperavam.

Depois dos quarenta anos, a gente se dá conta de que lembra de coisas muito úteis e outras tantas completamente imprestáveis sem ter podido imaginar ou controlar, lá atrás, o que daquilo tudo iria formar o que somos hoje. É um mosaico de memórias para o qual olhamos nesse espelho retrovisor distorcido – de um carro definitivamente sem sentimentos e consciência de sua condição de carro – e compomos a história que chamamos de nossa vida. Até aqui.

À medida que envelhecemos e as lembranças começam a se apagar, como é que nossa mente escolhe as bagagens que vai carregar até o fim dos dias e o que ficará pelo caminho? Esquecemos nomes de pessoas queridas, datas, histórias, fórmulas matemáticas, a hora do remédio, fatos marcantes, mas certas cenas impregnam como fungos um canto obscuro e nos acompanham até o fim. E mesmo que soem absolutamente inúteis, são lembranças assim que nos resgatam de onde estamos nesse instante para nos levar nesse mergulho àqueles primeiros anos em que adquirimos algum tipo de consciência.

A infância é uma fortaleza. A infância é esse universo de lembranças que não escolhemos, o memorial onde reside toda riqueza da existência que carregaremos até o fim de nossas vidas. Desses dias, vêm a percepção mais relativa de tempo que pode existir, porque naquela breve dúzia de anos habitam nossas saudades e ali nascem os alicerces das experiências que perseguiremos pelas décadas restantes: esse resto de vida que vem depois de sermos crianças.

E se penso pouco em Monzas, pipas e Playmobil nesses dias, a verdade é que passo tempo demais pensando na infância. Em especial a das minhas filhas. E penso nas experiências aleatórias que se tornarão memórias no futuro e sobre as quais não temos controle. Podemos levá-las a Marte, ao circo, a um baile de máscaras ou a uma temporada na praia e é possível que, aos quarenta anos, elas se recordem mesmo é de uma tarde em que ficamos sem energia em casa ou do dia em que vendemos um Toyota e elas não puderam se despedir do carro.

Cecília completou nove anos ontem. Teve festa, com bolo, brigadeiro, as primas, músicas e presentes. E não canso de pensar que nesse momento da vida ela tem experimentado as experiências das quais se lembrará com mais consistência e linearidade quando crescer. Quando a deixo na porta da escola, quando encaramos batalhas de cócegas, trocamos bilhetes e desenhos em post-its ou quando ela reclama que eu trabalho demais, me pego pensando: que lembranças serão essas, em 2050, quando ela se pegar pensando na infância, em seus brinquedos dotados de sentimento, os bem-te-vis marcando o tempo no quintal ou as tardes gastas com amigas da vizinhança? Ela cresce e abandona pelo caminho as coisas dessa primeira fase. Não mais bonecas de pano, não mais “boboleta” e palavras trocando o R e o L, nada de seu pijama levantado pra refrescar a barriga no travesseiro frio, as invasões noturnas à nossa cama e desenhos espalhados pela casa. Tudo isso dá lugar a um rumo particular à própria identidade, ainda assombrada pelos monstros que se colocam em seu caminho, mas a cada alvorada avançando com seus patins flutuantes em direção à escuridão para acender, a seu modo, as luzes que lhe abrem uma nova trilha.

Há pouco mais de uma semana, a Nina fez 17 anos (de-zes-se-te, meu Deus). Mas ela não queria. Queria ficar nesse limiar em que a infância ainda a habita e às vezes faz manha no seu subconsciente e grita pedindo atenção. E ela cede. A Nina moça faz tantas concessões quanto a pequena Nina lhe pede, porque adora o espaço da fantasia, dos filmes, brinquedos, músicas e memórias. Manú sempre fala que tivemos uma filha que nasceu senhora. Ela era nostálgica aos cincos anos. E agora, com a porta da vida adulta aberta diante de si, ela se agarra nos batentes querendo ficar. Tem medo porque não sabe que já está pronta faz tempo. Seus pés descalços escorregam no assoalho e ela foge para um canto, criança, corre pro quarto, mocinha, pega seu piano, respira, ajusta a postura, fecha os olhos e toca lindamente, canta lindamente. Pega um bloco de papéis e tintas, espalha tudo pelo chão, pincéis e traços para todo lado e aí desenha lindamente, pinta lindamente. Ela tem medo, mas não precisa. Seu coração poético vai fazê-la flutuar vida afora, criança, sendo carregada pela fantasia.

Sinto essa urgência, esse medo de sentir escorrer por um ralo esse tempo, como se não fossem elas a perdê-lo, mas eu, vendo esvair a oportunidade de tê-las nos braços, de brincar no chão, de embalar o sono, acudir um pesadelo, ler histórias ao pé da cama ou consolar um choro. As tomo pelas mãos enquanto caminhamos e agarro, seguro firme como se fosse eu que pudesse me perder. E posso facilmente ser drenado por essa ansiedade que nos faz viver o tempo todo em qualquer outro momento que não o agora. Seguro firme e quero ficar ali naquele instante, sentindo a pele macia das mãos de meninas que elas ainda tem e desejando ingenuamente ter esse registro para sempre. Salvar alguma coisa.

Estávamos na cama numa noite dessas e eu contava uma história para a Cici. Antes de pegar no sono, ela se acomodou no meu peito e comentou: “Hoje a noite está perfeita. Eu comi brigadeiro, estou abraçada com meu pai e vou dormir com meu cachorrinho de pelúcia”. Esse é o conceito de noite perfeita que ela aspira.

Somos testemunhas dessas histórias que se constroem e que não controlamos em absoluto. No futuro, seremos, Manú e eu, um pedaço de suas lembranças. Mas seremos fragmento, coadjuvantes. O papel que pais e mães querem acreditar que nunca terão, porque se para elas seremos um pedaço no passado que aos poucos deixarão para trás, em nós carregaremos até o fim a certeza de que os filhos são fundamento, uma parte da história que nos constitui. Elas serão sempre uma parte de quem somos. Nós, para elas, uma conexão que precisa abrir espaço aos poucos para que possam começar suas jornadas a seu próprio modo.

A verdade é que eu lembro muito pouco da vida que tínhamos antes delas nascerem. É como se os quatro anos de nosso casamento até aquela madrugada em que peguei a Nina nos braços pela primeira vez estivessem encapsulados numa linha curta que se resumia a trabalho, trabalho, macarrão ao molho branco, trabalho, pipoca e maratonas de filmes alugados em cassete e DVD. E essa fase também se tornou um apanhado de cenas esparsas que compõem um período.

“Ainda temos o dia de hoje”, digo a mim mesmo para me desgarrar do passado empoeirado e dessa ideia de elucubrar futuros possíveis que não controlo. E Deus sabe como me empenho nessa tentativa. Porque não tenho mesmo como saber, afinal, que porção das experiências que vivem hoje serão lembranças para essas meninas quando se tornarem adultas. Do meu lado, porém, carrego a certeza de que delas lembrarei muito mais – mais do que elas mesmas – porque contemplo essas trajetórias de um lugar privilegiado. E cada fragmento de história, de primeiras palavras a primeiros passos, de cantos de pássaros e pores do sol, de lágrimas colhidas e dentes perdidos, de banalidades cotidianas a viagens épicas, isso carregarei comigo, do que dividimos, porque já não é delas apenas, mas é também quem somos. E salvo tudo o que posso disso, dobrado em gratidão, contemplando esses dois milagres que florescem sob nossos olhos.

Enquanto escrevo, estou sentado em frente ao gramado da casa da minha sogra no interior. Cecília está aqui ao lado brincando com os presentes que ganhou na festa de ontem. Pequenos bonecos dotados de vida e sentimentos. Uma porção de folhas de papel espalhadas pelo piso com os desenhos incompletos da história que ela está escrevendo. Nina e Manú leem algo no quarto enquanto esperam familiares e amigos chegarem para o almoço. Lá fora, o céu azul brilha intenso. Meu olhar se perde um instante no insondável acima de nós. É só mais um dia e ainda é festa. É dia de erguer um altar. Salvar tudo o que posso deste tempo para onde espero sempre poder voltar.

(Publicado originalmente em meu blog no Estadão)

A sombra e a escuridão

Já era quase hora de dormir, estávamos na cozinha tirando as louças da mesa quando Cecília apareceu vestindo seu pijama, apertando um gato de pelúcia sob o braço e com uma máscara de dormir presa na testa.

– Gente, alguém pode ficar lá no quarto comigo? Eu tô com medo.

– Eu fico, filha. Você está com medo de quê? – perguntei.

– Do escuro.

– Ué, mas você tem medo do escuro e vai dormir com uma máscara que tapa seus olhos?

– É, então. É por isso que eu uso a máscara. Assim eu não vejo o escuro.

Na passagem dos sete para os oito anos, no coraçãozinho dela brotava esse sentimento do passo seguinte. Ela agora tem a idade de que se lembra… lembra que tem um passado, com as memórias em que se agarra, a nostalgia de lembranças breves e que sumirão gradualmente e tem agora alguma consciência de futuro também, de que tem um amanhã, um depois que ela desconhece e não controla. O futuro pode ser uma sombra escura e assustadora muitas vezes.

Lembro de quando tinha medo da escuridão. Deixava a luz do corredor que levava ao banheiro acesa para conseguir dormir sem precisar encarar aquele vazio absoluto repleto de incertezas. Às vezes, naquele resto de luz que garantia que alguma coisa pudesse ser enxergada, as sombras se tornavam aterrorizantes. Um vulto de tecido que se projetava na parede, o receio de algo estranho acontecesse ou o vento soprando a cortina era o que bastava para que monstros me habitassem.

Cecilia sente-se moça. Já passeia sozinha com a Lucy, nossa cadela de dez anos. Acredita que é capaz de educar a Cora, a nova cadela de seis meses. Faz contas como passatempo, lê seus livrinhos, cria listas com planos para relaxar no fim de semana. Ela agora escova seus dentinhos separados e os cabelos ruivos em frente ao espelho antes de deitar, veste o pijama e sua máscara de dormir e, com aqueles pequenos gestos que emulam a mãe e a irmã mais velha, às vezes também insiste em passar um creme antes de ir para a cama. Cama da qual salta no meio da madrugada e corre para nosso quarto. Pijama estampado, bicho de pelúcia nos braços (às vezes mais de um), a máscara presa na testa. Cecília transita entre a pureza da infância e a realidade dos fatos. Porque tem esses ciclos que fecham e se renovam e, muitas vezes, antes de um terminar, outro novo começa e sobrepõe a ordem natural das coisas. A menina tem medo de monstros, de sonhos ruins, do escuro solitário e das sombras que se projetam à sua frente.

O tempo do faz-de-contas está acabando e ela não sabe lidar. Nesses tempos, há noites em que ela chega no quarto e eu também estou acordado. Meus olhos encarando no teto as luzes que entram pela fresta da janela entreaberta, os ouvidos capturando sons que sobem da rua e do campo ao lado de casa, a mente lutando para capturar e controlar o futuro. O tempo, esse tirano, que nos faz pequenos, que dita ciclos que não encomendamos. Há ensaios de desconhecido e tapar os olhos não elimina a realidade que se projeta.

*

Estou em um voo nesse instante. A trinta mil pés de altitude, disse o piloto. Todas as vezes, nessa hora em que o piloto fala, deito a poltrona e o mesmo pensamento me toma: trinta mil pezinhos empilhados, um a um, até formar a altura em que flutuamos sobre as nuvens. Pés de crianças, pequeninos ou pés tipo de homens adultos jogadores de basquete? Acho que não faria diferença considerando o pouco repertório de referência que possuo e minha capacidade de abstração, mas fico tentando calcular enquanto penso na imagem. Um pé tem 30,48 centímetros, diz a convenção das medidas imperiais (sim, dos mesmos caras que calculam coisas usando nomes como libras, milhas e onças, nomes bacanas de medidas que, pode crer, facilitam bem as coisas). Minha régua Compact acrílica nos tempos de escola tinha trinta centímetros. Ela tinha quase um pé. Esses 0,48 centímetros adicionais não eram relevantes para as aulas, mas tenho quase certeza que fazem diferença nas rotas de aviões quando multiplicados por 30.000. Cá estamos, imperiais, voando. Eu tenho dois pés sobre os quais me sustento e outros 6,10 pés de altura. Estando a trinta mil deles acima do solo, nenhum desses faz qualquer diferença.

Meus dois pés medem 29,5 centímetros cada. Não que seja relevante por hora, mas tenho certeza que você estava se perguntando.

Viagens a trabalho me dão medo. Não tenho medo de altura, seja em metros ou pés (e convenhamos, uma neurose a menos chega a ser um alento). Pelo contrário, gosto de estar em lugares altos, de contemplar a paisagem lá embaixo, da sensação de assistir o mundo em movimento em outra rotação e ritmo, como se eu estivesse momentaneamente à parte daquela realidade, observando a vida dos outros de fora. As partículas se ajustando, vidas em construção e histórias sendo compostas. Pequenas ovelhas num pasto. Me satisfaço assistindo e lembrando de como as coisas se tornam pequenas quando vistas de outra perspectiva.

Nessas viagens, meu medo é de outra espécie. Tenho essa sensação de que estou deixando algo para trás ao partir, mesmo que por alguns dias. Uma perda, como se criasse um buraco de ausência por não estar onde geralmente me encaixo. Não gosto do desapego da rotina, do afastamento da zona segurança oferecida pelo ritmo do nosso cotidiano. Não estar onde não posso ter nos braços as minhas meninas, nossa mesa, a dança da existência que compomos diariamente às 5:45 quando toca o alarme que invariavelmente adio e o dia já começa atrasado. Sinto falta das coisas extraordinárias que vivemos e que se fazem reais a partir da soma das pequenas coisas ordinárias que vivemos repetidamente.

“O universo é feito de histórias, não de átomos”, escreveu Mariel Rukeyser. Não sou poeta e nem cientista. Me apego a esses fragmentos de existência que me dão todo tipo de evidência de que preciso para crer na eternidade. E tem nostalgia pra caramba aí também, claro. Mas a nostalgia, em si, também é um medo de desapegar.

Eu tenho medo de estar viajando num avião, sentir dor de barriga e ter que usar o banheiro. Me apavora a certeza de que a descarga a vácuo vai ser acionada, aquele barulho estridente vai dominar a cabine e eu serei sugado pelo vaso e ejetado para fora do avião direto no espaço. A trinta mil pés.

É, eu sei, todo mundo tem esse tipo de medo.

Tem um sujeito dormindo ao meu lado no voo. Ele está sem os sapatos. Em um pé, usa meia, no outro está descalço. Acho que pode ser uma forma de tentar regular a temperatura. Tentei emparelhar meu pé ao lado do dele, mas não tenho certeza se o dele chega a ter 30,48 centímetros. Ele usa uma máscara de dormir para tapar os olhos. Não sei se ele, tal como a Cici, também tem medo do escuro. Somos passageiros.

Cecília chorou outro dia. Não lembro o motivo; um machucado, um susto, algo que demandava abraço e colo. Às vezes, ela resiste em receber esse cuidado. Depois que acalmou um pouco, conversávamos e notei que uma lágrima insistia em repousar em sua bochecha. Ela tem bochechas fofas e a lagriminha ficou por ali como uma micro poça de água salgada afogando suas sardas. Estendi a mão para enxugar e ela desviou o rosto.

– Pára, pai – disse, séria.

– Eu só vou enxugar uma lágrima que ainda está no seu rosto.

– Eu sei. Mas eu não quero. Deixe ela aí.

Há quem prefira não esquecer por um tempo. Lembrar a dor para não esquecer não é necessariamente cultivar o sofrimento. Pode ser um recurso para ganhar força e encarar o novo, o próximo, o que vem, aquele, aquilo que está logo ali atrás da porta e a gente ainda não conhece.

Saí para correr hoje cedo. Eram seis da manhã e me vi sozinho em uma pequena trilha que de um lado tinha um grande campo de vegetação baixa e do outro uma baía. Eu podia ver o sol surgindo, laranja e intenso atrás de um dos morros. Estava sozinho, o único som que podia escutar era dos meus passos esmagando os torrões de terra na trilha, alguns patos na água e pássaros levantando voo e cantando no fundo. A gente se percebe pequeno nessas horas. Olhei para o horizonte diante de mim, me senti grato, abri os braços e quis fazer uma oração, mas não consegui. Agradeci ofegante, mas ouvi minha própria voz trêmula e me distraí. Não tem muita coisa que vem à mente de forma estruturada quando sua frequência cardíaca bate 170 bpm e se você é o tipo de pessoa desastrada o bastante para cair sozinho mesmo se estiver parado.

Sou pequeno demais, vivendo na transição entre esses ciclos que se alternam e se sobrepõem, e hora me prendem os pés no chão como ímã, hora me impulsionam a correr mais rápido.

“Luizão, tudo bem? Onde você está agora?”, perguntou meu amigo Léo via mensagem. Conectado na rede wifi do avião (senhoras e senhores, o futuro chegou. E ele é terrível), olhei pela janela e respondi: “Estou no céu”. Mas só para depois completar: “Não com Jesus, ainda. Mas sobrevoando o Texas, acho”.

Deus não vê o mundo do alto, não observa a existência alheio e distante, não é essa coisa de ações e consequências, como se fossemos bonecos de um grande Ferrorama e ele nos pilotasse em seus trilhos. Ele não está a 30 mil ou 90 mil ou 88.925 mil pés. Está aqui, o bom pastor, nos abrindo os olhos para perceber seu gentil habitar em cada um de nós.

“O amor lança fora o medo”, escreveu João. Que medo? Todos eles? Medo de escuro, medo de morte, de futuro e de privadas espaciais? A ausência de medo é o quê? Coragem? A coragem, diz sempre um amigo, é seguir em frente apesar do medo. A fé, penso aqui enquanto me dobro diante do desconhecido, é caminhar sem saber para onde, mas esperar pelo melhor.

Deposito minha fé no desejo de poder chegar seguro em casa amanhã cedo, cruzar os pés pela porta da sala e me abrigar nos braços de quem pertenço.

*

Os pequenos pés que até pouco tempo saltitavam descalços pela casa agora usam saltos. Um salto no tempo e a Nina virou moça. Rápido assim. Dezesseis anos. Eu tapo os meus olhos e ainda vejo no piso as marcas das pegadas de sua infância. Escondo a realidade com essas imagens para não encarar o medo. Uso máscaras para disfarçar.

Eu queria viajar no tempo. Trocaria trinta mil pés por aqueles dois pezinhos bailando casa adentro outra vez.

Um peso especialmente difícil de carregar é olhar para a porta do corredor que divide a sala dos quartos e ver surgir a menina desabrochando como mulher. Seu sorriso fácil, o jeito mudado, o cabelo sendo jogado, o rosto pintado para sair. Mas o mesmo olhar está ali. O brilho nos olhos está ali. E ri, chora, se anima com o que seus olhos agora contemplam, experimentam e ansiosamente esperam. A moça está ali, mas ainda é toda a menina.

Ela troca de máscaras também. Porque ciclos são assim, afinal. O começo de um novo tempo não espera o final do outro para começar. O novo que ela celebra pode ser o que me assusta. E vivemos essa mistura, tateando no escuro ao passo que vivemos sonhos, calculando partículas enquanto criamos histórias, pisoteando o chão no dia em que sobrevoamos sobre as nuvens, descobrindo o Eterno habitando nas pequenas gavetas da nossa intimidade. Correr nas nuvens e voar na terra. O universo é feito de histórias.

Não é preciso temer a escuridão. Luzes entram pelas frestas de janelas entreabertas. Olhos e ouvidos captam e contemplam o desconhecido. Eu giro a maçaneta da porta da sala que está destrancada e piso descalço sobre o piso de madeira. Caminho em pastos verdejantes. Estou em casa, finalmente. O futuro não é escuridão. Porque todo amanhã pode ser um novo amanhã. De nada tenho falta. Avanço pela casa e já no corredor, sinto o perfume vindo do quarto. “Oi, amor”, a Manú se vira para me abraçar, “fez uma boa viagem?”.

(Publicado originalmente no Estadão)

Sobre as águas

Estávamos no barco há algumas horas, navegando rio abaixo. Na imensidão verde das árvores que nos cercavam, a água escura correndo sob nossos pés e o céu azul límpido se abrindo infinito sobre nossas cabeças, despertavam a consciência de que éramos pequenos pontos em movimento naquela vastidão da existência.

Eu ouvia cantos de pássaros. Mas por mais que forçasse o olhar na direção das árvores de onde vinham, era incapaz de enxergá-los. Via as camadas de folhas nas copas, via sombras, nada de bichos.

A certa altura, o barco parou e sem o zunido do vento no rosto, o espaço se preencheu daqueles ruídos novos. Sons de todos os tipos de vida surgindo daquele mistério esverdeado que emoldurava o que víamos. Eram elas, as árvores, todas elas, as anfitriãs da casa que nos abrigava.

Outro canto. Me concentrei novamente e tentei segui-lo com a cabeça e o olhar, mas foi em vão. Por causa do meu pai, cresci habituado a escutar piados e tentar identificá-los. Onde quer que esteja, se um pássaro canta ao fundo, aquilo captura a minha atenção e me distraio. Ali, no entanto, tudo era primeira vez.

“Só depois do terceiro dia é que você vai perceber”, disse uma voz atrás de mim, “você vai conseguir olhar para lá e enxergar os pássaros e animais. Nosso olhar da cidade não consegue enxergar as diferenças dos tons de verde, a profundidade e as sombras. Mas a gente vai acostumando”.

A vida pulsando. A vida que eu tanto queria ver naquela floresta. Eu era cego para os milhares de detalhes que me cercavam.

Andrea tem quase setenta anos e nasceu em Taiwan. Trabalha acompanhando turistas do seu país em viagens pelo mundo e naquela semana estava com uma cliente. Fala português com um pouco de sotaque. Já conheceu dezenas de países em todos os continentes e quando perguntamos, durante um café da manhã dias depois, qual lugar mais a impressionou, ela sorriu e apontou para a terra em que pisávamos: “isso aqui. Aqui, não tenho dúvida. A Amazônia é o lugar mais bonito que já conheci.” Esteve lá mais de vinte vezes e pretendia voltar enquanto pudesse.

Os dias passaram. Depois do terceiro, eu já via os pássaros que cantavam nas árvores, via as preguiças nos galhos. Vimos os macacos colhendo frutos, jacarés se refestelando nas margens. Andamos na mata e sentimos seus cheiros, sua umidade, os ruídos constantes que me hipnotizaram enquanto estivemos por ali. Vimos insetos, contemplamos a grandeza da Sumaúma e seguimos, um passo após o outro, nas trilhas que me levaram em uma viagem que desde criança desejei, mas nunca imaginei que o lugar final da caminhada seria para dentro de mim mesmo.

A vida pulsando, em seu lugar de princípio. Aquilo não era destino, era origem.

O Panteão em Roma, os canais de Veneza, as ruínas Maias no México, a arquitetura das pontes parisienses, os castelos alemães, a massa cinza vibrante de São Paulo, as múmias egípcias, o poder imperial de Washington, a diversidade étnica de Nova York, os palácios ingleses, a culinária portuguesa, os vinhos argentinos, as pinturas de Van Gogh no D’Orsay, a música de Chopin tocada por Nelson Freire… A vida me concedeu privilégios que permitiram aos meus sentidos perceberem a beleza da forma moldada pelas mãos humanas. Nada do que vi ou escutei, porém, se compara ao esplendor da natureza diante de nós, acolhendo-nos em seus braços e nos fazendo entender, nessa pequena amostra de espaço e tempo, que ali não estamos, mas pertencemos. A criação é o que somos.

Cecília pescou uma piranha.

Éramos os únicos brasileiros, além do guia, naquele barco com doze adultos. Ela, a única criança, era uma atração paralela com sua espontaneidade e graça. Crianças falam qualquer idioma. Naquela tarde, reinava o silêncio. É preciso estar quieto, imóvel e atento para conseguir pescar – é por isso, acho, que nunca pesco. Mas a certa altura, todos já tinham conseguido fisgar e devolver para a água algum peixe. Todos, menos Cecília. O sol já ensaiava sua saída e o guia recolhia os instrumentos quando ela soltou um gritinho: “peguei!”. E da água saiu o pequeno peixe se debatendo na ponta da linha em que ela tinha colocado sua última isca. No barco, todos aplaudiam. Calvin, um idoso norte-americano que passava os dias fotografando animais e paisagens com sua câmera profissional, apontou sua lente na direção dela e registrou incansável aquele feito. Na pequena canoa, todos em festa por Cecília. E ela sorria incontida, os cabelos vermelhos vibrantes, os olhos reluzindo em satisfação. Devolveu o peixe ao rio e me abraçou.

O esplendor da criação.

A vida pulsando. A vida que eu tanto queria ver naquela canoa. Eu sou cego para os milhares de detalhes que me cercam.

Ao todo, passamos oito dias juntos na floresta. Sem distrações. O hotel não tinha televisão, música, sinal de internet ou telefone. Comíamos todos juntos, na mesma hora, no refeitório principal. Saíamos muito cedo para os passeios e trilhas na selva. E nas horas de ócio, o lazer comum a guias, funcionários e hóspedes de qualquer nacionalidade eram as partidas de xadrez regadas a biscoito doce e café no salão da recepção.

Estou dentro de um avião agora, voltando para casa depois de alguns dias trabalhando em outro país. É noite, olho pela janela e só vejo a asa esquerda da aeronave com uma luz piscante e lá fora a escuridão da noite. O avião desliza pelo céu acima das nuvens como um pássaro que me leva para o lugar onde habito.

Ontem pela manhã, enquanto fazia minha corrida em um parque, uma ave diferente cruzou meu caminho voando baixo. Era preta, grande, tinha uma cauda diferente que parecia estar amarrada com algum tipo de elástico. “Pombas gigantes mexicanas de penteados ornamentais”, pensei. Na volta seguinte, eu a vi de novo. Pensei naquele bicho mais algumas vezes nos quilômetros seguintes. Meu pai talvez poderia dizer de que espécie é. A Cecília a acharia engraçada, Nina faria um desenho, Manú e eu a veríamos sentados e abraçados num banco daquele parque. Era um parque bonito, Chapultepec. Longe de casa, a gente é pura nostalgia.

É só quando nossa visão se desprende dos milhares de ruídos que nos envolvem e distraem é que nos percebemos capazes de enxergar o que procuramos. Até então, são só os sinais.

Pensamento voa, o tempo voa. E a gente, flutuando nas asas dessa existência louca, às vezes só deslizamos por tudo alheios aos detalhes abaixo de nós. Queremos voar e acabamos sem notar que somos a terra, esse pó da terra com sopro de vida e anseios de eternidade.

Cego. Incapaz de enxergar os milhares de detalhes. Vivo cercado de encantos da criação e não consigo notar. Mas quando acordar pela manhã e aterrissar em São Paulo, pisar o chão e estar onde pertenço, voltarei para os braços daquelas a quem chamo lar.

Lembrei que na Amazônia, o Nelson, nosso guia, disse que alguns turistas estrangeiros contratavam aviões para sobrevoar a floresta e seguir Rio Negro em direção a Manaus, de onde poderiam retornar para casa. Estávamos no alto de um mirante de cinquenta metros contemplando o pôr do sol no horizonte preenchido pelas copas das árvores e pensei na ideia de poder ver aquele mar verde lá do alto, o contorno dos rios, ser com os pássaros e fiquei encantado. Então olhei para baixo e vi de novo a terra, vi a água refletindo o céu, os peixes pulando naquela ilusão de ótica e me dei conta, outra vez, que nascemos como Ícaro. E ainda que minhas ideias levem o pensamento tão longe, são coladas com cera essas asas que tenho em mim.

E há esse rio por onde flutuamos. Andamos sobre as águas. Esse milagre, a vida. E nunca viveremos nada disso outra vez. Porque não volta, o rio nunca volta. Não desse jeito. Mesmo que as situações se repitam, somos outros a cada dia, em outro contexto, mais velhos, um dia mais velhos que seja, mas ainda assim observando a cena de uma perspectiva nova. Até que as sombras se dissipem finalmente e nossos olhos se tornem capazes de enxergar de onde vêm os cantos, celebrar crianças pescando encantos. O rio da vida corre constante, nadar contra a corrente é estupidez. É preciso aprender a navegar.

O bom pastor, cantou um rei, nos conduz por águas tranquilas.

A imensidão que nos cerca, a água correndo sob nossos pés e o céu azul límpido se abrindo infinito sobre nossas cabeças, pássaros, despertando a consciência de que somos esse pequeno, esse mínimo, precioso, complexo e único, tão único ser, dotados de consciência, transbordantes do amor que nos concebeu e navegando sobre as águas da existência. Eu rio. Esplendor da criação.

(Publicado originalmente no Estadão)

Remediado está

Um porta comprimidos repousava sobre a mesa da cozinha ao lado da minha xícara e de um copo de água, ali gentilmente colocados pela Manu um pouco antes de eu chegar para tomarmos o café da manhã. Um porta comprimidos, todo meu. O sinal supremo de que a vida adulta cobra uma conta um bocado alta quando escancara assim que… bom, pois é.

Eu troquei o meu há duas semanas. Até outro dia, usava um recipiente que ganhei de brinde em alguma farmácia de manipulação anos atrás. Constava o nome desbotado na tampa: “Principia” (farmácias de manipulação adoram nomes meio frescos em latim. Se tiver uma linha homeopática então, é quase mandatório) e um número telefônico para o qual nunca liguei. Estava velho, os cantos gastos já amarelados, pequeno demais para o tamanho dos meus remédios e às vezes a tampa ainda abria sozinha. Mas, mantê-lo assim por alguns anos era também uma forma de negação.

Mas, num fim de semana entrei numa loja de artigos orientais chamada Daiso. A Daiso promove a ideia de que se propõe a trazer um pedacinho do Japão e suas maravilhas para os shopping centers paulistanos. Nunca fui ao Japão, mas se aqueles corredores iluminados e ruidosos, com itens fora de lugar e despencando das prateleiras são uma amostra da realidade japonesa, então o subsolo do inferno fica na terra e está a um dia de viagem de São Paulo.

Enquanto as meninas procuravam por algo, comecei a vagar pelos corredores dantescos entulhados até que, sem me dar conta, já estava há longos minutos avaliando as características de uma meia-dúzia de porta compridos diferentes (sim, existe uma variedade e, pelo visto, toda uma demanda não reprimida para hipocondríacos que se aventuram naquele pedacinho do Japão). Espaços adequados para pílulas de diferentes tamanhos e formas, estética minimalista e dia da semana estampado na tampa do recipiente são diferenciais competitivos. Um bom acondicionamento para os remédios, efeito translúcido com boa visibilidade, abertura suave das tampinhas… dois andares! São muitos atributos para comparar e na hora achei que seria útil ter uma planilha para tirar a prova. Tentei ler melhor as letras miúdas para me inteirar das especificações, mas não consegui. Tirei os óculos e depois de forçar a visão e ajustar bem o foco, entendi que as letrinhas eram uma porção de caracteres de algum idioma oriental e, lá no finzinho do texto, a única coisa legível em letras ocidentais que pude captar: Made in China.

Ah, o Japão e suas maravilhas.

É de se lamentar a sensação de satisfação com que saí da loja, empunhando meu novo acessório comprado por módicos R$ 13,80.

Só depois, já em casa, é que bateu o mal estar. Enquanto abastecia os pequenos refis com os três tipos de remédios que tomo rotineiramente, me dei conta do potencial definitivo daquele gesto. Não importa quantos anos ainda me restam de vida, as chances daquele item fazer parte da rotina matinal são concretas. Qual seria o passo seguinte rumo à terceira idade? Dormir em frente a TV? Já faço. Usar chinelos com meias? Hum, não, isso os adolescentes é que fazem hoje em dia…

Cocei a testa incomodado. Comparado ao universo de homens no país, eu ainda deveria ser “jovem demais” para algo nessa vida. Parece injusto ter que encarar esse descarrilamento ladeira abaixo da minha moral, da pele do pescoço e dos fios de cabelo.

Na hora, me ocorreu uma ideia original que, sei lá, poderia reverter esse sentimento e trapacear com o inevitável: fazer um piercing no nariz. Isso, uma argola… Ah, não, piercing não dá, tenho rinite e dá aflição só de pensar em ter que assoar o nariz e acabar puxando o brinco junto. Talvez vender o carro e comprar uma moto, dessas grandes, que o sujeito pilota com os braços pra cima. Não, a moto também não rola, tenho dor nas costas. Fazer uma tatuagem no braço? Mudar o tipo de roupa? Tatuagem no pescoço! Sim, bem visível, com frase de efeito ou uma imagem que me defina como homem… Comprimidos, coloridos. É essa a imagem que me define agora. Vou tatuar um estojo cheio de pílulas acompanhado do CRM e telefone do Dr. Fábio, meu médico. Vai que eu comece a ter lapsos de memória, isso ajudaria.

Apesar de serem ótimas ideias, o problema é qualquer dessas coisas demoraria para se fazer e eu precisava ao menos de uma boa, drástica e corajosa atitude ali na hora, naquela cozinha. Abri a geladeira e, movido pelo impulso, saquei a garrafa e virei, direto no gargalo, meio litro – talvez mais! – de leite. E leite com lactose. Sambei na cara do perigo e fui dar uma volta para espairecer. Mas, só até a esquina, porque intolerância à lactose, você sabe, é um troço que ataca demais os jovens hoje em dia.

Quando voltei do banheiro, meu porta comprimidos estava lá, recheado com aquelas cápsulas coloridinhas. Uma graça. Eu precisava dar um jeito naquilo para ser menos deprimente. Olhei ao redor e achei um caderno da Cecília. Roubei alguns adesivos de unicórnios e corações da cartela e personalizei um pouco meu pequeno pote translúcido, estética minimalista, tampa de fechamento suave e dois andares. Não ficou nada jovem, reconheço, mas talvez agora um pouco mais discreto.

Rapaz, o pessoal do clube de bocha vai adorar!

(Publicado originalmente no Estadão)

Vento arredio

Vento arredio sopra intenso e invade a casa por cada espaço. Bate uma porta, duas portas, três, derruba um vaso, uma roupa do varal, carrega papéis e se espalha. Bagunça os cabelos, levanta vestidos, castiga a pele. Balança as janelas, que agora tremem. Arrasta, arrasta, arrasta… O zunido aumenta. O vento que ninguém vê mas se mostra em todos os lados.

Já não é brisa, é indício de tempestade. Vento tão forte é prenúncio, mensagem que chega. Lá fora, golpeia as árvores, chacoalha os galhos de um lado a outro nessa luta. A paisagem é um movimento frenético, uma dança de sem ritmo, as folhas que partem, as sementes que voam longe, os pensamentos que viajam soltos, palavras ao vento, o peso todo que se arranca de um lado e agora prova a resistência de quem se apega às raízes, às fontes de vida antes que se partam e sigam seu voo vadio. Resistir.

A pequena árvore que se enverga ao sabor daquele sopro é pequena. Mais um golpe na árvore, de um lado a outro as circunstâncias a atingem, o inimigo invisível que a fere. Lá se vai um galho. A vida é agora, é ventania. Hoje parece que sempre foi assim. E as árvores todas bailam na frequência daquele sopro intenso e fora de controle.

Vem chuva. É prenúncio. E se há forças assim que não se podem dominar, a pequena e velha árvore agora só luta e resiste.

Tem revoada de pássaros, seus cantos de alerta, os ninhos vazios. Tem a sombra da chuva chegando, o som da chuva, o cheiro da chuva na terra, as gotas de chuva no vidro, no rosto, o vapor da chuva de volta. Uma gota de tempo, uma dança de ventos, um galho de vida, um cheiro de casa, uma folha em branco. São sementes voando, semeando. A tempestade agora é chuvisco sereno que rega o solo onde se enraíza a vida, das árvores.

Logo mais vem o sol.

(Publicado originalmente no Estadão)

Quem vive em Biscoito Duro?

Na estrada, rumo ao interior do Estado, a paisagem de poucas curvas e a vegetação uniforme das lavouras de soja e plantações de eucalipto só tem a monotonia vencida por raros eventos no trânsito e pela distração momentânea das inscrições nas placas que se enfileiram ao longo dos quilômetros. Para um leitor contumaz, textos em placas são a única leitura possível – e uma distração inevitável – enquanto se dirige.

De tempos em tempos, a sinalização das cidades, bairros e distritos saltam aos olhos: Morro Alto, Ribeirão de Cima, Pedrinhas, Rio Branco, Campina Verde, Lavras. Para todo lado, como a paisagem que se repete, os nomes se acumulam e mal se distinguem no lugar-comum das nomenclaturas habituais. Rio das Pedras, Riacho Verde, Vargem… dá para se escolher um elemento da paisagem, a topografia e juntar uma cor e com isso criar basicamente qualquer nome de cidade: Rio Verde, Vargem das Pedras, Riacho de Cima, Morro Branco e segue.

Mas, a quinhentos metros, na saída 182-B meus olhos descobrem que é possível chegar a Biscoito Duro. Nada de rios, morros, rochas ou vargens. Ali é biscoito.

Quem vive em Biscoito Duro? O que há em Biscoito Duro para que assim seja batizada essa terra? Do que se orgulham os habitantes de Biscoito Duro? Tem pracinha com igreja, coreto e pipoqueiro em Biscoito Duro? Ele vende pipoca ou biscoito? Há opção de se comer coisas macias em Biscoito Duro? A comunidade biscoitodurense, unida, celebra quais festas e cerimônias?

O mesmo se pergunta aos cidadãos de Anta Gorda, aos habitantes de Faxina, ao povo de Bofete, à toda gente redundante, repetitiva, que gira em torno do mesmo assunto, circulante, pleonástica lá de Volta Redonda. Gente criativa que resolveu inovar na forma como se identifica como comunidade.

Eu acho preferível essa ousadia na identidade de um local à ideia sem graça dos nomes de santos que se multiplicaram tanto por aí, que hoje lembram mais cidades do que padroeiros. Há centenas de São Paulo, Santo André, São Pedro, São Francisco, São João, São João de-alguma-coisa, São Tomé das Letras (bem específico esse), Santo Amaro, Santa Rita do Passa-Quatro, São Caetano (quem, raios, foi São Caetano?) e todo um mapa devocional que tira a individualidade do lugar e dificulta um bocado a vida da cidadã que precisa dizer que é “santa-rita-do-passa-quatrograndense”. Tem também as variações religiosas que procuram uma via paralela para se diferenciar: Espírito Santo, Salvador, Natal, Santa Cruz do Calvário, Belém. Até que, um dia, chegaram as autoridades de uma certa cidade litorânea aqui perto e, pra zerar o jogo, generalizaram a coisa e assumiram logo um nome geral: Santos. Quase dizendo “somos todos esses aí e os que mais vierem a existir”.

Tem também os nomes de cidades com raízes em línguas indígenas, E são tantos que a gente quase esquece quantos idiomas influenciam e compõem as origens dessa terra.

Houve cidadãos, no entanto, que preferiram refletir a paisagem de suas terras em nomes um tanto mais poéticos. Nasceram os olhares de Belo Horizonte, os bons ânimos de Porto Alegre, o conformismo praiano em Cabo Frio, a confiança de Fortaleza e a auto-congratulação da população tão orgulhosa de si mesma em Palmas.

E tem um Biscoito Duro logo ali adiante. Tinha, na verdade. A entrada para a cidade passou há alguns minutos enquanto o pensamento se perdia em outros rumos.

Biscoito Duro. A placa passa, outras a sucedem, a estrada à frente se estende por quilômetros e quilômetros e quilômetros enquanto esse motorista sorve um gole d’água na garrafa e recompõe o foco apreciando um punhado de bolachas murchas.

(Publicado originalmente em meu blog no Estadão)

O exercício das coisas que não quero

O exercício das coisas que não quero.

Quando acordar na primeira manhã do próximo ano, o novo e sempre aguardado ciclo, também conhecido como daqui a quatro dias, desejo ter a alma abastecida e a mente convicta das coisas que não farei.

Pudesse eu ter a garantia de um desejo atendido, seria a capacidade de declinar solenemente. Declinar apenas.

Se essa derradeira semana do ano serve para recapitulações, retrospectivas e resoluções, eu queria tão somente fechar os olhos para o que se foi por alguns dias. Porque, entre coisas boas e ruins, foi muito. Gostaria de aliviar a bagagem e me empenhar, sem culpa, das não resoluções de ano novo. Deixar fora o supérfluo e abrir espaço.

Dedicar tempo à minha não-lista de desejos (ou seria uma lista de não desejos?) aos planos não feitos, aos compromissos não assumidos, às promessas não prometidas. Doar, negar, andar leve sem a carga das dívidas empilhadas. É necessário saber que poder ser fraco é um poder. Porque também quero (só quero, mas sem compromissos, ok?) poder não ter. Quero o não querer.

Quero habitar um estado de imprevisibilidade, livre das amarras da agenda entupida, de planos mirabolantes, de listas de afazeres e eventos infinitos e abrir janelas para a mente já tão distraída conseguir divagar sem pressa. Devagar.

Porque talvez assim floresça o espaço fértil do desejo.

E quem sabe, venha à tona e o tempo se ocupe do que de essencial se faz cada dia e a vida ordinária se preencha desse punhado tão necessário e visceralmente existencial, tão constituinte do que somos, que é a presença, o toque, a constância transbordante daqueles que amamos. E que nos completam, de fato, do afeto que nos mantém vivos.

A esposa, um par de filhas, nossos familiares, amigos, a criançada correndo pela casa, um cachorro (para quem é de cachorros) nos rodeando as pernas. Essa dança, a sobreposição do que faz os dias terem propósito, faz a vida plena, que faz Deus habitar bem aqui e edifica as lembranças que constroem a memória. Histórias que lemos e compomos. E assim, por elas, o desejo de seguir em frente com esperança, esse raio de esperança, de que o novo ciclo sempre será melhor.


(Publicado originalmente no Estadão. Acompanhe os posts no Instagram e no Twitter)

Dentes deleites

Encontrei um par de dentes sobre o móvel ao lado da cama hoje pela manhã. Ainda um pouco entorpecido pelo sono – o que, no meu caso, costuma levar umas duas horas para passar – manuseei aquelas coisinhas brancas entre os dedos antes de começar a me preocupar.

Cheguei a pensar que pudesse ter sido real a briga em que me envolvi num bar com dois marmanjos à beira do cais num porto em Cuba, Afinal, tanta gente me mandou para Cuba ultimamente que a ilha agora habita de forma involuntária o meu imaginário e sonhos. Mas logo passei a língua pelos dentes e corri para checar o espelho do banheiro. Gracias! Tudo estava no mais imperfeito e esperado desalinhamento de sempre.

Minhas filhas, já acordadas, também mantinham seus sorrisos impecáveis. Nina, adolescente, sorria radiante como o raio ensolarado que invadia a sala e Cecília, aos sete anos, tinha lá seus buracos de dentes ainda não nascidos, mas nenhuma janela nova desde a véspera. Lucy, a cadela, também preservava a arcada (e não tem, um cão de 35 quilos, dentes como aqueles na boca).

Apreensivo, vi a Manú de costas, sentada à mesa, bebendo um café com leite e segurando um biscoito na outra mão. “Amor?”, eu chamei com a voz trêmula. Ela virou e só me olhou meio de canto. “Bom dia. Dormiu bem?”, eu insisti, tentando provocar nela um sorriso amistoso que não sabia se queria realmente ver. “Ahãm”, ela respondeu, resmungando, sem descolar os lábios. Entre os dedos, eu esmagava o par de dentes enquanto tentava pensar numa piada que a fizesse sorrir.

Me aproximei da mesa, toquei seus ombros, lembrei as juras de amor eterno aos pés daquele altar e pedi “posso ver seus dentes?”.

Com o rosto quase dentro da xícara de café, sorvendo um gole, ela me encarou enquanto perguntava desconfiada “pra quê?”.

“Só quero te ver sorrir. Alegrar esse dia, afinal”, falei com a convicção de um são paulino parabenizando um palmeirense pelo título.

Ela sacou a xícara, me abriu um sorriso e, para nossa felicidade conjugal, estavam lá, todos eles, molares, pré-molares, laterais, caninos, frontais e as belezinhas das restaurações todas em dia.

Sentei, bebi meu café, comi as duas bandas de pão com manteiga e mantive o pensamento intrigado no rio dos dentes.

Fui até o banheiro me lavar e escovar os bons dentes que ainda tenho na boca quando, ao passar pelo quarto, vi um papelzinho, pequenino, caído ao lado da cama. Me abaixei para pegar, desdobrei com cuidado e puder ler, em letras minúsculas e prateadas, um bilhete a mim endereçado, avisando que “por insuficiência de saldo e falta de pagamento” os dentes estavam sendo devolvidos, até “regularização dos débitos devidos, conforme acordo estabelecido” e assinado, com data e rubrica, pela senhorita “Fada do Dente”.

(Publicado originalmente no Estadão)

Eu quero menos

16/4 – “Baste a quem baste o que lhe basta. O bastante de lhe bastar! A vida é breve, a alma é vasta: ter é tardar”, escreveu Fernando Pessoa. Ter menos coisas não basta, é preciso querer menos para que isso se torne legítimo. Eu quero menos.

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17/6 – Cecília na cama, no último suspiro antes de adormecer agarrada no meu braço, enquanto Lucy, nossa cadela de trinta quilos, ronca no chão ao lado da cama: “Hoje a noite está perfeita. Eu comi brigadeiro, estou abraçada com meu papai e vou dormir com meu cachorrinho”. Ela cai no sono e eu fico acordado, mirando o teto do quarto e grato por ser esse sujeito bem-aventurado.

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19/6 – No carro, a caminho de uma festa, a adolescente liga uma música eletrônica no som. O veículo se converte imediatamente numa loja de fast fashion com os graves e batidas fazendo pular os fragmentos de poeira que vinham se depositando sobre o painel nas últimas semanas. A adolescente aumenta o volume, vira o corpo inteiro para o banco de trás onde estão as três amigas: “Essa música é legalzinha! É beeem das antigas, mas é boa”. Ao que uma das amigas comenta: “Nossa! Antiga mesmo! Essa é muito 2017”.

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Estou lendo e relendo uma coletânea de sermões do Martin Luther King (um dos meus heróis) chamada A Dádiva do Amor, me deparei com isso aqui: “O evangelho, nos seus melhores aspectos, lida com o homem como um todo, não só com sua alma, mas também com seu corpo; não só com seu bem-estar espiritual, mas também com seu bem-estar material. Uma religião que professa preocupação pelas almas dos homens e não está igualmente preocupada com as favelas que os desgraçam, com as condições econômicas que os estrangulam e as condições sociais que os aleijam é uma religião espiritualmente moribunda.”

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13/7 – Manú comprou um secador de cabelos que é tão bonito que, toda vez que vejo, eu tenho vontade de usar. Já teria usado não fosse o fato de que cada fio em minha ovalada cabeça mede menos de um centímetro e, portanto, estão todos completamente secos com o primeiro lufar de vento quando abro a porta do box depois do banho.

Tudo culpa da Apple e seus computadores e celulares. Tudo tem design hoje em dia e eu sou especialmente sensível ao apelo estético dessas bugigangas. O lance é que esses equipamentos domésticos e eletrônicos estão ficando bonitos e, em vez de serem escondidos num armário da lavanderia, agora ficam expostos em cima da mesa como objeto de decoração. Que tristeza isso.

Outro dia, estava andando pelo shopping e vi um aspirador de pó na vitrine e fiquei parado contemplando como se fosse um Monet.

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Caem as máscaras. Há pessoas com quem encontro diariamente no elevador do prédio, na garagem e na rua, mas nunca vi sem máscara no rosto. Aprendemos a nos cumprimentar e interpretar através de olhares e agora fica informação demais.

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14/8 – Escrevo crônica porque vivo poesia.

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Os sábados precisam voltar a ser sábados.

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23/7 – Se eu fosse roteirista do Zorra Total na Globo (ainda existe o Zorra Total?), iria propor uma piada cuja cena teria dois homens das cavernas que passam o dia caçando, enfrentando chuva, predadores, vento e toda sorte de perigos. À noite, os dois chapas estão com suas famílias sentados em volta de uma fogueira em frente à suas cavernas, os olhares fixos no movimento das chamas como se fossem televisores passando a novela. Depois de algum silêncio, um deles solta: “Sabe, cara, sinto que está tudo mudando tão rápido ultimamente. O tempo voa. Eu me pego pensando todos os dias: que mundo é esse que eu vou deixar para os meus filhos?”

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24/7 – Faz um ano que Edu se foi. E quando as pessoas, as nossas, começam a morrer, acontece algo profundo em nós. Nossos familiares, amigos, primos, nossa geração começa a partir, aos poucos, e parte do nosso mundo, as memórias e histórias, ao mesmo tempo em que ressurgem em fragmentos, também se vão. Viram passado, viram saudade. Deixam uma lágrima, um lamento, essa dor. E ficam para sempre em nós.

Que o Edu esteja agora com o Criador, em amor, sem dor. Que dos seus olhos claros Deus recolha as lágrimas e que da eternidade ele desfrute finalmente em paz. Aqui, ele também fica. Na saudade. Até breve, primo.

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28/8 – Uma da madrugada, estou saindo da transmissão do debate presidencial num canal de TV e peguei um táxi com um cara que mede 2,06 metros (sim, ele disse). Ele não cabe no carro e dirige quatorze horas por dia naquele espaço, todos os dias, sem descanso. Mas só reclamava mesmo era do ciúme da esposa e do fato de estar ficando careca.

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30/8 – No saguão do aeroporto, assistindo o Canal Off com o som da tv desligado enquanto espero pelo embarque e um sujeito recorta com sua prancha de snowboard uma montanha de neve em um vídeo em câmera lenta. Ao redor, tem gente falando e falando nos celulares, aquela mistura infinita de todos os perfumes possíveis no ar, o ruído de rodinhas de malas sendo arrastadas para todos os lados e a voz sempre em um volume acima do tolerável do funcionário avisando sobre as filas do voos a serem abertos para embarque, estarem embarcando, prioridade, passageiros platinum, passageiros gold, prata, premium, estarem na última chamada para embarque, no embarque, fechando as portas. “Atenção passageiro Luiz Henrique Matos, por favor comparecer ao portão de embarque número doze”. Off. Chegou minha hora.

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Em São Paulo, os patinetes estão voltando à Faria Lima. Junto com os carros enfileirados e gente com copinhos de café na mão andando com pressa.

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9/9 – Jean-Paul Sartre disse que “somos escravos da nossa liberdade”. Não escolher, portanto, também é um tipo de escolha. No momento de país em que estamos, tudo, tudo é uma ação em favor de algo. Não podemos silenciar.

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Crise de ansiedade. Já faz tempo que era ontem e eu não estava lá. Amanhã era ontem o tempo todo e era lá que eu ficava. O amanhã era meu hoje, o tempo todo, onde eu nunca estava presente.

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“Doenças são palavras não ditas”, teria dito Lacan, citado pela minha terapeuta em circunstâncias que aqui não cabem. Fiquei pensando nessa minha insistência em anotar tudo.

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18/9 – Lúcia andava com um problema, meu terceiro livro,  está a caminho! Pobres crianças.

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25/9 – Se eu fosse roteirista do Zorra Total (dei um Google agora e o programa saiu do ar em 2015. Acho que parei de ver tv uns dez anos antes disso) e não tivesse sido demitido por conta da piada ruim anterior, escreveria uma continuação para a cena com os homens das cavernas.

Num futuro não muito distante dos dias de hoje, duas mulheres passam o dia trabalhando em suas máquinas e telas, enfrentando reuniões infinitas, chefes abusivos, competidores aguerridos, ar-condicionado descalibrado e toda sorte de ameaças. À noite, as duas chapas estão cada uma em sua cama e conversando em uma ligação de vídeo. Os olhares fixos no piscar das telas como se fossem chamas de uma fogueira. Depois de algum silêncio, uma delas solta: “Sabe, amiga, tem tão pouca coisa evoluindo ultimamente. O futuro já não é mais como parecia ser antes. Eu me pego pensando todos os dias: que passado é esse que eu vou deixar para os meus filhos?”

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28/9 – O perdão é por onde nossa cura começa.

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1/10 – Comecei a ler O Pequeno Príncipe para a Cecília antes de dormir. Nunca tinha lido esse livro antes. Desde então, vou deitar me sentindo a própria candidata a miss, podendo citar Saint-Exupéry e falar que “A gente corre o risco de chorar um pouco quando se deixa cativar” em algum discurso regado a lágrimas quando ganhar um concurso de beleza.

Durante o dia, no entanto, a coisa muda. A única diferença entre elas e eu – a única – é que pra mim anda um bocado difícil acreditar na paz mundial neste momento.

João e Maria toca na rádio. Eu penso em biscoitos, migalhas e uma casa feita de doces quando leio esse título. Mas o Chico Buarque achou pensar que  “pela minha lei, a gente era obrigado a ser feliz” e que “Vem, me dê a mão/A gente agora já não tinha medo/No tempo da maldade/Acho que a gente nem tinha nascido”. 

Poderia ser do Pequeno Príncipe também. Mas era Chico. E se não dá pra confiar em paz mundial, pelo menos a gente ainda pode se apegar a poesia, o que dá um pouco na mesma.

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3/10 – Na minha mente ultimamente é só política, política, política, política, política, política, política, política, política, política, política, política, política, política, titica, titica, titica, titica, titica, titica, titica, titica, titica, titica, titica, titica, titica, titica, titica. Última mente.

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5/10 – Ontem à noite saí pra correr. Estava cansado, eram quase dez horas e tudo escuro na rua. Mas criei coragem e segui diligente cada passo ofegante. No meio de uma subida, senti que pisei em algo macio, meio fofo. Assustei pensando que era o côco de algum cachorro e voltei para olhar, já condenando mentalmente o vizinho irresponsável que deixou aquilo por ali. Parei a corrida, retrocedi uns dois metros, fixei o olhar na mancha escura no chão que marcava o que eu havia esmagado: era um sapo.

Segui a corrida, com um misto de aflição, nojo e, confesso, uma satisfação culpada. Tenho engolido tantos sapos nos últimos dias que, de alguma forma, foi bom ter vencido um deles no caminho.

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6/10 – Li em um livro do Richard Rohr ano passado, quando esse mato sem cachorro em que estamos agora ainda era capim: “Onde não existem espadas, os escudos não são necessários”. Me soou apropriado.

(Publicado originalmente no Estadão)

Pessoas que andam para trás

Assisti a um vídeo na internet outro dia em que um sujeito corre de costas. Na verdade, era mais do que isso. A cena toda acontecia em uma arquibancada de estádio, com dezenas e dezenas daqueles degraus onde as pessoas se sentam para ver algum jogo ou espetáculo. E ali, no meio da pequena multidão reunida para outros fins, a câmera de algum celular captura a imagem de um homem, vestindo apenas shorts e sem camiseta, descendo em alta velocidade aquela arquibancada inteira. De costas, correndo. E pouca gente ao redor parecia perturbada, o que pode ser um sinal de que ele faz isso por ali com alguma frequência.

Revi a cena duas vezes para entender. Minha primeira reação foi ficar impressionado com o feito. A segunda, foi me perguntar: por quê? Que raios, oras, faz alguém despertar numa manhã e se convencer de que o melhor uso do seu tempo seria passar horas e horas treinando uma forma eficiente de andar para trás? Mais do que isso, correr para trás descendo escadarias. Soa como um retrocesso arriscado e em alta velocidade.

Há algumas semanas, entrei num táxi e estava tocando Nirvana na rádio. Agradeci em silêncio pelo gosto musical do motorista, até que a música acabou e escutei a vinheta da Alfa FM. A Alfa FM, prezada leitora que vive fora de São Paulo, é a estação de rádio que alimenta as caixas de som de consultórios e elevadores da cidade há décadas, com músicas de Diana Ross, Kenny G. e Emílio Santiago. Do Nirvana, não. Eram três da tarde, eu seguia para uma reunião de trabalho, os derradeiros acordes de Smells Like Teen Spirit ainda se arrastavam quando a apresentadora anunciou que estávamos escutando a Tarde dos Clássicos. Naquele momento, em elevadores corporativos de toda cidade, no consultório do meu dentista com seu paciente de boca escancarada restaurando uma obturação e nos lares onde radinhos ainda embalam o momento da faxina e das roupas sendo estendidas nos varais, naquela hora, a trilha sonora ambiente era Nirvana, com Kurt Cobain quebrando sua guitarra ruidosa e a canção que embalou minha adolescência pseudo-rebelde. Nada “smells” menos um “teen spirit” do que aquilo.

Acho que certas coisas, como bandas, filmes, livros e tendências de moda ou se tornam atemporais e nos acompanham indefinidamente – como Beatles, Chico Buarque, Machado de Assis, Os Goonies, Cidadão Kane – ou só deveriam ser reeditados e rotulados como clássicos depois que a geração que experimentou aquilo pela primeira vez já tivesse deixado de existir (ou já fosse velha o bastante para esquecer). É uma regra combinada para a boa moral. E tem ainda uma outra categoria de coisas – a maior parte, eu diria – que são desastres incontestes que deveriam nos envergonhar e não voltar jamais.

Por insistência da minha filha, comecei a assistir a nova temporada de Stranger Things. A Nina agora é adolescente e acha aquela estética oitentista muito exótica. Para mim, aquilo é apenas um flashback, um retrato constrangedor da minha infância aparecendo na tv. Tudo está lá: as bicicletas que eu tive, as roupas iguais às que usei, o jogo de RPG que joguei, os mullets no cabelo que tentei deixar crescer, as músicas que ouvi, o fato de não ser popular na escola, como não fui e, de quebra, acreditar em monstros vivendo em universos paralelos. Como, pois é, acreditei.

Às vezes, sinto que essa celebração exacerbada do passado é uma preguiça intelectual, um fracasso voluntário de nossa geração em criar algo original que estabeleça como marca desse tempo e que nos permita, algum dia, relembrar esses anos 20 como símbolo de algo que nos levou um passo cultural adiante.

Essa falta de originalidade vem intensificando o lançamento de produtos que ridicularizam as duas gerações. Toda essa insistência em reeditar continuações e releituras de filmes, bandas, roupas e afins tem grande potencial de consumo porque resgata uma geração que adquiriu poder de compra sem ter adquirido maturidade. De forma que até doces e bebidas da década de 80 estão sendo fabricados em embalagens com versão retrô para relembrar a infância de pessoas que hoje nem tem mais paladar, índice glicêmico e condição física para comer e beber esse tipo de guloseima. E assim, essa bolha de Ploc com gosto de nostalgia vai fazendo com que algumas pessoas alimentem as melhores lembranças de coisas velhas e outras tenham pesadelos com o passado.

Eu fico achando que cultivar nostalgia por coisas que ganharam fama depois que eu nasci, me tornei um rapazinho, já cultivava um pequeno bigode e alguma consciência cultural, é um pescotapa seco na minha cervical deteriorada. Mas, acho que revivi tantas cenas da minha infância ultimamente que eu também regredi em certos padrões de comportamento. Me peguei emotivo com uma música do A-HA outro dia, comprei uma calça baggy, voltei a beber Nescau (agora com leite sem lactose), comprei pacotes de biscoito Piraquê com embalagem vintage e, putz, voltei a ter pesadelos.

Há alguns dias, depois de uma overdose televisiva regada a Vecna e Demogorgon me assombrando, fui dormir e tive um pesadelo em que vivia em um mundo invertido. Eram os dias atuais e vivíamos numa terra com tragédias, valores distorcidos e condições escatológicas de existência.

No sonho, as pessoas andavam para trás. As ruas foram tomadas por gente gritando palavras de ordem e acreditando ser nobre a ideia de assistir militares desfilando em tanques de guerra enquanto tomavam novamente o poder. Homens e mulheres, com seus lares ornamentados com retratos de família e sua vida pacata de novela das seis, agora rendiam homenagens a personagens brutais e torturadores assumidos. Jovens e velhos celebravam os piores dias da história da nação com uma nostalgia anestésica. O país atravessava um período de inflação nas alturas, com a cesta básica em valores tão altos que tinha gente trocando o gás de cozinha por lenha, comprando osso de vaca e pé de galinha para cozinhar e trocando a carne do frango pelo ovo. Eu queria escapar daquele pesadelo, mas não sabia como acordar. Eu tentava fugir, mas as pernas não obedeciam. Quanto mais força fazia para correr, mais rápido eu andava para trás.

Enquanto trafegava em marcha a ré por aquela distopia, tomava ciência (não, ciência não, essa palavra virou palavrão e tinha sido banida do vocabulário) de que recursos naturais do planeta eram dizimados ao som de motosserras e com sorrisos sarcásticos dos que trocavam o futuro por um punhado de ouro e nióbio (não, nióbio não, nem no pesadelo eles queriam saber do nióbio). Grupos minorizados eram excluídos, os direitos humanos comuns a todos eram atropelados protocolarmente como se fossem heresia diante de um novo dogma nacional. Falando em dogma, fui levado no sonho à visão de um templo religioso, para onde corri em busca de refúgio e respostas, mas os líderes espirituais benziam e consagravam armas e munições em nome de uma guerra santa a ser combatida para a defesa da integridade e poder de seu líder. Era um mundo invertido. Havia um grupo que se autodeclarava pró-vida, mas defendia a pena de morte. Outro, em nome da liberdade religiosa achava nobre ser classificado de terrível. Em favor de uma ideia específica de amor, proclamavam que esse deveria ser condicionado a quem os amou primeiro. Nem Dante imaginou um inferno daquela forma, nem em Stranger Things as coisas pareciam tão estranhas.

Acordei suando, com medo de monstros. Abri os olhos e fiquei aliviado por lembrar que vivemos em uma sociedade obviamente distante dessa fantasia, grato por saber que o tipo de horror que realmente assombrou nossas vidas por décadas não era uma moda, filme ou canção que alguém ousaria reeditar. Imagina esse tipo de coisa hoje em dia? Até parece… Quem, afinal, ainda pensa em andar para trás?

Ainda assustado com aquelas cenas e meio preso às lembranças da criança que fui na década de 80, tive dificuldade para voltar a dormir. Pensei em deixar uma luz acesa no corredor para afastar os fantasmas, mas então lembrei que a conta de energia subiu de novo este mês, pela quinquagésima vez consecutiva e achei que era melhor economizar.

“E o futuro não é mais como era antigamente”, dizia o trecho de uma canção que tocava nas rádios em 1989, já no apagar das luzes daqueles dias sombrios e sob a voz gutural do Renato Russo. Mas, aos nove anos de idade, eu só achava que aquilo era um tipo de conjugação de verbos que eu ainda não tinha aprendido na escola. Meu pretérito imperfeito.

Correndo para trás em alta velocidade. Treinando arduamente uma forma eficiente de caminhar em marcha a ré. A vida soa como retrocesso e, às vezes, queremos acreditar que basta dar ao tempo seu devido espaço e controle para que as coisas se curem aos poucos. Não tem sido assim nesses últimos anos. Em vez de evoluir, habitamos esse estado de suspensão permanente em que, no lugar de progredir como espécie, insistimos em regredir.

Mas, para certas coisas, não basta o tempo para transformar. Não bastam os anos após anos, crepúsculos sem fim, não bastam as grandes descobertas e invenções – do fogo, da roda, da vacina e das viagens ao espaço. A alvorada de novos dias carece da transformação do pensamento que ainda nos enraíza na ideia primitiva de querer ter poder e controle, em conceitos arraigados que nos impedem de deixar ruir nossos privilégios, reconhecer o outro, celebrar o diferente, pedir perdão e promover a reparação necessária. O dia em que seremos irmãos e irmãs, unidos no santo vínculo do Eterno, com nossas relações regidas pelo respeito e pelo amor não virá pela força, mas pela consciência de que pertencemos uns aos outros, à mesma espécie, a essa terra que nos alimenta, às comunidades que edificamos e à ideia comum de sentido nessa existência.

É uma ideia que não é nova, parece coisa do passado. Na verdade, tem uns dois mil anos que circula. Mas talvez ela nunca tenha sido tão necessária como um próximo passo para que tenhamos dias melhores neste mundo.

Estávamos a caminho da escola outro dia e a Nina me pediu para ligar o som. Eram sete da manhã e botamos para tocar Brazuca, nossa seleção particular de MBP. “Põe no modo aleatório, pai”, ela pediu. E assim, aumentamos o volume e deixamos surgir o que seria a trilha sonora para um discreto sol numa manhã de inverno cercada pelo trânsito da Marginal Pinheiros. No banco de trás, Cecília se concentrava nos primeiros acordes de um samba. Sentada ao meu lado, Nina tamborilava os dedos na perna. Naquele carro, tinha comigo um pedaço do que tenho de mais valioso na vida e o que faz ter sentido continuarmos essa luta que nos leva adiante, com alguma pressa, numa caminhada firme e convicta que siga sempre em frente. Para que elas desfrutem um novo tempo em suas vidas e o futuro, finalmente, volte a ser o sonho bom que ele já foi um dia.

Nas caixas de som, Chico cantava, como cantou no fim dos anos 70 e, diferente dos flashbacks constrangedores a que temos assistido, sua letra parecia ecoar como um hino para os dias de hoje: “Apesar de você/Amanhã há de ser/Outro dia/Você vai ter que ver/A manhã renascer/E esbanjar poesia…”

Haverá amanhã.

(Publicado originalmente no Estadão)

Deus me Louvre, mas quem me dera!

Há uma ala no Museu do Louvre, umas três ou quatro salas cujas paredes estão repletas de molduras vazias, sem as obras que lhes preencham. Apenas as molduras douradas, envelhecidas, amadeiradas e vazias. Isso fica no segundo andar, estranhamente vazio em se tratando de um espaço que recebe dez milhões de visitantes por ano, com seus corredores enormes e entroncados onde é bem fácil se perder (especialmente nesses tempos em que eu uso o Waze até para achar o banheiro da minha casa). Mas já voltamos a esse tema. Antes, preciso falar da Monalisa.

Quer dizer, antes de falar da Monalisa, preciso falar de outra coisa: adoro visitar museus. Coisa que faço com frequência muito menor do que gostaria. Me emociono observando pinturas, esculturas, gravuras e fotografias. Não sou erudito, mas gosto de pensar nas histórias por trás das obras, sou profundamente tocado pelo que despertam, leio as notas descritivas e tento aprender sobre arte na medida que minha limitada mente de quarenta anos permite. E gosto ainda, na medida em que minha mente de quinze anos me obriga, de pensar em legendas e balõezinhos com falas quando há pessoas nos quadros e retratos. Mas, ao contrário do segundo andar do Louvre, a esse tema eu espero não voltar. Vamos à Monalisa.

No andar de baixo, vive Monalisa. Ali, com uma expressão impávida (ou como quer que você ache que Monalisa está naquela cena. Aliás, o grande mistério é esse, não? Gosto de pensar que ela está impávida, até porque não sei ao certo o que isso significa). Ela mora ali, a Monalisa, na sala mais tumultuada do antigo palácio de Napoleão, protegida atrás de um vidro e sufocada naquela moldura rebuscada. Ela é menor do que imaginamos que seria e na medida em que Leonardo da Vinci, centenas de anos atrás, a concebeu pensando sabe lá o quê sobre o que seria daquele quadro no futuro, enquanto pintava aquela mulher à sua frente com sua expressão _ (preencha você com o adjetivo que lhe apetecer, eu ia escrever impávida mas acabei de consultar o dicionário e não é bem isso o que acho que ela está pensando).

Se o andar de cima é um semi-deserto silencioso, a salinha de Monalisa é tomada por uma multidão que se aglomera numa fila de quarenta minutos enquanto empunha suas câmeras apontadas para tentar retratar o retrato da mulher que encara profundamente a cada um nos olhos e lentes com sua expressão… enigmática (será? Estou tentando). La Joconde é o nome do quadro em francês e, hoje em dia, há quem avalie o quadro em 13 bilhões de reais. Saber disso em 1503 talvez mudasse um pouco o capricho que Leonardo dispensou ao quadro e, sabe lá, na mulher, talvez mudasse um pouco aquela sua expressão… indiferente.

Nina e eu paramos na entrada daquela sala quase dez anos depois de ter passado por ali pela primeira vez e decidimos não entrar na fila. Ela tinha seis anos na época e mal entendia o lugar em que estava. Agora, aos quinze, enquanto Manu e Cecília passeavam por outra área do museu, ela me orientava sobre o estilo das obras que vem estudando com tanto interesse, me ensinava detalhes sobre técnicas de pintura e movimentos artísticos, chamava minha atenção para artistas de que gostava e tornava aquela a visita mais interessante que eu já fiz a um museu. Nina valia o preço do ingresso.

Circulamos a multidão pelos lados e encaramos a anfitriã de diferentes ângulos, distante, entre braços, cabeças e iPhones acesos. Me sentia mais num festival de rock tentando enxergar um pedaço do palco do que numa exibição de obras centenárias, enquanto algum funcionário gritava para a multidão “Avancez! Avancez!”. Em certo momento, erguemos também nossas câmeras e tiramos nossas fotos ruins da Monalisa, ali solene e com sua expressão… irônica.

Em meio ao tumulto da sala, sendo acotovelado por turistas brasileiros, chineses, lituanos, italianos e libaneses se confundindo naquela Babel, eu só conseguia pensar que a Beyoncé e o Jay-Z fecharam o Louvre inteiro – o negócio todinho – só para eles e queria saber se chegaram a encarar a Monalisa nos olhos e o que acharam que ela estava pensando, afinal.

“I am a single lady!”, ela teria dito, serena, na minha legenda imaginária.

Fiquei curioso também sobre os outros quadros naquele espaço. A sala tem ainda umas vinte obras, belíssimas, mas sempre coadjuvantes na cena, relegadas a uma atenção periférica dos visitantes que desviam o olhar de seu alvo por alguns segundos. E a mesma imaturidade que ignorava a solenidade do momento para pensar no casal que alugou o museu por uma noite, começou a colocar legendas enciumadas e maledicentes nos lábios dos Veronesi, dos Tintoretto e outros artistas ali expostos, cujos soldados se degladiando, discípulos de Jesus e madonas agraciadas certamente reclamavam entre si: “olha lá a vizinha! A gente aqui salvando o Império Romano, a gente aqui testemunhando o primeiro milagre do Cristo, a gente aqui botando o Messias no mundo e essa aí levando a fama, recebendo os olhares. Sempre aí parada, com essa expressão… jocosa”.

O que faz um quadro atrair os olhares, atenção, selfies e audiência e outros, notoriamente bons, clássicos e valiosos (estão no Louvre, oras) serem ignorados? O que leva um quadro, de forma geral, a ser adquirido e exposto em um museu, digno de ingressos pagos e olhares contemplativos? Aquelas milhares de obras (o acervo do Louvre, consta no folder que eu carregava dobrado no bolso da bermuda, tem mais de 400 mil obras), aprisionadas naquelas paredes em centenas de salas de um palácio tão grande que meu relógio apitou dando os parabéns pelos dez mil passos alcançados no dia ainda no meio da visita.

Enquanto isso, no andar de cima (sim, chegamos), havia salas vazias com quadros de outros cantos da Europa e havia as salas vazias com suas molduras sem obras. Meu francês precário me permitiu entender que as molduras ali penduradas simbolizavam os quadros do acervo do museu que estão emprestados para outras instituições e exposições, mas eu preferi ficar com a fantasia que me alimenta até esse instante, de que ali estão os espaços abertos para as obras ainda em concepção no imaginário dos artistas, as pinturas, ideias e retratos que um dia terão valor tão alto que acabarão pagando, elas mesmas, o preço máximo de sua glória: deixarão de viver livres nos ateliês, nas ruas, longe do olhar do povo e serão aprisionadas em palácios, penduradas em altares enquanto ostentam sua nobre posição de obra de arte e são oferecidas para escrutínio do público que se enfileira para contemplá-las com suas expressões… curiosas.

Enquanto passeávamos por aqueles corredores brinquei com a Nina dizendo que as molduras vazias esperavam para serem preenchidas com as pinturas que algum dia ela criaria. Ela sorriu com meu gracejo me encarando no momento exato em que, de onde estava, era seu rosto que acabava emoldurado no espaço de uma das telas.

Graciosa, era a expressão. E devoto em gratidão, contemplei a obra da minha vida.


(Publicado originalmente no Estadão)

O som dos passos e dos pássaros

Cecília aprendeu a ler. Ela já vinha há alguns meses naquele fluxo de juntar letras em sílabas e tentar encontrar alguma sonoridade. Mas, nos últimos dias deu o estalo, aquele estalo, em que a união das sílabas adquiriu sentido, som e palavras, novas palavras que saem do som e se formam em imagens, significados e histórias que agora ela absorve de outra forma.

“Nina”, ela interpelou a irmã mais velha, leitora voraz, apertando uma revista em quadrinhos da Mônica entre os dedos, “ler não é nada chato, é muito legal! Agora eu vou pegar todos os livros do seu quarto!”

Se algum dia ela ganhar o prêmio Nobel de Física, talvez eu não fique tão feliz quanto agora. À noite, já na cama, sussurrei orgulhoso:

– Filha, aprender a ler é tipo decifrar um código secreto. Agora que você conhece os códigos, tem mistérios e universos novos que você vai começar a descobrir.

Há muitos livros pela casa, há uma estante grande e recheada de exemplares no escritório e também livros nos quartos e espalhados. Um luxo particular que acumulamos desde o casamento e que as meninas acompanham. Cecília tem mais livros aos sete anos do que eu tinha aos vinte. E agora vai revisitar essas histórias fazendo isso por ela mesma, palavra por palavra.

Na manhã seguinte, ela segurava um pequeno livro com uma centopéia na capa:

– Pai, alguma vez você já entendeu as palavras que um inseto diz para o outro?

– Sim, uma vez. Eu lembro que um mosquito chegou bem pertinho do meu ouvido, bem pertinho mesmo e falou algo pra mim.

– O que ele disse?!

– Bzzzzzzz bzzzzz!

– Ah não, pai… – e espalmou a mãozinha sobre o rosto.

– E você? Já entendeu o que dizem os insetos? – perguntei apontando a capa do livro.

– Ssshhhhh! Espera um pouco – de repente, ela já estava em outro lugar, o olhar intrigado voltado para o alto, se concentrando em algo distante.

– O que foi, Cici? Eu estava dizendo que…

– Silêncio, pai. Estou escutando o som da natureza.

Postada ao lado da janela, ela se concentrava no que podia ouvir do lado de fora, onde uma dupla de pássaros cantava nas árvores perto da nossa varanda e o vento soprava nas folhagens.

– Estou ouvindo os pássaros – disse, de olhos fechados – e quero ver se consigo escutar algum inseto.

Pouco mais de uma hora depois, eu estava na rua correndo e mirava a copa das mesmas árvores que minha filha sondava da janela tentando escutar também o canto dos pássaros que ela dizia contemplar. Esses milagres ordinários têm feito muita falta ultimamente. Uma criança descobrindo universos novos, pássaros cantando, folhas crescendo e caindo com o passar das estações. Os ciclos da vida que se renovam cotidianamente sob nosso teto, que são maravilhas pelas quais passamos e quase desviamos sem notar, com receio de tropeçar em miudezas porque, afinal, bem, afinal sempre há alguma desculpa.

Corro, um passo após o outro, sentindo o vento gelado do inverno cortando meu rosto, a respiração ofegante, a batida da sola do tênis no asfalto. Escuto o martelar das ferramentas na construção que se ergue ao lado do nosso condomínio, o ronco do motor de uma moto rasgando a rua. O relógio apita avisando que mais um quilômetro foi superado.

Adquiri esse hábito um pouco antes da pandemia começar e… Hahahah, “adquiri o hábito” é uma falácia danada da minha parte. Comecei a tentar a correr no final de 2019 depois de um colapso mental e achei que fazer uma atividade física sozinho, à noite, e sem o escrutínio alheio sobre minha humilhação, seria uma forma de exorcizar através do suor e sacrifício, os demônios que me atormentavam. Sessão de exorcismo. É assim que chamo minhas horas de corrida desde então.

Mas, o passar do tempo e dos quilômetros me permitiu, desde então, adquirir alguma capacidade de fazer isso com certo controle. Se no começo a corrida era uma forma de fugir de uma crise e esmagar no chão, em cada pisada, a carga pesada de cada dia, hoje já é mais como uma trilha que percorro rumo à realização pessoal, uma sensação de alívio e bem-estar provocado pela injeção de serotonina dos treinos. A crise ficou lá atrás e agora corro em direção a uma nova história.

Aprendi, nesse processo, que para ser capaz de correr longas distâncias às vezes é preciso desacelerar e ir mais devagar. Um pé e depois o outro, o ritmo cadenciado, uma letra ligada em outra, formando palavras, caminhos e histórias. Cada pequeno passo é um milagre.

– Onde você vai com todos esses livros, Cici? – ela estava com alguns exemplares da minha coleção empilhados sobre os dois bracinhos curtos e caminhava em direção a sala.

– Ora, pai, eu vou ler! Onde mais você acha que eu iria?

Eu olho para a pequena pilha de livros que deixo sobre a mesa e penso quais desses exemplares, algum dia, ela e a Nina pegarão para ler e de que forma essas histórias serão assimiladas por elas, as opiniões que trocaremos sobre livros, preferências e broncas porque alguém violou a regra sagrada de não profanar as páginas com dobraduras.

Agora ela anda com livros para todos os lados. E como se fosse realmente capaz de ler Dickens, em inglês, abre tomos de 600 páginas em trechos aleatórios e fica tentando decifrar aqueles códigos. Tem uma beleza nisso.

– Mãe, G com R e mais o U dá o que mesmo? E o N com H e mais o I? G com A é GA ou JÁ?

E passa o dia assim. Do outro cômodo, enquanto trabalho, escuto essa música e sorrio. Eu silencio o ruído que sai de alguma reunião no meu computador, fecho os olhos e me concentro nela ali, sentada, os olhos vidrados nas páginas, a mente se expandindo como o Universo e a boca balbuciando as descobertas. É o som da natureza.

Palavra por palavra, ainda, ressoando como música. O som dos passos e dos pássaros, o soprar do vento no rosto marcando o tempo e o ritmo nessa jornada que percorremos, devagar, testemunhando milagres.

O Moleza

No campinho da rua de baixo tinha o Moleza. Quase todo bairro, naqueles tempos, tinha seu campo de futebol empoeirado. A grama, em vez de preencher o campo, o cercava e o espaço de jogo, que deveria ser verde, era aquele terrão vermelho que, nos dias de chuva, se tornava uma piscina de lama e nos dias secos, encardia as meias, cuecas e a sola branca do tênis.

Mas no campinho do nosso bairro, além de tudo isso aí, tinha o Moleza. Um sujeito alto, forte, negro, bigode curto contornando os lábios e que às seis da tarde se punha ali na lateral com um apito pendurado no pescoço, uma bola cheia sob o braço e organizava um treino para os meninos que chegavam e se postavam em círculo ao seu redor.

Ele morava na rua logo em frente, em um pequeno cortiço onde viviam outras quatro ou cinco famílias. Prestava esse serviço à comunidade de garotos que se aglomeravam, acotovelavam e sangravam as canelas para tentar jogar futebol. Vinte entre dez meninos naquele tempo sonhavam em atuar profissionalmente pelo seu time do coração. Mas ali, a gente só queria chutar bola e fazer gols. Ele, no entanto, queria formar homens.

Quando você passava pela primeira experiência de treino naquele time entendia finalmente o motivo do sarcástico apelido do Moleza. Ele era uma versão da periferia paulistana do Telê Santana. E entre seis e oito da noite, diariamente, meninos de 10 a 16 anos colocavam os pulmões pra fora naquele campinho poeirento, na esperança de que o treino intenso garantisse meia horinha de futebol no final e que, de algum jeito, fossem escalados como titulares do glorioso time Amigos da Vila Yara nos jogos com times de outros bairros que ele organizava nos fins de semana. Íamos, crianças e pais, a clubes e várzeas em outros cantos da cidade – quase sempre todos na caçamba aberta de algum caminhão – disputar glória ou fracasso nas manhãs de sábado.

Anos depois, entendi a que se dispunha aquele sujeito. Nunca soube seu verdadeiro nome, nem o que ele fazia da vida durante do dia antes dos treinos – havia um boato entre os garotos de que ele era jogador de basquete. Mas era louvável o esforço cotidiano para atrair algumas dezenas de crianças ansiosas para jogar bola, submetê-los ao esgotamento físico e promover a ideia de que poderiam ter uma vida melhor se tivessem o esporte como apoio. Quem treinava no campinho, seguia uma rotina fora do perigo das ruas e, se em algum momento começasse a faltar nos treinos, era inquirido por um Moleza no auge da contradição do nome que ostentava no canto do campo. “Vem cá! Quer ficar rodando na rua, é? Vai entrar pra malandragem? Já começou a fumar também?”. Era possível escutar o interrogatório que ele fazia com os pródigos quando regressavam cabisbaixos.

Cresci. Sem ter certeza sobre o momento exato, deixei de frequentar os treinos e, com novos amigos e horários, perdi o contato com o grupo. Perdi também a vontade quando a realidade dos fatos se impôs sobre meu sonho: mais do outras prioridades na vida, me dei conta de que futebol não seria o esporte em que eu conseguiria conquistar qualquer centímetro de auto-estima ou algum respeito dos outros garotos na dura vida daquelas ruas. Quem, afinal, dá o mínimo de atenção para o zagueiro perna de pau? Quem se orgulha – ou se conforma – em ser zagueiro aos doze anos? Mas devo ao Moleza e seus métodos o fato de, a despeito da explícita ausência de talento, eu ter conseguido me firmar como titular do time graças à dura disciplina dos treinos.

Quando me casei, fomos morar em outro bairro. Voltava aos finais de semana para visitar meus pais, mas já em outro ritmo, sem notar aquelas ruas com o olhar pedestre do menino, mas os do motorista desatento. Anos depois, porém, voltei a morar naquela vizinhança e hoje, todos os dias, passo em frente ao lugar onde era nosso campinho, que agora é só um terreno vazio, murado, incrustado no meio do bairro e cercado pelo mato não cuidado. Um desperdício. Às vezes, a lembrança da maratona extenuante de exercícios que fiz naquela poeira me vem à mente e penso no Moleza, cujo destino desconheço.

Passo o olhar pelo campinho vazio e não tem crianças brincando por ali, correndo pelo campo chutando uma bola, doutrinadas por apitos, sonhando em conquistar medalhas de latão nos sábados de manhã na categoria Dentinho e trazer a glória da vitória para o Amigos da Vila Yara ao menos por um dia. Glória que é, sobretudo, a alegria de encontrar um oásis de dignidade na crueldade da cidade. Aquilo era um resgate. O Moleza sabia.

As crianças da vila já não tem um professor, um herói discreto que sacrifique seu tempo, que empenhe suas noites depois de um dia cheio no trabalho para salvá-las do risco de estarem vulneráveis nas ruas, livres da pobreza em que ele mesmo vivia, para vender-lhes, com um discurso disciplinador, o sonho de dias bons, para empurrá-las para além das fronteiras do bairro, para longe do que ele sabia, mais do que qualquer um ali, que poderia ser um risco, um desvio na rota da inocência, uma antecipação do fim da pureza, a abreviação na construção da história brilhante, não necessariamente entre linhas e gols, que cada criança merece.

(Publicado originalmente em meu blog no Estadão)

A menina e o vento

(Versos para os 15 anos da Nina)

Ela sentia o vento no rosto e sorria.
No balanço, na corrida,
no gira-gira, voando nos braços do pai, o sopro lhe tocava a face e ela reinava.
Acelerando atrás da vida.

Fechava os olhos
e abria as janelas.
Não tinha as asas que tanto queria,
Mas voava distante naquele vento.

O vento era o tempo.
Teimoso.
Chegava logo e atravessava, rompia, batia portas, levantava cortinas, levava coisas.
Nunca parava.

Crescia o cabelo, seus olhos, os vestidos.
O sorriso, seu brilho crescia. Cresciam os sonhos.
E o tamanho da escova de dentes, da cama, dos chinelos largados pela casa.
A vida passa como sopro.

Crescia o medo do escuro,
do futuro.
Crescia a distância, o abismo, os muros. A menina crescia.
O vento era ventania, difícil, respiro duro.

Mas a menina era leve, a moça era forte.
Sua poesia, sua arte, seu sorriso que atravessa o vento como um toque
que fazia parar o tempo, fazia abrandar a fúria,
que capturava todo afeto solto ao redor.

Porque no meio da ventania,
a menina era a brisa.

(Olhos nos) olhos no céu

Noite passada, depois de lermos uma história, fiquei deitado com a Cecília na cama até ela dormir. E talvez pela primeira vez na vida, eu a ouvi dizer duas palavras mágicas que, depois de um dia longo, tocam fundo na alma de um pai ou mãe: estou cansada.

A lua cheia brilhava no céu e a luz atravessava a janela do quarto, de forma que eu podia ver os contornos do rosto da minha filha e seus olhos entreabertos. Ela me encarava, o sorriso de satisfação estampado fazia as bochechas redondas ficarem ainda mais redondas, os olhinhos piscavam de forma cada vez mais lenta.

“Pai…”, veio um bocejo, “será que amanhã a gente pode ter um dia de papai e filhinha com brincadeira e piquenique?”, foi a última frase que falou. “Claro, querida”.

Resolvi ficar ali, contando os intervalos em que aqueles olhos redondos me encaravam e iam se fechando e fechando até que ela suspirou, tombou o rosto sobre o travesseiro e dormiu inaugurando sua noite de sonhos com a leveza de quem acorda diariamente às seis e meia com a única e determinada missão de brincar até que o dia se esgote.

Naquele olhar me sondando por dois minutos, permaneci ainda por longas horas. Absorvido pelo brilho e pureza, intrigado – e ao mesmo tempo com um pingo de inveja – pelo fato de que minha filha, aos seis anos, não faz ideia do que é ir dormir cansado e acordar ainda cansado no dia seguinte, carregando a tensão das preocupações e questões tão profundas que afetam o mundo agora, mesmo sabendo que eu não tenho qualquer condição de resolver nada disso. Ela não faz ideia do que tratam as notícias, conversas, podcasts, livros e discussões que me ocupam até quando não deveria estar ocupado com nada. Nossa sociedade anda complicada demais. Mas, naquele olhar, um portal para a inocência, ontem eu descansei. Retornei por um tempo ao refúgio que reconstitui as prioridades na alma.

Hoje pela manhã, pegamos a estrada para visitar nossos tios numa cidade aqui perto. No rádio do carro tocava “Chega de saudade”. Ao meu lado, Manu cochilava, atrás dela, Cecília brincava com um joguinho e, sentada atrás de mim, eu podia escutar a Nina cantarolando baixinho a música. “Dentro dos meus braços os abraços, hão de ser milhões de abraços, apertado assim, colado assim, calado assim…”. Espiei através do espelho e só conseguia vê-la mirando a paisagem de florestas e plantações pela janela. Eu a encarei por uns instantes e, ao cruzarmos os olhares, notei seu ar curioso ir mudando de forma, os olhos se fechando aos poucos e formando um pequeno arco que acontece quando ela sorri e as bochechas espremem os olhos. Desde quando ela era bebê é assim, a Nina sorri com os olhos antes de mover os lábios. Eu precisava me concentrar na estrada, mas naquele olhar me encarando por dois ou três segundos, eu permaneci por horas.

O que mora dentro desses olhares? Para além da doçura inocente que, nesse instante, me resgata do azedume adulto, tira a poeira da alma e me devolve ao essencial, me pego pensando sobre que tipo de existência elas contemplam. Se aos meus olhos hoje tudo parece nebuloso, da perspectiva delas, que mundo é esse? Que horizontes vislumbram? Manú e eu enxergamos um futuro para elas que certamente não é o futuro que viverão. Gostaríamos de habitar seus sonhos como testemunhas da história que estão escrevendo. Como pais, pensamos nessas meninas crescendo e tentamos imaginar os caminhos que seguirão e, para além das paisagens que esses olhares hão de absorver, que visão de mundo será formada no interior de nossas filhas.

Tem um universo inteiro nisso, que deveria bastar. John Wesley, com a ambição de quem ajudaria a mudar a história, disse que o mundo todo era sua paróquia. Tenho pretensões mais modestas. Meu lar, esse canto aqui, é minha paróquia. Essas duas meninas, a mulher da minha vida, uma cadela quase idosa são toda glória que a existência poderia legar como continuidade do que Manu e eu somos.

No começo deste ano quase fiquei cego. Sei que eu já te contei sobre isso, mas a iminência da escuridão repentina trouxe outro brilho para as cores que hoje consigo notar. Física e figuradamente, já não enxergo mais da mesma forma.

Porque essa visão, a nossa visão sobre a vida, sempre mira algo tão distante, almeja sonhos e constrói ideais necessários para alimentar a esperança. A esperança é sempre urgente. No entanto, por vezes ignoramos que precisamos tocar a terra, descalçar as sandálias e perceber que o tangível, o agora, que o pó da existência nesse pequeno círculo que habitamos é sagrado, nos constitui e nos une. Queremos epifanias, desejamos enxergar a glória divina nos céus e esquecemos que contemplamos Deus face a face nos olhares doces de meninas sardentas que nos sondam, que sonham com piqueniques antes de dormir e cantarolam bossa nova na estrada.

Deus tem alma de criança.

Tem um universo inteiro nisso… onde podemos deixar orbitar nossos afetos, familiares, amigos e o desconhecido na vizinhança que carece do nosso cuidado. Porque precisamos deixar transbordar um bom tanto do que nos sobra. E ainda expressar mais de, estender mais de, esticar um pouco a, praticar mais a. Agradecer.

Meus olhos ainda enxergam tão pouco. Mas sei que eles miram o céu e que resplandecemos o eterno quando olhares se cruzam e entendem, finalmente entendem e transbordam, a alegria de pertencer.

(Publicado originalmente no Estadão)

Técnicas de negociação

O casal – um casal aí, uns amigos, alguém que a gente conhece – decidiu vender o apartamento onde morava e se mudar. Depois de ótimos anos vivendo no local, a oportunidade de ir para um lugar mais agradável somada à dura convivência com o barulho do salto dos tamancos da vizinha do apartamento de cima martelando em suas cabeças desde as cinco e quarenta da manhã, os levou a decidir pela mudança.

Na ordem geral das coisas, depois de decididos pela mudança, o casal (um casal aí, de amigos, uma família que a gente conhece) começou os arranjos para a venda do apartamento. Providenciaram os reparos básicos e necessários, uma boa organização nos brinquedos das crianças espalhados pela casa, uma ordem nos banheiros, nos livros, nos fios expostos atrás da TV e finalmente tudo parecia pronto para receber potenciais compradores.

– Precisamos fazer um anúncio – disse a esposa em certa manhã enquanto preparavam o café.

– Verdade – respondeu o marido.

– Você escreve?

– Eu?

– É. Quem escreve aqui em casa é você. Faz um anúncio bonitinho para eu publicar no grupo de classificados.

– Tá bom – e bocejou.

Dias mais tarde, depois de meia dúzia de cobranças e uma semi-ameaça de divórcio, o marido (um amigo meu aí) sentou para escrever o anúncio. Na primeira linha, veio a dúvida:

– Querida, que valor nós vamos pedir no apartamento?

– Pelo que tenho visto em outros anúncios, vale uns 90.

– Hum. Falei com um colega e ele comentou que dá para vender até por 100.

– Legal. Então divulgue por 130.

– Por quê?

– Porque aí a gente chega em 100.

– Mas se a gente quer 100, porque já não anunciamos por 100?

– Porque aí a pessoa vai oferecer menos.

– Mas se a gente colocar mais caro, aí é que fica fora do que pretendem pagar.

– Não é assim, Enrico. A gente anuncia por mais, a pessoa oferece menos e aí chegamos num meio termo.

– Então a gente quer 100, mas vamos anunciar por 130. Aí, alguém que não tem 130 para pagar virá até aqui olhar o apartamento assim mesmo e, se tiver interesse, vai nos propor 80 para tentar negociar e, no fim, pagar os 100 que gente quer e, pelo jeito, ele também?

– Isso.

– Qual é o sentido disso?

– É a negociação. A pessoa sente que pagou menos do que pedimos e nós conseguimos uma vantagem sobre a proposta inicial.

– Mas, no fim, os dois queriam o mesmo preço.

– Deixa que eu escrevo o anúncio então.

– Não, pode deixar, Malu. Desculpe. Vou trabalhar no texto aqui.

Horas depois, já no trabalho, ela recebeu uma mensagem do marido no telefone:

“oi, td bem? te mandei um email com uma ideia pro anúncio. vc vê se ficou bom?”

“Tá bom =) Já vejo e te falo”

“pensei em numa proposta um pouco mais ~transparente para o anúncio…”

“Sei.”

“depois me liga :-*”

===

De: Lucio Enrico Gramas

Para: Malú Doisber

Assunto: Anúncio do nosso apartamento (aka sincericídio?)

Amor, segue a ideia para o texto do anúncio. Se gostar, me fale e já posto nos classificados:

VENDO. Lindo apartamento com três quartos na Rua do Limoeiro (bom, nós o achamos lindo, mas pode ser que você tenha um gosto diferente). Temos sido felizes aqui e certamente sua família também pode ser. Ele vem com armários, uma linda vista do parque, pintura nova e trilha sonora bate-estaca embutida no teto. Achamos que vale $100, mas estamos anunciando por $130. Se você visitar e gostar, pode nos oferecer $80 para fecharmos negócio nos $100 que ambos queremos. Caso tenha interesse, ligue ou escreva para o número abaixo.

Me fala?

bjs, E.

===

O telefone do marido não tocou naquela tarde.

(Publicado originalmente no Estadão)

Como voltar?

“Mas, todo dia tem que ir pra escola?”. Cecília, minha filha de seis anos, reagiu com certa indignação ao acordar pelo terceiro dia consecutivo às seis da manhã para ir ao colégio. “Por que agora tem que ir pra escola todo dia?”, queria saber. Demorei para me dar conta de que quase dois anos de quarentena, diante da sua pequena existência, representa uma fração de tempo muito maior e uma mudança mais aguda em sua memória. Ela não lembrava como era ir para a escola em 2019.

E na semana em que a segunda dose da vacina completa vinte dias ainda dolorida em meu braço esquerdo, recebo com certa angústia os convites para encontros, reuniões e cafés que pipocam com mais frequência nas mensagens e emails. Como voltar? Será que já está na hora? Ou já não era sem tempo? Ou, quem sabe, já que esperamos até aqui, vale esperar mais um pouco até que…

Cercado pela bolha de privilégios que me permitiu atravessar a quarentena trabalhando em casa e me isolando sempre que necessário, sou confrontado com o fato de que a rotina, daqui a pouco, se parecerá mais com o que era antes de março de 2020 do que com esse estado de suspensão no espaço tempo em que temos vivido.

Por esses dias, revestidos de máscaras, álcool e protocolos sanitários, certas coisas tem voltado ao estado anterior. Em casa, meninas indo à escola diariamente, Manú e eu topando uns almoços na casa de amigos e encontros familiares, uma ida ao parque. Mas, ao voltar para casa depois dessas saídas, admito que sinto um rastro de culpa e desconforto. É como se já (ou ainda) não soasse certo, não fosse justo poder fazer isso.

E, talvez, porque também me dei conta de que desejo fazer isso menos do que desejei acreditar que gostaria.

Tem muitas coisas que já não quero de volta. Lugares, deslocamentos, atividades… já estava bastante cansado daquilo e só percebi quando precisei parar. Quem gosta de shopping centers barulhentos, congressos corporativos, conversinhas, filas, trânsito e restaurantes cheios na hora do almoço?

A pandemia criou uma camada de proteção para os introvertidos. Sob argumento de que a quarentena exigia o distanciamento, pessoas pouco afeitas a atividades sociais aleatórias puderam recusar convites para reuniões, eventos profissionais, churrascos e aniversários. Agora, com a ameaça de uma volta à normalidade, estamos nessa cilada, à procura de novas desculpas para recusar convites, ansiosos com a ideia de ser obrigado a responder sobre o clima, a rodada do futebol e participar de conversas randômicas com gente desconhecida porque a etiqueta exige afinal.

O que era temporário, ao longo desses meses virou uma rotina inteira nova, à qual confesso que me apeguei. Almoços em casa com minhas filhas, um café com bolo no final da tarde com minha esposa, a corrida na rua depois do trabalho, todo cuidado um tanto mais atento com as pequenas coisas da casa. Troquei a leitura de mais jornais por mais livros e o noticiário frenético no rádio do carro por podcasts e playlists de música clássica na caixa de som e agradeço pela ausência do ruído do trânsito engarrafado duas vezes ao dia (a imagem mais comum que me vem à mente quando penso em minha rotina pré-pandêmica é a de luzes de freio dos carros acesas num corredor infinito à minha frente). Eu gosto disso. Gosto da ideia de que a fronteira entre o trabalho e o lar se resume a uma soleira que separa meu escritório doméstico do corredor da sala.

Há quem partilhe desse sentimento. E acho, no fim, que o que tem nos tocado é esse uso diferente de algo que sentíamos já não nos pertencer: tempo.

Nas primeiras semanas de quarentena, Nina, minha filha mais velha, ainda vivia os últimos dias de seus 12 anos e começava a se sentir confusa com a ideia, com a bagunça, a confusão e o mundo de cabeça pra baixo que a revolução hormonal da adolescência eminente lhe apresentava. Agora, ela tem 14 e, ainda em ebulição plena, já é convidada para outros tipos de interação, engata em novos tipos de conversas, escuta músicas diferentes e, para ela, essa transformação de vida brutal pela qual todos nós passamos nessa idade, aconteceu dentro de um quarto.

Voltar a quê, afinal?

Como voltar sem que isso pareça uma afronta ao fato de que mais de 600 mil brasileiros morreram até agora na pandemia? Voltar a quê depois de uma tragédia? Sem ignorar que nossas redes de afeto foram massacradas e ceifadas de forma trágica – e muitas vezes criminosa? Como voltar sem desrespeitar os que carregam o luto de suas perdas? Há crianças que, mais do que um retorno à escola, precisam aprender a viver sem a presença dos pais (só no Estado de São Paulo, entre março do ano passado e setembro último foram 3.836 crianças que perderam algum dos pais e pelo menos 64 pais morreram antes de verem o nascimento dos filhos, segundo apuração do jornal Agora com dados da entidade Arpen Brasil). Há cadeiras vazias na mesa de jantar, há um lado na cama que não será mais preenchido, há lembranças de histórias que não precisariam ser interrompidas. Saudades. E a isso ninguém se apega. Não quando tais tragédias poderiam ter sido evitadas.

Como voltar e respeitar a memória daqueles que perdemos?

“No meio da pedra tinha um caminho…”, não é o que diria Drummond. Mas eu fui num museu uma vez e vi um meteorito e fragmentos de asteroides que vieram do espaço e se chocaram contra a Terra e fiquei pensando que interrompemos a viagem daquele objeto. Aquelas pedras, segundo a legenda nas plaquinhas coladas no chão, tinham milhões de anos e algumas viajaram outros milhões de quilômetros, por milhões de tempos (eram muitos zeros sempre e eu sou de Humanas), vindas da órbita de outros planetas até caírem em algum canto desse mundo que habitamos. Pedaços de rocha vagando pela galáxia, talvez um naco de algum planeta que saiu espirrado depois de um choque sei lá quantos séculos atrás. E vagou por esse tempo todo e foi coletada e estudada por algum cientista até virar uma atração no museu onde me coloquei diante daquilo por alguns minutos em um dia gelado do ano de 2009 e fiquei com um pensamento martelando enquanto a ponta do meu dedo tocava a superfície da peça: é longe demais, é tempo demais… somos pequenos demais aqui.

E se pudesse voltar lá e conversar com aquela pedra hoje (assumindo, me acompanhe, que realmente dê para conversar com uma pedra – e compreenda, por favor, que às vezes falamos com gente que parece menos sensível do que uma) e falar para ela que esses meses de pandemia vão mudar a história e que a humanidade realmente pode ser diferente depois que um vírus colocou o mundo de joelhos e que vamos mudar nossos hábitos, nosso ímpeto ganancioso e rever práticas e… Acho que ela daria risada, a pedra. E me diria “você não sabe o que é história, amiguinho”.

O mundo dá voltas. E não dá pra voltar.

Vivemos em um fragmento da existência toda e enxergamos a história pela perspectiva dessa pequenez em que estamos agora, olhando para o céu à procura de respostas.

Eu gosto de olhar para o céu enquanto corro nas ruas. As nuvens parecem tremer. E procuro acima, naquela vastidão, pelos sinais do Eterno em quem deposito minha fé. Eu tropeço tanto. Mas dentro de mim Deus permanece.

E talvez nisso resida a maior angústia do isolamento que enfrentamos. Somos organismos, ramos dessa imensa árvore da existência, membros de um corpo ao qual pertencemos todos. Mesmo que estivéssemos perto de quem amamos nesse período de isolamento, faz falta para nossas crianças, para nossos pais, amigos e para nossa sanidade, o convívio. É preciso aprender a voltar. Porque algo que não mudou durante o pequeno traço de história que tem sido a presença humana no universo, é que escrevemos nas paredes de rochas e cavernas que dependemos uns dos outros – e das comunidades a que pertencemos – para sobreviver e prosperar.

Como voltar? Com respeito ao vizinho, com empatia por quem sofre, diálogo com os diferentes, lavando as mãos, aos poucos vamos reconectando as pontas soltas, refazendo alguns laços, tirando a bicicleta da garagem. Há novos hábitos que aprendemos nesse tempo e nos acompanharão adiante, há o desafio de criar novas rotinas, de novo. E há a surpresa bem-vinda da casualidade nas interações inesperadas.

E tem um troço inexplicável, a experiência redentora do toque, o efeito do abraço de nossos afetos quando nos vemos. Poder abandonar o ridículo cutucão de cotovelos e receber, de braços abertos, amigos e queridos no morno conforto desse enlace. Sem máscaras. E mesmo para introvertidos e anti-sociais, essa volta significa redenção.

Cecília volta da escola todos os dias na hora do almoço. Abraça a cadela, me abraça, chega com a roupa suja de terra e areia e o cabelo encardido. A máscara ainda no rosto não esconde que tem um sorriso de satisfação estampado naquelas bochechas sardentas e na boquinha banguela. Com frequência, ela abre a lancheira e, além das sobras de pão e frutas, saca uma pedra que recolheu no pátio da escola.

– Pai, olha o que eu trouxe.
– De novo, filha? Desse jeito você vai acabar com as pedras do pátio. Daqui a pouco, a gente vai conseguir levantar uma parede com tanta pedra que você traz pra casa.
– Mas, pai, isso aqui não é só uma pedra! Isso é uma pedra rara, um tesouro. A gente tem que guardar. E tem que segurar com muito cuidado. Quer tocar?
– Claro, entendi. Posso ver?
– Ahãm. Tó.

Olho para a pedra tentando expressar o escrutínio de quem encontra um tesouro. É uma sobra de brita ou uma pedra qualquer usada em obras.

– Pai, de onde você acha que é?
– Não sei, filha. Acho que nunca vi nada igual.
– É.
– Será que é um pedaço de meteoro?
– Ah, pai…

Preciosidades. Não em pedras que caem do céu, mas em fragmentos da nossa pequena existência, nas voltas que a vida dá. Nas mãos estendidas para enxugar lágrimas, nos abraços possíveis que devemos celebrar. No divino que se manifesta quando nos conectamos novamente com o fato de que só vivemos porque também vivemos uns nos outros.

(Publicado originalmente no Estadão)

Sob este teto

Sob este teto circula o perfume das estações que se confundem nesses trópicos, das refeições, dos vapores dos banhos recém tomados, da cadela com banho atrasado, das meninas que se perfumam e preenchem o ar com sua graça, suas idades, nosso humor.

Sob este teto circulam as meninas, em suas idades e tempos, suas roupas do sono, de escola, de festa, de banho. Em seus humores de infância, adolescência e maturidade, em humores de filme, de fome, a consciência de que já tivemos dias melhores mas que ainda nos sobram mais, amanhã, quem sabe, quando tudo finalmente passar.

Sob este teto passa tanto. O microcosmo da nossa pequena existência, a história minúscula que é todo nosso universo, a eternidade de quatro nomes. Passamos tempo, passamos em branco, passamos a limpo, passam filmes e filmes na tv nas noites que passamos juntos. Teimamos em sonhar com nossos olhos mirando este teto.

Sob este teto, os dias começam e terminam. E a rotina cíclica se impõe, na rigidez ditatorial do relógio, do tempo, paradoxal tempo que não controlamos mas do qual somos senhores, brigando para domar esse animal selvagem. Dias de sol e dias nublados que sob este teto observamos pelas janelas que abrimos na alvorada.

Sob este teto reside tudo tudo tudo de que se faz necessária a vida, a minha. Mora aqui a história, as pessoas, habitam lembranças, sob este teto há dúvidas ruminantes e certezas claras. Há, aqui, portas rangendo e o consolo perene do que podemos chamar de lar.

Sob este teto, com bonecos espalhados pelo chão, com livros emoldurando paredes, retratos gastos colocados pelos cantos e cada vez mais plantas crescendo verdes em canteiros. Há roupas no varal, café esfriando nas xícaras, pernilongos zumbindo rebeldes seu terrorismo, risos infantis na paisagem sonora, há fragmentos da vida ordinária em cada gaveta que se abre.

Sob este teto o extraordinário se manifesta, o amor se move em brisas pelos corredores, na parede sólida da fidelidade, na existência que dança ao ritmo dos ponteiros do relógio. Sob este teto o sagrado se manifesta, eu tiro as sandálias e piso descalço em solo santo, grato e certo de que tudo de que preciso repousa em lençóis brancos e num altar erguido à vida que se eterniza aqui.

(Publicado originalmente no Estadão)

Vivendo de sobras

Temos vivido de sobras. Nesse tempo em que tanto nos falta, em que tantos já nos fazem falta e a completude que sentíamos desfrutar no passado nos parece ceifada, temos aprendido a nos virar com as sobras. Um catado de coisas, esses remendos de atividades que se tornaram uma nova e temporária noção de rotina.

Sobra saudade de quem partiu.

Sobra um vazio no peito, falta um nome para isso, mas sobram as memórias. Porque faltam caminhos, sobra esse sentimento de impotência. Sobra a indignação diante da falta de respeito, de zelo, de honestidade, governo. Sobra o afeto diante do tanto que falta para que se possa ser repartido.

Sobra o quê se não tem diálogo?

Alguns repartem as sobras, outros dividem o que tem até quase lhes fazer falta, mas fazem sua parte para estender a mão a quem tem falta, sobretudo agora em que tanto falta. Outros não dividem, acumulam e acumulam e acumulam suas sobras – convenhamos, esses não fariam falta.

Só nos sobra esperança em meio a tantas notícias ruins.

Tem que nos sobrar um rastro de fé, um grão de mostarda que seja, diante de tanta incerteza, para que possamos mover as montanhas que nos assombram. E também sobra o amor, este sobre todas as coisas, entre as coisas que nos sobram escolher sentir.

Porque abundam sentimentos controversos quando falta tanto para tantos. Faltam escrúpulos, falta caráter, igualdade, justiça. Faltam palavras. Sobra tempo para refletir sobre muita coisa.

Sobra pouco tempo para salvar o mundo.

Estamos privados da liberdade que naquele passado remoto pré-pandêmico usufruímos sem valorizar. Estamos privados de abraços, de toques, de celebrações e momentos festivos. Seguimos escondidos de um inimigo cuja face não enxergamos. Sobram rostos sem máscaras, faltam discernimento e respeito. Estamos nus. Sobramos aqui, isolados, porém menos distantes do que deveríamos. Porque sobram cadáveres, meio milhão de nomes que agora fazem falta para alguém.

Sobram vítimas porque faltam vacinas. Sobra sempre para os mais fracos, para os pobres. Sobra dor. E o que nos sobra é levantar o olhar e seguir em frente.

Estamos vivendo dessas sobras.

Sobra um pouco de café na caneca. Gelado. Era só o que me faltava.

Sobre o quê estávamos falando?

Sobra uma máscara no rosto como refúgio. Sobrancelhas à mostra expressando o sentimento escondido. Sobra um punho cerrado em protesto. Sobra álcool no copo e nas mãos. Sobra vontade de gritar, mas falta quem nos escute. Sobra uma canção nos lábios, um fio de resistência poética, uma música de outros tempos que agora se faz presente, mas cuja letra me falta e sobram apenas versos incompletos sendo cantarolados desde a manhã por todo dia afora: “…amanhã há de ser outro dia.”

Falta o sentimento de amanhã, aquela velha e ilusória certeza, a previsibilidade da próxima semana, os compromissos para o mês que vem. Sobravam planos. Agora sobra apenas o que temos aqui e agora, vivendo o dia de hoje, sentados à mesa, nós quatro, compartilhando graças, trocando farpas, passando a travessa de arroz, servindo um copo de água um para o outro, testando uma sobremesa nova e tentando chegar a um consenso quanto às decisões mais complicadas de cada noite nesse microcosmo que habitamos: que filme veremos hoje à noite? De quem é a vez de tirar a mesa? Quem faz a prece noturna? Quem descer para passear com o cachorro não precisa lavar a louça?

Sob esse teto, temos um ao outro.

Sobra isso que somos. As sobras de que temos vivido e que por hora nos bastam. Ao menos hoje. Porque temos amor de sobra.

(Publicado originalmente no Estadão)

Futuro do pretérito

Em 1964, o jornal The New York Times pediu ao escritor de ficção científica Isaac Asimov que escrevesse um artigo respondendo à pergunta “Como será o mundo daqui a 50 anos?”. No texto publicado no dia 16 de agosto daquele ano, Asimov apontou o que seriam suas previsões para 2014.

É curioso olhar pelo retrovisor da história e constatar que ele acertou diversas mudanças com as quais nos habituamos a conviver nas últimas cinco décadas. Constava entre seus palpites a ideia de que teríamos painéis e paredes iluminadas que mudariam de cor com o toque manual e janelas de vidros que ficariam opacas à medida que a luz do sol incidisse sobre elas. Ele previu também que teríamos aparelhos em nossas cozinhas que fariam café, pão e refeições completas de forma automatizada, escreveu uma ideia bem formulada sobre carros autônomos, sobre computadores se tornarem tão pequenos a ponto de serem usados como cérebros de robôs (inteligência artificial?) e sobre TVs, até então caixotes em tubo, se tornarem telas planas e finas com filmes projetados em 3D. Existem também ideias malucas que a humanidade não foi capaz de inventar, ainda, e outras tantas que ao reler o artigo eu fico em dúvida se aquilo de fato já não existe por aí e eu é que ainda não sei.

E que tal isso aqui? “As comunicações se tornarão visuais e auditivas e você verá e ouvirá a pessoa para quem telefonar. A tela pode ser usada não apenas para ver as pessoas para quem você liga, mas também para estudar documentos e fotografias e ler trechos de livros. Os satélites síncronos, pairando no espaço, possibilitarão a você discar diretamente para qualquer ponto da Terra, incluindo as estações meteorológicas na Antártica (…)”. Esse celular aí no seu bolso, esse mesmo, o Asimov cantou a bola do iPhone quatro décadas antes dele ser lançado.

Algumas dessas previsões são recursos e objetos de algum jeito óbvios para nossa sociedade hoje. As TVs em led, iluminação fotocromática, smartphones, microprocessadores, inteligência artificial… mas, como alguém pensaria nessas ideias antes de serem criadas, antes de serem possíveis, cinquenta anos atrás?

Em seu palpite final, no entanto, Asimov sugeriu que um mal coletivo atingiria a humanidade em nossos dias: o tédio. “Uma doença que se espalha a cada ano e sempre de forma mais intensa”, ele escreveu. Por conta disso, apostou que em 2014 a psiquiatria seria a especialidade médica mais importante no planeta. “Os poucos sortudos que podem estar envolvidos em trabalhos criativos de qualquer tipo serão a verdadeira elite da humanidade, pois só eles farão mais do que servir a uma máquina”.

Em sua ideia mais enfática, seríamos um mundo próspero de tal forma e com tão pouca escassez de recursos que a principal atividade médica seria a de psiquiatra, porque as pessoas estariam tomadas pelo tédio completo.

Duvido um bocado que tanta gente esteja padecendo de tédio em nossos dias. E ainda que desconheça a que taxas psiquiatras e psicólogos se formam e abrem consultórios bem sucedidos no mundo atual (eu certamente cumpro parte da cota frequentando um divã virtual semanalmente), aposto um pacote de jujubas que também não seja “tédio” o diagnóstico que evoca as descobertas de Freud, Jung, Lacan e companhia limitada para tratamento de uma geração que tem na ansiedade, depressão e no esgotamento total alguns dos males mais recorrentes.

Mas, se errou ao dizer que seríamos uma população bocejante e espreguiçada, Isaac Asimov acertou ao dizer que o mundo seria próspero como nunca antes. De fato, acumulamos mais riqueza no planeta durante esses 50 anos do que poderíamos imaginar. Apenas cinco anos depois do vislumbrado 2014, três empresas foram cotadas na Bolsa de Nova York em mais de um trilhão de dólares cada uma. Se fossem somadas e formassem um país, seria a quinta economia do mundo, à frente de nações como Índia, França, Itália, Canadá e, claro, o Brasil (que vem despencando na tabela nos últimos anos, caindo da sétima para a décima segunda posição nesse ranking).

Isaac Asimov não errou a conta de multiplicação, mas a de divisão. Era bom de ficção, mas cabulou as aulas de macroeconomia – ou talvez de ciências sociais, porque o problema não está nas fortunas em si, mas nas mãos que as controlam. A riqueza que somamos ao longo dessas cinco décadas, em vez de tornar a todos mais prósperos, foi empilhada nos cofres de uma minoria que ficou mais e mais e mais e mais rica enquanto o abismo da desigualdade se acentuou. Temos, hoje, quase metade da população mundial (aproximadamente 3,5 bilhões de pessoas) vivendo em condição de pobreza extrema, o que significa viver com menos de US$ 1,90 por dia. Enquanto isso, 1% da população mundial (dá pra fazer a conta na mão) concentra mais dinheiro em suas posses do que os 99% restantes. De 1964 para cá, essa diferença só cresceu. E quem tenta sobreviver com menos de dois dólares por dia, pode estar precisando de cuidados psiquiátricos – entre tantas coisas – mas certamente não está entediado.

De vez em quando, eu volto a esse texto e me pego tentando fazer o caminho contrário. Tento exercitar o olhar e busco enxergar o mundo com os olhos do escritor naqueles dias. Em que contexto histórico Asimov vivia para, olhando para o que via ao redor, vislumbrar o mundo de hoje com tais características, eventos e condições? E, se ele acertou em tantas previsões triviais, por que errou tão feio quando julgou a condição social da humanidade?

Em 1964, o escritor registrou suas previsões tendo como base a visita que fez à Feira Mundial em Nova York e os passeios nos estandes da General Electric, IBM e GM (as potências tecnológicas naquele tempo citadas no artigo). E segundo me relembra o Google e as parcas memórias das aulas de História na oitava série, em 1964 o mundo havia saído há apenas 19 anos da Segunda Guerra Mundial e os Estados Unidos haviam embarcado na Guerra no Vietnã. Eram um país dividido pela segregação racial, planejavam a todo vapor a primeira viagem tripulada para a Lua e acreditavam que o fantasma do comunismo assombrava seus quintais de gramas bem aparadas enquanto gastavam fortunas na Guerra Fria. Era um tempo bem tenso na história. E só me parece que deveríamos ter evoluído desde então.

Em 1964, no Brasil, depois de um golpe de estado, uma ditadura militar instalou-se no país dando início a alguns dos anos mais nefastos da nossa história. Cinquenta anos depois, no 2014 idealizado por Asimov, houve brasileiros que saíram às ruas em protesto mirando 1964 e idealizando ali o seu futuro. Quatro anos depois, elegeram um presidente do século passado. A frase célebre do Millôr Fernandes poderia estar estampada na faixa presidencial: “O Brasil tem um enorme passado pela frente”.

E isso me lembra que há sempre um ponto de partida, a perspectiva, o lugar a partir do qual esse olhar para o futuro é lançado.

Se a máquina do tempo citada em seu livro “O Fim da Eternidade” (publicado em 1955) o trouxesse aos nossos dias e Asimov desembarcasse aqui no bairro, eu lhe cederia uma máscara, uma borrifada de álcool em gel nas mão e contaria que de tédio ninguém tem morrido neste tempo. E tentaria um alinhamento de rota na futurologia.

Daria um desconto na questão da pandemia, afinal nem ele passou por uma dessas (a Gripe Espanhola, última pandemia global que enfrentamos, teve fim em 1920, ano em que o escritor nasceu, me diz a Wikipedia). E quem imaginaria a dinâmica de um mundo tecnológico e controlador sendo dobrado por um vírus? Porque inventar o conceito de telefone celular e de carro autônomo na década de 1960 parece uma coisa bem razoável, mas pensar num vírus letal paralisando o planeta por quase dois anos, aí não amigo, aí já é ter uma imaginação fértil demais.

Mas, aproveitando a visita, perguntaria que previsões ele faria agora para o mundo daqui a mais 50 anos, lá em 2071? Olhando em retrospecto para as últimas cinco décadas, como estaremos nesse futuro meio século adiante? Para além de geringonças tecnológicas, profissões, crises existenciais e meios de transporte, nossos filhos e netos serão adultos em que tipo de sociedade?

Livre da tensão da década de 1960, Asimov daria um curto suspiro atrás da sua máscara, olharia ao redor e veria o mundo de agora como seu ponto de observação: líderes insanos, autoritários, fascistas e delinquentes governando países. O planeta derretendo e a floresta e os recursos naturais que podem nos salvar virando cinzas. Pessoas que não acreditam em ciência, que desafiam os fatos, que acham que se correrem e correrem sem parar vão cair da borda de um planeta plano. A pobreza extrema, a desigualdade social, de raça, gênero e classes calando vozes e oprimindo pessoas minorizadas. A indiferença transbordante nas relações pessoais, que mata o afeto, que enterra o diálogo, que sufoca o amor e nos impede de somar forças.

“Meu rapaz, acho que a máquina falhou. Estou mesmo em 2021 ou 1921?”, talvez ele perguntasse.

A realidade é mais estranha que a ficção. E temos esse lugar a partir do qual olhamos em perspectiva para o horizonte possível, vestindo as lentes dos dias em que estamos e 2071 não parece lá muito atraente. Mais do que o mundo que teremos, me pego aqui conjecturando sobre que mundo queremos, afinal. É urgente semear outro futuro.

(Publicado originalmente no Estadão)